Prato do Dia #4: Programa “Alimento para todos” – uma ideologia farinácea

Quando vemos cenas de crianças subnutridas na África, apelando para que se faça alguma coisa para ajudá-las, a mensagem ideológica subjacente é algo como: “Não pense, não politize, esqueça as verdadeiras causas da pobreza, apenas aja, dê dinheiro, assim você não terá de pensar…” Slavoj Zizek, Vivendo no fim dos tempos

O prefeito de São Paulo, João Doria, lançou, no dia 8 de outubro, o programa “Alimento para Todos”. Segundo informações da Prefeitura, o programa foi criado para combater o desperdício de alimentos por meio do aproveitamento de produtos próximos à data de vencimento e que não seriam comercializados. Esses alimentos seriam processados por meio de um processo de liofilização, transformados em um “granulado” e  distribuídos para “a população carente da capital paulista”. A imprensa nacional também ressaltou que empresas envolvidas no programa Alimento para Todos terão acesso a diversos incentivos fiscais.

Percebe-se, portanto, que é com uma espécie de ração para as pessoas empobrecidas e com dinheiro para as empresas que a Prefeitura da cidade mais rica do Brasil quer “enfrentar a fome”. A proposta foi duramente criticada por pesquisadores/as, por organizações da sociedade civil que atuam nessa área, pelo Conselho Regional de Nutricionistas (3ª região) e pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Em nota, o Consea ressalta a importância dos princípios do direito humano à alimentação adequada já previstos em lei e reafirma que este direito é garantido com “comida de verdade”.

Doria respondeu às críticas e a emenda saiu pior que o soneto: “o Brasil tem de colocar ideologia e partidarismo nas coisas. Aquilo (a ração) foi desenvolvido por cientistas”, disse o prefeito. A resposta de Doria vai no sentido de afirmar que não há ideologia no programa “Alimento para todos”; que a ciência (supostamente neutra) lhe confere legitimidade. Contudo, trata-se exatamente do contrário: há uma forte ideologia neste programa da Prefeitura de São Paulo. E essa ideologia é a de que a fome se resolve com falsas soluções tal como a ração, que as verdadeiras causas da fome (pobreza e concentração de renda, por exemplo) não devem ser questionadas e que nutrição se promove com “nutricionismo” – isto é, apoiando ações empresariais lucrativas que visam a distribuição e o consumo de alimentos ultraprocessados, em vez de se garantir alimentos saudáveis e adequados, produzidos de maneira sustentável.

Todo o processo alimentar é permeado por decisões políticas: o que se come, como o alimento é produzido, por quem, como é distribuído dentre a sociedade, etc. Sendo assim, o caso do programa “Alimento para Todos” é emblemático no sentido da necessidade urgente de se politizar o debate público de temas como alimentação e nutrição.

Hoje, dia 16 de outubro, é o Dia Mundial da Alimentação. Um rápido olhar na legislação internacional indica como o citado Programa viola o Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA). Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a alimentação é considerada como parte de um padrão de vida adequado e, com o passar dos anos, foi cada vez mais reconhecida como direito humano, especialmente a partir do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. Nas últimas décadas muitos países, dentre eles o Brasil, afirmaram o direito à alimentação em suas constituições e leis. O Comitê da ONU para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais interpretou em seu Comentário Geral Nº 12 (CG Nº 12) os fundamentos do direito à alimentação. Em seu parágrafo 6º, o CG Nº 12 define o que é o direito à alimentação adequada, afirmando expressamente que “o direito à alimentação não deverá […] ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos”.

Também em seu último relatório, o ex-Relator da ONU para o direito alimentação, Olivier de Schutter, ressaltou que o combate à fome passa pela necessidade fundamental de se reconstruir os sistemas alimentares contemporâneos, fortalecendo a agricultura familiar e modos de produção, abastecimento e consumo tais como a agroecologia. Para o ex-relator, tal reconstrução é urgente, assim como a realização de reformas políticas nas áreas de agricultura, saúde, educação, proteção social, entre outras.

O dia de hoje é de grande relevância, pois afirmar a alimentação como direito humano tem a intenção política de afirmar como se deve interpretar e garantir esse direito. Implica também em reconhecer que alimento não é a mesma coisa que produto comestível – que não é ração e que não é mercadoria. O dia de hoje é para dizermos que sem soberania, sem igualdade social, ambiental, de gênero, de raça e de etnia, sem trabalho, sem democracia, não temos direitos. O que queremos no nosso prato é dignidade, comida de verdade e diversidade. Esse é o prato pelo qual se luta todo dia.

 

Valéria Burity, Secretária Geral da FIAN Brasil

Lucas Prates, Assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil

 

Nota do Consea sobre o projeto “Alimento para todos”

O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão consultivo e de assessoramento da Presidência da República, tem recebido consultas nos últimos dias sobre o chamado Projeto “Alimento para Todos”, lançado em 8 de outubro do corrente ano pela Prefeitura de São Paulo e a Plataforma Sinergia, conforme notícias veiculadas nos meios de comunicação.

Pelas informações disponíveis, o Poder Público Municipal pretende distribuir a grupos sociais em situação de vulnerabilidade um produto alimentar processado a partir de alimentos em vias de perda de validade de consumo e/ou fora de padrões de comercialização, resultando em um granulado com composição ainda não divulgada.

A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006), regida pelo princípio do Direito Humano à Alimentação Adequada, explicita que todas e todos devem estar livres da fome por meio de uma alimentação adequada. A dignidade e respeito aos valores humanos e culturais são condições inegociáveis em qualquer ação desta natureza.

Somando-se a isto o Guia Alimentar, publicação oficial do Ministério da Saúde com as diretrizes sobre alimentação saudável, enfatiza que a dimensão cultural e social da alimentação é fundamental para o exercício e expressão da cidadania de todas e todos e recomenda que os alimentos in natura ou minimamente processados sejam a base da alimentação de brasileiros e brasileiras.

O Consea defende as linhas e diretrizes do Guia Alimentar, bem como o conceito de “comida de verdade”, construído com ampla participação social e consolidado na 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, encontro que teve a participação de 2 mil pessoas em Brasília, em novembro de 2015.

Na 5ª Conferência, os delegados e as delegadas participantes aprovaram um “Manifesto à Sociedade Brasileira” sobre aquilo que avaliam como “Comida de Verdade”. Segundo o documento, “a comida de verdade é saudável, garante o direito à alimentação de qualidade, promove hábitos alimentares saudáveis e não está sujeita a interesses de mercado” (clique aqui para o Manifesto).

Assim sendo, considerando esses aspectos e tendo em vista a urgência que o assunto requer, o Consea solicitou à Secretaria do Trabalho e Empreendedorismo  da Prefeitura de São Paulo, responsável pela Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, e ao Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional informações, documentos oficiais e técnicos sobre este Programa, de maneira a exercer sua função legítima e institucional de controle social e monitoramento das políticas públicas, e convoca a todas e todos a analisarem o atendimento aos princípios da dignidade humana e realização do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e da Segurança Alimentar e Nutricional nesta ação.

Brasília (DF), 13 de outubro de 2017

Cimi lança nesta quinta, 05, relatório ‘Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – Dados 2016’

As disputas políticas e o recrudescimento da ofensiva sobre os direitos indígenas em 2016 refletiram-se em graves ações de violência e violações em aldeias em todo o país. Esta é uma das constatações do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – Dados 2016, uma publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que será lançado nesta quinta-feira, 5 de outubro, às 14h30, na nova sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília.

Chama atenção novamente neste Relatório a quantidade de casos de suicídio, assassinato, mortalidade na infância e de invasões e exploração ilegal de bens comuns, principalmente madeira. O desrespeito do Estado ao direito dos indígenas de viverem nas suas terras ancestrais é um dos focos centrais da publicação, que traz um resumo da situação geral das terras indígenas no Brasil, atualizado no dia 25 de setembro de 2017. Uma extensa tabela que apresenta os 836 territórios não demarcados, divididos por estado, e a situação de cada um deles no procedimento demarcatório é um dos destaques desta publicação.

Os dados do Relatório abrangem diferentes tipos de violência e violações, como conflitos relativos a direitos territoriais, ameaça de morte e desassistência nas áreas de saúde e educação, dentre outros. As informações sobre assassinatos também poderão ser visualizadas no mapa digital da plataforma Caci – Cartografia de Ataques Contra Indígenas, mapeadas de acordo com o município e a terra indígena em que ocorreram.

Estarão presentes no evento cerca de quarenta indígenas dos estados do Maranhão, dos povos Apanikrã Kanela, Krepun, Memortumré Kanela, Krenyê e Gavião, e de Roraima, Macuxi e Wapichana. Dom Roque Palosci, presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho, Dom Leonardo Steiner, secretário-geral da CNBB, Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi, e Roberto Liebgotti, coordenador do Cimi Regional Sul e um dos responsáveis pela elaboração do relatório, irão compor a mesa de debates no evento.

Cabe ressaltar que, oportunamente, o lançamento será realizado no aniversário de 29 anos da promulgação da Constituição Federal. Desse modo pretende-se explicitar, além do desrespeito aos direitos originários dos indígenas estabelecidos pela Carta Magna, a inconstitucionalidade do “marco temporal”. Esta tese político-jurídica restringe o alcance do direito à demarcação das terras indígenas, já que vincula este direito à presença física, e não tradicional, das comunidades nos seus territórios ao dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

 

Serviço

 

O quê: Lançamento do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – Dados 2016

Quando: 5 de outubro (quinta-feira), às 14h30

Onde: Sede nova da CNBB – SGAN 905, Bloco C (em frente ao autódromo)

 

Assessoria de Comunicação CIMI