Documento apontando perigos do trigo HB4 à soberania alimentar, à saúde, à biodiversidade e à economia do país foi protocolado junto ao governo federal e a órgãos da Justiça. Organizações reivindicam audiência com ministérios e denunciam que aprovação do trigo transgênico foi feita sem análises de riscos
Foi enviado ao Presidente do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), o Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República, Rui Costa, um ofício reivindicando o cancelamento da liberação do cultivo de trigo transgênico HB4 e a importação de farinha de trigo transgênico HB4. Assinado por um coletivo de organizações, redes e movimentos sociais, o documento, protocolado nesta segunda-feira (20), reúne informações sobre ilegalidades e violações no processo de aprovação do produto geneticamente modificado, além de perigos à saúde, à biodiversidade, à economia e à soberania alimentar, já que o trigo faz parte da base da alimentação da população brasileira. O texto também foi entregue a outros 10 Ministérios que compõem o CNBS, ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.
A aprovação do plantio do trigo transgênico no Brasil ocorreu, no último 1º de março, pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), instância responsável pela liberação de organismos geneticamente modificados. As organizações denunciam que a decisão foi tomada sem que houvesse análises técnicas e debates públicos suficientes. Diante da situação, as entidades requerem audiência com as ministras e os ministros que compõem o Conselho e cobram a suspenção dos efeitos da decisão da CTNBio. Reforçam ainda que, muito além de uma questão técnica, a aprovação de biotecnologias no país deve necessariamente incluir a participação de diferentes setores da sociedade.
Ilegalidades e perigos à biodiversidade
As organizações que assinam o ofício – entre elas, a FIAN Brasil – denunciam que as liberações da importação da farinha e do cultivo do trigo transgênico HB4 violam a Lei de Biossegurança nº 11.105/2005 e o Protocolo de Cartagena, um dos instrumentos da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). O Brasil aderiu ao tratado internacional, mas a Argentina não. Portanto, o processo para a aprovação do produto transgênico no país vizinho deveria se adequar às exigências da legislação brasileira, que são mais rígidas. A decisão tomada pela CTNBio, ainda composta por membros indicados por ministérios do governo de Jair Bolsonaro (PL), surpreendeu, em especial, por se basear em um processo anterior, de 2021, aberto exclusivamente, como afirmava a própria Comissão, para a importação da farinha de trigo transgênica da Argentina, e não para o cultivo do trigo HB4 em território brasileiro.
“A Lei de Biossegurança brasileira estabelece, por exemplo, procedimentos e estudos diferentes para as distintas finalidades de uso, ou seja, as avaliações sobre o consumo ou plantio do trigo transgênicos deveriam ser feitas de forma separada. Trata-se de uma ilegalidade que já faz com que a decisão possa ser anulada”, explica Larissa Packer, da organização internacional Grain.
A única audiência sobre o trigo transgênico realizada até hoje pela CTNBio trouxe informações consideradas inconsistentes pelas entidades. O HB4, por exemplo, é modificado para tolerar o glufosinato de amônio, que é altamente tóxico e poderá chegar à mesa da população na forma de pães, massas, pizzas, bolos, salgados, biscoitos, entre outros alimentos de consumo massivo. Ainda assim, não foram ouvidos especialistas em defesa dos direitos de consumidores e consumidoras.
“O processo apresenta informações inconsistentes e até falas equivocadas em audiência pública sobre a farinha de trigo transgênica, o que viola o princípio da legalidade, transparência, participação social e publicidade. Nesta audiência também não houve participação de representantes dos consumidores, o que é indicado na legislação”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos e integrante do o Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Naiara Bittencourt.
Além disso, o representante da empresa argentina demandante da liberação do produto no Brasil chegou a desvincular o cultivo do trigo transgênico do referido agrotóxico. Curiosamente, a própria Bioceres recomendava em seu site a quantidade mínima do herbicida para seu plantio: dois litros por hectares.
Outra preocupação se refere à ausência de estudos nos diferentes biomas do país, o que impede a avaliação sobre o desempenho agronômico do trigo geneticamente modificado, assim como a previsão de riscos ao meio ambiente. Não se comprovou, por exemplo, a efetividade de seu desempenho em áreas de seca, um dos principais argumentos do lobby favorável ao trigo transgênico. “Não houve pesquisas de campo e análises sobre possíveis efeitos adversos à biodiversidade. A eterna promessa envolvendo mais produtividade com menos oferta de água nunca se cumpriu com a soja ou o milho transgênico. Vai se cumprir com o trigo?”, questiona o agrônomo Leonardo Melgarejo, que também integra o Grupo de Trabalho da ANA.
Fome e comida mais cara
As organizações também contestam à ideia de que o trigo transgênico seria necessário no combate à fome, problema que atinge pelo menos 33 milhões de pessoas no Brasil, como aponta pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN). Defendem que a introdução do produto no Brasil poderia custar alto economicamente, já que estaria atrelada ao pagamento de royalties às empresas titulares da biotecnologia transgênica. Apesar de ser uma empresa argentina, a Bioceres possui capital aberto na Bolsa de Valores de Nova Iorque e alianças com transnacionais do ramo da alimentação, como Monsanto e Syngenta. Nesse contexto, o trigo HB4 poderia tornar o Brasil mais vulnerável às oscilações do mercado internacional para estruturar sua política alimentar. O impacto da aprovação de trigo transgênico, portanto, recairia no valor da comida. Cabe destacar que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil fechou 2022 com mais que o dobro da inflação sobre os alimentos e bebidas (11.64%), face à inflação geral (5,79%).
“Também não se comprovou a real possibilidade de segregar o trigo transgênico em suas etapas de cultivo, transporte, armazenamento e processamento. Assim, a biotecnologia transgênica poderia rapidamente se tornar totalitária. Como os plantios convencionais ou agroecológicos ficariam constantemente suscetíveis à contaminação, os direitos de agricultoras e agricultores seriam violados”, aponta Leonardo. Nessa situação, o poder de escolha sobre qual tipo de trigo cultivar ou quais insumos utilizar na produção estaria inviabilizado, já que a transgenia é dependente de agrotóxicos. Ainda que fosse possível separar o HB4 das outras culturas de trigo, as organizações ressaltam que tal ação demandaria ainda mais custos à agricultura convencional, orgânica ou agroecológica, o que, mais uma vez, poderia recair no preço dos alimentos no país.
Reprodução: Terra de Direitos