Foto: Ruy Sposati/Cimi

Com pesquisa sobre insegurança alimentar, entidades pedem a Cidh urgência no caso dos Guarani e Kaiowá

Foto: Ruy Sposati/Cimi
Foto: Ruy Sposati/Cimi

A Aty Guasu, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a FIAN Brasil, a FIAN Internacional e a Justiça Global apresentaram novas informações à denúncia oferecida contra o Estado brasileiro no caso envolvendo violações de direitos humanos de cinco comunidades dos povos indígenas Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul: Apyka’i, Guaiviry, Kurusu Ambá, Ñande Ru Marangatu e Ypo’i.

Foram incluídos achados da pesquisa recém-lançada sobre insegurança alimentar e nutricional nesses territórios; o contexto do marco temporal, que ameaça as demarcações; e um relato sobre a morte da xamã Damiana Cavanha, liderança histórica do tekoha Apyka’i.

O memorial entregue no dia 27 de fevereiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh), em Washington (EUA), expõe as violações em especial quanto à soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN) dos dois povos. As peticionárias caracterizam a situação como um quadro de violência estrutural e sistêmica e recorrem ao artigo 29 da instância, que trata de casos de urgência ou gravidade. A Cidh é um órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA).

“Trazemos mais uma vez para o mundo a questão do nosso povo”, diz o líder da comunidade de Kurusu Ambá, Elizeu Lopes, conselheiro da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá. “Estamos cercados. Expulsos dos nossos territórios, baleados à queima-roupa, envenenados por agrotóxicos, atacados com leis no Congresso Nacional. É muito triste trazer essa realidade para fora do país, mas precisamos trazer, porque é o dia a dia que vivemos com nossas crianças, com nossos avós, com nossos anciãos.”

Precariedade e vulnerabilidade

A pesquisa lançada em fevereiro pela FIAN com o Cimiatualiza a situação de três comunidades estudadas em 2013 (Guaiviry, no município de Aral Moreira; Kurusu Ambá, em Coronel Sapucaia; e Ypo’i, em Paranhos) e inclui outras duas (Apyka’i, em Dourados, e Ñande Ru Marangatu, em Antônio João). Os números mostram uma melhora em relação a dez anos atrás, mas também a persistência de um quadro de precariedade e vulnerabilidade.

Enquanto no levantamento de 2013 não houve nenhum domicílio em situação de segurança alimentar e nutricional (SAN), no de agora, naquelas três áreas, esse percentual foi de 15,0% – um dado que reforça a importância das retomadas de terras tradicionais para a alimentação e a promoção da saúde das famílias. Quase 95% dos entrevistados e entrevistadas associaram essa mudança à permanência no tekoha – “lugar onde se é”, ou em que se pode viver plenamente.

Cabe ressaltar que o índice de segurança alimentar e nutricional (SAN) é muito pior que aquele verificado no conjunto da população brasileira em 2022, sob o impacto de dois anos de pandemia.

“Além disso, como alertamos nesta nova ida à comissão, esse elemento de estabilização e melhoria – a demarcação das terras – está totalmente inviabilizado no momento, com a aprovação da lei inconstitucional do marco temporal”, ressalta o membro do Cimi Flávio Vicente Machado. O dispositivo só permite aos indígenas reivindicar áreas que estivessem ocupando quando foi promulgada a atual Constituição Federal, em 1988. Os deputados e senadores votaram a favor da tese mesmo depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) considerá-la inconstitucional, e derrubaram o veto do presidente Lula a ela, inscrevendo-a na Lei 14.701, de 2023, já contestada na Justiça.

Como demonstração do grave cenário, as entidades destacam no memorial o caso da matriarca Damiana Cavanha, de Apyka’i. Ela passou por toda sorte de violações de direitos e violências na vida – como perder vários membros da família em atropelamentos – e morreu aos 84 anos em novembro, em condições a esclarecer, sem ver reconhecido seu tekoha, que no momento está sem moradores e em risco de desaparecer.

“Outro elemento que agregamos é o dos direitos econômicos, sociais e culturais, os Desc”, relata o assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil Adelar Cupsinski, citando como exemplo a total ligação do bem-viver e da espiritualidade das duas etnias com a terra e a produção de alimentos. “Como signatário do pacto internacional que protege essas dimensões da cidadania, o Pidesc, nosso país tem o dever de honrá-lo. Mais um motivo para a admissão e a priorização do caso. Sem a terra demarcada, os Desc não são viabilizados.”

Para o coordenador do programa de Justiça Internacional da Justiça Global, Eduardo Baker, o caso permite ao sistema interamericano aprofundar sua discussão sobre esses direitos no contexto específico dos indígenas no Brasil. “É algo ainda pouco explorado por seus órgãos”, observa. “Vale lembrar que a própria Cidh elegeu os direitos econômicos, sociais e culturais como um de seus três temas prioritários e os povos indígenas como uma população prioritária para os próximos anos. É uma oportunidade para conciliar a agenda do órgão com uma demanda de reversão de um quadro estrutural de violações.”

“A situação das cinco comunidades é emblemática e consegue representar as principais violências que assolam há décadas os Kaiowá e Guarani, então esperamos que a análise e as providências beneficiem as outras 55 retomadas e o povo como um todo”, acrescenta Flávio Vicente Machado, do Cimi.

A Cidh tem uma “fila” de pedidos e, quando decide pela admissibilidade de um deles, abre um processo que pode resultar em recomendações a um Estado nacional. Descumpri-las pode levar a um julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), como aquele em que o governo brasileiro foi condenado a demarcar o território indígena e indenizar o povo Xukuru.

Histórico

A petição inicial submetida à comissão da OEA já completou sete anos. Em dezembro de 2019 o Estado brasileiro apresentou sua resposta e em julho de 2020 as peticionárias fizeram observações a essa manifestação.

“Na prática, não mudou nada, a não ser quando retomamos nossos territórios por conta própria, conseguindo um pedaço de mato, um rio, um mínimo para sobreviver”, pontua Elizeu Lopes, lembrando das visitas de duas relatoras da ONU, comissões do Parlamento Europeu e outras missões internacionais. “Esperamos agora, pelo menos, ter um retorno sobre a denúncia e que ela pressione o governo do estado e o governo brasileiro. Que diminua a perseguição e que sejam punidos os assassinos de Xurite Lopes, Dorvalino Rocha, Nísio Gomes, Ronildo Ramires. Não queremos que esse massacre continue.”

Mulheres do Cerrado lutam por “saborania” e soberania alimentar

O Cerrado concentra, sozinho, 5% da biodiversidade do planeta, segundo a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. O bioma, considerado o berço das águas, é a savana mais antiga do mundo e sua preservação contribui para evitar os efeitos das mudanças climáticas, melhorar a produção de alimentos – com comida de verdade – e manter a qualidade da água e sua distribuição.

Quem mantém esse universo ecológico de pé e vivo são as mulheres e os povos e comunidades tradicionais. Somente o território do Quilombo Kalunga, noroeste do Estado de Goiás, onde existe a presença marcante dos saberes de mulheres Kalunga, preserva cerca de 83% das áreas de Cerrado nativo, de acordo com a análise do MapBiomas.

“As mulheres são responsáveis pela manutenção do Cerrado vivo, pelo manejo das sementes, pela produção de alimentos, pela reprodução dos modos de vida e das práticas culturais e agroecológicas”, conta Franciléia Paula, quilombola, mestra em Saúde Pública pela Fiocruz e organizadora do livro Racismo e sistemas agroalimentares.

São elas, dentro dos sistemas agroalimentares, as guardiãs da biodiversidade, através dos saberes das sementes crioulas – sementes passadas de geração a geração -, do tratamento das frutas e plantas para alimentação. As mulheres enfrentam as monoculturas e seus impactos para garantir a soberania alimentar, a autonomia de escolher o que comer e como plantar o alimento.

“A terra é uma figura feminina. Então, a importância desse movimento também é de acolher, o que as mulheres têm feito no sentido de proteção dessa biodiversidade como um todo. Que inclui a gente, as comunidades e os povos”, avalia Franciléia Paula.

Franciléia Paula, quilombola, mestra em Saúde Pública pela Fiocruz e organizadora do livro Racismo e sistemas agroalimentares

Insegurança alimentar x comida saudável

No Brasil, 125 milhões de brasileiras e brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar: isto é, não têm nenhum acesso ou não têm acesso pleno, suficiente e permanente a alimentos, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).

A violação ao direito humano à alimentação resulta da violação de diversos outros fatores, como o direito à moradia, acesso a saneamento básico e água tratada. Isso afeta, especialmente, as mulheres negras, que são a maioria das chefes de família.

Para Veruska Prado, territorializar o debate sobre a alimentação é fundamental para superar as desigualdades, específicas em cada bioma, a partir da configuração ecológica e da necessidade nutricional de seus povos.

Coordenadora do estudo Prato do dia: desigualdades – Raça, gênero e classe social nos sistemas alimentares, da FIAN Brasil (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas), ela afirma que não é possível falar do combate à fome sem tratar das questões ambientais, geográficas e de quem constrói o Cerrado.

Veruska Prado, coordenadora do estudo realizado pela FIAN Brasil – ©Arquivo pessoal

O estudo mostra que 51% dos domicílios nos quais mulheres negras são a pessoa de referência apresentam dificuldade para aquisição de alimentos, enquanto o mesmo acontece com 23% dos domicílios chefiados por homens brancos.

Segundo Veruska Prado, os dados reforçam que, quando há insuficiência de alimentos em casa, são as mulheres que comem menos para garantir a alimentação das crianças.

“A alimentação é uma janela para a gente olhar para o conjunto de iniquidades, que são as desigualdades persistentes e injustas produzidas pela sociedade, por decisões ou por negligência política”

Veruska Prado

Para Veruska, além da sobrecarga e da preocupação em sustentar a família e a comunidade, as mulheres, enquanto promotoras da saúde e do bem viver nos territórios, muitas vezes, têm maior dimensão do que acontece com a terra e dos efeitos das mudanças climáticas na vida das pessoas. Falar de insegurança alimentar e combate à fome é também falar sobre saúde física e mental dessas mulheres.

No Cerrado, comida saudável ou comer bem significa fortalecer a relação entre o consumo do alimento e o modo de vida, de acordo com Veruska. O contrário disso é a insalubridade alimentar, nociva à saúde.

A alimentação precisa ser harmoniosa do ponto de vista cultural e sustentável socialmente, com um sistema de produção que também respeite a igualdade na geração de renda para as mulheres e que elas não somente trabalhem nessa produção.

“A luta pela terra e pelo território é uma luta pelos saberes e pelos sabores”, lembra Maria Emília Pacheco, assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).

Ela destaca que o papel das mulheres na alimentação é histórico: antes das plantas irem para os roçados e para as feiras, são experimentadas nos territórios.

“Se alimentar com os frutos do Cerrado é se alimentar da nossa história, pois são frutos que já estavam aqui muito antes do Brasil ser Brasil”.

Maria Emília Pacheco

A inovação das tradições é inerente às mulheres que pegam, por exemplo, o pequi e fazem uma farinha. Essa sabedoria a favor da diversidade de “saborania”, termo cunhado pela deputada Célia Xacriába sobre a pluralidade de sabores que o Cerrado oferece, expressa conhecimentos ancestrais do poder de transformação.

Cajuzinho do Cerrado, mangaba, cagaita, baru, babaçu e jatobá são alimentos que Maria Madalena trabalha com maestria. Conhecida como Madá, ela é técnica em agropecuária, extrativista de frutos do Cerrado e moradora de Brasília (DF).

Madá estuda e cria pratos com os frutos que alimentam e nutrem as pessoas. Ela tenta aproveitar tudo de um fruto ou de uma castanha, das raízes às folhas.

O processo de quebrar o coco de Baru, tirar o mesocarpo – uma massa doce que tem sobre o fruto – higienizar, torrar, descascar e levar para as padarias colocarem no pão – é familiar para a guardiã do Cerrado. Aos poucos, ela vai inovando o paladar das pessoas da cidade: também faz farinha de Jatobá e mostra como aproveitar as diversas possibilidades dos frutos.

Madá segurando a castanha do Baru e a farinha de jatobá

“Comecei a mostrar às pessoas que elas não dão valor aos frutos de nossa região. Eu me tornei uma guardiã do Cerrado não por curiosidade, mas por necessidade. Para tratar não só de mim, mas sim da comunidade”.

Madá

Enfrentar a insegurança alimentar no Brasil, em seus diferentes níveis, é movimentar os desejos para alimentos que promovam saúde ao mesmo tempo que se luta contra as mega indústrias de “alimentos”, supridas pela agropecuária e sua máquina publicitária. Voltar à construção do gosto e do acesso digno ao alimento de verdade só ocorre junto aos saberes culturais do ato de cozinhar e de poder escolher o que comer.

“É valorizar os saberes e modos de cozinhar que existem com as nossas avós, com as nossas mães, com as mais velhas e com os mais velhos”, define Veruska Prado.

Com o esvaziamento e o processo de expulsão do campo, os homens saem de suas casas e vão para longe, muitas vezes em busca de trabalho. Já as mulheres assumem o protagonismo em relação ao alimento em suas casas, conta Veruska.

Elas passam mais tempo na terra, junto à comunidade e à família, o que faz com que precisem ainda mais de um território saudável, sem violência, para viver com dignidade e gerar alimento.

Franciléia Paula considera que a comida é uma forma de materialização de afeto, história e memória.

“As mulheres estão diretamente ligadas ao sistema de produção de alimento nos seus territórios, nos quintais produtivos, na manutenção de culturas alimentares e na proteção dos bens comuns, como a água e as florestas”

Segundo o levantamento anual dos dados do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em 2022, mulheres tiveram 69% de participação na entrega de produtos da agricultura familiar.

Agronegócio ameaça o Cerrado

O Cerrado está presente em todas as regiões do Brasil, em pelo menos 15 Estados: Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. Em menor medida, também é possível encontrar o bioma em Amapá, Roraima e Amazonas.

Franciléia lembra que o bioma, que acolhe 25 milhões de pessoas, ainda não aparece devidamente nos debates e leis sobre políticas de proteção ambiental, o que contribui para que seja um dos mais afetados do mundo.

“O Cerrado é colocado propositalmente como um lugar improdutivo, de pobreza, de miséria, que não tem gente, para justificar um projeto de desenvolvimento ao agronegócio”.

Franciléia Paula

Com 198,5 milhões de hectares, o Cerrado ocupa 23% do território nacional, mas sua extensão chega até 36% do país se consideradas suas áreas de transição, de acordo com dados da FASE. No entanto, o bioma representa apenas 8% das Unidades de Conservação.

Na Constituição de 1988, o parágrafo 4º do artigo 225 ignora a existência do Cerrado como patrimônio natural. Por isso, desde 2010, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 504/10, movida pelos movimentos sociais pela terra e organizações em defesa do bioma, lutam para que ele também se torne patrimônio do Brasil, assim como Amazônia, a Mata Atlântica e o Pantanal mato-grossense.

Nos últimos 38 anos, o Cerrado perdeu 25% de vegetação nativa, em termos proporcionais de área. Em 2022, 50% do Cerrado foi ocupado por atividades agropecuárias. Em 1985, a área de vegetação nativa tomada pela agropecuária era de 34%, segundo análise do MapBiomas.

Delimitada para fins de planejamento governamental, a região conhecida como Matopiba é o principal eixo de devastação do Cerrado. Nomeada pela Embrapa como “a grande fronteira agrícola da atualidade”, a área abrange Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e é destinada à expansão do agronegócio, da pecuária e do hidronegócio.

Conforme veredito final do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em sua 49ª sessão, em defesa dos territórios do Cerrado (2019-2022), só a região do Matopiba perdeu mais vegetação nativa nos últimos 20 anos do que nos 500 anos que se passaram entre a invasão colonial e o ano 2000.

Na região, também está o chamado “arco do desmatamento da Amazônia”, zona de transição Cerrado-Amazônia, onde os conflitos no campo são mais intensos. “Ao se destruir o Cerrado, não se está apenas destruindo a savana mais biodiversa do planeta, mas se estabelecendo o principal atalho para o avanço sobre a Floresta Amazônica”, ressalta o veredito do TPP.

“Grande parte da soja que é produzida no Brasil não fica no país. Grande parte daque fica entra na cadeia de alimentos ultraprocessados ou alimentos com processamento elevado ou produtos formados a partir de um conjunto de ingredientes”, diz Veruska Prado.

“E a gente vê que o compromisso deles [agronegócio] não necessariamente está em alimentar as pessoas. Por outro lado, a gente observa que as agricultoras e os agricultores familiares, que produzem os alimentos que são cotidianamente consumidos, também visam lucro sobre a sua produção, mas têm um compromisso de manter uma variedade com relação ao que é produzido. É um compromisso para além do dinheiro”, analisa Veruska.

O “correntão”, prática usada para derrubada da vegetação no Maranhão ©Mayke Toscano/Gcom-MT – AGÊNCIA CENARIUM

Diferente de outros países, a produção de alimentos não é um problema no Brasil, que já produz quantidade suficiente para combater a fome, enfatiza a coordenadora do estudo da FIAN Brasil. “É importante, que agora, em um contexto político favorável, toda essa produção de alimento que existe no país realmente seja destinada a superar a fome e a má nutrição”, completa.

Cerca de 62% do Cerrado nativo do país está em propriedades privadas, aponta levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Dados de satélite analisados pelo MapBiomas mostram que, de 1985 a 2022, 85% do desmatamento do Cerrado ocorreu em terras privadas.

Mesmo assim, o próprio Código Florestal estabelece que os imóveis rurais localizados na Amazônia Legal devem ter reserva de 80% da propriedade nas áreas de florestas; já no Cerrado, somente 35% devem ser preservados.

Para Franciléia Paula, que vive no Cerrado de Mato Grosso, um dos locais mais devastados pelo agronegócio, é urgente colocar o bioma na centralidade do debate atual sobre mudanças climáticas, comida de verdade e vida digna às mulheres dessa região.

“O Cerrado, de forma geral, é um grande “observatório” de desigualdades no Brasil. O projeto político, agrícola, do agronegócio, dos grandes empreendimentos, incide muito no Cerrado”

Franciléia Paula

A forma predatória da terra e a retirada do bioma do cenário nacional e internacional como parte do debate ambientalista, afeta, sobretudo as mulheres do Cerrado e seus modos de vida. Isso inviabiliza não só a existência da biodiversidade como também a possibilidade de uma fartura de alimentos, frente a monotonia do agronegócio.

“Em contexto de omissão do Estado brasileiro, diante de tudo isso, você vai ver que quem está lá no território, permanentemente, sofrendo violações de diversas formas, cotidianamente, são as mulheres”, aponta Franciléia Paula. “Se a gente tem Cerrado ainda é porque tem gente que lutou e que permanece nesse enfrentamento direto a esse projeto capitalista, patriarcal e racista” , conclui.

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Esta reportagem é resultado do minicurso “Fome e Desigualdades no Brasil: muito além dos números” desenvolvido pelo Nós, mulheres da periferia e Gênero e Número, com o apoio e parceria da FIAN Brasil (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas)

Mulheres, Agroecologia e Alimentação Escolar: Recomendações ao Pnae

O livro é uma parceria entre a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e a FIAN Brasil, realizada com apoio de Global Health Advocacy Incubator (GHAI). Baseia-se na pesquisa-ação “Comida de Verdade nas escolas do campo e da cidade”.

A publicação integra a coleção do projeto “Equidade e saúde nos sistemas alimentares”, que a FIAN concluiu em 2023.

Retrospectiva 2023 e próximos passos

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Em 2023, entre muitas outras lutas, construções e vitórias,

fizemos parte da resistência ao “PL do Veneno” diante de um Congresso fortemente ruralista;

participamos centralmente, como FIAN Brasil e no Observatório da Alimentação Escolar, da pressão que garantiu o reajuste do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), além de documentar os avanços na execução do programa e denunciar as ameaças legislativas às suas diretrizes;

apoiamos uma oficina para jornalistas para uma cobertura mais densa sobre a fome;

participamos de diversos espaços de debate e construção coletiva, a exemplo da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional;

estivemos em articulações com organizações de outros países para fazer frente a violações de direitos cometidas por empresas transnacionais;

vimos nosso conhecimento sistematizado resultar num guia para defensores públicos/as;

integramos a resistência ao Marco Temporal, caso em que a vitória no STF teve contribuição jurídica nossa;

lançamos um estudo sobre as desigualdades nos sistemas alimentares.

Em 2024, ao lado de muitas outras frentes,

continuaremos atuando nos espaços de participação, atentas/os às iniquidades e conflitos de interesse, promovendo a alimentação escolar adequada (inclusive em termos culturais), apoiando as lutas dos Guarani e Kaiowá e dos geraizeiros, integrando iniciativas internacionais, disseminado informação, trocando experiências, incidindo nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para que o Estado cumpra suas obrigações.

E queremos você ainda mais junto da gente na defesa do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas, o Dhana.

Bora?

#FIANBrasil #2024 #Dhana

FIAN Brasil anuncia vaga para consultoria

A FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas anuncia a abertura de processo seletivo para a contratação temporária de consultor/a para desempenhar atividades de pesquisa, sistematização, revisão bibliográfica e escrita do (i) Protocolo do Programa Nacional de Alimentação Escolar para o judiciário e do (ii) Guia de implementação e exigibilidade do Pnae.

A contratação será na modalidade remota, no período entre fevereiro e agosto de 2024. No entanto, é necessário ter disponibilidade para atividade(s) presencial(is) em Brasília.

As pessoas interessadas em se candidatar devem encaminhar currículo e carta de motivação até 23h59 minutos do dia 28 de dezembro de 2023, para o e-mail indicado no Termo de Referência.

As entrevistas serão realizadas em janeiro e a resposta sobre a contratação está prevista para o dia 29 de janeiro de 2024.

Estamos comprometidos em dar oportunidade igual a todas as pessoas, a partir de critérios que valorizam a diversidade, incentivando particularmente a candidatura de mulheres, negras e negros, indígenas, LGBTQIAPN+ e pessoas portadoras de deficiência.

Acesse todas as informações no Termo de Referência, disponível AQUI.

FIAN Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Estudo da FIAN Brasil examina conexões entre sistemas alimentares e iniquidades – e caminhos para enfrentá-las

A FIAN Brasil lançou nesta terça-feira (19) o livro Prato do Dia: Desigualdades. Raça, Gênero e Classe nos Sistemas Alimentares. A publicação compila os resultados de estudo conduzido em 2022 e 2023 por três pesquisadoras e dois pesquisadores, sob supervisão da entidade. Um material que investiga narrativas e dados sobre a forma como se expressam as iniquidades ao longo do processo alimentar.

Os resultados mostram como as iniquidades (as desigualdades injustas e produzidas pela sociedade) contribuem para as diversas violações do direito humano à alimentação e nutrição adequadas (Dhana) vivenciadas por brasileiros e brasileiras. E como marcam, historicamente, os sistemas alimentares e o processo alimentar, afetando de forma mais intensa a vida de pessoas negras, mulheres e crianças, e daqueles/as com mais baixa renda.

O estudo analisa dados quantitativos (numéricos) pré-pandemia (2017-2018) coletados pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE. Também mergulha em textos públicos de organizações de diferentes setores da sociedade – comercial, movimentos sociais, entidades profissionais e academia, além de uma década de conferências nacionais vinculadas a políticas setoriais.

“Com a leitura integrada desse conjunto amplo de dados pudemos observar como o problema das desigualdades no acesso, no consumo, no produção e no processamentos dos alimentos é tratado de forma generalizada e, em alguns momentos, naturalizada”, comenta a coordenadora da investigação, Veruska Prado Alexandre-Weiss. “Chamou-nos atenção que, mesmo entre setores mais críticos da sociedade, é como se o que vivemos até aqui, na formação do Brasil, estivesse naturalizado a ponto de ser imutável.”

Para Veruska, a principal contribuição da pesquisa “é um alerta à necessidade de sermos mais específicos em nossas falas sobre desigualdades e iniquidades relacionadas ao acesso à alimentação, assim como a efetivação de todos os demais direitos humanos, uma atitude fundamental neste novo ciclo de gestão pública”.

A coautora Rute Costa avalia que “precisamos avançar na compreensão das interações complexas do racismo e do sexismo no contexto dos sistemas alimentares”. “Essas tecnologias de opressão social produzem profundas desigualdades e insegurança alimentar, mas também um estado de ‘proteção’, a depender do grupo social a que a pssoa pertença”, analisa.

A seu ver, “não é possível superar a insegurança alimentar sem enfrentarmos o racismo e o sexismo, produtores de barreiras à realização do direito humano à alimentação adequada”.

“A narrativa hegemônica da chamada ‘guerra contra a fome’ encobre as desigualdades que estão na base da crise alimentar, baseando-se num antigo diagnóstico de que sua origem está na escassez de alimentos diante do constante aumento populacional,”, alerta a assessora de Políticas Públicas da FIAN Brasil Mariana Santarelli. Ela acrescenta que esse discurso coloca como centro da solução soluções tecnológicas para o aumento da produtividade – na linha “o agro é tech, o agro é pop” – somadas à filantropia.

“Queremos contribuir para a superação desse cenário, na perspectiva da construção coletiva e permanente de um Brasil sem injustiças sociais. E lembrar que se trata de uma obrigação do Estado, que deve ser cumprida – e funciona muito melhor – com participação social.”

Entre as dezenas de propostas aprovadas nas conferências e encontros nacionais analisados no estudo estão:

Promover arranjos locais que facilitem o acesso à alimentação adequada e saudável, como mercados populares com alimentos subsidiados, feiras livres, hortas urbanas coletivas e hortas em ambientes institucionais.

Oportunizar espaços de governança sobre políticas e ações públicas voltadas à população negra e a outros povos e comunidades, pautados na escuta e na participação ativa e efetiva das pessoas nos processos de tomada de decisões.

Equidade e saúde em pauta

O estudo integra o projeto “Equidade e saúde nos sistemas alimentares”, que a FIAN Brasil está concluindo. A iniciativa foi pensada para contribuir com o debate sobre as desigualdades em todas as etapas do processo alimentar – como produção, comercialização, consumo –, bem como para seu enfrentamento.

A ideia é que o conhecimento produzido embase estratégias para incidir nas compras públicas, aquelas realizadas por organizações do Estado. O chamado mercado institucional pode dar lastro a uma série de políticas.

Sumário do estudo Prato do Dia: Desigualdades. Raça, Gênero e Classe Social nos Sistemas Alimentares

A publicação de 40 páginas traz os principais dados e análises do livro Prato do Dia: Desigualdades. Raça, Gênero e Classe Social nos Sistemas Alimentares, que compila os resultados de estudo conduzido em 2022 e 2023.
A investigação mostra como as iniquidades (as desigualdades injustas e produzidas pela sociedade) contribuem para as diversas violações do direito humano à alimentação e nutrição adequadas (Dhana) vivenciadas por brasileiras e brasileiros.

Acesse o livro e as notas metodológicas e saiba mais aqui.

Prato do Dia: Desigualdades. Raça, Gênero e Classe Social nos Sistemas Alimentares

A publicação compila os resultados de estudo conduzido em 2022 e 2023 por três pesquisadoras e dois pesquisadores, sob supervisão da FIAN Brasil. Um material que investiga narrativas e dados sobre a forma como as iniquidades se expressam ao longo do processo alimentar.

Acesse o sumário e as notas metodológicas e saiba mais sobre o estudo aqui.

Líderes guarani e kaiowá pedem apoio na defesa de seus territórios e do direito à alimentação

A partir desta segunda-feira (18) até 30 de setembro, dois representantes/líderes dos povos indígenas Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul (MS) estarão em viagem pela Europa para chamar a atenção para as violações estruturais de direitos humanos enfrentadas por seus povos e pedir aos formuladores de políticas europeus e aos órgãos de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) que adotem medidas de apoio à sua luta. Eles estão acompanhados pela FIAN Brasil, FIAN Internacional e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Atualmente, no Brasil, 62% das terras indígenas e reivindicações territoriais existentes estão pendentes de regularização administrativa (demarcação). A insegurança fundiária está no centro de várias violações de direitos humanos e de um conflito brutal de terras que registrou 795 assassinatos de indígenas e 535 casos de suicídio nos últimos quatro anos (consulte CIMI, 2023). Os povos Guarani e Kaiowá do MS estão entre as principais vítimas dessa dura realidade. 

As atuais violações de direitos humanos, os conflitos socioterritoriais e as inseguranças vivenciadas pelos Guarani e Kaiowá são motivados por invasões de seus territórios tradicionais por empresas agroindustriais, latifundiários, condomínios de luxo, prisões ilegais e a expansão de megaprojetos de infraestrutura para o transporte de commodities. Os conflitos se materializam em ataques de milícias armadas formadas pelos próprios fazendeiros e seus sindicatos rurais, ações paramilitares e operações militares sem autorização judicial, promovidas pelas forças de segurança pública estaduais ou pela Força Nacional.

As violações dos direitos dos Guarani e Kaiowá à alimentação e nutrição adequadas têm origem na desapropriação histórica de suas terras ancestrais, das quais foram – e continuam sendo – expulsos; na exploração predatória de seus recursos naturais, incluindo a contaminação por agrotóxicos de seus rios, terra e ar; e na negação de praticamente todos os seus direitos humanos. Desde a dificuldade de acesso à documentação e aos serviços públicos, passando pela violência psicológica e física resultante do racismo generalizado, até a dependência de cestas básicas entregues irregularmente, todas essas violações culminam em índices alarmantes de insegurança alimentar e fome. A situação já terrível piorou consideravelmente durante os anos do regime de Bolsonaro e seu desmantelamento sistemático de políticas, programas e estruturas sociais, além da promoção de políticas e princípios anti-indígenas. 

Estudo da FIAN Brasil e da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), a ser lançado em breve, realizado em cinco comunidades guarani e kaiowá, constatou que 77% das famílias vivem com algum nível de insegurança alimentar, enquanto 33,6% das famílias não têm alimentos suficientes para a alimentação.

Durante a missão de defesa de seus direitos, os líderes guarani e kaiowá se reunirão com membros do Parlamento Europeu, com o Serviço de Ação Externa da Comissão Europeia, bem como com representantes de órgãos de direitos humanos e missões diplomáticas em Genebra. Eles também participarão da 54ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos e da análise do Brasil pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A FIAN Brasil, juntamente com outras organizações da sociedade civil, apresentou um relatório sobre a situação dos direitos econômicos, sociais e culturais no país. 

Haverá também um evento público em conjunto com várias outras organizações e redes brasileiras de direitos humanos para chamar a atenção para a situação dos povos indígenas e o contexto mais amplo dos direitos econômicos, sociais e culturais pós-Bolsonaro. 

Inaye Gomes Lopes, moradora da comunidade Ñanderu Marangatu – um dos locais participante da pesquisa e da petição apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – e vereadora no município de Antônio João, no Mato Grosso do Sul, relata que a viagem à Europa tem como objetivo “exigir a demarcação de nossas terras, o reconhecimento das terras tradicionais, a homologação das terras, para dar voz aos jovens, às mulheres, aos nossos idosos. Clamar para que o mundo saiba como vivemos, como estamos vivendo no estado do Mato Grosso do Sul, como estamos sendo assassinados, como estamos sendo violados, massacrados, pelos próprios poderes do Estado brasileiro”.

Lopes espera que os funcionários da ONU/União Europeia notifiquem e exijam das autoridades brasileiras a implementação de seus direitos territoriais segundo estabelece a Constituição Federal. E que denunciem “como nossos direitos estão sendo violados, continuam sendo violados e estão sendo massacrados”.

Entre as reivindicações centrais estão a proteção efetiva dos povos indígenas contra os ataques violentos que sofrem nas retomadas de suas terras ancestrais, a conclusão dos processos de demarcação de seus territórios, além da rejeição da tese do “marco temporal” e do Projeto de Lei 2.903/23 (para obter mais informações, consulte o comunicado de imprensa da FIAN Brasil sobre a declaração de Francisco Cali a esse respeito).

Além disso, os legisladores e os formuladores de políticas europeus serão instados a garantir que os acordos comerciais existentes e atualmente negociados, bem como os investimentos e as ações das empresas sediadas ou com vínculos com a União Europeia e seus estados-membros, não alimentem o conflito fundiário nem contribuam para violações dos direitos do povo Guarani e Kaiowá. A proibição das exportações de agrotóxicos nocivos, proibidos na UE, para o Brasil e outros países é outra demanda fundamental.  

A FIAN Brasil e a FIAN Internacional acompanham os Guarani e Kaiowá desde 2005. Juntamente com a Aty Guasu, o Cimi e a Justicia Global, eles têm uma petição pendente de admissão na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 

FIAN Internacional com FIAN Brasil

Fotos: Ruy Sposati/Cimi