Há um ano conselheiras e conselheiros aguardam a posse no CNPCT

Sem a instalação do Conselho Nacional, Povos e Comunidades Tradicionais  perdem ainda mais direitos

Se no último ano os retrocessos e as perdas de direitos têm acentuado desigualdades no país, os impactos destas medidas para povos e comunidades tradicionais têm sido ainda mais danosos. A violência e criminalização das lutas, aliada à falta de políticas de regularização fundiária e de territórios tradicionais têm fragilizado estes povos que precisam ter garantido o direito à terra e território, como condição necessária para sua sobrevivência, assim como a manutenção da sua identidade e valores culturais.

Em relação a estes povos, no que diz respeito à participação, um dos principais problemas enfrentados é a não efetivação do  Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Instituído pelo Decreto 8.750 de maio de 2016 – uma das últimas ações do governo da Presidenta Dilma Rousseff – o Conselho é um órgão de caráter consultivo e seus conselheiros e conselheiras são eleitos por meio de edital público. O processo eleitoral aconteceu ainda no ano de 2016, porém o resultado deste só foi divulgado em fevereiro de 2017. Apesar da nomeação em 14 julho de 2017, conselheiras e conselheiros eleitos aguardam há quase um ano a instalação para que possam dar continuidade aos trabalhos inicialmente realizados pela Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (transformada, posteriormente em Conselho).

Entre as principais atribuições do CNPCT estão coordenar e acompanhar a implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo Decreto nº 6.040/07.  A Política foi elaborada tendo como principal objetivo a promoção do desenvolvimento sustentável desses grupos com ênfase no reconhecimento, no fortalecimento e na garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, respeitando e valorizando suas identidades, formas de organização e instituições.

“O CNPCT é uma conquista dos povos e comunidades tradicionais, uma luta de muitos anos, é um espaço de Estado e não um espaço de governo, mas que precisa muito de vontade política para que ele de fato se efetive e continuamos nessa luta pela sua efetivação. Temos atuado, mas sem reuniões ordinárias para deliberar algumas coisas no coletivo e isso é muito ruim politicamente, porque resulta em muitas perdas coletivas”, ressalta a conselheira Cláudia de Pinho, da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras.

Sem posse

A relação com as organizações da sociedade civil eleitas para compor o Conselho foi divulgada pelo Ministério de Desenvolvimento Social em fevereiro de 2017. O resultado da eleição foi divulgado no Diário Oficial da União no dia 3 de fevereiro de 2017.

São 33 organizações e movimentos sociais que aguardam a posse no CNPCT, além de 15 membros do Governo Federal. Importante instrumento para promover o desenvolvimento sustentável, reconhecer e garantir direitos de povos e comunidades tradicionais, em maio de 2017, o governo federal, por meio do Decreto 782 transferiu a estrutura do CNPCT, que até então integrava o Ministério de Desenvolvimento Social, para o Ministério dos Direitos Humanos.

“Passamos por todo o processo de composição do CNPCT, mas não saiu a posse e no meio do processo a Secretaria Executiva que estava conduzindo esse processo no MDS passa para o Ministério de Direitos Humanos, mas até agora nada de previsão, inclusive fizemos uma carta para a Ministra solicitando a posse dos Conselheiros, o funcionamento da Secretaria Executiva, entre outras. Apesar da SDH ter nos recebido, até agora não temos nada de efetivação. Precisamos dar continuidade às atividades e obrigações do Conselho”, conta Claudia de Pinho.

Na carta, enviada à ministra Luislinda Dias de Valois em outubro de 2017, além de explicitar o processo de mobilização e articulação construído para a instituição do Conselho, as organizações e movimentos sociais de povos e comunidades tradicionais pedem agilidade na efetivação do órgão como: posse dos Conselheiros; transferência do orçamento referente ao Conselho que se encontra disponível no MDS para o MDH; transferência da estrutura da Secretaria do CNPCT que se encontra no MDS para o MDH; criação de uma coordenação para a Política dos Povos e Comunidades Tradicionais na estrutura da Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

“Diante do exposto manifestamos que não aceitamos a desculpa da crise política que o país atravessa para se fazerem acordos e que a toque de caixa retirem nossos direitos e nossas conquistas nas lutas históricas em busca da visibilidade política e efetivação de políticas públicas que refletem o nosso modo de ser e existir neste país. Repudiamos qualquer retrocesso que viole os direitos de Povos e Comunidades Tradicionais e contamos com a vosso apoio”, destaca trecho da carta.

Direito ao território e à alimentação

Em atividade de formação sobre a Declaração dos Direitos Campesinos, realizada com a FIAN Brasil, nos dias 15 e 16 de janeiro, representantes do Grupo de Trabalho sobre Direitos Campesinos do CNPCT, apontaram a ausênica de posse de conselheiras e conselheiros como um dos principais problemas de povos e comunidades tradicionais do país.

Além da falta de efetivação do CNPCT, o grupo apontou ainda como problemas enfrentados pelos povos e comunidades tradicionais o fim do PAA e PNAE; a sobreposição dos territórios tradicionais com Unidades de Conservação; o não reconhecimento dos territórios tradicionais; a privatização dos recursos naturais; o desrespeito aos marcos legais e tratados nacionais e internacionais; a perda de políticas públicas e desmonte do Estado; o aumento da violência contra as mulheres e jovens PCT; o uso de agrotóxicos; os impactos causados por grandes empreendimentos, entre outros.

“Todas as políticas que vêm das perdas de direitos tem um impacto muito grande porque nossos territórios não estão regularizados. A maioria das demandas está relacionada à questão da regularização fundiária dos territórios tradicionais e isso impacta diretamente na segurança alimentar, porque para muitos povos além da auto afirmação da sua identidade e território, existe uma auto afirmação ligada à sua alimentação e muitas vezes essa alimentação está disponível na sua forma de estar no território e, sem o território, isso fica fragilizado, vulnerável”, aponta Claudia de Pinho.

De acordo com dados do último IBGE é possível perceber que a insegurança alimentar é mais presente em comunidades rurais, onde predominantemente se encontram os PCT’s. Enquanto na cidade o grau de segurança alimentar é de 79,5%, em comunidades rurais o dado cai para 64,5% (IBGE/2013). “Acrescentando a estes dados o quesito racial, em comunidades negras rurais (quilombolas, por exemplo) o grau de segurança alimentar cai para 58%. Essas informações indicam a necessidade urgente de políticas públicas que reconheçam a especial vulnerabilidade dos PCT’s no Brasil. A instalação imediata do CNPCT não é apenas uma obrigação legal do Estado brasileiro, mas uma medida que visa garantir os direitos humanos”, destaca a assessora de Direitos Humanos da FIAN Brasil, Luana Natielle Basílio.

 

(Foto destaque: Leo Lima)

CNDH manifesta preocupação quanto a aumento da violência em conflitos no campo

O crescimento da violência que vitima povos, comunidades e trabalhadores e trabalhadoras do campo também foi visto com preocupação pelo Plenário do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), reunido em Brasília nos dias 31 de janeiro e 1° de fevereiro em Brasília,  em sua 34ª Reunião Ordinária.

Em nota aprovada pelo Plenário nesta quarta-feira (31 de janeiro), o colegiado alerta sobre o crescimento da violência contra defensores e defensoras de direitos humanos, especialmente vinculada a conflitos fundiários; contra povos indígenas, e para a quantidade de chacinas ocorridas em 2017. “As execuções em Colniza/MT (nove trabalhadores), Pau D’arco/PA (nove trabalhadores e uma trabalhadora) e Vilhena/RO (três trabalhadores), demonstram um ataque indiscriminado à luta pelos direitos humanos, especialmente vinculados às questões agrárias no Brasil”, diz a nota.

“O ano de 2018 começa com o assassinato de dois defensores de direitos humanos (execuções ocorridas em Anapu/PA e Iramaia/BA), o assassinato de dois professores indígenas (mortos a pauladas, em Penha/SC, e por apedrejamento, em Confresa/MT) além de um atentado por arma de fogo contra um indígena Munduruku em Itaituba/PA. São casos que apontam para um quadro gravíssimo de violência que requer urgente e necessária proteção e garantia dos direitos humanos”, destaca o documento do CNDH.

O colegiado também destaca que, “paralelo a este crescimento nos dados sobre a violência no campo, o Estado brasileiro tem tomado medidas que, na contramão dos direitos humanos, podem agravar um quadro que já é extremamente grave”, citando a Medida Provisória 759/2016 (altera a política de reforma agrária), a redução orçamentária para políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, a paralisação das demarcações dos territórios indígenas e quilombolas, dentre outras questões.

Acesse a Nota Pública AQUI

 

Fonte: Ascom/CNDH

Parecer da AGU provoca onda de despejos, morte e desesperança para indígenas Guarani Kaiowá e Terena no MS

Por Renato Santana/ Ascom CIMI

Os efeitos do Parecer 01/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), o chamado Parecer Antidemarcação, já podem ser sentidos pelos povos indígenas do Mato Grosso do Sul, sobretudo na região de Dourados. O estado possui um acentuado passivo com relação à regularização fundiária de territórios tradicionais no país. O parecer tem a função de manter o quadro como está, apontam as lideranças indígenas, na medida em que obriga toda a administração pública a aplicar as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Entre elas está a tese do marco temporal, que restringe os direitos territoriais dos povos definindo que só podem ser reconhecidas as terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988.

Existe uma crise humanitária na Reserva de Dourados se arrastando há pelo menos duas décadas. Os 16 mil indígenas Guarani Kaiowá e Terena vivem confinados em três mil hectares e buscam terras para “desafogar” a situação. Para a Reserva os indígenas foram levados no decorrer do final da primeira metade do século XX, como política de colonização de “terras devolutas” do então estado do Mato Grosso, e em 5 de outubro de 1988 estes povos não estavam nas terras tradicionais de onde foram retirados com violência. Dessa maneira, a cada retomada ou ocupação de terra fora da Reserva, estes indígenas sofrem ações de reintegração posse que desde o ano passado têm como principal argumento deferidor a tese do marco temporal.

“Por seu caráter amplo, e também por ser da AGU, o parecer possui capacidade de influenciar a Justiça Federal. Afinal, é uma posição do Poder Executivo – o poder que tem a responsabilidade administrativa pela demarcação. Como a retomada de terra é a alternativa dos povos para garantir o território tradicional, esse parecer é o combustível necessário para abastecer a usina de reintegrações de posse, com destaque para as decisões de primeira instância”, declarou a jornalistas de Brasília uma das coordenadoras da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara.

Neste contexto se encontra uma ocupação Terena reintegrada à força pela polícia, no início de dezembro. O grupo, composto por oito famílias (cerca de 50 pessoas) e oriundo da Reserva, foi surpreendido pela Tropa de Choque. Os acessos ao sítio em que os indígenas estavam foram fechados. Tratores destruíram casas e dezenas de indígenas foram atingidos pelas balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. “Parecia que estavam preparados para uma guerra. Foi horrível. Atacaram com tudo, não tivemos nem tempo de reagir. Quando percebemos já estávamos na rodovia. A interditamos em protesto e mais uma vez a Tropa de Choque chegou atirando balas de borracha, bombas. Uma desumanidade”, explica Zuleica Terena.

Para os integrantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, trata-se de um movimento de despejos reforçado agora pelo parecer.

“Ano passado tivemos Apyka’i, Itapoty e Nhu Vera. Sempre a partir da Reserva. Então há um aumento de violência na região de Dourados. São centenas de indígenas que não cabem na Reserva. Buscam novas ocupações ou retomadas e sofrem represálias dos policiais em ações violentas de despejo”, destaca o missionário Matias Benno.

“Isso mostra quais serão os próximos passos da polícia em Dourados e já deixa a sombra do desespero pairando sobre todas as áreas. Sem dúvida o Parecer da AGU é um elemento a mais para aumentar a preocupação: com as demarcações paralisadas, os indígenas vão para as retomadas. Com isso, novas reintegrações baseadas no marco temporal podem ocorrer com a truculência policial”, destaca a missionária do Cimi Regional MS, Lídia Farias de Oliveira.

Leia a matéria completa no link: https://goo.gl/81VWrq

Carta final da Aty Guasu 2017

Realizada entre os dias 27 de novembro a 1º de dezembro a Aty Guasu – Grande Assembleia do Povo Guarani e Kaiowá – recebeu mais de 400 indígenas do Brasil, Argentina e Paraguai. Abaixo confira o Documento Final.

DOCUMENTO FINAL DA ATY GUASU – PIRAKUÁ

Nós, povo Guarani e Kaiowá reunidos na Aty Guasu, nos dias 27/11 a 01/12/2017 na Aldeia Pirakuá, semente de nossa luta e reconquista de nossa terra, razão pela Marçal Tupa’i foi assassinado enquanto lutava pelo seu povo.

Essa Aty Guasu foi marcada pela participação de nossos parentes Guarani Nhandeva, M’bya e Pa’i tavy terã da Argentina e do Paraguai, além da presença solidária de aliados, entre os quais a UNILA (Universidade Latino americana).

Para nós a Aty Guasu foi um grande momento celebrativo, memória dos que tombaram na luta pelo nosso Território tradicional realizado com muito ritual, muita emoção e lágrimas. “Nossos mortos têm voz”. A Aty Guasu foi um momento forte para fortalecer e valorizar nossos Nhanderu e Nhandeci, nossos mestres tradicionais e que estiveram presente em número significativo.

Essa Aty Guasu, depois de 40 anos, vem mostrar que esse é o único e mais eficaz caminho para conquistar nossos territórios e garantir os nossos direitos. Desde a retomada de Pirakuá em 1982 até hoje foram mais de 40 retomadas realizadas, cujo processo de regularização deveria estar sendo realizado pela FUNAI.

Em 2002 o governo através da FUNAI assumiu a demarcação das terras dos povos Guarani e Kaiowá como prioridade do órgão. Porém, nos cinco anos seguintes nada foi feito. Foi então que as nossas lideranças junto com o Ministério público decidiram ir a Brasília para pressionar a demarcação de suas terras. Nesta ocasião foi assinado o TAC (Termo de ajustamento de conduta) em que a FUNAI se comprometia a identificar todas as terras Kaiowá e Guarani nos anos seguintes. Passaram-se dezoito anos e a maior parte das terras não foi regularizada e pelo menos cinco das lideranças que assinaram o TAC já morreram.

Essa omissão do governo é a razão do quadro extremo de violência e genocídio em que passa os kaiowá e Guarani. Situação que gera muita indignação e revolta em todos nós. Nossas lideranças continuam sendo perseguidas, criminalizadas e assassinadas. Toda essa situação causa danos físicos e psicológicos nas pessoas levando em muitos casos a dependência química e ao suicídio.

Não resta às nossas comunidades outro caminho a não ser a retomada das terras tradicionais.

REPUDIAMOS:

– Repudiamos a tradição das PECs no Supremo Tribunal e no Congresso Nacional, não aceitamos a tese do Marco Temporal. Ele é um decreto de morte para nosso povo;

– Repudiamos o discurso preconceituoso e discriminatório do deputado Eduardo Bolsonaro contra os povos indígenas e comunidades tradicionais;

– Repudiamos a justiça brasileira, segunda instância de São Paulo que colocou em liberdade os cinco fazendeiros responsáveis pelo assassinato de Clodiodi no massacre de Caarapó;

– Repudiamos as ações violentas praticadas contra nosso povo, os assassinatos e ocultação dos corpos de Rolindo Vera e Nísio Gomes e que a justiça até agora não se pronunciou;

– Repudiamos o decreto baixado pelo presidente Michel Temer autorizando o porte de armas para a defesa da propriedade privada porque isso estimula a violência e os ataques aos povos indígenas e comunidades tradicionais.

DENUNCIAMOS:

– Denunciamos a destruição da natureza com o uso abusivo de agrotóxicos que poluem o ar, a terra e as águas atingindo nossas comunidades. Estamos adoecendo cada vez mais. Não aguentamos mais, voltaremos às nossas terras para dela cuidar e viver com dignidade. Continuaremos denunciando essa situação em nível nacional e internacional como um dos piores quadros vividos hoje no Brasil e no mundo;

– Denunciamos o Estado brasileiro pela omissão em relação aos nossos direitos e pela prática de violência contra nosso povo, de modo especial a agressão às nossas crianças que estão sendo retirada das nossas comunidades para colocar em abrigos encaminhadas para adoção;

– Denunciamos as práticas colonizadoras genocidas e etnocidas que continuam cooptando lideranças, provocando divisões e conflitos entre os povos indígenas;

– Denunciamos os ataques agressivos praticados pela polícia federal, militar, civil, rodoviária, DOF, bombeiro, ambulâncias e funerárias nas ações de reintegração de posse;

– Denunciamos os fazendeiros, sindicato rural, FAMASUL que além de invadir as nossas terras fomentam os ataques paramilitares e mantêm pistoleiros vigiando e dando tiros em cima de nossos tekohas;

– Repudiamos e denunciamos o poder judiciário pelas constantes ações de despejos em nossos tekohas.

NOS COMPROMETEMOS:

– Fortalecer a nossa luta através dos nossos rituais, da nossa cultura. Nós continuaremos resistindo para conquistar e defender nosso território, apenas tendo nosso corpo como escudo. Se caso persistir a reintegração de posse o Estado brasileiro será responsável, pois haverá morte coletiva do povo Guarani e Kaiowá, nós resistiremos até o fim;

– Unificar a nossa luta como nação Guarani, hoje presente em cinco países: Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai com 280 mil habitantes e 1400 comunidades.

Resistimos na esperança, crescemos na união fazendo nascer de nosso chão, regado com nosso próprio sangue e com as lágrimas dos nossos sentimentos, novos guerreiros.

 

Aldeia Pirakuá, 01 de dezembro de 2017

Aty Guasu – Povo Guarani, Grande Povo  

 

 

Crédito foto: Egon Heck/CIMI

STF nega por unanimidade pedido de indenização do estado do Mato Grosso por demarcação da União de terras indígenas

Em sessão extraordinária, realizada na manhã desta quarta-feira, 16 de agosto, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou duas ações relacionadas à demarcação de terras indígenas no Mato Grosso. Tanto na Ação Cível Originária (ACO) 362, quanto na ACO 366, o estado do Mato Grosso pedia indenização à União por desapropriação indireta de terras incluídas no Parque Nacional do Xingu e nas reservas indígenas Nambikwára e Parecis.

A discussão central das duas matérias era saber se as terras compreendidas no Parque Nacional do Xingu e das reservas indígenas Nambikwára e Parecis são tradicionalmente ocupadas por povos indígenas. Relator do processo, o ministro Marco Aurélio julgou improcedente os pedidos do Estado do Mato Grosso e o condenou a pagar as despesas processuais e honorários advocatícios no valor de R$ 50 mil reais. “As terras são de tradicional ocupação indígena, assim como muitas outras áreas adjacentes na região”, argumentou o Ministro em seu parecer. Confira o voto do Ministro AQUI.

Os demais ministros do STF acompanharam o voto do relator e também julgaram improcedente as ações. A Procuradoria Geral da República também se manifestou pela improcedência das duas ações, reconhecendo o direito originários dos povos indígenas às terras em questão. Uma das grandes preocupações para o julgamento das ações seria o uso da tese do marco temporal, no entanto os ministros não a colocaram em questão. A tese do marco temporal, elaborada pela 2ª turma do STF, impõe a promulgação da Constituição Federal de 88 como um marco para o reconhecimento do direito ao território de povos indígenas do país.

Para o assessor jurídico da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Luiz Eloy Terena, o STF reafirmou mais uma vez o entendimento de que as terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas são um direito originário. “Para os povos indígenas é um momento importante, é uma decisão importante. O ministro Barroso deixou claro que a tese do marco temporal (aplicada no julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol, em 2009) não é vinculante e não se aplica as terras indígenas do Brasil, o que para nós é um precedente importante e é uma forma do STF dar um recado ao Legislativo e Executivo de que os direitos dos povos indígenas são originários e não devem ser mitigados em nome de interesses políticos e econômicos”, destacou.

Embora a tese do marco temporal não tenha sido ventilada durante o julgamento no STF, em julho um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) foi chancelado pelo presidente Michel Teme. O parecer obriga que os órgãos do governo federal a adotarem genericamente, a tese do marco temporal para qualquer caso de demarcação no país. A medida pode paralisar mais 700 processos de demarcação em andamento.

Adiamentos
Na terça (15/08) a ACO 469, sobre a Terra Indígena Ventarra, do povo Kaingang, movida pela Funai contra o estado do Rio Grande do Sul foi retirada de pauta.

Já o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239, movida pelo partido Democratas (DEM), que questiona o Decreto nº 4.887/2003 – que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, também foi retirado de pauta em razão de licença médica do ministro Dias Toffoli, que no último julgamento pediu vistas do processo.

 

Ascom Fian Brasil/ Foto: Nelson Jr./SCO/STF 

Nossa história não começa em 1988! Marco Temporal não!

O STF não pode legitimar o genocídio e as violações cometidas contra os povos indígenas no último século. Participe desta luta e diga você também: #MarcoTemporalNão. A história dos povos indígenas não começou em 1988 e não pode ser interrompida!

 

No dia 16 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará três ações que podem ser decisivas para os povos indígenas no Brasil. As decisões dos ministros sobre o Parque Indígena do Xingu (MT), a Terra Indígena Ventarra (RS) e terras indígenas dos povos Nambikwara e Pareci poderão gerar consequências para as demarcações em todo o país. Por isso, os indígenas reforçam, a partir de hoje, uma série de mobilizações por seus direitos.

Uma das principais bandeiras dos grupos interessados em limitar os direitos territoriais indígenas, com forte representação no Congresso Nacional e no governo federal, tem sido o chamado “marco temporal” – uma tese político-jurídica inconstitucional, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito às terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988. Os ruralistas querem que o ‘marco temporal’ seja utilizado como critério para todos os processos envolvendo TIs, o que inviabilizaria a demarcação de terras que ainda não tiveram seus processos finalizados.

Em meio às negociações de Temer para evitar seu afastamento da presidência, os ruralistas do Congresso conseguiram emplacar sua pauta no governo federal. Temer assinou, em julho, um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) obrigando todos os órgãos do Executivo a aplicar o “marco temporal” e a vedação à revisão dos limites de terras já demarcadas – inclusive visando influenciar o STF.

Na prática, o marco temporal legitima e legaliza as violações e violências cometidas contra os povos até o dia 04 de outubro de 1988: uma realidade de confinamento em reservas diminutas, remoções forçadas em massa, tortura, assassinatos e até a criação de prisões. Aprovar o “marco temporal” significa anistiar os crimes cometidos contra esses povos e dizer aos que hoje seguem invadindo suas terras que a grilagem, a expulsão e o extermínio de indígenas é uma prática vantajosa, pois premiada pelo Estado brasileiro. A aprovação do marco temporal alimentará as invasões às terras indígenas já demarcadas e fomentará ainda mais os conflitos no campo e a violência, já gritante, contra os povos indígenas.

Afirmar que a história dos povos indígenas não começa em 1988 não significa, como afirmam desonestamente os ruralistas, que eles querem demarcar o Brasil inteiro. Os povos indígenas querem apenas que suas terras tradicionais sejam demarcadas seguindo os critérios de tradicionalidade garantidos na Constituição – que não incluem qualquer tipo de “marco temporal”!

Por isso o movimento indígena e as organizações de apoio aos povos na sociedade civil pedem a revogação imediata do Parecer 001/2017 da AGU e diz: Marco Temporal Não!

Entenda as ações no STF
A Ação Civil Originária (ACO) 362, primeira na pauta, foi ajuizada nos anos 1980 pelo Estado de Mato Grosso (MT) contra a União e a Funai, pedindo indenização pela desapropriação de terras incluídas no Parque Indígena do Xingu (PIX), criado em 1961. O Estado de Mato Grosso defende que não eram de ocupação tradicional dos povos indígenas, mas um parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) defende a tradicionalidade da ocupação indígena no PIX, contrariando o pedido do Estado de MT.

Já a ACO 366 questiona terras indígenas dos povos Nambikwara e Pareci e também foi movida pelo Estado do Mato Grosso contra a Funai e a União. Semelhante à 362, ela foi ajuizada na década de 1990, pede indenização pela inclusão de áreas que, de acordo como o Estado de MT, não seriam de ocupação tradicional indígena. Neste caso, a PGR também defende a improcedência do pedido do Estado de MT.

A última que será julgada no dia 16, é a ACO 469, sobre a Terra Indígena Ventarra, do povo Kaingang. Movida pela Funai, ela pede a anulação dos títulos de propriedade de imóveis rurais concedidos pelo Estado do Rio Grande do Sul sobre essa terra. A ação é simbólica dos riscos trazidos pela tese do “marco temporal”: durante a política de confinamento dos indígenas em reservas diminutas, os Kaingang foram expulsos de sua terra tradicional, à qual só conseguiram retornar após a Constituinte, com a demarcação realizada somente na década de 1990. Desde então, a Terra Indígena Ventarra está homologada administrativamente e na posse integral dos Kaingang. Sem relator, a ação tem parecer da PGR favorável aos indígenas e está com pedido de vistas da ministra Cármen Lúcia, que deve ser a primeira a votar.

Fonte: APIB

Programa 2: Como o Marco Temporal afetou os Guarani Kaiowá?

Ouça e compartilhe a segunda edição do programa “Seu Direito É Nossa Pauta”, um boletim de áudio da Articulação do Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Fian Brasil.

Em cinco programas, vamos falar de uma ameaça que pode influenciar a vida de todos os povos indígenas no Brasil.

Neste programa, falamos como o povo Guarani Kaiowá, a segunda maior etnia do país, que foi afetada pela tese do Marco Temporal.

 

 

Saiba Mais:

 FIAN Brasil e APIB lançam campanha “Seu Direito É Nossa Pauta”

Michel Temer violenta os direitos dos povos indígenas para tentar impedir seu próprio julgamento

O presidente Michel Temer aprovou e mandou publicar no Diário Oficial da União o parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), que obriga a administração pública federal a aplicar, a todas as Terras Indígenas do país, condicionantes que o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu, em 2009, quando reconheceu a constitucionalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O parecer simula atender uma orientação do STF, mas, na verdade, os ministros da corte já se manifestaram pela não obrigatoriedade da aplicação daquelas condicionantes a outros processos de demarcação. Importante lembrar que, em 2010, quando a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) apresentou proposta de súmula vinculante sobre o tema, o STF rejeitou o pedido por entender que não seria possível editar uma súmula sobre um tema no qual ainda não havia reiteradas decisões que pudessem demonstrar a consolidação de entendimento sobre o assunto.

A aplicação daquelas condicionantes a outras situações resulta em graves restrições aos direitos dos povos indígenas. Por exemplo, a autorização que o STF deu para a eventual instalação de infraestrutura para a defesa nacional naquela terra indígena de fronteira poderá, com o parecer da AGU, ser aplicada em qualquer outra região para desobrigar governos, concessionárias e empreiteiras a consultar previamente os povos indígenas, na abertura de estradas, instalação de hidrelétricas, linhas de transmissão de energia ou quaisquer outros empreendimentos que poderão impactar as Terras Indígenas.

O parecer pretende institucionalizar e pautar as decisões do STF sobre a tese do “marco temporal”, que restringe o direito às terras que não estivessem ocupadas pelos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Isso representa uma ampla anistia à remoção forçada de comunidades indígenas praticadas durante a ditadura militar. Decisões do próprio STF rejeitaram mandados de segurança contra demarcações fundamentados nessa tese. O parecer da AGU toma partido numa discussão que ainda está em curso na Suprema Corte para impor restrições administrativas às demarcações de Terras Indígenas e ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre os recursos naturais dessas áreas.

O parecer aprovado por Temer foi anunciado previamente pelo deputado federal ruralista Luis Carlos Heinze (PP-RS) pouco antes da votação na Câmara do pedido de autorização para que o STF julgue o presidente por corrupção passiva, deixando claro que os direitos dos povos indígenas estão sendo rifados em troca dos votos ruralistas para manter Temer no poder. Heinze é o mesmo parlamentar que, em 2013, afirmou publicamente que índios, quilombolas e gays são “tudo o que não presta”.

As organizações signatárias manifestam o seu veemente repúdio ao parecer 001/2017 da AGU, que será denunciado em todos fóruns e instâncias competentes. Temos consciência dos inúmeros danos que estão sendo causados ao país e a todos os brasileiros na “bacia das almas” desse governo, mas pedimos o apoio dos demais movimentos sociais e da sociedade em geral contra mais esta violência.

Solicitamos ao Ministério Público Federal (MPF) que requeira a suspensão dos efeitos do parecer da AGU, cujas proposições são consideradas inconstitucionais por juristas de renome. Solicitamos, ainda, que o STF ponha fim à manipulação das suas decisões pelo atual governo, a qual tem o objetivo de desobrigar o reconhecimento do direito constitucional dos povos indígenas sobre suas terras e impor restrições aos outros direitos desses povos.

Assinam:

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)
Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME)
Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE)
Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL)
Grande Assembléia do Povo Guarani (ATY GUASU)
Comissão Guarani Yvyrupa
Conselho do Povo Terena
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
Articulação dos Povos Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP)
Associação Agroextrativista Puyanawa Barão e Ipiranga (AAPBI)
Associação Apiwtxa Ashaninka
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC)
Associação do Povo Arara do Igarapé Humaitá (APAIH)
Associação dos Povos Indígenas do Rio Envira (OPIRE)
Associação dos Produtores Kaxinawa da Aldeia Paroá (APROKAP)
Associação dos Produtores Kaxinawá da Praia do Carapanã (ASKPA)
Associação Indígena Katxuyana, Kahiana e Tunayana (Aikatuk)
Associação Indígena Nukini (AIN)
Associação Nacional de Ação Indigenista-Bahia (Anai-Bahia)
Associação Sociocultural Yawanawa (ASCY)
Associação Terra Indígena Xingu (ATIX)
Associação Wyty-Catë dos povos Timbira do MA e TO (Wyty-Catë)
Amazon Watch
Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza
Centro de Trabalho Indigenista (CTI)
Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP)
Comissão Pró-índio do Acre (CPI-Acre)
Conselho das Aldeias Wajãpi (APINA)
Conselho Indígena de Roraima (CIR)
Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN)
Federação dos Povos Indígenas do Pará
Federação das Organizações e Comunidades Indígenas de Médio Purus (Focimp)
FIAN Brasil
Greenpeace
Hutukara Associação Yanomami (HAY)
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)
International Rivers Brasil
Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB)
Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepe)
Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)
Instituto Socioambiental (ISA)
Rede de Cooperação Amazônica (RCA)
Operação Amazônia Nativa (Opan)
Organização dos Agricultores Kaxinawá da Colônia 27 (OAKTI)
Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Pauini (Opiaj)
Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ)
Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC)
Organização dos Povos Indígenas Apurina e Jamamadi de Boca do Acre Amazonas (Opiajbam)
Organização Geral Mayuruna (OGM)
Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil
Terra de Direitos
Uma Gota no Oceano

 

Foto: Takukam Takuikam

MPF divulga nota pública contra retrocesso em demarcação de terras indígenas

 Parecer aprovado pelo presidente da República pretende impor condicionantes fixadas no caso Raposa Serra do Sol para outras terras indígenas
O Ministério Público Federal (MPF) se manifestou, em nota pública, contra o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), aprovado pelo presidente Michel Temer, sobre os processos de demarcação de terras indígenas.Para a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR), a posição do presidente da República demonstra que “o atual governo faz o que os antecessores já faziam: não demarca, não reconhece e não protege terras indígenas”.

O parecer, divulgado nesta quinta-feira (19), orienta a administração federal a vincular as condicionantes estabelecidas no caso Raposa Serra do Sol para outros processos demarcatórios, mesmo tendo o Supremo Tribunal Federal (STF) expressamente reconhecido que a decisão tomada na PET 3388 não é dotada de eficácia vinculante para outras terras indígenas.

Leia a íntegra da nota pública:

O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, é firme desde sempre na determinação do dever do respeito às terras indígenas. A decisão no caso Raposa Serra do Sol é extraordinariamente bela e afirmativa dos direitos originários dos índios às terras de sua ocupação tradicional.

Todo o esforço do Estado brasileiro desde então é distorcer o conteúdo da decisão do Supremo, para desobrigar-se do seu dever de proteger o direito dos índios às suas terras indígenas.

O Supremo Tribunal Federal determina ao Estado brasileiro demarcar as terras indígenas, sem hostilizar as comunidades indígenas e respeitar a diversidade étnica e cultural. Também determina que se reconheça aos índios os direitos às terras quando delas retirados à força e a elas impedidos de retornarem. O Supremo Tribunal Federal, nessa mesma decisão, proclamou que essa dinâmica de ocupação indígena é revelada a partir do saber antropológico posto em prática, respeitando a metodologia “propriamente antropológica”, para evidenciar o que ocupam, como ocupam e quanto ocupam, como permanecem com os laços culturais, religiosos, sociais com aqueles espaços, mesmo quando forçados a deles se retirarem.

O Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU, aprovado pelo presidente Michel Temer, que pretende ter força vinculante, põe no papel o que o atual governo faz e os que antecederam já faziam: não demarcar, não reconhecer e não proteger. Deliberadamente passa ao largo dos pontos acima referidos e realça limitações definidas pelo Supremo para o caso Raposa Serra do Sol.

Na jurisprudência consolidada e reiterada, o marco constitucional temporal dos direitos dos índios às terras é o de 1934, repetido em 1937 e 1946, ampliado em 1967 e mais ainda na EC de 1969, e densamente positivado na Constituição de 1988.

O parecer tem apenas um grande mérito: traz as digitais do presidente da República e, portanto, faz dele o responsável direto da política indigenista da sua administração.

O Supremo Tribunal Federal terá agora em agosto nova e plural oportunidade debater vários desses temas. Os índios nada podem esperar da Administração Federal.

A certeza dos índios e a esperança de seu futuro estão nas mãos da Justiça!

Fonte: MPF

O Supremo e a (não) demarcação de terras indígenas

Na última semana (22/06), a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Carmen Lúcia, recebeu uma delegação de mulheres e crianças Guarani-Kaiowá que descreveram o quadro de fome e insegurança alimentar, racismo e violências que se impõem aos indígenas frente à falta de demarcação de suas terras. A ministra afirmou que o Judiciário está cada vez mais atento à realidade dos Povos Indígenas relacionada à falta de demarcação de suas terras e garantiu ajuda nos problemas que dependam de decisão jurídica. Mas o que o STF pode de fato fazer?

Em meio à crise política do país e no atual contexto de ruptura democrática, entender o papel e do poder do STF é fundamental. Há alguns anos, temas centrais do Legislativo e do Executivo são deslocados por diferentes motivos para a Suprema Corte, que, ao julgar, muitas vezes termina por legislar, ou afirmar e redefinir políticas públicas no Brasil. No campo dos direitos humanos, alguns avanços podem ser assinalados especialmente no que se refere ao reconhecimento pelo STF de direitos de caráter individual.[1] No entanto, há pelo menos uma década a corte não avança e ainda faz retroceder o reconhecimento de direitos étnicos coletivos, como os direitos territoriais indígenas e quilombolas.

Em 2010, foram identificadas mais de 150 ações sobre demarcação de terras indígenas pendentes de decisão no STF.

O Supremo também foi responsável pela concessão de uma série de medidas liminares que passaram a impedir o acesso de Povos Indígenas a territórios devidamente identificados e demarcados nos termos da Constituição Federal.[2] A sinalização de esforços do Executivo – desde pelo menos 2012 – e do Legislativo – com a tramitação da PEC 215/00 e com a instalação da CPI sobre a Funai e o Incra – visando paralisar ou acabar com a demarcação de terras indígenas acirraram conflitos e contribuíram para a escalada de assassinatos, tal como documentado todos os anos no Mato Grosso do Sul. Essa pressão política e social chega apenas parcialmente ao Judiciário. A morosidade no STF, por exemplo, só reforçou a estratégia de “judicialização” contra os processos de demarcações de terras indígenas precarizando ainda mais o direito dos indígenas. A judicialização transformou-se então em justificativa confortável do Estado para a negação do direito à terra dos Povos Indígenas.

O direito à terra é considerado um direito humano fundamental de caráter coletivo dos Povos Indígenas porque a vida, o bem estar, as tradições, o futuro das comunidades e até mesmo as línguas indígenas dependem da relação que essas populações mantêm com seus territórios e recursos naturais.

No entanto, apesar de formalmente protegido, esse direito não tem sido implementado pelo Estado brasileiro e o STF tem sua parcela de responsabilidade. Por exemplo, ao não julgar o mérito das ações e manter os indígenas fora de suas terras, a corte contribuiu e contribui para a consumação de situações de fato (ex. ocupação não indígena com violenta degradação ambiental) que, de acordo com sua própria jurisprudência, seriam consideradas demandas improcedentes ou inconstitucionais.

Enquanto isso, cada vez mais impedidos de acessar seus territórios para cultivar suas roças de subsistência, caçar, pescar, praticar plenamente seus rituais, Povos Indígenas vão assistindo à derradeira derrubada de suas matas e degradação de seu ambiente juntamente com a morte de lideranças. Em resistência, muitos mantiveram-se em ocupações de ínfimas parcelas de seus territórios para reivindicar seus direitos. Contra isso também, cresceram as judicializações e, durante o julgamento do caso da terra indígena Raposa Serra do Sol/RR, uma nova âncora de conforto para a negação de direitos é apresentada: a tese do marco temporal.

A tese do marco temporal tem sido usada pela 2ª turma do STF e, basicamente, impõe a data da Constituição Federal (05/10/1988) como uma data limite para a constituição de um direito que, em sua natureza, é originário, ou seja, não depende de um ato ou fato constituinte.  Esse entendimento diverge do que diz, expressamente, o artigo 231 da Carta Magna e de tudo o que as constituições, anteriores a de 1988, previram sobre os direitos territoriais indígenas, desde 1934. Num processo de involução inconstitucional, de acordo com a tese, para alguns ministros do STF, o direito à terra só não se perderia se, ao tempo da promulgação da Constituição, os povos e grupos indígenas não estivessem em seu território tradicional devido a “renitente esbulho” praticado por não índios.

O conceito que vem sendo dado a “renitente esbulho” completa o marco de perversidade, pois para caracterização desse instituto seria necessário que, em outubro de 1988, os povos originários estivessem pleiteando a posse da terra no Poder Judiciário, ou ainda, estivessem sofrendo violência física direta contra a ocupação. A tese do marco temporal não abarca, portanto, milhares de casos ocorridos em um período de ditadura militar em que os Povos Indígenas já haviam sido expulsos e não haviam ajuizado ações por inúmeros motivos, entre eles, a dificuldade de acesso à justiça que até hoje os afeta. Por exemplo, essas mesmas decisões do STF que aplicam o marco temporal são proferidas em processos que não contam com a participação das comunidades indígenas cujas terras tem seu reconhecimento anulado.

Vale registrar que o relatório da Comissão Nacional da Verdade comprovou inúmeras violações de direitos sofridas por esses povos durante a ditadura e em outros períodos. Ou seja, a tese do marco temporal diverge de toda lógica inserida na Constituição  e, em especial, do artigo 51 dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, que evidencia a intenção da Constituinte de não legitimar arbitrariedades do período ditatorial. De acordo com esse dispositivo, deveriam ser “revistos pelo Congresso Nacional, através de Comissão mista, nos três anos a contar da data da promulgação da Constituição, todas as doações, vendas e concessões de terras públicas com área superior a três mil hectares, realizadas no período de 1º de janeiro de 1962 a 31 de dezembro de 1987”.

Apesar de ser apenas um entendimento minoritário do STF, a tese do marco temporal vem alterando de fato a vida dos Povos Indígenas por exemplo das terras Limão Verde, Guyraroká, e, mais recentemente Buriti, todas no Mato Grosso do Sul. A tese do marco temporal, que deveria ser aplicada apenas no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol abriu precedentes no STF que já estão sendo replicados por outros juízes para fundamentar a expulsão dos indígenas de suas terras.

Faixa deixada por manifestantes de etnias indígenas em gramado em frente ao Congresso Nacional, em maio de 2017. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Num efeito bola de neve, diante do aumento da judicialização, o STF passou a ser demandado para analisar em caráter de urgência ordens de despejo ou reintegrações de posse que colocam as comunidades indígenas em risco ainda mais grave. Nesses casos, sempre de maneira precária porque apenas sob a forma de suspensão de liminar, o STF tem conseguido garantir a manutenção das comunidades indígenas em parcelas ínfimas de seus territórios reivindicados.

De março de 2016 a maio de 2017, subiram de 13 para 17 suspensões de liminares concedidas pelo STF favoráveis aos Povos Indígenas, mas não suficientes para a garantia de seus direitos humanos e constitucionais.

Para os Povos Indígenas, a terra é a base para o gozo de uma multiplicidade de direitos humanos, como, por exemplo, o direito humano à alimentação e nutrição adequadas. Além da disputa judicial, as últimas décadas foram marcadas pelo acelerado agravamento nas condições de sobrevivência dos Povos Indígenas no Brasil. Em 2005, por exemplo, a morte por desnutrição de mais de 20 crianças em apenas duas aldeias (Bororó e Jaguapiru), no Mato Grosso do Sul, chamou a atenção da imprensa nacional e colocou a exigência  de medidas do Estado brasileiro para reverter este quadro, especialmente no que se refere à garantia de territórios e acesso a recursos naturais necessários à sobrevivência física e cultural dos Guarani e Kaiowá. Em 2010, sem avançar com a demarcação das terras indígenas pelo governo federal, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) confirmou o alarmante índice de 32,11 mortes de crianças menores de 1 ano de idade para cada 1000 nascimentos nas aldeias indígenas do município de Dourados (MS), sendo que a média nacional era de 19 mortes para cada 1000 nascimentos.

Em 2016, um estudo da Fian Brasil demonstrou a disparidade do direito humano à alimentação e à nutrição entre a média nacional (4,8% em 2013) e a do povo indígena Guarani e Kaiowá (28% em 2013). Além disso, 100% dos domicílios desse povo indígena pesquisados apresentaram algum grau de insegurança alimentar e nutricional contra a média de 22,6% para a população brasileira em geral. O estudo confirma que, além da situação de confinamento, as inseguranças jurídicas em processos que se arrastam no tempo para a definição jurídica do direito à terra dos Povos Indígenas e a violência impune praticada contra lideranças e comunidades indígenas comprometem ainda mais a soberania alimentar desses povos no Mato Grosso do Sul.

De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a inação do Estado brasileiro com relação às mortes e violências contra indígenas, bem como com relação à falta de demarcação de terras indígenas, insere o caso dos Guarani e Kaiowá como um caso de atenção para prevenção de situações de genocídio, conforme indicadores da ONU para tal. Com similar preocupação, o Parlamento Europeu aprovou resolução sobre a situação do Povo Guarani e Kaiowá e, considerando, entre outros elementos “que estão em curso algumas iniciativas para a reforma, interpretação e aplicação da Constituição Federal do Brasil e que estas eventuais alterações podem pôr em risco os direitos dos indígenas reconhecidos pela Constituição Federal do Brasil”, apelou às autoridades brasileiras para que desenvolvam um plano de trabalho visando dar prioridade à conclusão da demarcação de todos os territórios reivindicados pelos Guarani-Kaiowá e criar as condições técnicas operacionais para o efeito, tendo em conta que muitos dos assassinatos se devem a represálias no contexto da reocupação de terras ancestrais. Porém, além disso, sem um justo e efetivo posicionamento do STF, não haverá medida do Executivo que resolva essa agravada situação.

relatora especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli Corpuz, após sua visita ao Brasil, em março de 2016, afirmou que “a concentração de poder econômico e político nas mãos de um pequeno segmento da sociedade brasileira contribui, historicamente, para a exploração de terras e recursos dos povos indígenas, sem consideração com seus direitos ou bem-estar. Durante sua visita, ela repetidamente ouviu relatos de que ganhos políticos e econômicos individuais têm contribuído para o racismo institucional, para a violação de direitos dos povos indígenas e para os conflitos.”[5]

Resta saber se, nesse contexto, o STF conseguirá sair de sua tradicional zona de conforto para fazer valer os direitos constitucionais dos Povos Indígenas, abordando o mérito das questões sem legislar ou modificar a Constituição Federal. Afinal, a aplicação da tese do marco temporal pela corte adianta os efeitos da proposta de emenda constitucional (PEC 215), antes mesmo dela ser aprovada, e fecha os olhos do Judiciário para o fato de que: impedir que os Povos Indígenas vivam em suas terras é impedir a existência de suas culturas e coletividades. Isso tudo, em benefício de quem?

Erika Yamada é Relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca e Perita no Mecanismo de Peritos da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas. Valéria Burity é Secretária Geral da FIAN Brasil.

Publicado no Justificando


[1] Por exemplo com relação aos direitos identitários de pessoas transgênero, reconhecimento de alguns direitos LGBT, descriminalização do aborto, e à definição de quotas raciais para ingressar no serviço público e na universidade.

[2] YAMADA, E. Quem ganha com conflitos não resolvidos? in Povos Indígenas no Brasil:2006-2010, Instituto Socioambiental, 2011, p.61