Agosto e setembro de 2020

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INFORMATIVO

Agosto/setembro de 2020

Celebração dos 20 anos une testemunho afetivo e disposição para a luta

 

No dia 26 de agosto a FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas completou duas décadas de atividade desde que foi fundada em Cuiabá.

A data foi celebrada em sessão que combinou memória afetiva, análise de conjuntura e testemunhos técnicos e políticos, além de leituras poéticas com elementos que remetem à história e ao “espírito” da entidade.

Entre outros pontos, as falas destacaram a longevidade e o fortalecimento institucional ao longo da trajetória; a qualidade e os impactos do trabalho realizado; e o desafio de atuar sob um governo autoritário e neoliberal, somado à tendência de que o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) desloque-se ainda mais para o centro do debate nacional em função dos efeitos da pandemia de Covid-19.

Realizada de modo virtual, a sessão reuniu representantes de instituições parceiras, apoiadoras e apoiadores e integrantes da diretoria, da membresia e da equipe executiva. Estavam presentes a presidenta da FIAN Internacional, Sofia Monsalve, e o presidente da seção brasileira, Enéias da Rosa.

Pelas organizações e movimentos com os quais nossa entidade atua em pautas conjuntas, falaram Antônio Canuto, da Comissão Pastoral da Terra (CPT); Antonio Escrivão Filho, o Tuco, de O Direito Achado na Rua; Cláudia Pinho, da Rede de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil; Denise Carreira, da Plataforma Dhesca; Elisabetta Recine, da Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional; Flávio Machado, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi); Francisco Menezes, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN); e Luiz Zarref, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

A diretora financeira da FIAN Brasil, Norma Alberto, abriu o evento. Em nome da organização também falaram o fundador Irio Conti, a ex-presidenta Mariza Rios e a atual secretária-geral, Valéria Burity. Célia Varela, que já respondeu pela Secretaria-Geral, representou a membresia.

O evento lançou a logomarca celebrativa dos 20 anos, com a frase “Exigir direitos, alimentar a vida”, que desde então figuram em todos os nossos materiais e seguirão até agosto de 2021.   

A parte musical da celebração ficou por conta de Vanessa Soares e
Léo Bleggi.

Passado, presente e futuro:
memória, realizações e desafios
em cinco leituras

 

No centro dos testemunhos do evento em que a FIAN Brasil comemorou 20 anos, as percepções de transformação conceitual e política, fortalecimento institucional e desafio ampliado pelo cenário nacional e internacional também atravessam as análises de cinco pessoas ligadas a esta história: a representante permanente da FIAN Internacional em Genebra, Ana María Suárez Franco; o presidente da seção brasileira, Enéias da Rosa; o diretor executivo da FIAN Colômbia, Juan Carlos Morales González; o cofundador da FIAN Brasil Irio Conti; e a diretora financeira, Norma Alberto.

Principal responsável pela interlocução da FIAN com a Organização das Nações Unidas (ONU), Suárez Franco destaca as realizações da seção brasileira na incidência internacional. “Valorizo ​​o papel que a FIAN Brasil desempenhou durante o processo de negociação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Zonas Rurais, bem como processos relacionados, incluindo as discussões do Comitê Desc para a adoção de um Comentário Geral sobre a Terra e os Desc [direitos econômicos, sociais e culturais], ou os esforços da sociedade civil para conduzir a transição para um mundo livre de agrotóxicos”, enumera.

Ela também cita como de grande importância o acompanhamento das comunidades Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. “Em estreita colaboração com o Cimi [Conselho Indigenista Missionário] e com o Secretariado Internacional da FIAN, a FIAN Brasil tem contribuído para trazer as vozes que contam as realidades cruéis que vivem esses povos”, diz, lembrando a documentação do caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ao Comitê Desc, ao Conselho de Direitos Humanos e aos relatores especiais da ONU. “Essas autoridades obtiveram várias recomendações ao Estado brasileiro. O trabalho de advocacia no Parlamento Europeu resultou numa resolução de apoio às comunidades”, comenta.

“É uma seção muito respeitada, muito prestigiada, que mantém uma agenda muito densa, que inclui casos complicados”, descreve Juan Carlos Morales González. Ele vê um esforço compartilhado entre as duas representações e a equatoriana na articulação entre as FIANs da América Latina e do Caribe. “Temos problemáticas similares a enfrentar, além daquelas regionais e planetárias.”

Momentos

Irio Conti identifica quatro períodos claros nessa consolidação. No primeiro, do começo da década de 80 ao fim da década de 90, o debate de direitos humanos (DH) vai se alargando a partir de uma ênfase nos direitos civis e políticos, bastante focada na redemocratização e na superação das heranças da ditadura militar; os anos que antecedem imediatamente a fundação, com o intercâmbio entre a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a FIAN Internacional; a expansão da militância e da presença nos espaços institucionais, baseadas no voluntariado, até 2010; e a profissionalização, com a primeira contratação como marco inicial, daí até os dias atuais.

“Nos anos 90 vemos pautas como o feminismo e a negritude emergirem da discussão geral de direitos humanos, um forte clamor pela terra – ainda não se falava muito em “território” – e uma crescente articulação dos diversos movimentos”, recorda. Nessa agenda, os direitos econômicos, sociais e culturais, conhecidos pela siga Desc, ganham centralidade, e o Brasil compromete-se em 1992 com o pacto internacional que os promove, o Pidesc.

Ele lembra que a origem da FIAN Brasil entremeia-se à do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e à da Plataforma Dhesc, hoje Dhesca Brasil. Fundada em 2000, em Cuiabá, com o nome Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar, a organização funcionou inicialmente na casa de Paulo Metzner, Luciano Wolff e Cristina Wolff, com Conti na presidência.

“No dia da fundação, 26 de agosto, estávamos na casa deles, também com Vitor Metzner. Mais dez membros, para quem não tínhamos condição de pagar passagem, assinaram a ata. Em novembro o comitê internacional da entidade já nos reconhecia como seção. É um processo que normalmente leva anos”, ressalta, citando similaridades com a história da FIAN Internacional, criada 14 anos antes em na Alemanha. “Lá, também na casa do Rolf Künnemann, em Heidelberg, o escritório funcionou muito tempo num cantinho no sótão, e a colaboração se dava num espírito afetivo, caloroso.” 

Os principais momentos dessa construção estão contados no informe institucional de 18 anos da organização, publicado em 2018.

“Cheiro de burocracia”

O cofundador conta que um dilema marcante foi participar ou não de políticas públicas, no contexto do primeiro governo Lula, que teve o Programa Fome Zero como pedra fundamental. “Nos anos 80 e 90 vínhamos de uma crítica forte ao que vinha do Estado e ao que vinha da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura]. Dizia-se que cheirava a burocracia, cheirava a Estado.” Na avaliação sobre participar ou não do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), havia o receio de ser absorvido, de a organização ficar por conta daquelas demandas. “Mas a partir de 2007 começamos a participar, e nossa presença nos grupos de trabalho foi muito importante em termos de visibilidade institucional e de pautar o tema como direito humano.”

Foi nessa arena que a atual diretora financeira, Norma Alberto, conheceu o trabalho da FIAN. Ela presidia o Consea do Piauí e coordenava, no conselho nacional, a comissão de Conseas estaduais. “A participação da FIAN nos debates, sempre bem fundamentada e aguerrida, chamava atenção, assim como a defesa da dignidade humana com foco naqueles povos que são mais marginalizados, mais esquecidos”, diz.

Norma aproximou-se a da entidade, foi aceita como integrante em 2015 e convidada a integrar o corpo diretor, continuando nele na gestão seguinte. Data daquele ano a mudança da sede – desde 2003 em Goiânia – para Brasília. Um ano e meio depois, o nome da entidade seria alterado para Organização  pelo  Direito  Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, espelhando um realinhamento político-conceitual em andamento também na FIAN Internacional e que teve, lá e aqui, a contribuição de pesquisadores/representantes como Conti e Flavio Valente. 

Nutricionista por formação, a dirigente avalia que incorporar essa dimensão ao direito à alimentação adequada – que acrescenta um “n” à sigla DHAA, que passa a Dhana – contribuiu para que se olhasse com mais profundidade para a alimentação: “Muitas universidades têm hoje disciplinas de SSAN [soberania e segurança alimentar e nutricional]. Vemos a formação de profissionais com visão mais ampla e holística, e a sociedade ampliando seu olhar.”

Norma identifica na extinção do Consea – na primeira canetada de Jair Bolsonaro como presidente, em 2019 – a interrupção de um salto de dez anos. Avalia como uma medida que, para além de retaliar as organizações atuantes no setor, prejudica as populações que constituíam o público alvo dessa política pública. “Mas os movimentos não esmoreceram”, afirma.

A relação entre autoritarismo, neoliberalismo e os retrocessos nas áreas de proteção social e combate à fome, e de produção e consumo de alimentos sustentáveis, é tratada no Informe Dhana 2019, que detalha o cenário pós-golpe de 2016, no governo Temer.

A publicação expressa a atual linha de atuação da entidade, que tem dois momentos centrais de depuração. Em 2008, com a elaboração da metodologia  da  FIAN  Internacional  de  acompanhamento  e  monitoramento  de  casos, baseada em um enfoque de direitos humanos (human rights-based approach), que compreende  processos de documentação e análise das violações de direitos, empoderamento dos  sujeitos  de  direitos,  delimitação  de  estratégias  e  consequente  exigibilidade  e/ou  justiciabilidade  desses  direitos  diante do  Estado e de organizações  supranacionais. Nesse momento, já se opta pelo acompanhamento de um número menor de casos, com maior profundidade.

Em 2015, dois outros eixos de ação passam a configurar um tripé estratégico ao lado dos casos: incidência e advocacy. A primeira visa à adoção de medidas concretas do poder público, ao passo que a segunda consiste na defesa de determinadas pautas e valores, buscando sensibilizar a sociedade e influenciar tomadores de decisões. 

Alimentação e democracia

“Não tenho dúvida de que nosso lugar no debate político e social do país é de referência no tema de Dhana”, comenta o atual presidente, Enéias da Rosa, que descreve a fase em curso como de consolidação institucional. “A FIAN tem estado em vários espaços de diálogo, de debate, contribuindo, orientando, também em defesa da democracia e da participação social como princípios basilares da garantia dos direitos humanos, em especial o que trabalha.” Ele sublinha a atuação de destaque em outras agendas relacionadas ao tema, como a da luta contra os agrotóxicos e a do enfrentamento da pobreza e da desigualdade.

A seu ver, um tema central para atuação no presente e no futuro próximo é a garantia de acesso à renda. “A gente já vem observando nos últimos anos, sobretudo de 2014 para cá, o empobrecimento e o aumento da desigualdade no país. Agora, com a pandemia, os dados apontam para um processo ainda mais intenso. Na perspectiva do fortalecimento das articulações e dos diálogos, me parece que o tema da renda básica surge novamente como um tema estratégico que a FIAN pode trabalhar.”

Irio Conti expressa leitura semelhante, citando o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) como outras bandeiras mobilizadoras. “Na época, o próprio governo popular achou a proposta de renda básica muito avançada. Os movimentos poderiam ter abraçado a ideia com mais ênfase.”

“Garantir a sobrevivência econômica das organizações para as quais trabalhamos por um mundo mais justo é difícil em tempos de recessão”, alerta Ana María Suárez Franco, acrescentando que os fundos internacionais para organizações de direitos humanos, especialmente na América Latina, diminuem notavelmente. “Assim, o trabalho para garantir os recursos que permitam ao setor dar continuidade ao seu trabalho também será essencial para garantir mais 20 anos de trabalho contra as injustiças.”

Na leitura de Enéias da Rosa, entre os muitos desafios e prioridades será preciso fazer algumas opções, tendo presente o tamanho institucional e o papel a cumprir na conjuntura como um todo. “Diria que o primeiro, e isso é meio dado, é que o papel da denúncia da violação de direitos humanos está na origem da FIAN e tem que ser mantido. O contato direto com os grupos, o contato direto com as populações, com os territórios, no sentido de dar visibilidade às violações”, pondera.

Defesa da vida

Para Juan Carlos Morales González, da FIAN Colômbia, estão na ordem do dia problemas como o crescimento da extrema-direita em diversos países e a iminência de um colapso ambiental. Ele destaca o desencadeamento de epidemias e pandemias como sintoma e resultado desse desequilíbrio: “Boa parte do que está acontecendo é explicada pelo modelo alimentar corporativo, com a destruição dos bosques, florestas, pântanos, cursos d’água”. O diretor alerta que os conflitos alimentares seguirão crescendo em número e gravidade. “Nesse sentido, é inspiradora a linha de trabalho da FIAN Brasil, com a defesa dos territórios e das populações indígenas, quilombolas e camponesas”, elogia.

“A luta pelo direito à alimentação é supremamente estratégica de encarar o futuro que enfrentamos. Precisamos ascender o sujeito humano ao centro da atenção, ao lado da defesa da natureza, do direito à vida das outras espécies. Se não conseguirmos, qualquer luta será insuficiente e experimentaremos um grande fracasso.”

O que quer dizer essa frase?
Por que essas sementes?


A frase escolhida para celebrar estas duas décadas de atividade da FIAN Brasil sintetiza duas ideias centrais para nós. A primeira é que direito não se pede, exige-se, e a informação tem um papel fundamental nisso. A outra é que a ação de nos alimentarmos e às pessoas à nossa volta vai muito além da necessidade imediata de saciar a fome: representa, dos pontos de vista orgânico e social, o ato de constituir pessoas, ou, dito de outro modo, transformar natureza em gente. Gera saúde, identidade, acolhimento, sentimentos de comunhão e de pertencimento a um grupo.

Vemos este ano como estratégico para a FIAN espalhar sua mensagem, os valores que defende, reforçar os laços com os parceiros de estrada e chegar a novas pessoas, que não acompanham tão de perto a discussão do Dhana ou mesmo dos direitos humanos em geral. Daí a ideia de uma campanha também. Um ano de celebração e, ao mesmo tempo, de luta.

A frase vai nos acompanhar por 365 dias, até 25 de agosto do ano que vem. A logomarca comemorativa, idem. Quer vir junto?  

A logo foi criada pelo Marcelo Armesto, designer e ilustrador de Porto Alegre, em diálogo com a gente.

A ideia era combinar a reafirmação da identidade da FIAN por meio da sua marca – em que uma enxada rompe o arame farpado representativo de tantos cercamentos – com a ênfase aos 20 anos de trajetória e uma certa “licença poética”, por ser uma marca temporária, celebrativa.

A proposta escolhida nasceu com feijões, que viraram sementes crioulas variadas.

Elas expressam diversidade tanto regional como biológica (biodiversidade agrícola) e nutricional, estão muito associadas à agroecologia, a tecnologias sociais, ao compartilhamento, a um sistema alimentar mais sustentável em todas suas dimensões – em oposição aos pacotes tecnológicos do “agro”, recheados de agrotóxico, de transgênicos, de padronização, de mecanização e de financeirização.

Essas sementes têm uma carga simbólica que evoca não só produção e alimentação, mas também chão, cultura, semeadura, enraizamento, resistência, resiliência, cuidado… ancestralidade, esperança, crescimento, amadurecimento, tempo, futuro

Achamos que esse padrão visual passa, ainda, a ideia de união, de soma de forças e de pontos de vista.

E você, como lê nossa frase e interpreta nossa simbologia?

Guarani e Kaiowá reúnem-se com relatores especiais da ONU

 

Em 18 de agosto, representantes dos povos Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul reuniram-se com dois relatores especiais das Nações Unidas, Michael Fakhri (direito à alimentação) e Olivier De Schutter (pobreza extrema e direitos humanos).

Os indígenas contaram com o acompanhamento da FIAN Brasil e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Em 25 de setembro, Janio Avalo, da Aty Guasu, denunciou o agravamento da situação de vulnerabilidade dos Guarani e Kaiowá com o governo Bolsonaro e a pandemia de Covid-19 na Organização das Nações Unidas (ONU). Sua mensagem (aqui, a partir de 0:24:31) foi transmitida na 21ª Reunião com o Relator Especial dos Direitos, parte da 45ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos. O tempo de fala foi cedido pela FIAN Internacional.

Na sessão, também falaram sobre a situação brasileira Paulo Lugon Arantes, representante do Cimi; Maurício Tomé Rocha Ye’kwana; Florencio Almeida Vaz Filho, do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns; Camilla Argentieri, da Right Livelihood Foundation. É possível assistir a cada intervenção no mesmo link.

Videoaulas do nosso curso de direito à alimentação estão no ar

 

Quatro “aulas-entrada” do Curso Básico de Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (Dhana) estão disponíveis para assistir no nosso canal de vídeo (youtube/com/FIANBrasil).

Transmitidos originalmente como lives semanais em setembro, os vídeos correspondem a uma primeira imersão em cada módulo temático do curso, conduzida pelo respectivo autor(a):

I – Histórico e conceito do Dhana – Nayara Côrtes (FIAN Brasil);
II – Exigibilidade e o Dhana – Flavio Valente (Universidade Federal de Pernambuco – Ufpe);
III – Abastecimento e o Dhana – Julian Perez-Cassino (Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – FBSSAN)*
IV – Economia e o Dhana – Grazielle David (Universidade Estadual de Campinas – Unicamp)

O módulo I foi impresso e será enviado pelo correio a organizações que nos pedirem. Os outros três serão publicados no nosso site para ler e baixar gratuitamente. Os temas foram tratados em episódios do podcast Prato Cheio, do portal jornalístico O Joio e o Trigo, com apoio da FIAN. Os programas marcarão o lançamento de cada publicação. 

*Número escrito em coautoria com Priscila Diniz (Universidade Federal do Paraná – UFPR)

 

Entidades apelam ao Banco Mundial contra grilagem e destruição ecológica no Matopiba

 

Uma carta aberta endereçada ao Banco Mundial (BM), com cópia para o governo brasileiro, apela para que a instituição multilateral não facilite nem legitime grilagem de terras e destruição de ecossistemas. A manifestação, que tem a FIAN Internacional entre suas formuladoras e a FIAN Brasil entre suas signatárias, reivindica que o banco assuma responsabilidade e aja para evitar que o projeto Piauí: Pilares de Crescimento e Inclusão Social, formulado pelo governo estadual, contribua para esses crimes no Matopiba. Batizada com as iniciais daquele estado e de Maranhão, Tocantins e Bahia, a região é uma das principais fronteiras agrícolas do país.

A iniciativa de US$ 120 milhões foi denunciada pela sociedade civil por apoiar um programa de titulação fundiária que tem sido usado pelo agronegócio para legitimar apropriações de terras e expandir monoculturas. Uma reclamação apresentada por comunidades afetadas foi rejeitada recentemente pelo Painel de Inspeção do Banco Mundial.

Segundo o governo estadual, Pilares de Crescimento e Inclusão Social foi concebido com a intenção de acelerar o desenvolvimento do estado de forma inclusiva e permanente focando em áreas-chave como Educação, Saúde, regularização fundiária, preservação ambiental e incentivo às cadeias produtivas rurais.

Os objetivos incluiriam expandir o cadastramento dos usuários de águas subterrâneas nas áreas rurais e a regularização da propriedade da terra, assim como aumentar a participação de agricultores familiares em cadeias de valor, e quilombolas são citados entre os beneficiários diretos. No entanto, comunidades tradicionais da região testemunharam várias violações de direitos humanos, incluindo expropriação, violência e destruição de seus ecossistemas e meios de subsistência devido à expansão do agronegócio e à especulação fundiária.

Para legalizar suas operações, grileiros, muitas vezes patrocinados por investidores transnacionais – incluindo fundos de pensão europeus e norte-americanos  –, buscam receber títulos de propriedade por meio do Programa de Regularização da Posse de Terras, implementado pelo estado do Piauí e apoiado pelo Banco Mundial.

Reclamação formal

Diversas comunidades localizadas no sudoeste piauiense apresentaram uma reclamação formal ao Painel de Inspeção, o órgão fiscalizador interno da agência, em dezembro de 2019, pedindo uma ação rápida contra os problemas em curso. A administração do Banco Mundial negou qualquer responsabilidade por supostas violações dos direitos humanos (DH), afirmando que estas não se relacionavam às atividades do Pilares e estavam fora do controle do banco.

Depois de realizar uma visita de elegibilidade ao Brasil, o relatório final do painel confirmou essa opinião e recusou claramente a necessidade de uma investigação aprofundada. Na resposta à carta aberta de agosto, a diretora para o Brasil, Paloma Anós Casero, reitera esse entendimento.

Entre outras organizações, o documento de denúncia também é assinado por ActionAid, Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário Regional (Cimi) Maranhão, Movimentos dos Trabalhadores e Trabalhadoras do  Campo (MTC) e Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. A lista de destinatários copiados inclui dirigentes da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e relatores especiais da ONU.

“O Banco Mundial e seu Painel de Inspeção afirmam que o financiamento do projeto não foi usado para legalizar grilagens de terras ou para emitir títulos de propriedade para proprietários de terras em grande escala. No entanto, há uma ligação clara entre o projeto e a dinâmica atual de grilagem, especulação e expropriação de comunidades rurais, bem como destruição do ecossistema no Piauí ”, diz o coordenador de Recursos Naturais da FIAN International, Philip Seufert.

Prioridade na Lei

A lei de terras recentemente revisada do Piauí afirma que as comunidades tradicionais precisam ser priorizadas no processo de regularização de terras, conforme prevê a legislação brasileira. Após pressão exercida por comunidades e organizações de apoio, o Banco Mundial incluiu oito comunidades em seu projeto de titulação de terras em 2018. No entanto, até hoje nenhuma delas recebeu os títulos coletivos de terra reivindicados.

“Esperamos que o Banco Mundial coopere com as autoridades do Piauí para dar prioridade à regularização dos títulos de propriedade das comunidades rurais, em particular as mais ameaçadas de expropriação, e para suspender a emissão de títulos para grandes proprietários de plantações e empresas do agronegócio”, comenta o secretário do escritório da FIAN Internacional para o Brasil, Felipe Bley-Folly, que coordena o Programa de Justiciabilidade da entidade.

“O Banco Mundial é uma instituição da ONU e, portanto, deve respeitar os direitos humanos, incluindo o direito das comunidades rurais à terra e aos recursos naturais relacionados, conforme consagrado na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham nas Áreas Rurais [Undrop].”

A FIAN é uma das autoras do informe Os custos ambientais e humanos do negócio de terras – o caso do Matopiba, Brasil, que aponta a crescente presença de agentes financeiros (como bancos, seguradoras e fundos de pensão e de investimento) no mercado de terras da região e seu impacto na garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Também foi coorganizadora da Caravana Matopiba, que permitiu a entidades e veículos de imprensa constatarem presencialmente os conflitos e contradições.

Em breve, disponíveis para baixar!
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