Prato do Dia: O que é essencial? A vida ou o veneno? O STF dirá

Por Valéria Burity, secretária geral da Fian Brasil

Está agendado para esta quarta-feira, 19 de fevereiro, o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5553. Ajuizada pelo PSOL em junho de 2016, a ação questiona a constitucionalidade das cláusulas 1ª e 3ª  do Convênio nº 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), que reduzem 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) dos agrotóxicos. Questiona também a constitucionalidade do Decreto 7.660/2011 que concede Isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a vários agrotóxicos estipulados na Tabela de Impostos sobre Produtos Industrializados. 

As normas que concedem estas isenções aos agrotóxicos se pautam no princípio da seletividade em função da essencialidade dos seus objetos, isto é, os produtos devem sofrer menor tributação se são considerados essenciais para a sociedade.  Então, nesse julgamento, o STF terá a oportunidade de responder se, de acordo com os preceitos constitucionais, os agrotóxicos são essenciais a ponto de não serem tributados. Ainda não sabemos como o STF irá julgar. Mas entendemos o momento em que estamos, assim como as externalidades que decorrem da comercialização e do uso de agrotóxicos. Com isso,  podemos desde já resgatar algumas normas da Constituição para termos nós, a nossa resposta. 

Não se pode ignorar que vivemos um momento não apenas de crise, mas de colapso ambiental – e o uso de agrotóxicos pode agravar essa situação. Portanto, qualquer ação que vise regular este tema, não diz respeito apenas à nossa saúde como indivíduos, mas também à saúde do planeta em que vivemos, o que faz com que esse assunto seja de extrema relevância. Qualquer julgamento que ignore esse fato ignora também o momento histórico em que a humanidade se encontra. Pode, só por isso, ser um desserviço à vida.

Sindemia global

A Revista Lancet registrou em 2019 que os sistemas alimentares são responsáveis por uma “sindemia global”, ou seja, a sinergia entre três pandemias: obesidade, má nutrição e mudanças climáticas, invocando a extrema necessidade de mudarmos a forma como produzimos e consumimos alimentos como condição para reverter esse quadro. Ainda em 2014, em seu informe final, Olivier de Schutter, então relator da ONU para o direito humano à alimentação, deu ênfase à insustentabilidade desses sistemas, destacando o seu impacto destruidor sobre a natureza e o papel que os agrotóxicos têm nesse processo.

Ao final do informe, o Relator também chamou a atenção para urgente necessidade de redirecionarmos os sistemas alimentares para padrões mais sustentáveis, sob pena de vivermos crises de segurança alimentar e nutricional em apenas algumas décadas. 

Em 2018, dois relatores da ONU também trataram do tema agrotóxicos no relatório A/HRC/34/48. Apontaram, neste documento, que os pesticidas são responsáveis por 200.000 mortes por envenenamento agudo por ano, dos quais 99% ocorrem em países em desenvolvimento. Esse dado escancara a perversidade do uso de agrotóxicos, pois não há fiel da balança: a maior parte do lucro desse mercado vai para poucas corporações que o monopolizam, as externalidades recaem sobre grupos mais vulneráveis dos países mais pobres.

O relatório também traz dados do impacto dos agrotóxicos sobre a saúde de agricultoras e agricultores, de trabalhadores e trabalhadoras rurais, de povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais, crianças, gestantes e consumidores e consumidoras, bem como sobre o meio ambiente.  Ao final do informe, os autores também alertam que é necessária uma mudança urgente na forma de produzir alimentos. E trazem recomendações, dentre elas a de que haja a eliminação de subsídios aos pesticidas e o pagamento de taxas por sua utilização.

Liberação recorde de agrotóxicos

No Brasil, assim como no restante do mundo, também persistem graves violações aos direitos humanos nos sistemas alimentares. Em 2019, o Brasil foi responsável pela liberação recorde de agrotóxicos (474, de acordo com MAPA). Enfraqueceu ou desmontou as políticas de incentivo à agricultura familiar e à agroecologia.

Entre 2007 e 2015, foram notificados 84.206 casos de intoxicação por agrotóxicos – e pesquisadoras nos alertam que há um grave problema de subnotificação do problema, que pode ser 50 vezes maior. Agrotóxicos têm sido utilizados como arma química contra povos indígenas. Isso foi comprovado recentemente, quando a Justiça Federal do Mato Grosso do Sul condenou um fazendeiro, um piloto e uma empresa a pagarem R$ 150 mil à comunidade indígena Tey Jusu, da etnia Guarani e Kaiowá, que sofreu pulverização de veneno, sendo crianças e adultos intoxicados neste episódio.

Com as isenções e as reduções de impostos sobre os agrotóxicos, o Estado deixa de arrecadar quase R$ 10 bilhões por ano, segundo estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Essa injustiça fiscal é um exemplo de como o Estado contribui para desigualdade no país. De um lado, se constitucionaliza a política de austeridade, com a Emenda Constitucional 95, que gerou expressivos cortes em importante políticas públicas voltadas para agricultura familiar e para a agroecologia, dentre outras. De outro lado, permite a isenção bilionária de tributos para grandes empresas. É o Estado ajudando a mão do mercado – invisível, mas pesada – a passar o fardo da concentração de renda para a população mais pobre do país. 

Os agrotóxicos afetam nossa saúde, o meio ambiente e deixam um buraco na receita pública. E tudo isso serve para quê? Não, não é para nos alimentar.

Segundo dados da SINDVEG de 2018, 80% dos agrotóxicos utilizados se destinam às monoculturas de soja, milho, cana de açúcar e algodão, favorecendo o mercado de commodities e não a produção de alimentos para a população brasileira. Além disso, apesar de sermos campeões no consumo de venenos, nunca eliminamos a fome do nosso país. E, com o aumento a todo vapor da pobreza e da extrema pobreza, há o temor de que esse fenômeno volte a horrorizar vidas, pois como disse Elza Soares: “a fome é uma coisa horrorosa”.

Esperamos que o Supremo Tribunal Federal faça valer os direitos fundamentais previstos na Constituição. Todas as externalidades ligadas à comercialização e ao uso de agrotóxicos se chocam com nossa Constituição, que prevê o direito à alimentação, que deve ser garantido com políticas de proteção social e com a promoção de sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis.

A nossa Constituição, graças a muitas lutas, também prevê o direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado, bem como a redução da desigualdade e o direito de todas as pessoas viverem com dignidade.

Todos esses direitos põem em xeque o argumento da essencialidade dos agrotóxicos. A vida é essencial, veneno, não.

Prato do Dia: Rodrigo Maia e a necessária retomada da agenda de combate à fome

Por Nathalie Beghin, coordenadora da assessoria política do Inesc e membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Fbssan) e Valéria Burity, secretária-geral da FIAN Brasil

Na terça-feira passada, 19 de novembro, o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, lançou a agenda de desenvolvimento social proposta pelo legislativo federal. Diante do enorme vácuo deixado pela equipe de Bolsonaro nessa área, dos impactos das medidas de austeridade do Guedes no aumento das desigualdades, da pobreza, da miséria e da fome, Maia entende que algo precisa ser feito e já.

Seu plano de desenvolvimento social tem cinco eixos principais: garantia de renda, inclusão produtiva, rede de proteção ao trabalhador, incentivo à governança responsável com uma Lei de Responsabilidade Social e promoção do acesso à água e ao saneamento. Para a viabilidade dessas medidas, serão apresentadas nas próximas semanas uma Proposta de Emenda à Constituição e ao menos sete projetos de lei.

Se bem parece um tanto quanto inusitado que num regime presidencialista o legislativo tenha que fazer o que o executivo não faz. Não se pode negar a importância dessa agenda diante do total abandono do presidente Bolsonaro do povo brasileiro, especialmente da parcela mais empobrecida da população.

A agenda legislativa para o desenvolvimento social parece ter medidas importantes como constitucionalizar o Bolsa Família e assegurar o crescimento real do benefício, para além da inflação. Também há preocupação em relação à universalização do saneamento básico, o que é relevante tendo em vista que milhões de brasileiros ainda não têm acesso à água potável e coleta de lixo.

Contudo, é preciso registrar a ausência de medidas relevantes, especialmente para o enfrentamento de um flagelo que volta a nos rondar, o da fome, para além da consolidação do Programa Bolsa Família. O Brasil acumulou experiência nesse campo, desde o lançamento do primeiro Plano Nacional de Alimentação e Nutrição (I Pronan) no início dos anos de 1970, passando pelo Plano de Combate à Fome do Presidente Itamar Franco e a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), no começo da década de 1990, até a aprovação da alimentação com direito constitucional e a implementação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan) acompanhada do fortalecimento da participação social por meio do Consea, nas décadas de 2000 e 2010[1].

Essa atuação, associada a outros fatores como a ampliação das políticas de educação e de saneamento básico, fez com que a desnutrição infantil que acometia uma em cada três crianças brasileiras em meados dos anos de 1970 caísse para patamares baixos no final da década de 2010, da ordem de 6%[2].

Note-se, contudo, que esses avanços não foram igualmente distribuídos, pois indígenas, quilombolas e ribeirinhos vivenciam índices de desnutrição infantil próximos de países africanos. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2018, uma em cada quatro crianças indígenas menores de 5 anos sofria de desnutrição crônica. Os números variam entre etnias, alcançando patamares próximos a 80,0% das crianças ianomâmis.

Essas conquistas estão seriamente ameaçadas devido ao aumento recente da pobreza e da miséria. Quando o país entra em recessão econômica profunda, a partir de 2014, e implementa medidas de austeridade, cortando essencialmente gastos sociais, e flexibilizando direitos trabalhistas e previdenciários, quem sofre as consequências são os mais pobres, que perdem emprego, veem sua renda desmoronar e não conseguem acessar serviços públicos de qualidade. O IBGE divulgou recentemente a Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) para o ano de 2018, cujos dados são assustadores: um quarto da população brasileira é pobre. São mais de 52 milhões de pessoas com rendimentos inferiores a R$ 420 por mês, menos da metade de um salário mínimo. Dessas, 13 milhões são extremamente pobres (renda mensal per capita inferior a R$ 145), não tendo recursos suficientes para se alimentar adequadamente.

O racismo persiste revoltante: 73% dos pobres são pessoas negras. O rendimento médio domiciliar per capita das pessoas pretas ou pardas (R$ 934) é quase metade do rendimento das pessoas brancas (R$ 1.846).

A esse quadro dramático associa-se outro fenômeno também decorrente de uma alimentação inadequada: a epidemia de sobrepeso e da obesidade. Estudos recentes têm evidenciado expressivo aumento da obesidade em todas as idades, faixas de renda e regiões do país. Cerca de 60% dos adultos estão acima do peso e em torno de 20% são obesos. Entre as crianças e adolescentes o problema também é muito grave: uma de cada três crianças tem sobrepeso e, entre os adolescentes, essa relação é de 1 para 4. E mais, a epidemia está se agravando: segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), enquanto na década de 1970 apenas 1% das garotas e 0,9% dos garotos estavam obesos, em 2016 eles representavam 9,4% e 12,7% dessa faixa etária, respectivamente. Esses resultados levam o Brasil a estar acima das médias mundiais. A situação é preocupante porque o excesso de peso e a obesidade estão entre os cinco maiores fatores de risco para mortalidade no mundo.

As pessoas mais empobrecidas cada vez mais são afetadas devido à ingestão de chamadas “calorias baratas” que são provenientes de alimentos gordurosos e açucarados, vazios de nutrientes essenciais para a saúde da população. Estes alimentos trazem consigo um risco aumentado de doenças não transmissíveis, como hipovitaminoses, diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e alguns tipos de câncer, entre outras.

As medidas propostas pelo Presidente da Câmara não enfrentam esses flagelos e invisibilizam o histórico da política de segurança alimentar e nutricional do país. Além disso, algumas medidas do parlamento brasileiro, a exemplo da reforma trabalhista, da reforma da previdência e da EC 95, que congelou os gastos públicos, agravam esses males.

É preciso, como demonstrou a experiência brasileira, conter retrocessos e ir além dessa agenda, pois a situação é alarmante: faz-se necessário de imediato retomar a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com seu órgão de participação, o Consea. Somente uma abordagem intersetorial e verdadeiramente participativa será capaz de efetivamente respeitar, promover e proteger o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas.

A adoção de uma agenda social é um passo em direção às necessidades da população brasileira, mas é preciso caminhar, de maneira mais coerente, para criar um contexto político que garanta a todas e todos o acesso aos direitos fundamentais.


[1] A esse respeito, veja artigo de Anna Peliano, pp. 26 a 41: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/Fome%20Zero%20Vol1.pdf

[2] Saiba mais em:

Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da América Latina e Caribe publicado pela FAO

Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da América Latina e Caribe publicado pela FAO

Situação da Infância no Brasil do Unicef

Prato do Dia: Sim, há fome no Brasil e nós sabemos o porquê

Por Valéria Burity, secretária geral da FIAN Brasil e Nayara Côrtes, assessora de Direitos Humanos da FIAN Brasil

Em entrevista a jornalistas, na manhã desta sexta-feira, 19 de julho, Jair Bolsonaro declarou que: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. O presidente continuou dizendo que “não se vê gente com o físico esquelético como em outros países”.  Um pouco mais tarde, voltou atrás e declarou que “não se sabe o porquê, uma pequena parte passa fome”.

A fala de Bolsonaro é semelhante à da ministra da Agricultura, Abastecimento e Pecuária, Tereza Cristina, que, em abril deste ano, disse que brasileiros não passam fome porque têm mangas nas cidades.

As declarações de duas autoridades responsáveis por assegurar condições para a garantia do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas no país demonstram, além de profundo desconhecimento da realidade brasileira e nenhuma sensibilidade sobre uma de suas mazelas,  a posição do governo sobre este direito humano fundamental, do qual depende a vida.

Fome não é uma coisa que se mede apenas por um corpo muito magro, isso é, antes de tudo, cruel.

A insegurança alimentar pode ser leve, moderada e grave, de acordo com a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar e Nutricional (EBIA). O estado de insegurança alimentar leve é configurado quando há preocupação quanto a falta de alimentos num futuro próximo e onde há um comprometimento com a qualidade da comida disponível. A moderada implica restrição quantitativa dos alimentos. E a insegurança alimentar grave é constatada quando os adultos e as crianças de uma família sofrem privação de alimentos, podendo passar fome.

Ignorar o histórico de sofrimento que levam as pessoas a passar fome, em maior ou menor proporção, é ignorar o próprio povo. E Sim, nós sabemos porque há fome.

Pobreza e fome são fenômenos correlatos, milhões de pessoas no mundo não acessam alimentos adequados, e, portanto, passam fome, porque não têm os recursos necessários seja para produzir, seja para consumir alimentos de maneira adequada. 

De acordo com estudo feito pela FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, “O Estado de Segurança Alimentar e Nutricional do Mundo (SOFI)”, de 2019, divulgado essa semana, em Nova York, o número de pessoas que enfrentam a fome aumentou novamente, e agora está em torno de 821 milhões de pessoas. Com a inclusão do indicador FIES (Food Insecurity Experience Scale) e uma avaliação da insegurança alimentar moderada, temos números mais completos que mostram que cerca de 2 bilhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar, a nível global.

A fome também cresce no Brasil. Francisco Menezes, economista que milita na área de soberania e segurança alimentar e nutricional, afirma que depois de uma notável redução da pobreza no país, que perdurou até 2014, constata-se outra vez seu crescimento. De acordo com dados disponibilizados no final de 2018 pela Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, a proporção de pessoas pobres no Brasil aumentou de 52,8 milhões para 54,8 milhões de pessoas e o número de pessoas em extrema pobreza, passou de 13,5 milhões para 15,2 milhões de pessoas, somente em um ano.

Esta situação se manifesta de forma diferente nas regiões do país. A fome e a insegurança alimentar sempre afetaram de maneira mais contundente alguns grupos, como população negra, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, mulheres, dentre outros.

Mas o direito à alimentação não se limita ao direito de não passar fome e só se realiza quando existe um processo alimentar, uma forma de produzir e consumir alimentos, que gere saúde e vida, para a nossa e para as futuras gerações. O que também sofre gravíssimos ataques no Brasil.

A política de segurança alimentar e nutricional, que serviu de modelo para outros países no mundo, tem sofrido cortes orçamentários e profundas alterações em seu desenho institucional. O ritmo de liberação de agrotóxicos em 2019 foi o maior registrado na história brasileira, assim como estão sendo extintos os canais que existiam para que se pudesse participar e exigir direitos, a exemplo do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e outros tantos.

No Brasil falta trabalho para milhões de brasileiros e brasileiras, cada vez mais aviltados em seus direitos, falta terra e território para outros tantos… no Brasil há fome de comida, há fome de direitos e há fome de democracia.

O Consea que queremos, o Consea que o Brasil precisa

Desde a publicação da MP 870, em 1º de janeiro, quando soubemos da extinção do CONSEA e total desconfiguração da LOSAN (Lei de 2006 que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN), a sociedade civil brasileira e internacional se mobilizou de forma intensa. O objetivo foi reverter a decisão e denunciar as consequências tanto institucionais, como o enfraquecimento do SISAN, a potencial desarticulação de programas e ações e o retrocesso nos resultados que obtivemos nos últimos anos – tanto para erradicação da fome como ampliação da produção e acesso a alimentos saudáveis.

Foram inúmeras as manifestações de organizações, entidades e coletivos nacionaisA petição internacional recebeu mais de 33 mil assinaturas de pessoas e organizações em todo o mundo e, no fim de fevereiro, foi realizado o Banquetaço Nacional em mais de 40 cidades. Agricultores familiares, Comunidades que Sustentam Agricultura, CONSEAS Estaduais, cozinheiros, diferentes organizações e pessoas que se identificam com esta agenda prepararam e ofereceram mais de 30 mil refeições para conversar com a população sobre Comida de Verdade, o Conselho, seu papel e consequências de sua extinção. Além da sociedade civil, a Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão se pronunciaram pela inconstitucionalidade da medida, uma vez que uma Medida Provisória não pode alterar uma lei e, além disso, a extinção é um claro retrocesso a um direito.

A Constituição Federal diz claramente que a participação social no processo de definição e monitoramento das políticas públicas é necessária e imprescindível. Quatro relatores especiais (alimentação adequada, água, povos indígenas e meio ambiente) do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU solicitaram explicações ao governo brasileiro sobre a extinção: por que o CONSEA foi extinto? O que substituirá o Conselho para que não ocorram retrocessos? Estas são algumas das perguntas que não sabemos se foram respondidas.

Dossiê com manifestações nacionais e internacionais

A Comissão Mista para análise da MP870/2019 tem em suas mãos um dossiê com as manifestações nacionais e internacionais de apoio e 66 emendas (12% do total) de deputados e senadores que propõem a não aprovação do Inciso III do Artigo 85 – que revogou os itens da LOSAN que definem o lócus (presidência da república), a composição (2/3 da sociedade civil), a presidência (representante da sociedade civil) e funções (assessoramento da presidência da república, convocação da Conferência Nacional, definição das prioridades para o Plano Nacional de SAN).

Entre os dias 6 e 8 de maio, a Comissão Mista deve receber, apreciar e votar o relatório elaborado pelo Senador Fernando Bezerra (MDB-PE) e há notícias que entre as negociações acertadas com o governo está a reinstalação do CONSEA. Se isto for confirmado, é um claro exemplo da importância da mobilização social, do resultado desta mobilização.

No entanto, não é o final da estrada: pelo contrário, a sociedade civil se mobilizou pelo CONSEA, cuja composição tem a maioria da sociedade civil, assim como sua presidência. O CONSEA que realiza Conferências Nacionais independentes, amplas, representativas e aponta as prioridades para as políticas públicas. Que tem interlocução com uma Câmara Interministerial, que se articula com os CONSEAS Estaduais para aprimorar permanentemente o SISAN em todas as esferas de governo. O CONSEA onde conselheiras e conselheiros representam os titulares de direito, os setores da sociedade brasileira que estão em situação de maior vulnerabilidade, agricultores familiares, agroecológicos, povos e comunidades tradicionais, povos indígenas, jovens e mulheres rurais e urbanas, movimentos de defesa de direitos e de consumidores, pesquisadores e muitos outros. Todos estes grupos que passaram e deverão passar por esta função desafiadora de defender a Comida de Verdade e a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada no Brasil.

* Elisabetta Recine é nutricionista, professora, pesquisadora, então presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) até a Medida Provisória 870/2019 e integrante do Grupo Temático Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva, da Abrasco.

Fonte: Abrasco 

Prato do Dia: A fome mais forte e as instituições mais fracas

 

“A fome tem uma saúde de ferro” já dizia Chico Science inspirado por Josué de Castro.

Nos últimos dias, nacional e internacionalmente, a fome tem sido citada, seja pela notória presença dela ou pelo ataque às plataformas que a combatem.

Notícias sobre a fome no Iémen vem sendo disseminadas nas últimas semanas focalizando o conflito civil no país que dentre outras coisas resulta em fome aguda. De fato a guerra tem seus impactos no tocante à (in)segurança alimentar, porém uma pergunta é importante: apenas a guerra explica esse cenário?

Quando analisamos dados do banco da FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação é perceptível que antes de 2011, período em que a Primavera árabe e seus “ventos” circulam pela região do Oriente Médio, o país já apresentava um índice preocupante de desnutridos com números oscilando entre 25% e 30% da população, o que se intensificou a partir do período 2010-2012, chegando hoje á aproximadamente 35%.

Porém, o que faz com que essa atenção para a fome seja colocada em evidência e ganhe maior repercussão a partir da culpabilização quase que exclusiva do conflito?

É necessário compreender que a fome (que todos se referem rotineiramente como sensação de estômago vazio) é resultado da não ingestão de alimentos ou ainda da ingestão inadequada de alimentos por determinado período, o que de acordo com sua origem levará diferentes nomes e também terá diferentes manifestações. Por exemplo, quando ocasionada por catástrofes ambientais e guerras, a chamamos de fome aguda ou epidêmica. Já quando há indisponibilidade de determinada substância por longo período, é chamada fome crônica ou endêmica ou ainda oculta, exatamente por não aparentar tanto quanto a aguda.

O que ocorre é que, tanto uma quanto outra resultam ou em subnutrição ou má-nutrição, ou ainda nos piores casos, na conjunção de ambas pois além de não ocorrer a ingestão de calorias necessárias para a realização das atividades não ocorre também a ingestão das substâncias necessárias tais como vitaminas e minerais.

A fome aguda geralmente tem maiores repercussões devido aos quadros que resulta, que são os que estamos acompanhando em relação ao Iémen, contudo, a fome crônica que é tão severa quanto e pode ser intensificada por alguma catástrofe também existe, mas não tem ganhado os holofotes midiáticos.

Ainda hoje, a fome é um tabu, haja vista que, com aproximadamente 800 milhões de pessoas desnutridas, há poucas indagações por parte de diversos setores da sociedade e apesar dos êxitos regionais ainda enfrentamos números como esse sobre tal flagelo?

Durante o desenvolvimento das propostas de combate à fome e da própria Declaração Universal dos direitos do homem sobre suprir necessidades (inclusive a de se alimentar) a questão alimentar vem sendo tratada como disponibilidade de alimentos e para tanto o termo Segurança Alimentar no sentido de que os alimentos devem estar disponíveis. No entanto, muitos países que apresentam situações de fome crônica ou aguda dependem de outros com a ajuda humanitária a partir do envio de alimentos que chegam até o local e tentam amenizar as necessidades calóricas-energéticas daquela população. Mas o que ocorre quando a ajuda humanitária não chegar mais até o local, algo semelhante ao o que ocorreu mais recentemente no Iemen, quando os alimentos enviados pelo WFP (World Food Programme) estavam sendo desviados para a venda?

Para isso, o termo de Soberania Alimentar. Claro que, guardados as devidas proporções e entendendo a ajuda urgente que as ações humanitárias se destinam. Mas só isso não é suficiente. É necessário compreender que a fome em suas diferentes manifestações é produto de relações econômicas e comerciais pouco eficazes para o combate à fome.

Nadamos e morremos na praia quando não olhamos para essa dimensão da fome. É necessário desenvolver e fortalecer políticas que incentivem a produção dos alimentos pelo próprio povo e isso à nível nacional e internacional, pois o comércio de commodities está aí, colocando alimentos como qualquer outra mercadoria e tampando os olhos da população quando culpabiliza quase que exclusivamente os conflitos ou as condições climáticas.

No Haiti, praticamente metade da população não tem acesso à alimentos adequados mas nada se fala a não ser que aconteça algum evento climático catastrófico que justifique então esse cenário.

Alguns teóricos chamam a guerra do Iémen como despercebida devido à pouca repercussão que está causando, mas devo dizer: A guerra contra a fome é despercebida. E por isso quem a vê se dá por vencido pois quando não há o que comer nem de esperança pode-se alimentar.

Nesse sentido cabe outra indagação: visto que a fome em suas múltiplas dimensões é algo a se combater, que o mundo apresenta deficiências significativas quanto á esse flagelo e que o Brasil há pouco tempo estava no mapa mundial da fome (com risco de voltar) resta entender as motivações que levam à exclusão do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Precisamos não apenas como nação brasileira mas como humanidade preservar o que possibilita melhoria na qualidade de vida, principalmente, na promoção de um direito humano fundamental que é o direito à alimentação. Manter e fortalecer instituições que estudem a fome, como combater e como impedir que novos quadros se formem é mais do que fundamental. Porém quando há possibilidade de excluir uma plataforma como essa, vamos na contramão da evolução da humanidade. Vamos na contramão de ser exemplo para o mundo.

Se alcançamos resultados significativos com as diferentes plataformas e chegamos a ser exemplo no combate à fome, quais as motivações explicam tal ação?

A fome não pode continuar sendo um tabu, pois antes de tudo, a privação à alimentação é a privação à vida.

A alimentação sempre foi elemento que propiciou o desenvolvimento de nossas atividades físicas e cognitivas ou e a partir da obtenção do mesmo assim como a forma que obtemos o alimento e sua possível repartição foram nos definindo como sociedade e aqui estamos. No desenvolver da humanidade diferentes técnicas foram utilizadas para que pudéssemos produzir o próprio alimento.

Séculos se passaram desde então e a partir das condições de solo, clima e contingentes humanos passamos a maximizar a produção, variedades significantes e um aporte alimentar que pode ficar cada vez mais sofisticado. Em alguns momentos a produção foi prejudicada por fatores naturais ou guerras e enfim questionou-se a fome.

Questionou-se de quem é a culpa. Culpou-se o pobre, culpou-se o menos afortunado mas que por sua própria sorte deveria arcar com as consequências. Atribuiu-se a fome à um mecanismo de equilíbrio entre as demandas e os recursos do planeta. Colocou-se e coloca-se em xeque a moralidade de quem ao menos tem energia para pensar sobre. Mas a fome não foi atacada e ainda não é e como disse Josué de Castro: “Fome e guerra não obedecem a qualquer lei natural, são criações humanas” – Geografia da Fome.

Especial para a FIAN Brasil

Por Beatriz Gomes Cornachin, graduada em Geografia, pesquisadora sobre o cenário da fome no Haiti e mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC).

Prato do Dia #7: A carga pesada do neoliberalismo e seu rastro de fome – Sobre a greve dos caminhoneiros e petroleiros

 

A carga pesada do neoliberalismo e seu rastro de fome:

Sobre a greve dos caminhoneiros e petroleiros

 

“Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça

Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça…”

Nação Zumbi, Da Lama ao Caos

 

Na manhã de hoje, 31.05, a greve dos caminhoneiros entra no seu 11º dia. Grande parte dos pontos de aglomerações foi desfeita, mas o dia começou ainda com resistência em lugares estratégicos, como, por exemplo, o Porto de Santos em São Paulo, ocupado por grevistas e por forças do Exército Brasileiro e da Polícia Militar estadual.

Segundo a grande mídia, a redução no preço do diesel foi uma das grandes reivindicações dos grevistas – e a sua redução, em 46 centavos por litro, uma das principais medidas adotadas pelo Governo. As medidas provisórias com estas disposições foram publicadas hoje e vão onerar em mais de 9 bilhões de reais o orçamento público, garantindo o lucro de investidores da Petrobrás, em um momento que o déficit fiscal é argumento para congelar, por 20 anos, os gastos socais no Brasil.

Já nos seus primeiros dias, a greve dos caminhoneiros gerou impactos na produção, comercialização e consumo de alimentos no Brasil. Foram recorrentes as imagens de desperdício de alimentos não escoados, de produtores/as chorando em razão do que não puderam vender e de prateleiras vazias nos supermercados. Também houve a escalada de preços de alimentos como batata e limão, entre outros.

Os impactos tiveram alcance internacional. Os exportadores reclamaram de prejuízos de centenas de milhões de reais, já que o país vende para o exterior carne bovina, suína e de frango, suco de laranja, café, soja e outros produtos. Navios, que deviam levar esses produtos ao mundo, retornaram vazios – ou nem atracaram em nossos portos.  Vale lembrar que, segundo o relatório da Chatham House, centro de estudos com base no Reino Unido, o Brasil tem 2 dos 14 gargalos do abastecimento global de alimentos: os portos do sul e sudeste e as estradas brasileiras.  A propósito, uma (necessária) reflexão sobre a distância entre quem produz e quem consome alimentos nos sistemas alimentares predominantes hoje e algumas medidas necessárias para fomentar circuitos curtos de produção e consumo de comida de verdade, consta no artigo da presidenta do Consea, Elisabetta Recine: “Por que uma crise de abastecimento em tão poucos dias?”.

A forma como se noticia a greve dos caminhoneiros na grande mídia quase sempre põe pouca tinta em questões estruturantes, que têm forte ligação com o modelo de Estado implementado pelo governo Temer. A partir de 2016 foram adotadas uma série de medidas que caracterizam um governo marcado por: excluir classes e grupos desfavorecidos de suas decisões, usar diferentes meios para suprimir direitos fundamentais, abrir frentes para uma ainda maior obtenção de lucro pelo capital nacional e internacional e intensificar o uso de violência e da criminalização para conter lutas sociais. A reforma trabalhista, o congelamento de gastos sociais, por meio da Emenda Constitucional (EC) 95, o aumento da criminalização e violência contra os movimentos sociais, assim como a política de preços adotada pela Petrobrás, são produtos indigestos da receita neoliberal instalada, ao arrepio da democracia, no Brasil.

Dentre os pontos de relação da política de preços de combustíveis com o processo alimentar, vale destacar o impacto sobre o acesso econômico aos alimentos. A recente escalada de preços dos combustíveis teve como consequência o aumento do número de famílias que passou a usar a lenha para cozinhar – segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), subiu de 16,1% para 17,6% a parcela de lares que passaram a utilizar carvão ou lenha em vez de gás, ou seja, mais de 1,2 milhão de brasileiros deixaram de utilizar o gás de cozinha apenas no ano passado. Isso porque as pessoas têm que escolher entre comprar gás ou comprar mais comida.

Sobre a política de preços da Petrobrás, vale ler a Nota Técnica nº 194 do DIEESE que explica como a empresa mudou a sua gestão passando a: i) praticar nas refinarias brasileiras os mesmos preços do mercado internacional, levando a escalada de preços, ii) a reduzir a produção nas suas refinarias e iii) a caminhar para um processo de privatização, com o anúncio da venda de quatro refinarias no Brasil. O DIEESE é enfático ao afirmar que a redução do preço do diesel, sem o enfrentamento das questões de fundo que afetam o setor, será mero paliativo.

Com o forte posicionamento contra a política de preços da Petrobrás e visando à exoneração do atual presidente desta empresa, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) iniciou uma greve no dia 30.05, ainda durante a paralisação dos caminhoneiros. A Advocacia Geral da União e a Petrobrás, sob argumento de que a greve da FUP era ilegal, acionaram o Tribunal Superior do Trabalho (TST), pedindo a aplicação de multa diária de 10 milhões de reais, em caso de greve dos petroleiros. O TST acatou o pedido e impôs uma multa de 500 mil reais por dia de paralisação, ainda assim os trabalhadores/as continuaram sua resistência. Ante a resistência à ordem judicial, a Ministra Maria de Assis Calsing, do TST, aumentou o valor das multas para 2 milhões de reais, o que fez com que a FUP, sob forte pressão, recuasse em seu movimento, pedindo aos sindicatos a suspensão da greve.

Apesar das confusas declarações de Temer, no meio do caos em que se encontra o país, o governo deixou evidente que reduzirá o preço do diesel, mas não modificará a política de preços da Petrobrás.

O atual governo e suas medidas neoliberais, em uma doutrina de choque, vêm pondo abaixo conquistas sociais importantes, como a saída do Brasil do mapa da fome. O congelamento de gastos sociais, por meio da Emenda Constitucional (EC) 95, já é responsável por regredirmos em dois anos os avanços conquistados em mais de 10 anos nos indicadores de extrema pobreza. E estudos também mostram que, até 2030, cerca de 20 mil crianças podem morrer em razão do ajuste fiscal adotado pelo governo.

Por onde passou, o neoliberalismo deixou a carga pesada da desigualdade, da pobreza e da fome. Por isso, é cada vez mais relevante apoiar as ações que visam fortalecer a democracia e revogar as medidas que violam os direitos da população. Seria um bom (re)começo a revogação da EC 95 e da política de preços da Petrobrás, porque “paridade internacional”, sem igualdade material, é pura covardia.

Texto de Valéria Burity, Secretária Geral da FIAN Brasil

Prato do Dia #6: Mais direitos, menos veneno: pela rejeição do PL 6299/02

 

Prato do dia – 14/05/2018

Mais direitos, menos veneno: pela rejeição do PL 6299/02

Desde o final de abril a Comissão Especial da Câmara dos Deputados que analisa o Projeto de Lei nº 6299/02, conhecido como “Pacote do Veneno”, voltou a funcionar. Amanhã, 15 de maio, ela irá se reunir para decidir se este projeto segue para o plenário da casa, após a apresentação do substitutivo do Deputado Luis Nishimori, relator da matéria. Caso o PL seja aprovado, o Brasil deixará ainda mais débil sua capacidade de regular o uso e a comercialização de venenos que impactam as diferentes etapas do processo alimentar, escancarando as portas para novas violações de direitos humanos como alimentação, saúde e meio ambiente.

A desculpa utilizada historicamente para justificar o uso excessivo dos agrotóxicos nos sistemas agroalimentares de todo o mundo foi a suposta preocupação com a quantidade de alimentos produzidos frente ao aumento da população. Isto se deu sem a devida atenção aos riscos representados por esses produtos e, portanto, sem que houvesse a preocupação com a qualidade e a distribuição da alimentação no mundo, ou com outros fatores ambientais e de saúde pública. Exemplificando os males de longo prazo causados pelos agrotóxicos, o primeiro Levantamento nacional brasileiro de contaminantes emergentes na água potável, publicado em 2016, indicou que o herbicida atrazina estava presente em 75% das amostras de água coletadas em todo o país, sendo a segunda substância que mais apareceu na pesquisa – atrás somente da cafeína.

O mercado mundial de agrotóxicos é extremamente concentrado e o Brasil é um dos principais clientes. Cerca de 80% desse mercado, que movimenta ao redor de USD 48 bilhões por ano, está nas mãos de poucas grandes transnacionais: Syngenta, Bayer – que comprou a Monsanto, DowDuPont Inc. e BASF. Em 2008, o Brasil, deixando para trás os Estados Unidos, passou a ser o maior mercado mundial de agrotóxicos, troféu que representa riscos e violações a direitos de toda a população brasileira.

Segundo a pesquisadora Larissa Bombardi (USP), autora do Atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, considerando a subnotificação dos casos de contaminação por agrotóxicos, podemos chegar a cerca de 1,25 milhão de casos de contaminação no Brasil no período dos últimos 7 anos. E quem nos contamina? Os mapas da pesquisadora também mostram que a concentração dos casos de intoxicação se sobrepõe às regiões onde se dão as monoculturas do agronegócio no Brasil – como, por exemplo, a soja, o milho e a cana de açúcar no Centro-Oeste, Sul e Sudeste.

Riscos à saúde e ao meio ambiente, gerados pelos agrotóxicos, são fartamente documentados. A ABRASCO, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, lançou em 2015 o Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. O documento sistematiza muita informação a respeito do assunto e denuncia que os agrotóxicos provocam desde sintomas agudos como cólicas e enjoos, até doenças mais graves como câncer, más-formações congênitas, distúbios mentais e mortes.

Apesar disso tudo, as autoridades brasileiras, em vez de regular de maneira efetiva o uso de agrotóxicos, têm aberto cada vez mais a porteira para seu uso e comercialização. Um exemplo disso é o Decreto nº 7.660/11, que concede isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) aos agrotóxicos, bem como o Convênio nº 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que permite a redução da base de cálculo do ICMS incidente sobre os agrotóxicos em até 60% nas operações interestaduais. Mesmo em época de austeridade fiscal, que implicou congelamento de gastos sociais por 20 anos, não houve movimentação do Executivo ou do Congresso Nacional para acabar com as isenções que deixam de gerar receita para o Brasil e ainda incentivam o uso e a comercialização de um produto que afeta o meio ambiente e a saúde da população. Vale registrar que a indústria dos agrotóxicos no nosso país, só em 2014, faturou R$ 12 bilhões. A pergunta que fica é: e o Brasil, desde que vem concedendo essas isenções, quanto deixou de faturar?

A mais recente investida a favor dos agrotóxicos é a votação do PL nº 6299/02 nos próximos dias. No Brasil existe um vasto quadro legal que dispõe sobre a experimentação, a pesquisa, a embalagem, a comercialização, a propaganda, o registro, o controle e a fiscalização, entre outros, dos agrotóxicos. Esse quadro legal tem sofrido inúmeros ataques com o propósito de flexibilizar a regulamentação dos agrotóxicos. É nesse contexto que se apresenta o PL 6299/02 e seus apensos.

E quais são as ameaças apresentadas pelo PL 6299/02? A Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida denuncia que caso este pacote letal de PLs seja aprovado, os “agrotóxicos” passarão a se chamar “defensivos fitossanitários”; a avaliação de novos agrotóxicos deixará de considerar os impactos à saúde e ao meio ambiente, ficando sujeita apenas ao Ministério da Agricultura e aos interesses econômicos do agronegócio; será admitida a possibilidade de registro de substâncias comprovadamente cancerígenas, sendo estabelecidos níveis aceitáveis para isto; a regulação específica sobre propaganda de agrotóxicos irá acabar; será permitida a venda de alguns agrotóxicos sem receituário agronômico e de forma preventiva, favorecendo ainda mais o uso indiscriminado de tais substâncias; e ainda, estados e municípios ficarão impedidos de terem regulações mais restritivas, embora estas esferas tenham o dever constitucional de proteger seu patrimônio natural.

Por essas e outras razões a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida tem mobilizado a sociedade para estancar essas propostas que violam direitos, assim como para impulsionar agendas positivas, como a Agroecologia. Ainda, vale destacar que vários/as pesquisadores/as e organismos da ONU têm se posicionado contra os agrotóxicos e a favor da agroecologia como um modelo de produção de alimentos sustentável – capaz, portanto, de alimentar o planeta sem destruí-lo.

Agrotóxicos são tóxicos, por isso se chamam assim. O que intoxica, não alimenta. Nesse momento em que o Brasil engata a marcha à ré em relação ao direito à alimentação e outros direitos, o que precisamos nos nossos pratos são mais direitos e menos veneno. Para saber como se somar a essa luta, acesse http://www.chegadeagrotoxicos.org.br/ .

Valéria Burity, Secretária Geral da FIAN Brasil

Lucas Prates, Assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil

Carla Bueno, da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida

Prato do Dia #5: O desmaio de fome e a despolitização da austeridade

“Quando a gente percebeu que era fome, eu saí de perto para chorar. O rapaz do Samu me olhou com uma cara de ‘que realidade é essa?’. E eu disse que é sempre assim. Eu tenho dois alunos que todos os dias reclamam de fome”. (Ana Carolina Costa, professora do 2º Ano Fundamental da Escola Classe 8, Cruzeiro/DF)


Uma criança desmaiou de fome dentro de uma escola do Distrito Federal (DF). Além de escandaloso, o caso ocorrido no dia 13 de novembro é também emblemático para caracterizar o Brasil em que vivemos atualmente.

A criança, um estudante de 8 anos de idade, desmaiou de fome na Escola Classe 8, localizada a meros 11 km da Esplanada dos Ministérios, centro do poder político nacional. O governo do DF, responsável pela instituição de ensino, chegou a afirmar em forçosa nota que a criança não teria desmaiado, mas que estava meramente “molinha”. Despolitizando completamente a situação, o governador Rollemberg declarou em seguida que não se tratava de uma questão de competência da escola, mas sim da família da criança.

Analisando o caso, três fatores sobressaem:

  1. a situação de pobreza em que se encontra a família da criança;
  2. a falta de escolas na região em que essa família vive, somado ao grande deslocamento até outra instituição de ensino;
  3. a falta de alimentação adequada na escola em questão.

Não é preciso muito para confirmar que os fatores acima são puramente políticos. Ex-catadora de materiais recicláveis, a mãe da criança está desempregada e cria sozinha seis crianças; recebe o valor mensal de R$ 946 de programas de assistência social, mas reclama que os custos de vida são muito altos – para efeitos de comparação, uma cesta básica de alimentos no DF custa atualmente cerca de R$ 400. A família foi beneficiada com um apartamento do Minha Casa, Minha Vida no ano passado, contudo na localidade onde o empreendimento foi construído (Paranoá Parque) não há escolas, hospitais ou outros equipamentos públicos, muito menos empregos.

Os fatos são confirmados pelas declarações do governo distrital, que promete construir uma escola na região nos próximos anos. Enquanto isso, 250 estudantes da região são transportados 30 km todos os dias para a Escola Classe 8 do Cruzeiro, localizada do outro lado do DF. Tal escola, por sua vez, oferece como lanche somente biscoito e suco no meio da tarde, situação escandalosa na unidade da federação com maior renda per capita do país. Ainda, não há almoço para aquelas crianças que precisam sair de casa por volta de 11h da manhã para chegar a tempo da aula, no início da tarde.

A análise do caso comprova o que a FIAN vem defendendo há tempo: deve-se pensar a alimentação e a nutrição de uma maneira que seja holística e centrada na realização deste e de outros direitos humanos; políticas públicas, portanto, devem ser construídas com base nessa visão. É responsabilidade do Estado brasileiro, em última análise, garantir a existência e funcionamento adequado de creches, escolas e outros equipamentos públicos. Assim como é responsabilidade estatal garantir o direito à educação, onde se inclui o fornecimento de merendas adequadas e saudáveis, especialmente quando se trata de crianças em situação de vulnerabilidade social.

Para tudo isso, e muito mais, o Estado precisa de recursos financeiros. Contudo, o contexto de políticas de austeridade em que fomos (forçosa e golpeadamente) colocados nos empurra no sentido contrário: a Emenda Constitucional 95 congelou os gastos com políticas sociais, como aquelas que fariam a diferença neste caso, pelos próximos 20 anos. Análise da FIAN Brasil com outras organizações, baseada em estudo do IPEA, indica que em poucos anos o orçamento de alguns ministérios não conseguirá cobrir sequer as políticas públicas mais básicas consagradas na Constituição Federal, como o Benefício de Prestação Continuada.

Nesse cenário, é sintomático que governantes tentem despolitizar assuntos como a alimentação, a exemplo do que fez o governador do DF: para eles e para boa parte do grande capital que os financia, é interessante que a opinião pública não ligue os pontos entre austeridade, diminuição dos recursos para políticas sociais e aumento da pobreza, miséria e fome, entre outros. Tal prática corre junto com os discursos sobre um menor papel do Estado e uma maior responsabilização do indivíduo – questões que vão pautar o cenário eleitoral em 2018.

O resultado de tudo isso são desmaio(s) de fome, aumento do desemprego, da pobreza e da violência, como já indicado por vários estudos. Resta à população, em conjunto com a sociedade civil progressista, repolitizar estas e tantas outras questões.

Por Lucas Prates, assessor de direitos humanos da FIAN Brasil

Prato do Dia #4: Programa “Alimento para todos” – uma ideologia farinácea

Quando vemos cenas de crianças subnutridas na África, apelando para que se faça alguma coisa para ajudá-las, a mensagem ideológica subjacente é algo como: “Não pense, não politize, esqueça as verdadeiras causas da pobreza, apenas aja, dê dinheiro, assim você não terá de pensar…” Slavoj Zizek, Vivendo no fim dos tempos

O prefeito de São Paulo, João Doria, lançou, no dia 8 de outubro, o programa “Alimento para Todos”. Segundo informações da Prefeitura, o programa foi criado para combater o desperdício de alimentos por meio do aproveitamento de produtos próximos à data de vencimento e que não seriam comercializados. Esses alimentos seriam processados por meio de um processo de liofilização, transformados em um “granulado” e  distribuídos para “a população carente da capital paulista”. A imprensa nacional também ressaltou que empresas envolvidas no programa Alimento para Todos terão acesso a diversos incentivos fiscais.

Percebe-se, portanto, que é com uma espécie de ração para as pessoas empobrecidas e com dinheiro para as empresas que a Prefeitura da cidade mais rica do Brasil quer “enfrentar a fome”. A proposta foi duramente criticada por pesquisadores/as, por organizações da sociedade civil que atuam nessa área, pelo Conselho Regional de Nutricionistas (3ª região) e pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Em nota, o Consea ressalta a importância dos princípios do direito humano à alimentação adequada já previstos em lei e reafirma que este direito é garantido com “comida de verdade”.

Doria respondeu às críticas e a emenda saiu pior que o soneto: “o Brasil tem de colocar ideologia e partidarismo nas coisas. Aquilo (a ração) foi desenvolvido por cientistas”, disse o prefeito. A resposta de Doria vai no sentido de afirmar que não há ideologia no programa “Alimento para todos”; que a ciência (supostamente neutra) lhe confere legitimidade. Contudo, trata-se exatamente do contrário: há uma forte ideologia neste programa da Prefeitura de São Paulo. E essa ideologia é a de que a fome se resolve com falsas soluções tal como a ração, que as verdadeiras causas da fome (pobreza e concentração de renda, por exemplo) não devem ser questionadas e que nutrição se promove com “nutricionismo” – isto é, apoiando ações empresariais lucrativas que visam a distribuição e o consumo de alimentos ultraprocessados, em vez de se garantir alimentos saudáveis e adequados, produzidos de maneira sustentável.

Todo o processo alimentar é permeado por decisões políticas: o que se come, como o alimento é produzido, por quem, como é distribuído dentre a sociedade, etc. Sendo assim, o caso do programa “Alimento para Todos” é emblemático no sentido da necessidade urgente de se politizar o debate público de temas como alimentação e nutrição.

Hoje, dia 16 de outubro, é o Dia Mundial da Alimentação. Um rápido olhar na legislação internacional indica como o citado Programa viola o Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA). Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a alimentação é considerada como parte de um padrão de vida adequado e, com o passar dos anos, foi cada vez mais reconhecida como direito humano, especialmente a partir do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. Nas últimas décadas muitos países, dentre eles o Brasil, afirmaram o direito à alimentação em suas constituições e leis. O Comitê da ONU para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais interpretou em seu Comentário Geral Nº 12 (CG Nº 12) os fundamentos do direito à alimentação. Em seu parágrafo 6º, o CG Nº 12 define o que é o direito à alimentação adequada, afirmando expressamente que “o direito à alimentação não deverá […] ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos”.

Também em seu último relatório, o ex-Relator da ONU para o direito alimentação, Olivier de Schutter, ressaltou que o combate à fome passa pela necessidade fundamental de se reconstruir os sistemas alimentares contemporâneos, fortalecendo a agricultura familiar e modos de produção, abastecimento e consumo tais como a agroecologia. Para o ex-relator, tal reconstrução é urgente, assim como a realização de reformas políticas nas áreas de agricultura, saúde, educação, proteção social, entre outras.

O dia de hoje é de grande relevância, pois afirmar a alimentação como direito humano tem a intenção política de afirmar como se deve interpretar e garantir esse direito. Implica também em reconhecer que alimento não é a mesma coisa que produto comestível – que não é ração e que não é mercadoria. O dia de hoje é para dizermos que sem soberania, sem igualdade social, ambiental, de gênero, de raça e de etnia, sem trabalho, sem democracia, não temos direitos. O que queremos no nosso prato é dignidade, comida de verdade e diversidade. Esse é o prato pelo qual se luta todo dia.

 

Valéria Burity, Secretária Geral da FIAN Brasil

Lucas Prates, Assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil

 

Prato do Dia #3: O julgamento da ADIn Quilombola e a perversidade do racismo brasileiro

O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade/ADIn n. 3239/07 no dia 16 de agosto pelo Supremo Tribunal Federal traz à tona uma das principais memórias escondidas acerca das raízes do Brasil: o racismo enquanto política de Estado. Antes de adentrar em análise mais aproximada da ADIn, importante registrar que com o fim da escravidão, em 1888, iniciou-se um processo de exclusão da população negra e responsabilização desta pelas violências que a acometiam.

Os quilombos, como expressão da resistência negra no Brasil, desempenharam uma importância histórica fundamental para a conquista da libertação das pessoas negras escravizadas. Da mesma maneira, um contexto econômico contrário à manutenção do regime escravagista e pressões externas também acabaram por obrigar o Estado brasileiro a pôr fim à escravidão, colocando o país na vergonhosa posição de último país da América a fazê-lo.

Com a abolição da escravidão assistiu-se a uma perversa prática estatal que visava excluir pessoas negras dos processos socioeconômicos e políticos do país. A criminalização das práticas negras (terreiros de religiões de matriz africana, por exemplo, precisavam fazer seus registros em delegacias de polícia, já que estas prática – segundo se justificava – poderiam causas prejuízos à saúde mental de seus praticantes) e as políticas de incentivo para a  imigração de europeus (para virem trabalhar substituindo a mão-de-obra das pessoas negras libertas) são alguns dos principais exemplos. Além da recusa para contratar pessoas negras, fazendeiros ainda iniciaram movimento para solicitar indenização pelos “prejuízos” causados pela abolição da escravidão. Os resultados dessa política de Estado estão presentes em todos os dados das desigualdades no Brasil da atualidade, que colocam a população negra nos piores índices de desenvolvimento humano.

Com mais de um século de atraso, a Constituição Federal de 1988 traz em seu art. 68, dos Atos e Disposições Transitórias, o direito à terra para as pessoas remanescentes de quilombos. Como norma fundamental, essa disposição constitucional tem eficácia plena e aplicabilidade imediata, sendo inconstitucional a tentativa de mitigar ou reduzir sua eficácia.

É somente em 1995 que o primeiro território quilombola é titulado no Brasil (Comunidade Quilombola Boa Vista/Pará). De lá para cá, apenas 165 comunidades quilombolas – das quase 6.000, no total – tiveram o direito constitucional garantido. A maioria das titulações foram resultado de processos realizados pelos governos estaduais, posto que o governo federal titulou apenas 37 comunidades.

O Decreto 4887/2003, objeto questionado pela ADIn 3239/07, é resultado de um processo tardio que regulamenta a atuação da administração pública no que tange ao exercício de direito constitucional. Como instrumento legal (e histórico), o Decreto garante máxima eficácia para o direito à terra das comunidades quilombolas.. Em uma nítida tentativa de conciliação da luta de classes, o Decreto chega a garantir direito de indenização  para os possuidores das terras originariamente pertencentes às comunidades quilombolas.

Ao se observar o julgamento da ADIn Quilombola, parece haver uma perversidade histórica na construção da história do Brasil. No início do século XX, lá pelos anos de 1930, quando Sergio Buarque de Holanda escreveu em seu livro “Raízes do Brasil” sobre o “homem cordial”, a imagem construída sobre o povo brasileiro – a partir de um olhar branco e burguês – parecia ignorar a crueldade do processo histórico vivenciado pela população negra, ainda recém saída do regime escravagista. Em sentido semelhante, é emblemática a histórica ação de outro homem branco, o jurista Ruy Barbosa. No final do século XIX, Barbosa ordenou, como Ministro da Fazenda, a queima dos documentos relativos à escravidão no Brasil, sob o argumento de evitar uma chuva de pedidos de indenizações a serem promovidas pelos fazendeiros, até então escravocratas.

Em um nítido processo de epistemicídio – assassinato/morte do conhecimento, saberes e tradições não reconhecidas pelo pensamento colonialista –  da história da população negra, o Estado brasileiro e as disputas jurídicas dentro dele têm funcionado como o local de expressão do racismo fortemente arraigada na cultura nacional. Exemplo disso é que os argumentos utilizados pela ADIn 3239/2007 poderiam perfeitamente ser utilizados pelos fazendeiros de 1888, quando estes “perderam” sua mão-de-obra. A diferença principal é que mais de um século se passou, sem que sequer este mesmo grupo político se sentisse, minimamente, constrangido em solicitar a retirada de direitos de povos historicamente violentados, pelo Estado e pela sociedade.  Eis o Brasil do século XXI.

Por Luana Natielle, assessora de direitos humanos da FIAN Brasil