Nas últimas décadas, aumentou o número de brasileiros com sobrepeso e obesidade. Para o professor e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Segurança Alimentar e Nutricional do PGDR/UFRGS Irio Conti, a mudança dos padrões alimentares e nutricionais está entre as principais causas dessa realidade. “Mais e mais a população brasileira está sendo bombardeada pela publicidade de alimentos que estimulam o consumo de produtos ultraprocessados, que não são saudáveis mas são de interesse das indústrias de alimentos”, afirma Conti na entrevista a seguir. Ele tomou posse nesta terça-feira (16) para novo mandato como conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
– Quais os principais fatores que contribuíram para o aumento dos índices de sobrepeso e obesidade entre os brasileiros?
Irio Conti: O aumento dos índices de sobrepeso e obesidade no Brasil precisa ser analisado como uma epidemia multicausal com causas inter-relacionadas. Por um lado, está a vida sedentária de amplo segmento da população. Por outro, as mudanças de hábitos alimentares da população brasileira, muito baseados em alimentos industrializados e ultraprocessados, com alto teor de sódio e açúcar, com diminuição de frutas e verduras e aumento de carboidratos e calóricos. Mais e mais a população brasileira está sendo bombardeada pela publicidade de alimentos que estimulam o consumo de alimentos que não são saudáveis, mas que são de interesse das indústrias de alimentos.
– Qual a importância do Consea na agenda da segurança alimentar e nutricional brasileira?
Irio Conti: A atuação do Consea tem o respaldo das organizações e movimentos sociais, e essa legitimidade também se dá no relacionamento com Presidència da República e demais órgãos públicos. A diversidade da composição do Consea possibilita dar voz aos segmentos que têm seus direitos em geral e o DHAA [Direito Humano à Alimentação Adequada] mais violado, que são os povos e comunidades tradicionais, povos indígenas, quilombolas, ciganos e tantos outros, que são historicamente marginalizados.
– Quais os principais avanços que podem ser destacados?
Irio Conti: A maioria das políticas públicas relevantes em SAN [Segurança Alimentar e Nutricional] que foram implantadas tiveram seu nascedouro e proposição no Consea. Os Planos Nacionais de SAN incorporaram as orientações emanadas das nossas conferências. O Plano Nacional de Agroecologia e Plano de Prevenção da Obesidade, por exemplo, contaram com a ampla participação do Consea em todas as suas fases de concepção, elaboração e monitoramento.
– Quais são suas expectativas quanto à atuação do Consea no período 2017-2019?
Irio Conti: Espero que o Consea continue sendo um ator estratégico na formulação de proposições de políticas públicas relevantes para a realização do DHAA e que a Presidência da República e os demais ministérios, especialmente os que integram a Caisan, sigam reconhecendo e acolhendo as proposições e recomendações do Consea no âmbito das políticas de SAN. É importante que Planos Nacionais de SAN e de Agroecologia continuem sendo implementados em todas as suas diretrizes e metas, já que resultam de ampla participação social. Apesar das diferenças políticas, acredito que é possível estabelecer um diálogo construtivo e proativo em torno das questões fundamentais de políticas públicas que interessam à população brasileira.
A primeira reunião plenária da gestão do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que começou nesta terça e termina na quinta-feira, teve, entre os temas de debates, os números e as metas do 2º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan), que é um conjunto de ações intersetoriais compreendendo nove desafios, 121 metas e 99 ações, no período de 2016 a 2017.
A conselheira e pesquisadora Ana Lúcia Pereira elogiou as metas do plano e enfatizou a necessidade de monitoramento da sua execução. “Eu acredito que esses números, essas metas aqui apresentadas são importantes e nós precisamos acompanhar e monitorar a realização, a implementação na prática”, afirmou, destacando as metas estabelecidas para as populações negra, indígena e de povos e comunidades tradicionais.
Opinião semelhante foi apresentada pelo conselheiro Marcos Rochinski, que representa a Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Contraf). “O plano, na forma em que está estabelecido, a partir das diretrizes que o governo a sociedade traçaram na última conferência nacional [realizada em 2015], este plano está bem, é um ótimo plano”.
Rochinski, no entanto, questiona se as metas estão traduzidas pelos dados executados na prática. “Na quinta-feira [dia da apresentação dos dados consolidados] nós precisamos ver se as metas estão traduzidas nos números de fato, pois em 2016, por exemplo, praticamente não foi assentada nenhuma família na reforma agrária e na agricultura familiar nós temos uma diminuição de recursos no PAA [Programa da Aquisição de Alimentos]”.
Além de Ana Lúcia Pereira e Marcos Rochinski, a mesa teve a apresentação de Priscila Bocchi, representando o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), e Marília Leão, secretária-executiva do Consea. O debate foi mediado pela conselheira Ana Paula Bortoletto, que representa o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
O 2º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 2016-2019 é constituído por um conjunto de ações do governo federal que buscam garantir a segurança alimentar e nutricional e o direito humano à alimentação adequada à população brasileira. Foi elaborado pela Caisan, em conjunto com o Consea, a partir das deliberações da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Planta-se aqui para se colher lá fora. A despeito do discurso nacionalista, é de conhecimento notório que o modelo de produção do agronegócio brasileiro é amplamente benéfico aos interesses econômicos de grandes corporações multinacionais. Essas empresas revertem anualmente bilhões de reais às suas matrizes na forma de lucros e dividendos colhidos de suas atividades no Brasil. Assim fazem a Monsanto, a Cargill e a John Deere para os EUA; a Syngenta para a Suíça; a Bunge para a Holanda; a New Holland para a Itália; a Bayer e a Basf para a Alemanha; a Louis Dreyfus Company (LDC) para a França, entre outras.
Não satisfeitos, representantes do agronegócio no Congresso Nacional, em conluio com o governo federal, agora se empenham para entregar o próprio território brasileiro aos estrangeiros. O principal instrumento legislativo dos ruralistas é o Projeto de Lei 4.059/12, que autoriza a “aquisição de áreas rurais e suas utilizações por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras”. Sabe-se, além disso, que germina no Executivo uma medida provisória ainda mais agressiva a ser enviada ao Congresso Nacional em breve.
Apesar da gravidade dessas iniciativas, não se trata de ações isoladas. A eficácia delas poderá ser fortificada com um conjunto de outras medidas defendidas pelo setor, como a implantação da Lei 13.178/15, que legaliza a titulação privada de terras públicas em regiões de fronteiras; e da MP 759/15, que prioriza a titulação privada de terras desapropriadas para fins de reforma agrária, o que permitirá a reconcentração destas terras, inclusive por estrangeiros. Já o Projeto de Lei (PL) 827/15, do ruralista Dilceu Sperafico (PP/PR), que “altera a Lei de Proteção de Cultivares e dá outras providências”, desmonta o sistema de proteção às sementes. Sendo aprovado, reforçará ainda mais a homogeneização, a hegemonização e a dependência tecnológica externa — marcadamente dominada pelas transnacionais Monsanto/Bayer e Syngenta.
A inviabilização das demarcações de Terras Indígenas (TIs) também faz parte deste esforço de desnacionalizar o território brasileiro. Quando demarcadas, as TIs são registradas como Bens da União pela Secretaria de Patrimônio da União. A Constituição brasileira também veda a sua alienação. Isso, evidentemente, constitui-se num poderoso instrumento jurídico que estabelece limites aos interesses de apossamento e apropriação privada do território brasileiro pelo capital internacional.
A Proposta de Emenda Constitucional 215/00 (que transfere do Executivo para o Legislativo o controle das demarcações), relatada na Comissão Especial da Câmara pelo então deputado federal e hoje ministro da Justiça, o ruralista Osmar Serraglio (PMDB/PR), e a Portaria 80/17 (que prevê a revisão de processos de terras já demarcadas), nitidamente servem a este propósito.
Estas ações desnudam o caráter antinacional do “agro” e de seus defensores. O medo de serem desmascarados perante a sociedade brasileira faz com que os ruralistas queiram construir uma nuvem de fumaça que encubra suas verdadeiras intenções. Acreditam que formarão esta nuvem indiciando, sem fundamento, cientistas sociais, procuradores da República, lideranças indígenas e dirigentes de organizações da sociedade civil que apoiam os direitos dos povos originários (entre os quais, o Conselho Indigenista Missionário) na CPI da Funai/Incra. Mas assim como não conseguiu esconder a crueldade do ataque aos gamela, no Maranhão, que tiveram suas mãos decepadas, essa nuvem também não encobre o fato de que o agronegócio quer decepar o Brasil.
Por Cleber César Buzatto, Secretário Executivo do Cimi, publicado no O Globo
A Medida Provisória (MP) 759/2016, que estabelece novas diretrizes legais sobre a regularização de terras urbanas e rurais no país pode ser apreciada a qualquer momento pela Câmara de Deputados. A matéria já consta na pauta desta semana da Câmara e tramita em caráter de urgência. De autoria do presidente Michel Temer (PMDB) e publicada na antevéspera de natal do último ano, a MP convertida em Projeto de Lei de Conversão (PLV) segue pela casa legislativa após sofrer alterações no texto original por senadores e deputados federais integrantes da comissão mista.
Para parlamentares de oposição ao Governo Federal e movimentos populares, o contexto recente de aprovação do relatório elaborado pelo senador Romero Jucá (PDMB-RR), na última quarta-feira (3), evidencia o ambiente legislativo para temas de grande relevância para a população, principalmente a de menor renda: a ausência de abertura ao debate público à altura do impacto da medida e o fácil avanço no Congresso de matérias de interesse da bancada ruralista.
“É preciso tornar conhecida a MP no momento da votação pela comissão. Isso mostra o quanto se ressente da necessidade de um maior conhecimento, um debate mais aprofundado. Não se consultou a sociedade plenamente, os institutos e as organizações que atuam, que militam, que trabalham em torno da questão rural e da questão urbana”, denunciou o deputado Edmilson Rodrigues (PSOL-PA). “Essa MP tem uma história: a história da luta pela terra no Brasil. A história da terra no Brasil é uma história que precisa ser discutida e, neste momento conjuntural, nós temos medo e temos certeza de que há muitos interesses”, pondera o deputado João Daniel (PT-SE), reforçando a necessidade de ampliação do debate público.
Com prazo de vigência de 60 dias e prorrogáveis pelo menos período, a MP pode vigorar até o dia 01 de julho. A extensão dos trabalhos da comissão até a data limite poderia, na avaliação da oposição, ampliar o reduzido número de quatro audiências públicas realizadas pela Comissão, com participação majoritária de representantes de órgãos públicos da base de apoio a Temer. Dos 24 convidados participantes das audiências, apenas dois fazem oposição à polêmica medida. Além do MST, a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
Outra denúncia feita de maneira recorrente pela oposição na comissão mista foi a de disponibilização da primeira e última versão do relatório apenas no momento de votação do texto pelos parlamentares – o que impede a leitura anterior. A deputada Luiza Erundina (PSOL-SP) chamou a situação de “votar no escuro” e reforçou que o desconhecimento obstaculiza o debate, principalmente pelos opositores à matéria. “Não é razoável o que acontece nesta casa, se vota no escuro ou se vota por ordem de quem tem poder. (…) Entendo que isso não é democrático. Isso deixa uma imagem de que as coisas se fazem sem o devido debate, sem a devida análise, sem o contraditório, sem o contraponto, e isso empobrece o debate. Compromete a legitimidade do resultado de uma votação”, problematizou a deputada.
A aprovação do relatório, com ampla margem de 16 votos favoráveis e apenas quatro contrários, demonstra como a medida encontra no Congresso um cenário favorável a esses temas. Dos 37 deputados e senadores com titularidade ou suplência na composição inicial da comissão, 13 integram a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), articulação do setor ruralista para a atuação legislativa. Os cargos centrais ao trabalho do colegiado, relator e presidente, são preenchidos por integrantes da FPA, o senador Jucá e o deputado federal Izalci Lucas (PSDB-DF), respectivamente. Este cenário deve se repetir na Câmara. Como aponta a agência A Pública. Do total de 513 deputados federais, 207 são da bancada ruralista. No Senado o contexto é semelhante: dos 81 senadores, 32 possuem estreitos vínculos com interesses do agronegócio.
Retrocessos
Na avaliação do presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Gerson Teixeira, o texto final encaminhado à Câmara contém dispositivos que podem colaborar para a reconcentração fundiária e privatização das terras públicas. Para ele, a medida que é, desde a primeira versão, “estruturalmente danosa”, acresceu no percurso pela comissão mista um dispositivo que reforça a desobrigação do Estado em cumprir com obrigações constitucionais no processo de regularização fundiária.
O novo texto estabelece que o prazo limite para emancipar uma família, ou seja, possibilitar ao assentado as condições adequadas para prática agrícola, é de 15 anos. Para aqueles que já estão 15 anos à espera, o prazo limite é três anos. Para Teixeira, o problema não está no prazo limite de emancipação, mas na ausência de menção no texto às obrigações do Estado, como prevê o Artigo 188 da Constituição Federal. Pela lei constitucional, “a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o Plano Nacional de Reforma Agrária”. O texto do PLV não faz menção às políticas que devem acompanhar a emancipação do assentado.
“A maior parte dos assentamentos tem condições precárias. Não tem crédito, não tem infraestrutura. Tem assentamento de 20 anos que não tem nenhum poço de água. Ao emancipar uma pessoa na condição que está, sem ter condições de produzir, ela vai vender a terra. Tudo indica, na síntese desta MP, é que vamos entrar numa novo processo de reconcentração de terras bastante acentuado, com o componente da estrangeirização”, aponta Teixeira, em referência ao PL 4059/2012 que tramita no Congresso e que retira restrições para compra de terras brasileiras por estrangeiros. “Isso é grande obstinação, cobiça da bancada ruralista pela terra dos assentados”, complementa.
Ele manifesta preocupação com a possibilidade de apropriação dos 80 milhões de hectares de terras públicas da União por grandes empresas e latifundiários, e problematiza que a titulação massiva é a política adotada pela gestão Temer para se descomprometer com a política agrária. “O Incra anunciou, apostando na aprovação da MP, que irá emancipar 280 mil famílias até o final do ano. Esta obstinação em se livrar do assentado é porque está sucateado, já que não poder fazer nada”, em referência ao progressivo corte no orçamento destinado ao órgão federal.
Outro elemento adicionado ao texto na comissão mista é a possibilidade de regularização fundiária de megalatifúndios. Nas normativas anteriores, o limite de área de terra pública regularizada era de 1,5 mil hectares na Amazônia Legal, grande extensão de terra dado o contexto da região. Pelo novo texto, áreas de até 2,5 mil hectares, em qualquer região do país, estão incluídas na política de regularização. “1,5 mil hectares fora da Amazônia já seria um absurdo de área, imagine 2,5 mil hectares”, destaca.
Manifestações contrárias
Desde a publicação da MP no Diário Oficial da União em dezembro de 2016, um conjunto de organizações e organismos públicos tem se manifestado contrário à matéria. Em abril, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal, enviou ao Congresso Nacional uma nota técnica desaprovando o uso do dispositivo constitucional para tratar do tema, desrespeitando aos princípios de urgência e relevância necessários à emissão de uma MP.
“Essa matéria não poderia, de maneira alguma, ser tratada por Medida Provisória. (…) A urgência e a relevância, necessariamente, tinham de ser para garantir infraestrutura para os assentamentos, para os trabalhadores rurais, para todos aqueles que fazem a luta pela política de garantia do direito à terra no nosso país. Infelizmente essa matéria não faz isso. Ela, na verdade, quer ser mais uma vez um instrumento de especulação dos grandes proprietários de terra, latifundiários, representados inclusive nesta comissão, querendo garantir que eles tenham uma maior capacidade ainda de fazer a compra de terras de pequenos produtores rurais, de pequenos agricultores, de camponeses”, denuncia a nota técnica.
“Eles [os ruralistas] se aproveitaram da urgência para fazer desaguar uma quantidade de temas extremamente preocupantes. Trata-se de uma avalanche que tem como finalidade principal acabar com o patrimônio público e privatizar terras e bens do Brasil”, declara a assessora de política agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Cleia Anice Porto
Logo depois da manifestação da PFDC, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) dirigiu à Presidência da República uma recomendação para que suspenda a tramitação da MP em razão de “representar uma grave distorção do sistema democrático”, ao alterar mais de 19 legislações e normativas estabelecidas para o tema, e fruto da reivindicação e debate popular, como a Lei da Reforma Agrária e o Estatuto das Cidades.
A articulação e construção de uma unidade de resistência também estão no horizonte das manifestações públicas contrárias à MP. Um coletivo composto por 88 organizações urbanas e rurais elaboraram a carta pública “MP 759 — A desconstrução da Regularização Fundiária no Brasil”. O documento pretende, além de paralisar a tramitação da matéria, convocar a população a apoiar a luta pela reforma agrária e urbana no país.
Órgãos governamentais, como a Câmara de Direitos Sociais e atos administrativos em geral do Ministério Público Federal, também manifestaram desaprovação à medida.
As manifestações de organizações e órgãos públicos, em consonância com movimentos sociais, reforçam que o Congresso não faz a real escuta à população sobre suas reivindicações, bem como que a aprovação da matéria consolidará a injustiça social no campo e cidade, acentuando um cenário da violência. “As medidas do Congresso e do executivo em aprovar a grilagem de terra para regular a terra pública para latifundiários e políticos é apenas o inicio do desmonte da soberania nacional e a porta de aumento da violência no campo”, declara o membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Alexandre Conceição.
CPI que investigará FUNAI e INCRA poderá atingir atores importantes para o desenvolvimento de políticas indigenistas e fundiárias, alerta rede
A Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil e suas cerca de 40 afiliadas, além da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), da Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, assinaram nesta semana um documento enviado conjuntamente para diversos atores-chave das Nações Unidas.
A carta chama atenção para os potenciais efeitos negativos sobre as populações indígenas e sobre grupos de defensores de direitos humanos a partir da votação da CPI da Fundação FUNAI-INCRA, que terá seu relatório votado nesta quarta-feira (10).
A carta foi encaminhada para o relator especial da ONU para a proteção de Defensores de Direitos Humanos, Sr. Michel Forst; para o Representante Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), Sr. Amerigo Incalcaterra; e, para o Coordenador Residente das Nações Unidas no Brasil e representante residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Sr. Niky Fabiancic.
Além disso, convoca os parceiros com incidência internacional a se manifestarem publicamente sobre o ataque à direitos promovidos no Congresso Nacional e no Brasil.
O Brasil foi cobrado na sexta-feira 5 pela falta de demarcação de terras indígenas em sabatina de direitos humanos na Organização das Nações Unidas (ONU). Recebeu também recomendações para fortalecer a Funai, manter políticas específicas de saúde e educação indígena, e fazer valer o direito de consulta livre, prévia e informada.
Mais de 30 países mencionaram a questão indígena em seus discursos ao país e vários relacionaram o racismo e a discriminação com a violência e a impunidade praticadas contra lideranças e povos indígenas.
A manifestação internacional se alinha com os encaminhamentos definidos pelos mais de 3600 indígenas que participaram do Acampamento Terra Livre e resultam também de um trabalho de sensibilização feito por organizações indígenas, indigenistas e de direitos humanos no processo de Revisão Periódica Universal durante 2016 e 2017.
Especial preocupação dos países na ONU foi direcionada à inoperância do programa de proteção de defensores de direitos humanos, cujos inscritos são majoritariamente indígenas, ambientalistas e campesinos que enfrentam tentativas de criminalização enquanto defensores de direitos.
O relatório da CPI da Funai e Incra – que promete ser votado esta semana – é um exemplo concreto dessa situação. Seis dos 31 indígenas indiciados junto com servidores do MPF, da Funai e do Incra, por essa CPI – que desde sua criação foi colocada à serviço de interesses anti-indígenas-, estão inscritos no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos.
Sem conhecimento básico sobre o sistema internacional de direitos humanos, o relatório da CPI também ataca o Itamaraty e a própria ONU a partir de uma retórica alarmista que pelo medo tenta justificar a injustificável negação de direitos fundamentais aos povos e pessoas indígenas.
O que os povos indígenas do Brasil e do mundo querem, e é aceito pela Declaração dos Povos Indígenas da ONU (2007), é continuar a existir de acordo com seus modos de vida e visões de mundo, dentro dos Estados Nacionais e com o devido respeito às suas terras, línguas e culturas. O Brasil e outros 147 países são apoiadores dessa declaração da ONU, que em setembro comemorará dez anos.
Para manter o alerta sobre o possível retorno de práticas de extinção de povos e culturas pela mão do próprio Estado, organizações indígenas vem informando o alto comissariado da ONU sobre a situação. Alertaram recentemente sobre o fato de que, mesmo depois de receber recomendações da Relatora Especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas em 2016, o país não está garantindo os direitos humanos dos povos indígenas.
Pelo contrário, em poucos meses, o atual governo consolidou sua estratégia para a extinção da Funai visando cristalizar o quadro de não-demarcação de terras – mesmo sem a aprovação da PEC215 – e incita, a partir de falas de autoridades públicas, o ódio, o racismo e situações de maior conflito, violência e intolerância contra os povos indígenas.
Sem as informações trazidas pelas próprias organizações e lideranças indígenas à ONU, os países teriam apenas as informações parciais trazidas pelo governo e que não refletem a realidade. Por isso mesmo, a posição do Brasil na ONU foi considerada “dissimulada” pela representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara.
“Parece que não estamos falando do mesmo país. As questões que são apresentadas como avanço aqui, lá no Brasil, estão sendo desconstruídas, como a demarcação das terras indígenas; a redução de orçamento da Funai e o loteamento de cargos para partidos políticos; o corte de servidores especialmente nas áreas que chegam na ponta (CTLs) e na coordenação de licenciamento ambiental. Tudo isso enfraquece ainda mais a execução da política indigenista e não garante a ocupação e gestão plena das terras como anuncia o governo.”
De fato, a contradição da posição do Brasil na ONU evidenciou-se ainda mais com a ausência de um representante do Ministério da Justiça durante a sabatina que deu ênfase a pelo menos três temas de competência do Ministério, o tema indígena, o tema da segurança pública e violência policial e o tema do sistema prisional.
Além disso, no mesmo dia em que, em Genebra, a Ministra de Direitos Humanos Luislinda Valois afirmava o compromisso do país com a demarcação das terras indígenas, em Brasília a Funai ficava sem presidente.
Dentre outros motivos, o Ministério da Justiça insinuou entraves na Funai para seguir com projetos em terras indígenas sem qualquer processo de consulta (como o da implantação da linha de Transmissão Manaus-Boa Vista na TI Waimiri Atroari).
Segundo o próprio (agora) ex-presidente da Funai Antonio Costa, o Ministro ruralista da (in)Justiça Osmar Serrraglio coloca a Funai sob risco e forte ingerência política. Um dia antes, o Ministro da Justiça anunciava um “mutirão” para demarcar terras indígenas.
Sem uma Funai operando, com um Ministro da Justiça defensor da retirada de direitos constitucionais indígenas, e sem boa-fé do governo para efetivamente fazer respeitar os direitos territoriais e sobre os recursos naturais dos povos indígenas tal como escritos na Constituição Federal, os trabalhos técnicos de demarcação de terras indígenas não podem ser transformado em mutirões ruralistas sem antes violar vários direitos.
*Erika Yamada é Relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca e perita no Mecanismo de Direitos dos Povos Indígenas da ONU.
Conselheiros debateram recentes casos em três estados brasileiros
Os recentes episódios de violência contra trabalhadores rurais nos estados de Mato Grosso, Rondônia e Minas Gerais nas últimas semanas foram foco de debates e deliberações do plenário da 26ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), finalizada em Brasília na última quinta-feira (27).
Em Colniza (MT), a escalada de violência no campo se refletiu, no último dia 19 de abril, no massacre de nove lideranças. Nesse contexto, a Comissão Permanente de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos e Enfrentamento da Criminalização dos Movimentos Sociais do Conselho produzirá uma manifestação pública sobre criminalização dos movimentos sociais e o crescimento da violência no campo, além de cobrar as autoridades federais providências sobre o caso.
Outra deliberação da Comissão acolhida pelo pleno do CNDH foi a sistematização e estudo de ofícios recebidos em resposta às recomendações enviadas pelo Conselho a instâncias públicas sobre o alto índice de conflitos agrários em Rondônia, incluindo o assassinato da militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Nilce de Souza Magalhães. Nicinha, como era conhecida, desapareceu no dia 7 de janeiro de 2016, em Porto Velho (RO), e seu corpo foi encontrado cinco meses depois no lago da hidrelétrica de Jirau. Além disso, será solicitada a realização de uma audiência pública no estado, com a presença de conselheiros do CNDH.
Na avaliação do pleno do Conselho, a ampliação da violência está diretamente ligada ao gradual desmonte do Estado brasileiro, levado a cabo pelo Executivo federal e pelo poder Legislativo. Um dos principais catalisadores desse processo, segundo os (as) conselheiros (as), é a Medida Provisória 759/16 – que estabelece novas regras para a regularização fundiária urbana, rural e da Amazônia Legal.
“Há várias leituras sobre a Medida Provisória abrir possibilidade de grilagem e certa autorização geral, já que o Ministro da Justiça tem afinidade com o campo do agronegócio. Além disso, há um quadro geral de impunidade”, afirmou o presidente do CNDH e integrante da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil, Darci Frigo.
Neste contexto, o Conselho aprovou recomendação, direcionada ao Presidente da República, para que retire a MP 759, abrindo um processo de discussão com as instituições e entidades da sociedade civil ligadas à temática. Direciona-se também ao Presidente do Congresso Nacional, para que suspenda, imediatamente, a tramitação do projeto de lei, e ao Ministério Público Federal (MPF), para que fiscalize a legalidade da atuação do Executivo em casos concretos de transferência de domínio de imóveis públicos a terceiros e de regularização fundiária que tenham ocorrido desde a edição da MP 759.
De acordo com a recomendação expedida pelo CNDH, a MP 759 “padece de vícios de inconstitucionalidade formal e material que repercutem diretamente no exercício de direitos essenciais à dignidade humana, o que desafia a atuação deste CNDH na promoção e a defesa dos direitos humanos”.
Violência cresce, proteção diminui
Segundo levantamento do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensoras de Direitos Humanos, que está finalizando a sistematização dos casos em 2016 e 2017, em 2016 houve 70 assassinatos de defensores no país. Para os (as) conselheiros (as) da instância, é preciso combater a retração das políticas de proteção a defensores, como o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH) da Secretaria Especial de Direitos Humanos. O programa foi criado em 2004 e tem como objetivo a adoção e articulação de medidas que possibilitem garantir a segurança de pessoas que estejam em situação de risco ou ameaça em decorrência de sua atuação na promoção ou defesa dos direitos humanos.
“A Comissão vai reiterar o compromisso da Secretaria de Direitos Humanos para a realização de uma reunião com a antiga composição do PPDDH. É preciso garantir a presença da sociedade civil nos debates para aperfeiçoamento dos programas de proteção, além do amadurecimento maior sobre os processos de inclusão e exclusão de nomes. Temos tomado ciência do desligamento de vários defensores sem compreender os critérios de exclusão”, afirmou a coordenadora da Comissão e representante da Justiça Global, Sandra Carvalho.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) expressa sua preocupação pelos 9 camponeses assassinados no contexto de conflitos pela terra no município rural de Colniza na região de Taquaruçu do Norte (Mato Grosso), Brasil, no dia 19 de abril de 2017.
Relatos indicam que as 9 vítimas, que foram assassinadas por pessoas encapuzadas, eram homens adultos cujos corpos apresentavam marcas de violência, sinais de tortura. Alguns deles foram amarrados e decapitados. De acordo com informações de conhecimento público, as autoridades brasileiras transladaram-se ao local dos acontecimentos, que se encontra em uma zona de difícil acesso, e realizam as investigações correspondentes.
Segundo o registro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), seriam 19 as pessoas assassinadas desde o início de 2017 em cinco estados do país devido aos conflitos no campo. Esta cifra se soma aos 61 assassinatos em consequência dos conflitos por terras registrados em 2016. O número de pessoas que recebem ameaças de morte neste contexto de conflito também aumentou em 39%, de 144 em 2015 para 200 em 2016. Além disso, registrou-se um aumento no número de pessoas vítimas de violência física, que passou de 187 em 2015 para 571 em 2016, o que reflete um aumento de 205%. Esta violencia se concentra nos estados das regiões norte e nordeste.
A Comissão observa com preocupação que esses atos formam parte de um contexto caracterizado pelo conflito territorial que envolve o movimento dos trabalhadores rurais sem terra e camponeses despejados. A CIDH chama as autoridades a continuar com a investigação desses fatos e de outros atos de violência contra trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra ou assentados com devida diligência, a fim de identificar e sancionar as pessoas responsáveis e assim combater a impunidade e evitar a repetição de atos similares. Além disso, a CIDH urge ao Estado brasileiro a atender as causas estruturais relacionadas à luta por reforma agraria.
A CIDH também expressa sua profunda preocupação pelo grave problema que enfrentam dezenas de milhares de famílias do campo que ano a ano são deslocadas por ordem judicial das terras que habitam ou coupam. De acordo com a CPT, registrou-se um aumento no número de famílias expulsas dos territórios aonde habitam, passando de 795 em 2015 a 2,639 em 2016, o que representa um crescimento de 232%. Adicionalmente, o relatório da CPT indica que no ano de 2016 12,829 famílias foram despejadas por ordem judicial, e identifica que outras 31,278 famílias correm o risco de enfrentar a mesma situação.
A CIDH insta o Estado brasileiro a formular e implementar medidas imediatas e sustentáveis para solucionar este grave problema, aplicando os standards internacionais sobre deslocamento interno. Nesse sentido, a CIDH urge o Brasil a adotar um marco normativo baseado nos Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos. A CIDH ressalta também que ante situações deste tipo o Estado brasileiro tem a obrigação de adotar medidas para prevenir o deslocamento, proteger e fornecer assistência aos expulsos e despejados durante o seu deslocamento, prestar e facilitar a assistência humanitária e facilitar soluções duradouras.
A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem como mandato promover a observância dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA na temática. A CIDH é composta por sete membros independentes, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, sem representarem seus países de origem ou de residência.
Acampamento Terra Livre, em Brasília, liderado por uma nova geração, foi uma das maiores mobilizações indígenas da história
As bombas jogadas pela polícia contra a marcha pacífica dos indígenas, em 25 de abril, não foram suficientes para abafar os gritos de guerra. As fumaças do gás lacrimogênio não tiravam o fôlego de quem corria pelos gramados da Esplanada, transformados num campo de batalha.
E não escrevo de forma retórica: observei os guerreiros com flechas correndo contra a nuvem tóxica, em direção ao Congresso Nacional. Corriam com flechas apontadas contra revólveres e espingardas. Nesse cenário, vi xavante com o olho ardendo, tossindo, mas gritando de forma contínua e intercalada; um guarani chutando as bombas; um jovem pataxó pegando uma bomba com a mão e lançando contra os novos bugreiros uniformizados; um grupo pankararu cantando e dançando o toré com tanta força espiritual que o lacrimogênio virou gelo seco em frente ao Ministério da (in)Justiça.
A força da mobilização vinha de quem sabe suspender o céu. Do carro de som ecoavam cantos xamânicos, cantos de força espiritual e de proteção, cantos para pacificar os inimigos. Eram velhos xamãs marchando ao lado de jovens guerreiras e guerreiros; avôs e avós de braços dados com seus netos e netas.
Essa foi a mais linda, a mais inspiradora e a mais estimulante de todas as 14 mobilizações do Acampamento Terra Livre (ATL), organizado pela Articulação dos Povos Indígenas (Apib), em Brasília, no Abril Indígena. Este ATL 2017 não foi apenas uma das maiores mobilizações políticas dos povos indígenas, com mais de quatro mil lideranças do País todo, mas a mais jovem e inovadora, liderado por uma terceira geração do movimento.
Na segunda marcha, na quinta-feira 27, todos e todas viram quando um pajé lançou um feitiço que desequilibrou o policial montado num cavalo. A juventude riu do policial, e prestou reverência ao velho pajé. Me parece esse um maravilhoso símbolo dessa construção coletiva do movimento indígena, no qual a nova geração assume o protagonismo com um respeito que é raro de ser observado em outros movimentos sociais.
Com bombas, bala e cassetetes, as agressões físicas do governo Temer não intimidaram quem pertence a essa terra. Apenas serviu para mobilizar e engajar ainda mais a jovem resistência reunida em Brasília. “A bala de borracha e o spray de pimenta que são lançados contra nós, ainda está muito longe de ser, de representar, a violência que a gente vive nas terras indígenas. Todos os dias os ataques, todos os dias os assassinatos”, disse Sonia Guajajara, secretaria-executiva da Apib, em entrevista a Daiara Tukano, da Rádio Yandé, num vídeo que bombou de visualizações nas redes sociais. “A luta é nossa e não vamos recuar”, completou, na entrevista disponível na página da Yandé no Facebook.
A Rádio Yandé, aliás, bombou e fez bombar muitas mensagens insurgentes: por Whatsapp desde o campo de batalha, as informações de Daiara, Idjahuri Kadiweu, Anapuaka Tupinamba e Naine Terena eram postadas à distância por Renata Tupinambá, e rapidamente atingiam milhares de visualizações. Que lindo ver indígenas em resistência numa batalha campal, junto de indígenas numa batalha midiática e das narrativas.
Como os velhos ruralistas sentados no poder usurpado irão calá-la se os indígenas que a fazem não dependem de um centavo de anúncio do governo? A lógica da comunicação da Yandé é diferente da lógica da imprensa que divide em anúncios inescrupulosos o bolo do golpe, que se presta a propagandear contra direitos da classe trabalhadora, a favor da reforma trabalhista e do fim da Previdência: a Yandé é o novo jornalismo, descolonial, situado, comprometido. Informa o Brasil desde o ponto de vista do indígena – e não desde o ponto de vista da Casa Grande, do Capital, da linha de cima do racismo, da bolha do confinamento racial do jornalismo brasileiro.
Esse estúpido cenário de guerra produzido pelo autoritarismo do atual governo ao menos serviu para ilustrar, em imagens que giraram o mundo, que vivemos em um Estado de Exceção. Tal como explica Sonia, os povos indígenas vieram a Brasília “dizer o que é uma democracia”. E foram recebidos com covarde truculência.
As bombas que ecoaram na Esplanada assustaram muitos jovens e representaram um rito de iniciação. Foi a primeira vez que Piray, jovem Awa Guajá classificado de “recente contato” pela Funai, saiu do Maranhão. Ele veio para mostrar que aqueles “isolados” ou de pouco contato, também devem ser ouvidos e respeitados.
Geraldino Patté, do povo Laklãnõ/Xokleng, também saiu pela primeira vez do sul do Brasil. Ele sabe muito bem de toda a história da violência dos bugreiros contra seu povo, dos contos de atrocidade do Martinho Bugreiro. E agora, com sua irmã que cursa mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina, investigam e denunciam a tentativa de construção de usinas hidrelétricas no seu território. Ele postou uma linda foto sua no Facebook, segurando uma lança: “A batalha é grande, mas eu não desistirei dessa luta. Orgulho de ser indígena. Orgulho de ser Laklãnõ/Xokleng”.
De repente, nesse encontro, eu estava numa roda de conversa entre Geraldino e Auricélia Arapium, que é uma intelectual orgânica do movimento Em Defesa da Vida e da Cultura do Rio Arapiuns, liderança indígena, estudante de direito da Universidade Federal do Oeste do Pará, em Santarém. De norte a sul, era uma luta por direitos, para denunciar o racismo institucional, o apagamento da história. São indígenas que estão conseguindo furar o confinamento racial das universidades brasileiras, e repensando a nossa história para projetar um novo futuro.
Nessa nova geração, emerge ainda um movimento feminista que deve chacoalhar o pensamento no Brasil: são as xinguanas organizadas no movimento Yamarikumã, as mulheres de Roraima, os movimentos com apoio da ONU Mulheres, rodas de debate e plenárias das mulheres. Telma Taurepang, uma das mulheres que lideram essa onda feminista indígena, anunciou a convocação da primeira Marcha das Mulheres Indígenas, que vai acontecer em 8 de março do ano que vem. Anotem na agenda.
Políticos indígenas como o vereador xinguano Mutuá Mehinaku, do povo Kuikuro, de Gaúcha do Norte, que é mestre em linguística pelo Museu Nacional da UFRJ, estão assumindo o poder institucional com o intuito de transformar a representação e radicalizar a democracia: “Temos que ocupar esse espaço da política. Chega de falarem por nós, nunca nos representaram. Somos nós que temos que estar no parlamento nos representando a nós mesmos”, me disse Mutuá.
Quem sabe um dia, em vez de grileiros e ruralistas, os eleitores e as eleitoras do estado do Mato Grosso contribuam para o Brasil elegendo como deputados brilhantes intelectuais indígenas, como Mutuá, para ajudar a construir um país mais igualitário, justo e democrático.
O encontro teve luta em múltiplos sentidos: a luta na Esplanada, a luta intelectual na organização de comissões, de debates, a luta política com deputados, senadores, e a recusa em receber ministros ruralistas do governo Temer. Encontros que cruzavam realidades de Norte a Sul, povos geograficamente distantes mas politicamente muito próximos, epistemologicamente vizinhos, lado a lado a enfrentar o genocídio. Do Xokleng no sul do Brasil, aos povos que vivem no Tapajós e na bacia do Juruena, todos e todas trocavam informações, ideias e estratégias para enfrentar o barramento e morte de seus rios de vida.
Várias lideranças que encontrei e conversei cursam mestrado, falam a língua, aprendem na universidade e valorizam cada vez mais o conhecimento da aldeia. Sabem também que a luta ensina, aprendem com o movimento indígena e com as vozes mais antigas das aldeias. Esse encontro talvez tenha marcado a emergência de uma terceira geração do movimento indígena.
E o que é muito interessante, comentou comigo Ailton Krenak, grande liderança do primeiro movimento nos anos 1980, e que não esteve dessa vez em Brasília, é que todas essas gerações se reconhecem, com empatia, que não é comum, como ocorre muitas vezes que uma nova vem desqualificar os velhos. “Há alguma herança no sentido cultural, que distingue esse movimento indígena de outros movimentos. E essas vozes não vão ser caladas. Não vamos nos calar, nem imobilizar nossa capacidade de luta ante a força bruta dos aparatos de proteção do Estado dominado pelo Capital sem fronteiras”.
Segundo o Valor, além de permitir a troca do salário por remuneração de “qualquer espécie”, texto prevê jornada de até 12 horas e 18 dias consecutivos. Por meio de nota, a Frente Parlamentar da Agricultura afirma que o projeto prevê comida e casa como “acréscimos” ao salário
Após a votação da reforma trabalhista na Câmara, a bancada ruralista se movimenta para alterar as leis que tratam da proteção dos direitos do trabalhador rural. A intenção é restringir o poder da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho e alterar normas para permitir, por exemplo, que o empregador deixe de pagar salário ao empregado do campo. Nesse caso, a remuneração poderá ser feita por “qualquer espécie”, como alimentação e moradia. As informações são do Valor Econômico.
Para não aumentar ainda mais a resistência à sua proposta, o relator da reforma trabalhista, Rogério Marinho (PSDB-RN), deixou de fora 192 mudanças legislativas reivindicadas pela bancada ruralista. Esses itens, agora, serão rediscutidos em um projeto do deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), coordenador da frente parlamentar.
Segundo o Valor, o texto aumenta para até 12 horas a jornada diária por “motivos de força maior” e permite a substituição do repouso semanal dos funcionários por um período contínuo, com até 18 dias de trabalho seguidos. Autoriza, ainda, a venda integral das férias dos empregados.
“Existe preconceito muito grande da Justiça do Trabalho com o trabalhador rural”, diz Nilson Leitão. Para ele, as leis trabalhistas e os regulamentos expedidos pelo Ministério do Trabalho são elaborados com base nos conhecimentos adquiridos no meio urbano, desprezando “usos, costumes e a cultura do campo”.
Deputados e entidades ligados à agricultura familiar, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados (Contar) Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (Contag), classificam a proposta como ataque ainda maior aos direitos trabalhistas.
“As normas existentes são esparsas e em grande medida, subjetivas, dependentes das interpretações dadas pelos auditores fiscais do Trabalho e da própria Justiça do Trabalho em determinados casos, o que põe o produtor rural em situação de insegurança jurídica, tornando os altos gastos efetuados para o atendimento destas normas, um investimento de risco”, alega o tucano na justificativa do projeto de lei.
Indígenas
Nilson Leitão é conhecido como um dos principais porta-vozes dos ruralistas no Congresso. No ano passado, foi um dos autores do pedido de criação da CPI da Funai, comissão que relatou. Também foi o presidente da comissão especial que aprovou a proposta de emenda à Constituição (PEC 215) que transfere, do Executivo para o Legislativo, a palavra final sobre o reconhecimento das terras indígenas.
Conforme reportagem da Pública, Nilson angariou R$ 1,43 milhão do setor agropecuário dos R$ 2,46 milhões investidos na campanha.
O deputado é investigado no STF por suspeita de envolvimento com outra quadrilha, acusada de invadir reiteradamente a terra indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso. Em setembro, 13 pessoas do grupo foram denunciadas pelo Ministério Público Federal do estado pelos crimes de invasão de terras públicas, resistência, associação criminosa, incêndio, roubo, corrupção ativa, incitação ao crime e crime de dano. “É terceiro falando pro quarto sobre um quinto”, diz Nilson Leitão, sobre as escutas telefônicas nas quais integrantes do grupo afirmam haver um pedido do deputado por 30 lotes da invasão. “Eu nunca fui lá, nunca pisei lá. Aliás, fui numa comissão externa da Câmara, com outros deputados, ficamos duas horas em cima de um caminhão e voltamos.”
Nota enviada pela Frente Parlamentar da Agricultura sobre PL 4662/2016:
“Sobre notícia publicada nesta terça-feira (02/05) pelo jornal Valor Econômico, “Leis do trabalho rural devem mudar”, é preciso esclarecer, em nome da verdade, que o Projeto de Lei 6442/2016 nunca levantou a hipótese de diminuir o salário em troca de casa e comida. Ao contrário, o que o projeto prevê são acréscimos beneficiando o trabalhador por conta de acordos previamente firmados. Ou seja, só há benefícios ao trabalhador acordados antecipadamente.
Não se mexe no salário. Ele é sagrado. O texto do projeto em nenhum momento prevê a possibilidade de o trabalhador passar a ser remunerado tão somente com o fornecimento de sua habitação e alimentação necessária à sua sobrevivência. Tal possibilidade é fantasiosa.
Observe-se no § 4º, do art. 16 que “a cessão pelo empregador, de moradia e de sua infraestrutura básica, assim como, bens destinados à produção para sua subsistência e de sua família, não integram o salário do trabalhador”. Ou seja, qual é a dúvida que o salário está preservado? E mais, que uma coisa não tem nada a ver com a outra?
Algumas pessoas por incompreensão do texto, ou mesmo por total desconhecimento decorrente da falta de leitura, têm levantado hipóteses que definitivamente não são verdadeiras, como, por exemplo, no possível estabelecimento de jornada de 12 horas diárias. O tema jornada de trabalho está descrito no art. 6º que assim diz: “A duração do trabalho normal não será superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais”. Observe-se ainda que a jornada semanal, por exemplo, está definida na Constituição Federal, logo, seria impossível alterá-la por meio de lei ordinária. Ou seja, faltam com a verdade essas pessoas que se manifestam nesse sentido.
Sobre o trabalho contínuo, conforme consta do projeto, a fim de possibilitar melhor convívio familiar e social, o trabalhador rural que desenvolva sua atividade laboral em local distante de sua residência poderá, mediante solicitação e sujeito à concordância do empregador, usufruir dos descansos semanais remunerados em uma única vez, desde que o período trabalhado consecutivamente não ultrapasse 18 (dezoito) dias. Observe-se que não há supressão alguma do direito atualmente existente, o texto apenas permite que o trabalhador escolha a forma como prefere gozá-lo.
Não se trata de uma premissa impositiva do empregador, mas sim de um benefício que pode estar amparado pela legislação, e só pode ser exercido desde que seja requerido pelo trabalhador, que muitas vezes perde muito tempo – chegando a dias em alguns casos – no deslocamento até sua residência. Hoje, no meio urbano, essa hipótese é socialmente aceita, basta ver o caso dos trabalhadores em plataformas petrolíferas, cruzeiros marítimos, dentre outros.
As propostas legislativas apresentadas por parlamentares, além de serem uma forma de sua legítima atuação mandatária para propor ou mesmo rever determinada legislação que afeta a sociedade, consiste em verdadeiro convite para a promoção do diálogo social dentro do Congresso Nacional, por todos os atores sociais envolvidos ou interessados.
No que se refere ao PL 6442/2016 não é diferente, vários são os dispositivos em que se busca uma necessária atualização ou adequação às necessidades do campo, já que boa parte da legislação aplicável ao setor decorre de normas tipicamente urbanas.
Eventuais ajustes em propostas legislativas complexas, como é o caso, são absolutamente normais, todavia, o que não se pode admitir é a prática de um “terrorismo social” por parte de pessoas que sequer leram o texto, ou por aquelas que dolosamente o desvirtuam como forma de promoção pessoal ou de promoção de discursos de conveniência.”