Por Yuri Simeon, Do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)
O debate sobre o monitoramento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) reuniu dezenas de participantes em audiência pública da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, em Brasília. A atividade contou com diversos convidados e o pré-lançamento da publicação “Para monitorar o direito à alimentação escolar” do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).
Presente nos 5.570 municípios brasileiros, o Pnae é responsável pela alimentação escolar diária de 40 milhões de estudantes em mais de 150 mil escolas, com um orçamento anual de R$ 5,4 bilhões.
“Sabemos que a alimentação escolar tem impactos na saúde e na formação intelectual das crianças e portanto é imprescindível o contínuo aperfeiçoamento e fortalecimento dos mecanismos de fiscalização e avaliação da qualidade do Pnae”, destaca o Deputado Federal Daniel Barbosa (PP-AL), autor do requerimento para a realização da audiência pública.
Entres os convidados para a audiência estavam a assessora de Políticas Públicas da FIAN Brasil e coordenadora do ÓAÊ, Mariana Santarelli; o vice-presidente do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), Carlos Guedes; o Coordenador do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição (CECANE IF Sul de Minas), Rogério Robs; a assessora técnica do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Ana Flávia de Rezende Gomes; a Coordenadora-Geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, Kelly Poliany De Souza Alves; e a Coordenadora-Geral do Pnae, Karine Silva dos Santos.
Para monitorar a alimentação escolar
Com o objetivo de contribuir para o avanço no monitoramento do Pnae, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) desenvolveu uma matriz de monitoramento da alimentação escolar. A matriz é formada por 28 indicadores, divididos em 8 dimensões de análise e seus respectivos objetivos. Essa matriz de monitoramento está sistematizada na publicação Levanta Dados “Para monitorar o direito à alimentação escolar”, com lançamento oficial previsto para agosto.
“São muitas as possibilidades de uso que esse documento traz, de transparência de informação, que podem ajudar na tomada de decisão, tanto aqui no Congresso Nacional, como também para a atuação federal, estadual e municipal, tanto de gestores, quanto de conselheiros de Conselhos de Alimentação Escolar e de Segurança Alimentar e Nutricional”, salienta a coordenadora do ÓAÊ, Mariana Santarelli.
Entre as bases de dados utilizadas estão o Sistema de Gestão de Prestação de Contas (SiGPC) do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), o Sistema de Gestão de Conselhos (Sigecon), o Censo Escolar, o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) e inquéritos de insegurança alimentar feitos no contexto da pandemia (VIGISAN).
Baseando-se nas diretrizes do Pnae, a matriz de monitoramento fornece uma metodologia para se analisar a implementação do programa. A matriz de monitoramento permite reunir e sistematizar dados oficiais fornecidos pelo poder público “de forma que consigamos ter um olhar sobre o conjunto de municípios, ou seja, de entidades executoras de um mesmo estado e até mesmo de uma mesma região”, explica Santarelli.
Ela destaca que, “diante da transição de sistemas de gestão que está ocorrendo – do SiGPC (sistema do FNDE) para o SIGPNAE (sistema de monitoramento do PNAE desenvolvido pelo Banco do Brasil) – é preciso maior transparência e diálogo com a sociedade e os gestores estaduais e municipais sobre como serão estas mudanças, e em que medida será possível seguir monitorando todas as diretrizes do Pnae, em especial os dados das compras públicas da agricultura familiar”.
Reajuste do Pnae
A necessidade de se aumentar os recursos para a alimentação escolar foi um dos destaques da audiência. Apesar da importante vitória com o reajuste de 34% do orçamento total do programa aprovado pelo Congresso em 2022 – após muita pressão da sociedade – e a sanção do presidente Lula em 2023, são muitos os exemplos da insuficiência destes valores.
De 1995 até 2013 houve um crescimento no orçamento destinado ao Pnae, porém a partir de 2014 foram interrompidos os reajustes anuais aos valores do programa. Isso se soma ao contexto de aumento da inflação do preço dos alimentos nos últimos 10 anos.
“Então, entre 2014 e 2021, se a gente atualizar os dados financeiros de acordo com o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) Alimentos e Bebidas, houve um decréscimo de R$ 2,33 bilhões no orçamento”, explica Santarelli.
“Estamos em um momento relativamente favorável do ponto de vista do controle da inflação dos alimentos, mas isso é algo sobre o qual não temos o menor controle e a alimentação das nossas crianças não pode estar vulnerável a essa flutuação do preço dos alimentos”, ressalta.
Para enfrentar essa desvalorização do orçamento do Pnae, organizações que compõem o ÓAÊ defendem o Projeto de Lei 2.754, de 2023, da senadora Teresa Leitão (PT/PE), que propõe um mecanismo de reajuste automático do Pnae com base no IPCA, Grupo Alimentos e Bebidas. Além de também apoiarem a análise e aperfeiçoamento de outros projetos de lei em tramitação que propõem alterações ao desenho de financiamento, para que seja possível um olhar sobre as iniquidades.
O Pnae deve ser co-financiado por governo federal, estados e municípios. Mas em muitos casos isso não acontece, sobretudo em municípios com menores condições orçamentárias.
Dados públicos fornecidos por gestores municipais, utilizados na matriz de monitoramento do ÓAÊ, demonstram incapacidade de muitas entidades executoras para complementar os recursos repassados pelo governo federal.
“A gente vê que são justamente os municípios com menor capacidade orçamentária, onde tem a maior concentração de pobreza, aqueles que têm mais dificuldade de fazer essa complementação. Sobretudo, são os municípios do Nordeste e do Norte do Brasil que não conseguem fazer essa complementação”, detalha. “No caso do Maranhão e Piauí, aproximadamente metade consegue. No Amazonas, só 43% dos municípios complementam”.
Para enfrentar essas desigualdades, uma proposta defendida pelo ÓAÊ é a apreciação pelo Congresso do Projeto de Lei 1751, de 2023, do senador Eduardo Braga (MDB-AM). “Ele propõe um redesenho para o financiamento do Pnae, de forma que possa considerar essas desigualdades que existem no nosso país para que se possa ter um repasse de recurso diferenciado para aqueles municípios e entidades executoras que mais dificuldade têm de complementar os recursos do Pnae”.
Santarelli ressalta que a apreciação deste projeto deve ser feita “com todo o cuidado para que não seja comprometido o princípio da universalidade. É muito importante que todos os municípios, independente da sua capacidade de financiamento de orçamento próprio, possam seguir recebendo os repasses do governo federal”.
Compras da agricultura familiar
Entre as diretrizes do Pnae está a obrigatoriedade de se utilizar, no mínimo, 30% dos recursos para a compra de alimentos vindos da agricultura familiar, priorizando povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e áreas de reforma agrária, e destinando 50% deste total à compra de grupos formais e informais de mulheres.
De acordo com dados do FNDE, em 2023 o Pnae foi abastecido pela produção de 40 mil agricultores familiares – totalizando R$ 1,6 bilhão para essas compras. No entanto, os números “aparentam ser altos demais” quando comparados à situação retratada por outros dados e relatos de agricultores familiares de todo o Brasil.
“Suspeitamos de que tem erros na produção desse indicador, talvez inclusão indevida de despesas por parte de gestores municipais, uma contabilização que pode estar incluindo o saldo do ano anterior. Gostaríamos muito que fosse possível cruzar esses dados do SiGPC do FNDE com os dados do CAF (Cadastro da Agricultura Familiar), para entender melhor quem são esses agricultores”, descreve a coordenadora do ÓAÊ.
“A gente observa uma tendência de concentração em grandes cooperativas. Isso é preocupante, porque a perspectiva dos 30% é justamente democratizar essas compras públicas, fazendo chegar no agricultor familiar de menor porte, no indígena, quilombola, nas mulheres, comunidades tradicionais, e a gente ainda não consegue ter um olhar para esses números que permitam saber quem são esses agricultores familiares”, conta.
Alimentação escolar nas instituições federais
Durante a audiência, representantes de instituições federais de ensino fundamental e técnico apontaram a necessidade de mais investimentos para a alimentação escolar. Essas instituições não possuem complementos municipais e estaduais, dependendo exclusivamente dos recursos federais do Pnae, além de possíveis parcerias locais.
“É preciso fazer algumas parcerias com as prefeituras para nos ajudar nesse fornecimento. Qual é o custo estimado das refeições que nós temos na rede federal? Varia, de acordo com a composição do cardápio, da forma de gestão, da região do nosso país e de outras variáveis”, destaca o vice-presidente do Conif, Carlos Guedes.
O Conif é composto por 38 institutos federais, dois Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET), 22 escolas técnicas vinculadas à universidades federais e um colégio federal.
O orçamento do Pnae aos institutos federais este ano foi de R$ 55 milhões para atender 357 mil estudantes. O representante do Conif relata que a ausência de alimentação escolar adequada contribui para a evasão escolar, que é enfrentada pelos estudantes com medidas paliativas como levar “quentinhas” para a aula ou comprar “marmitas” com preço médio de “R$10” – quando há condições financeiras.
“De cada 10 estudantes, 7 são oriundos de escola pública. E o grande objetivo dessa rede é assegurar aos nossos estudantes as condições de acesso pleno, de permanência e conclusão com êxito”, descreve.
Em muitos casos, as terceirizações são utilizadas na rede federal diante da falta de infraestrutura adequada, insuficiência de cozinheiras e de nutricionistas – responsáveis por organizar as chamadas públicas para a compra de alimentos.
Para o coordenador do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar (Cecane) do Instituto Federal do Sul de Minas, Rogério Robs, ainda existem “lacunas na legislação em relação às especificidades da rede federal”.
“Nós não temos o CAE (Conselho de Alimentação Escolar) federal, então nós precisamos saber como nós vamos fazer esse controle social. Quem vai fazer o acompanhamento, quem vai fazer a fiscalização, quem vai fazer a aprovação das contas dessa alimentação na rede federal, nós não temos isso definido ainda”, aponta.
Ele destaca o déficit de responsáveis técnicos pela alimentação escolar nas instituições federais. “Hoje nós temos um déficit de cerca de 375 vagas necessárias, para que nós tenhamos pelo menos um nutricionista em cada unidade da nossa rede”.
Falta de quadro técnico
Em pesquisa realizada pelo ÓAÊ, em 2023, foram apontados entre os principais problemas da alimentação escolar o número insuficiente de nutricionistas (31%) e cozinheiras (32%), além da inadequada infraestrutura das cozinhas escolares (36%) e o baixo investimento financeiro por parte de estados ou municípios (30%).
A falta de nutricionistas responsáveis técnicos vinculados às entidades executoras pode levar à suspensão do repasse financeiro do Pnae para municípios, estados e instituições federais, de acordo com resolução nº 06 de 2020 do FNDE.
A nutricionista e assessora técnica do CFN, Ana Flávia de Rezende Gomes, relata que atualmente existem 3.626 nutricionistas responsáveis técnicos no país, 2.085 quadros técnicos e 97 quadros técnicos exclusivos para a modalidade de educação infantil. “Isso significa apenas 60% do que deveria ter. A gente tem 40% das entidades executoras, atualmente, em risco de ter o seu repasse financeiro suspenso”, alerta.
Ela salienta que, “para 20% dos municípios um nutricionista responsável técnico é suficiente. Mas para 80% não. A gente depende de um quadro técnico. Esse profissional sozinho não vai conseguir fazer todo esse aporte, todas as atividades, atribuições que dependem dele. Ele precisa de um quadro técnico”.
Alimentação saudável
Nas diretrizes do Pnae também há o limite de 20% dos recursos do programa para gastos com alimentos processados e ultraprocessados. Em 2019, um ano antes da resolução ser publicada, 40% dos municípios brasileiros se enquadravam neste limite, revelou publicação do ÓAÊ.
“O ambiente escolar, onde as crianças, adolescentes e jovens passam grande parte da sua vida, é determinante para a formação dos hábitos alimentares e para o acesso a alimentos que sejam saudáveis ou que possam prejudicar a saúde”, descreve a Coordenadora-Geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, Kelly Poliany De Souza Alves.
Diante do aumento do consumo de ultraprocessados, a representante do Ministério da Saúde destaca que “15% das crianças menores de 4 anos atendidas em unidades básicas de saúde já apresentavam excesso de peso e 5,9% a magreza”. Na faixa de 5 a 9 anos, são “29,5% das crianças atendidas no SUS com excesso de peso”. E entre os adolescentes, “31,4% já apresentavam excesso de peso”.
Para ela, a garantia de uma alimentação saudável e adequada no ambiente escolar é importante para “ajudar a prevenir a obesidade e as outras doenças crônicas, construindo novas gerações mais saudáveis. E, por consequência, com menor impacto nos custos do SUS”.
Apoio do Executivo para o controle social
Como exemplo do compromisso com uma “construção coletiva” do Pnae, a coordenadora-geral do programa, Karine Silva dos Santos, destaca a “reativação” do Comitê Gestor do Pnae, constituído por representantes do governo federal e órgãos governamentais, e seu Grupo Consultivo – instância de participação social composta por representante da sociedade civil.
A coordenadora aponta o papel dos Conselhos de Alimentação Escolar para a execução do Pnae. “Nós temos no país 80 mil conselheiros atuando no monitoramento, na fiscalização e no acompanhamento dessa política pública que acontece nas nossas 150 mil escolas. Os conselheiros são pais de estudantes, professores, agricultores familiares, os próprios estudantes. Então, nós temos uma vasta representatividade de atores distintos nesse processo de acompanhamento”, descreve.
É uma obrigatoriedade do Pnae a presença de Conselhos de Alimentação Escolar em cada município e estado atendido pelo programa. Os CAEs possuem a responsabilidade de realizar o controle social do programa em seus diferentes âmbitos. Municípios e estados que não tiverem CAEs ativos podem ter seus repasses do Pnae suspensos. “Neste ano, os Conselhos de Alimentação Escolar estão fazendo 30 anos de existência”, salienta.Pesquisa realizada pelo ÓAÊ, em 2023, revelou que a falta de transparência, de capacitação, de infraestrutura e casos de assédio moral são barreiras para o funcionamento dos CAEs pelo país.
A coordenadora do Pnae também destaca o papel dos Cecanes – Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar. “Os Cecanes são braços extensivos do FNDE. E atuam no processo de capacitação, formação e de assistência técnica. Isso tem sido um trabalho realizado desde 2008, nós temos hoje 25 Cecanes atuando em todas as regiões do nosso país”.
Para ela, é importante que os diversos atores sociais envolvidos na execução e monitoramento do Pnae apresentem suas análises e contribuições para se melhorar a execução do programa. “Nosso papel como gestor dessa política pública é participar do diálogo, é ouvir as possibilidades, é entender quais seriam as dificuldades, os maiores desafios, e construir estratégias com a participação de todos”, conclui.