Por Valéria Burity, secretária geral da Fian Brasil
Está agendado para esta quarta-feira, 19 de fevereiro, o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5553. Ajuizada pelo PSOL em junho de 2016, a ação questiona a constitucionalidade das cláusulas 1ª e 3ª do Convênio nº 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), que reduzem 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) dos agrotóxicos. Questiona também a constitucionalidade do Decreto 7.660/2011 que concede Isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a vários agrotóxicos estipulados na Tabela de Impostos sobre Produtos Industrializados.
As normas que concedem estas isenções aos agrotóxicos se pautam no princípio da seletividade em função da essencialidade dos seus objetos, isto é, os produtos devem sofrer menor tributação se são considerados essenciais para a sociedade. Então, nesse julgamento, o STF terá a oportunidade de responder se, de acordo com os preceitos constitucionais, os agrotóxicos são essenciais a ponto de não serem tributados. Ainda não sabemos como o STF irá julgar. Mas entendemos o momento em que estamos, assim como as externalidades que decorrem da comercialização e do uso de agrotóxicos. Com isso, podemos desde já resgatar algumas normas da Constituição para termos nós, a nossa resposta.
Não se pode ignorar que vivemos um momento não apenas de crise, mas de colapso ambiental – e o uso de agrotóxicos pode agravar essa situação. Portanto, qualquer ação que vise regular este tema, não diz respeito apenas à nossa saúde como indivíduos, mas também à saúde do planeta em que vivemos, o que faz com que esse assunto seja de extrema relevância. Qualquer julgamento que ignore esse fato ignora também o momento histórico em que a humanidade se encontra. Pode, só por isso, ser um desserviço à vida.
Sindemia global
A Revista Lancet registrou em 2019 que os sistemas alimentares são responsáveis por uma “sindemia global”, ou seja, a sinergia entre três pandemias: obesidade, má nutrição e mudanças climáticas, invocando a extrema necessidade de mudarmos a forma como produzimos e consumimos alimentos como condição para reverter esse quadro. Ainda em 2014, em seu informe final, Olivier de Schutter, então relator da ONU para o direito humano à alimentação, deu ênfase à insustentabilidade desses sistemas, destacando o seu impacto destruidor sobre a natureza e o papel que os agrotóxicos têm nesse processo.
Ao final do informe, o Relator também chamou a atenção para urgente necessidade de redirecionarmos os sistemas alimentares para padrões mais sustentáveis, sob pena de vivermos crises de segurança alimentar e nutricional em apenas algumas décadas.
Em 2018, dois relatores da ONU também trataram do tema agrotóxicos no relatório A/HRC/34/48. Apontaram, neste documento, que os pesticidas são responsáveis por 200.000 mortes por envenenamento agudo por ano, dos quais 99% ocorrem em países em desenvolvimento. Esse dado escancara a perversidade do uso de agrotóxicos, pois não há fiel da balança: a maior parte do lucro desse mercado vai para poucas corporações que o monopolizam, as externalidades recaem sobre grupos mais vulneráveis dos países mais pobres.
O relatório também traz dados do impacto dos agrotóxicos sobre a saúde de agricultoras e agricultores, de trabalhadores e trabalhadoras rurais, de povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais, crianças, gestantes e consumidores e consumidoras, bem como sobre o meio ambiente. Ao final do informe, os autores também alertam que é necessária uma mudança urgente na forma de produzir alimentos. E trazem recomendações, dentre elas a de que haja a eliminação de subsídios aos pesticidas e o pagamento de taxas por sua utilização.
Liberação recorde de agrotóxicos
No Brasil, assim como no restante do mundo, também persistem graves violações aos direitos humanos nos sistemas alimentares. Em 2019, o Brasil foi responsável pela liberação recorde de agrotóxicos (474, de acordo com MAPA). Enfraqueceu ou desmontou as políticas de incentivo à agricultura familiar e à agroecologia.
Entre 2007 e 2015, foram notificados 84.206 casos de intoxicação por agrotóxicos – e pesquisadoras nos alertam que há um grave problema de subnotificação do problema, que pode ser 50 vezes maior. Agrotóxicos têm sido utilizados como arma química contra povos indígenas. Isso foi comprovado recentemente, quando a Justiça Federal do Mato Grosso do Sul condenou um fazendeiro, um piloto e uma empresa a pagarem R$ 150 mil à comunidade indígena Tey Jusu, da etnia Guarani e Kaiowá, que sofreu pulverização de veneno, sendo crianças e adultos intoxicados neste episódio.
Com as isenções e as reduções de impostos sobre os agrotóxicos, o Estado deixa de arrecadar quase R$ 10 bilhões por ano, segundo estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Essa injustiça fiscal é um exemplo de como o Estado contribui para desigualdade no país. De um lado, se constitucionaliza a política de austeridade, com a Emenda Constitucional 95, que gerou expressivos cortes em importante políticas públicas voltadas para agricultura familiar e para a agroecologia, dentre outras. De outro lado, permite a isenção bilionária de tributos para grandes empresas. É o Estado ajudando a mão do mercado – invisível, mas pesada – a passar o fardo da concentração de renda para a população mais pobre do país.
Os agrotóxicos afetam nossa saúde, o meio ambiente e deixam um buraco na receita pública. E tudo isso serve para quê? Não, não é para nos alimentar.
Segundo dados da SINDVEG de 2018, 80% dos agrotóxicos utilizados se destinam às monoculturas de soja, milho, cana de açúcar e algodão, favorecendo o mercado de commodities e não a produção de alimentos para a população brasileira. Além disso, apesar de sermos campeões no consumo de venenos, nunca eliminamos a fome do nosso país. E, com o aumento a todo vapor da pobreza e da extrema pobreza, há o temor de que esse fenômeno volte a horrorizar vidas, pois como disse Elza Soares: “a fome é uma coisa horrorosa”.
Esperamos que o Supremo Tribunal Federal faça valer os direitos fundamentais previstos na Constituição. Todas as externalidades ligadas à comercialização e ao uso de agrotóxicos se chocam com nossa Constituição, que prevê o direito à alimentação, que deve ser garantido com políticas de proteção social e com a promoção de sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis.
A nossa Constituição, graças a muitas lutas, também prevê o direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado, bem como a redução da desigualdade e o direito de todas as pessoas viverem com dignidade.
Todos esses direitos põem em xeque o argumento da essencialidade dos agrotóxicos. A vida é essencial, veneno, não.