Em meio às medidas anti-populares e anti-democráticas contidas em sua primeira decisão na forma de uma Medida Provisória (MP Nº 870, de 01/01/2019), o Governo Bolsonaro atingiu, diretamente, o Direito Humano à Alimentação (DHA), assegurado pelo artigo 6º da Constituição Brasileira de 1988, e o cerne da formulação e implementação de políticas participativas, soberanas e intersetoriais de promoção da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) da população brasileira.
Esse ataque se deu com a revogação dos capítulos da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan/nº 11.346, de 15/09/2006) que instituíram o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) como órgão de assessoramento direto à Presidência da República. Fica, assim, extinto um Conselho reconhecido no Brasil e no exterior como experiência exemplar de participação social em políticas públicas. É um dos pilares de sustentação do Sistema Nacional de SAN (Sisan) e co-responsável pelos programas públicos que tiraram o Brasil, em 2014, da vergonhosa condição de figurar no Mapa da Fome da FAO.
A MP 870 nega e revoga conquistas. Quer apagar a história e silenciar as múltiplas vozes da sociedade nos mecanismos de controle social, como o Consea. Em 15 anos de existência, desde 2003, o conselho coordenou uma variada representação social e manteve interlocução sistemática, porém, autônoma com os governos, visando a garantia de uma alimentação adequada e saudável, livre de agrotóxicos e transgênicos. Apoiou, decisivamente, os direitos constitucionais dos povos indígenas e comunidades quilombolas, bem como o reconhecimento de sua identidade étnica, ambos gravemente comprometidos pela mesma MP.
Constava da agenda do Consea, também, o fortalecimento das culturas alimentares em consonância com os biomas e ecossistemas brasileiros, os modos de vida e saberes alimentares tradicionais e populares, e a biodiversidade nos campos, nas águas, nas florestas e nas mesas. As relações que nutrem essa rede de gentes, conhecimentos e práticas expressam um projeto de sociedade inclusiva e diversa, construída com base em ações e políticas, voltadas para fortalecer as capacidades coletivas de populações, povos e comunidades tradicionais.
O Conselho, agora extinto, era composto por um terço de representantes governamentais oriundos de 20 Ministérios, e dois terços de cidadãos e cidadãs com as mais distintas origens sociais, profissionais e regionais, que atuavam de forma voluntária em prol do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e da comida de verdade. A presidência do Consea era exercida por uma representante da sociedade civil. Essas características davam ampla liberdade na definição e debate dos temas de sua agenda e, portanto, na formulação pactuada com os representantes governamentais de proposições de políticas, programas e ações nas mais variadas áreas atinentes à alimentação e nutrição.
Isso pode ser constatado nas inúmeras iniciativas relativas à produção e garantia de acesso à comida de verdade e livre de injustiça socioambiental, à redução de produtos ultraprocessados nas prateleiras do supermercado, ao acesso à informação sobre os alimentos, dentre outras medidas. Todas elas atreladas à manutenção da política de SAN, articulada com outras na área de saúde, agricultura, educação, meio ambiente etc.
O Consea deixa como legado importantes contribuições para toda a sociedade brasileira, entre as quais ressaltamos: inclusão do Direito à Alimentação na Constituição Federal; aprovação da Lei Orgânica, da Política e do Plano Nacional de SAN; proposição inovadora do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (AF); elaboração do Plano Safra da AF; aperfeiçoamento da Lei de Alimentação Escolar, ao determinar que pelo menos 30% da compra de alimentos para as refeições seja oriundo da AF; aprovação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo); monitoramento do Programa Um Milhão de Cisternas e Programa Uma terra duas águas no Semiárido; plano Intersetorial de Combate ao Sobrepeso e Obesidade; propostas para um Programa de Redução do Uso dos Agrotóxicos, de Política Nacional de Agricultura Urbana e Política Nacional de Abastecimento Alimentar que não chegaram a concretizar-se.
A extinção do Consea demonstra não haver qualquer grau de tolerância do novo governo para conviver com a participação social autônoma e crítica. A constatação é ainda mais grave em face do que se pode antever nas políticas anunciadas nesta e em outras áreas que importam ao conjunto da população. A adulteração da Losan não revogou a realização de Conferências Nacionais de SAN a cada quatro anos. A quinta conferência aconteceu em 2015 com o tema “Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar”. No entanto, tudo leva a crer que será também anulada a decisão de ocorrer a sexta conferência em novembro de 2019. Ou, igualmente grave, que venha a ser convocada pelo governo sem a participação da sociedade civil, antes liderada pelo Consea na convocação e mobilização no país.
Ficará, assim, comprometido o papel das Conferências de propor diretrizes e prioridades para a política nacional de SAN, agora sob a gestão do Ministério da Cidadania. Disputa de narrativas em torno da SSAN, concepção tecnocrática e impositiva de políticas, e tentativas de tutela e cooptação parecem compor o cenário futuro provável.
O Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, que atua há 20 anos na defesa de políticas públicas voltadas à garantia do DHA e à SSAN, se orgulha de ter feito parte dessa história. Por meio desta nota quer não apenas manifestar o seu protesto, como reafirmar seu engajamento na resistência aos retrocessos em curso neste e em outros campos das políticas públicas. Estamos guarnecidos de energia e sabedoria para continuar a luta pela garantia do Direito Humano à Alimentação e pela promoção da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
O FBSSAN seguirá desempenhando seu papel de fortalecimento e articulação de uma grande rede de solidariedade e mobilização para a defesa dos princípios, direitos e diretrizes acima mencionados. A atuação de cada coletivo, lutador/a e ativista é fundamental e indispensável. Ao lado do enfrentamento dos desafios nacionais, há um vasto campo de atuação nas esferas estaduais e municipais, conforme atestam iniciativas já em curso em diversos estados e municípios no país.
Estejamos juntas/os, sejamos resistência e façamos a resistência porque sem democracia não há Soberania e segurança Alimentar e Nutricional.