Plataforma Dhesca debate conjuntura e estratégias da rede e elege nova coordenação

Representantes de organizações filiadas à Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil e de entidades parceiras se reuniram em Brasília nos dias 27 e 28 de outubro para a 6ª Assembleia Geral Ordinária da rede. Foram dois dias de ricos debates sobre a conjuntura nacional e de deliberações sobre as estratégias para os próximos dois anos. Entre os participantes também esteve a Relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca, Erika Yamada.

A mesa de abertura apresentou um panorama da conjuntura nacional e os desafios para a defesa dos direitos humanos no país. Na avaliação de Leandro Scalabrin, coordenador da Plataforma Dhesca e representante do Movimento dos Atingidos Por Barragens – MAB, vivenciamos o final de um ciclo que tinha uma política de conciliação de classe, e que o novo cenário apresenta um quadro em que as correntezas contrárias têm atuado de forma mais intensa. “Atualmente o Brasil vive um estado de exceção, uma ditadura constitucional. Neste cenário qual o ideário aglutinador? Nenhum direito a menos!”, concluiu Leandro.

A Subprocuradora-geral da República e Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Dr.ª Deborah Duprat, destacou a atuação da Procuradoria na defesa dos direitos constitucionais e dos direitos humanos. Dentre as ameaças aos direitos destacou o fato em que um conjunto de produtores rurais chegou a fazer um leilão com o objetivo de arrecadar recursos para contratação de milícia armada para atacar indígenas, e que isso tem sido replicado nacionalmente. Por outro lado, fez menção à recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que rejeitou o enquadramento de movimentos sociais na lei de organização criminosa, ressalvando que os movimentos não podem ser criminalizados. “O momento é de atuar em rede. Temos que perceber as dinâmicas de atuação em uma luta comum, reconhecendo as nossas diferenças. Este é um momento de judicializar a disputa e questionar a perda de direitos”, avaliou.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Padre João Carlos Siqueira, falou sobre o cenário de retrocessos na Câmara. Segundo ele, projetos que tramitavam há anos agora ganham força e estão sendo retomados, numa estratégia que significa retirar direitos e deixar morrer por inanição políticas de direitos humanos. “Nunca iremos avançar sem ir além do executivo e legislativo. É preciso enfrentar o debate junto com o judiciário e também setores do Ministério Público que têm atuado a serviço da retirada de direitos”, afirmou Pe. João.

Márcio Barreto, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, destacou a criminalização contra movimentos sociais e defensores de direitos humanos. “O processo de criminalização não vem apenas das forças repressivas. Nunca houve na história uma composição congresso tão conservador. Este ofensiva tem sido homologada pelo judiciário, inclusive por ministros que foram nomeados com apoio dos movimentos sociais”, afirmou. Para Márcio, o desafio é a luta por mais direitos e mais democracia, lutar nas ruas, apoiar os movimentos estudantis.

Desafios da Rede

As reflexões  feitas a partir do diálogo realizado na mesa de abertura permearam os debates durante todo o evento. A conjuntura política nacional exige da Plataforma Dhesca Brasil e de suas filiadas ações que respondam ao quadro de graves violações de direitos humanos no país, combinadas com o fortalecimento do campo das organizações que atuam na defesa dos direitos humanos, na luta por mais direitos e mais democracia.

Neste contexto, o papel das Relatorias em Direitos Humanos – criadas em 2002 com o desafio de diagnosticar, relatar e recomendar soluções para violações apontadas pela sociedade civil – segue sendo fundamental. Para o próximo período a assembleia propôs as seguintes agendas prioritárias: genocídio da juventude negra, temáticas ligadas ao Direito à Cidade, criminalização dos movimentos sociais, acesso à justiça, privação de liberdade e os temas que já vinham sendo abordados no último ano pelas Relatorias – Povos Indígenas e Laicidade do Estado, com recortes transversais de gênero e raça e modelo de desenvolvimento.

Além de manter o formato de Relatorias temáticas com mandato definido, como já acontece desde que foram criadas, o projeto poderá contar com um Grupo de Relatoras/es que atuem em demandas emergenciais – como no caso recente das ocupações de escolas, onde tem acontecido flagrantes de violações de direitos. Isto possibilitará maior velocidade de resposta à conjuntura e ao contexto, dando às Relatorias mais flexibilidade a agilidade. A metodologia de trabalho das próximas Relatorias será debatida num seminário de avaliação e planejamento.

Outro ponto importante discutido foi a necessidade de busca por mais adesões da Campanha Mais Direitos Mais Democracia. Criada a partir de um amplo debate realizado pela Plataforma Dhesca e Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil e respectivos movimentos e organizações filiadas e parceiras, a campanha tem como objetivo fazer uma disputa de valores no campo dos direitos humanos e da garantia e ampliação da democracia no Brasil. Ela é fruto da necessidade de se combater a perda de direitos conquistados, que vem sendo promovida pela soma das parcelas de políticos ligados à chamada bancada conservadora e fundamentalista.

Adesão de novas organizações e eleição da nova Coordenação

Além de discutir as estratégias e ações políticas para os próximos anos, a assembleia elegeu a nova Coordenação Colegiada para um mandato de dois anos. As organizações eleitas foram: Ação Educativa, Cfemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Geledés – Instituto da Mulher Negra, Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação, Justiça Global, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e Terra de Direitos.

Foram aprovadas, ainda, a adesão de duas novas entidades à rede: o Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos – IDDH e o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Além destas, duas outras organizações manifestaram seu interesse em integrar a Plataforma e encaminharão as solicitações de adesão, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente – Cedeca Ceará e a Via Campesina.

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Fonte: Plataforma Dhesca

Corte no Orçamento da Funai está em choque com princípio da vedação ao retrocesso social

Documento recentemente lançado pela Fian Brasil – O Direito Humano à Alimentação Adequada e Nutrição do Povo Guarani e Kaiowá – traz dados alarmantes sobre a situação de insegurança alimentar e nutricional deste povo. Em três comunidades pesquisadas o índice de insegurança alimentar era de 100% contra a média de 26,6% da população brasileira. O estudo atribuiu as precárias condições de vida que enfrentam os Guarani e Kaiowá, dentre outros fatores, à falta de respeito à sua cultura, à falta de demarcação de seus territórios, à violência a que estão submetidos e à falta ou inadequação de políticas públicas específicas para estes povos. Situações graves de violações de direitos como essas podem se agravar não só para os Guarani e Kaiowá, mas para todos os povos indígenas do Brasil.

Michel Temer apresentou ao Congresso Nacional a menor proposta de orçamento para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) dos últimos 10 anos, com o teto de 110 milhões de reais para despesas discricionárias da instituição. Há 09 anos havia sido aprovado um valor de 120,4 milhões de reais. Como destacou o Secretário Executivo do CIMI, se levarmos em consideração a inflação acumulada do período, estamos falando de 60,88% de perda orçamentária. Em 2013 o orçamento aprovado foi de R$ 194 milhões.

Se mesmo com investimento em programas sociais e com maior orçamento para ações que mantém estreita conexão com direito humano à alimentação e Nutrição adequada os povos indígenas estavam sofrendo graves violações de todos os seus direitos, a proposta de corte no orçamento, sem que haja qualquer justificativa devidamente fundamentada para essa redução no Orçamento da FUNAI, já é em si um grave retrocesso que viola direitos humanos e representa o absoluto desrespeito aos compromissos internacionais e nacionais assumidos pelo Estado Brasileiro.

A propósito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por outros motivos, já afirmou que, de acordo com o Protocolo de San Salvador, ratificado pelo Brasil em 1996, é proibido ao Estado qualquer retrocesso de direitos econômicos, sociais e culturais (direitos como terra, educação, saúde, alimentação e nutrição, entre outros). A CIDH sugeriu que cortes em programas sociais anunciados pelo governo interino poderiam configurar infração ao referido Protocolo.

Isso porque, em relação aos direitos humanos, os Estado devem obedecer ao Princípio da Vedação do Retrocesso Social, que remonta à década de 1970, quando se discutiu na Alemanha, em razão de crise econômica, restrições a “benefícios” sociais (Continentino, 2015) . O Princípio foi conceituado como cláusula de “proibição de ‘contra-revolução social’ ou da ‘evolução reaccionária’. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (…), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo” (Canotilho, 2006) . [1]

Alguns tribunais vem flexibilizando a adoção deste princípio, fenômeno chamado de “jurisprudência da crise”, isto é, passaram a admitir que crises econômicas justificam a involução de direitos. Mas ainda se reconhece que, mesmo em períodos de contingências, este princípio está atrelado à democracia econômica e social e impõe limites aos legisladores e demais agentes públicos (Continentino, 2015).

Nesse sentindo, um dos instrumentos que expõe de maneira mais elucidativa o princípio de vedação de retrocesso social é o Comentário Geral (CG) nº 3 do Comitê de Direitos Econômicos e Sociais da ONU, documento que descreve as obrigações que os estados assumem quando ratificam o Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC), 164 países, em todo mundo,ratificaram ou aderiram a este tratado, o que inclui o Brasil.

Este CG afirma que o artigo 2.1 do PIDESC contém um mandato de progressividade para a plena realização de direitos nele inscritos, a qual apresenta uma dimensão positiva e outra negativa. A positiva impõe a obrigação de adotar medidas de respeito, proteção, promoção e provimento dos direitos previstos no Pacto. A negativa impõe aos Estados a obrigação de se abster de adotar medidas que impliquem retrocesso aos progressos alcançados em relação a esses direitos (Defensoria Del Pueblo de Colômbia, 2009) . [2]

De outro lado, o parágrafo 9 do CG nº 3 determina que os Estados devem demonstrar que estão fazendo uso do máximo dos recursos disponíveis de que disponham para garantir direitos humanos e, ainda, que eventuais retrocessos devem ser plenamente justificados no contexto da totalidade dos direitos previstos no pacto. Portanto, havendo alguma circunstância concreta que exija a involução do processo de implementação de direitos, é imperativo demonstrar que a medida atende ao princípio da proporcionalidade, isto é, é necessária, é a mais efetiva e é a menos prejudicial para os titulares de direito (Continentino, 2015).

Nesse sentido, o Princípio de Vedação ao Retrocesso, assim como a abordagem de direitos humanos, são importantes argumentos políticos para enfrentar os grandes retrocessos que estão sendo impostos ao Povo Brasileiro e, nesse momento com a redução do orçamento da FUNAI, mais uma vez aos povos indígenas.

Historicamente as lutas sociais têm provocado o reconhecimento de direitos nos instrumentos legais da superestrutura da nossa sociedade, isto é em diversas normas nacionais e internacionais de proteção de direitos humanos e promoção de políticas públicas, esse reconhecimento pode e deve retroalimentar essas mesmas lutas, em um ciclo contra hegemônico de construção e exigibilidade de direitos.

Valéria Burity é mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (2005). Advogada. Secretária Geral da Fian Brasil.


[1] Canotilho, Gomes (1998). Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina

[2] Defensoria Del Pueblo de Colômbia (2006). El Derecho a la Alimentación en La Constitución, La Jurisprudencia y los Instrumentos Internacionales. Serie Desc. Bogotá, D. C

 

Publicado, originalmente, no site Justificando.

Retrocesso e criminalização: diagnósticos de ameaças aos direitos dos povos indígenas

Com o avanço de forças conservadoras e o governo de Temer, situações graves de violações de direitos podem se agravar

 
Cortes no orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), mudanças em seu corpo administrativo, reinstalação da CPI do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da Funai, utilização da Tese do Marco Temporal e Tradicional, avanço de proposições legislativas como a PEC 215, e muita violência. Este é o resumo do que representam nos últimos meses os retrocessos imputados aos povos indígenas pelo Estado Brasileiro.

O relatório especial das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas do Brasil, apresentado no último dia 20 de setembro em Genebra, na Suíça, enfatizou que o país não avançou e, inclusive, está piorando na proteção dos Direitos Indígenas. Além de tornar evidentes as violências e violações de direitos cometidas contra os povos originários, o Relatório da ONU também faz diversas recomendações para o Estado Brasileiro e expressa preocupação com relação às políticas implantadas desde maio de 2016.

Outro documento, lançado em agosto deste ano pela FIAN Brasil, “O Direito Humano à Alimentação Adequada e Nutrição do Povo Guarani e Kaiowá: um enfoque holístico” traz dados alarmantes sobre a situação de insegurança alimentar e nutricional deste povo. Em três comunidades pesquisadas o índice de insegurança alimentar era de 100% – em comparação, a média deste índice entre a população brasileira não-indígena é de 26,6%.

O estudo atribui esta gravíssima situação às precárias condições de vida que enfrentam os Guarani e Kaiowá, em que predominam a lentidão da demarcação de seus territórios tradicionais, a ausência de respeito à sua cultura, a violência física a que estão submetidos por ataques paramilitares e a ausência ou inadequação de políticas públicas específicas para estes povos. Com o avanço de forças conservadoras pelo país e com o governo de Michel Temer, situações graves de violações de direitos como essas podem se agravar não só para os Guarani e Kaiowá, mas para todos os povos indígenas do Brasil.

A demarcação de terras tem sido o pano de fundo de diversos conflitos que afetam os povos indígenas. Neste contexto, a luta histórica pela demarcação dos territórios tradicionais esbarra nas lutas políticas institucionais, bem como nas jurídicas. Dois grandes exemplos disto são a reinstalação da CPI do Incra e da Funai, no último dia 17 de outubro pela bancada ruralista, e o uso cada vez mais frequente da Tese Jurídica do Marco Temporal e Tradicional pelo Poder Judiciário.

A CPI do Incra/Funai tem sido utilizada para criminalizar entidades sociais que apoiam a luta pela demarcação das terras indígenas e quilombolas. É importante enfatizar que a citada CPI não atendeu a mandamentos constitucionais básicos como, por exemplo, a criação para apurar um “fato certo”, como mostra o requerimento de sua instalação.

A Tese do Marco Temporal e Tradicional, por sua vez, é uma criação jurídica que ocorreu no âmbito do julgamento do caso Raposa Serra do Sol no Supremo Tribunal Federal, em 2009. Em resumo, trata-se de impor a data da promulgação da Constituição Federal (5 de Outubro de 1988) como marco temporal para se reconhecer uma terra indígena: caso os indígenas não estivessem na área demandada àquela época, eles não teriam direito a ela. A exceção a tal regra se daria caso os povos originários estivessem pleiteando àquela época a posse da terra no Poder Judiciário, ou ainda se, àquela época, estivessem sofrendo violência física direta contra a ocupação. Esta teoria não abarca, portanto, milhares de casos em que os povos indígenas já haviam sido expulsos e não haviam ajuizado ações na justiça por quaisquer razões. Nos últimos anos o Poder Judiciário vem barrando a demarcação de terras indígenas com base nesta teoria, a exemplo das Terras Indígenas Limão Verde, Panambi-Lagoa Rica e Guyraroka, todas no estado do Mato Grosso do Sul.

Em paralelo a tais entraves, o presidente Michel Temer apresentou ao Congresso Nacional a menor proposta de orçamento para a Funai dos últimos 10 anos, com o teto de R$ 110 milhões para despesas discricionárias da instituição. Há nove anos havia sido aprovado um valor de R$ 120,4. Como destacou o Secretário Executivo do Cimi, Cleber Buzatto, se levarmos em consideração a inflação acumulada do período, estamos falando de 60,88% de perda orçamentária. Em 2013 o orçamento aprovado foi de R$ 194 milhões.

O que se via no Brasil até o início deste ano é que, mesmo com investimentos em programas sociais e com maior orçamento para ações que mantêm estreita conexão com os direitos humanos, tal como o direito à alimentação e à nutrição adequada, os povos indígenas estavam sofrendo graves violações de todos os seus direitos. Sendo assim, a atual proposta de corte no orçamento da FUNAI, sem que haja qualquer justificativa devidamente fundamentada, já é em si um grave retrocesso que viola direitos humanos e representa o absoluto desrespeito aos compromissos internacionais e nacionais assumidos pelo Estado brasileiro.

No Direito Internacional, por exemplo, o Princípio da Vedação do Retrocesso Social proíbe que se retroaja em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais sem que haja graves razões que justifiquem tal retrocesso. Esta tem sido a interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversos casos já analisados. Em sentido semelhante, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos indicourecentemente que cortes anunciados pelo governo de Temer em programas sociais podem configurar infração ao Protocolo de San Salvador.

Ressalta-se assim, portanto, a importância de uma abordagem de direitos humanos nas lutas sociais, inclusive indígenas. Historicamente, tais lutas têm provocado o reconhecimento de direitos em instrumentos legais. Contudo, esse reconhecimento pode e deve retroalimentar essas mesmas lutas, em um ciclo contra hegemônico de construção e exigibilidade de direitos humanos que permitam a todos e todas uma vida digna em sociedades mais justas e igualitárias.

Flávia Quirino é jornalista

Lucas Prates é assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil

Valéria Burity é advogada e Secretária Geral da FIAN Brasil

Publicado, originalmente, no Brasil de Fato.

Crédito foto:  Marcelo Camargo/ Agência Brasil

FIAN Brasil participa de 2º ENPSAN em Brasília

A Fian Brasil e Fian Internacional participaram entre os dias 5 e 7 de outubro do 2º Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional (Enpsan), que reuniu pesquisadores, especialistas, professores e profissionais do Brasil e do exterior. O evento contou com cerca de 270 pessoas e foi realizado na sede da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no campus da Universidade de Brasília (UnB).

O assessor de Direitos Humanos da Fian Brasil, Lucas Prates, o assessor sênior da Fian Internacional, Flávio Valente, e a professora da UFT e membro da Agentes Pastoral Negros, Ana Lúcia Pereira, participaram do painel sobre o Direito Humano à Alimentação, do Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional.

Além do debate e da troca de experiências sobre direito humano à alimentação adequada e a soberania e segurança alimentar e nutricional, entre outros temas, o Encontro debateu a criação de uma rede nacional de pesquisa envolvendo esse campo científico.  No encontro serão propostos instrumentos de integração de pesquisadores, a fim de estimular o intercâmbio e a interação entre as agências de fomento e instituições públicas relacionadas com os temas desse segmento.

Modelo agrícola alternativo corre o risco de ser controlado pelas multinacionais

A produção agrícola alternativa, que não utiliza agrotóxicos, nos próximos anos possivelmente também será controlada por um grupo de menos de cinco multinacionais que hoje dominam o mercado mundial de agrotóxicos e sementes transgênicas. Segundo Victor Pelaez Alvarez, empresas como Monsanto, DuPont, Syngenta, Dow e Bayer já estão investindo em herbicidas produzidos à base de insumos biológicos, e quando os órgãos reguladores passarem a barrar a venda de agrotóxicos, o atual “modelo agrícola vai simplesmente substituir os agrotóxicos por produtos de base biológica; é por isso que as empresas já se preparam para essa transição e, obviamente, vão continuar atuando nessa lógica de grande escala”, adverte o engenheiro. “O que hoje é um modelo alternativo de pequenos agricultores que usam ativos biológicos”, frisa, “em pouco tempo, será controlado pelas grandes empresas. Esse é o risco que está colocado”.

De acordo com Alvarez, além de atuarem no ramo de agrotóxico e deprodução de sementes transgênicas, essas empresas também estão atuando na área de agricultura de precisão, desenvolvendo tecnologias para “monitorar tanto o clima quanto o solo e desenvolver novas moléculas, adaptadas a mudanças climáticas específicas”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Alvarez também comenta a recente fusão entre a Bayer e a Monsanto. Ele afirma que o negócio faz parte de um processo que vem se acentuando desde os anos 1990, em que empresas maiores adquirem as menores, criando um oligopólio tanto no mercado de agrotóxicos quanto no de sementes transgênicas. Hoje, “a partir dessas movimentações”, as quatro maiores empresas que detêm 49% do mercado mundial de agrotóxicos passarão a controlar “74% do mercado”. Empresas como Monsanto, DuPont, Syngenta, Dow e Bayer, que controlam “46% do mercado de sementes, com essas fusões passarão a controlar 50% desse mercado, o que gera uma concentração tanto no mercado de agrotóxicos quanto no de sementes”, informa.

Victor Manoel Pelaez Alvarez é graduado em Engenharia de Alimentos, mestre em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas e doutor em Ciências Econômicas pela Université de Montpellier I. Além de professor na Universidade Federal do Paraná, é membro do Conselho Editorial do International Journal of Biotechnology e da Revista Brasileira de Inovação.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o significado da fusão entre a Bayer e a Monsanto para as empresas e como essa fusão tende a reconfigurar o mercado mundial de sementes e agrotóxicos?

Victor Pelaez Alvarez – Esse processo de concentração de capitais já tem acontecido nos últimos anos, ou seja, aconteceu no final dos anos 90 e início dos anos 2000 e agora acontece novamente. No passado foram feitas aquisições por parte da Arysta, e a partir daí a DuPont e a Dow Chemical, que são respectivamente a quinta e sexta maiores empresas desse ramo de atividade, iniciaram uma fusão, e a Syngenta foi adquirida pela ChemChina. Se analisarmos os indicadores que os órgãos de defesa da concorrência fazem, vamos verificar que, antes dessas novas fusões, as quatro maiores empresas controlavam 49% do mercado mundial. O que deverá acontecer é que, a partir dessas movimentações, elas controlem 74% do mercado mundial. Então, há um crescimento significativo.

Além disso, as cinco maiores empresas de agrotóxicos – Monsanto, DuPont, Syngenta, Dow e Bayer -, que controlam 46% do mercado mundial de sementes, com essas fusões passarão a controlar 50% desse mercado, o que gera uma concentração tanto no mercado de agrotóxicos quanto no de sementes. Essas empresas atuam nesses dois campos porque eles são ativos complementares. A Monsanto foi a pioneira no ramo de sementes, ingressou no mercado porque desenvolveu uma semente resistente ao seu próprio herbicida, que é o glifosato, e a partir daí a empresa fez uma série de aquisições que a tornaram a líder no mercado de sementes. As demais empresas seguiram a mesma lógica de criar sementes resistentes.

Para você ter uma ideia, essas empresas adquiriram, desde 1996, quando foi lançada a semente transgênica nos EUA, até 2006, 133 empresas de sementes, 45 empresas de agrotóxicos e hoje elas estão num outro segmento de mercado, que são os biointensivos, ou seja, os agrotóxicos de base biológica e não de base química. Esses produtos estão sendo desenvolvidos para complementar o portfólio das empresas, dado que os custos de agrotóxicos químicos são muito elevados, principalmente em função do aumento das restrições dos órgãos reguladores nos países desenvolvidos. Isso faz com que os custos e os riscos de desenvolvimento sejam cada vez maiores, mas os mercados dos países desenvolvidos demandam cada vez mais produtos sem agrotóxicos ou com resíduos menores.

Elas também estão atuando no ramo de agricultura de precisão, que funciona a partir do uso massivo de dados, o Big Data, que serve para monitorar tanto o clima quanto o solo e desenvolver novas moléculas, adaptadas a mudanças climáticas específicas, ou seja, trata-se de uma área de fronteira. Essa diversificação de serviços faz com que as empresas tenham um portfólio de produtos que envolvam papéis tecnológicos, e isso cria uma rede muito grande. Para se ter uma ideia, nessas três áreas em que elas atuam, as seis maiores empresas adquiriram cerca de 200 empresas e fizeram cerca de 470 acordos com outras empresas. Esses acordos comerciais de transferência de tecnologia, ou de comercialização de uma empresa por outra, fazem com que haja uma rede intrincada de atuação em diferentes mercados que envolve desde o uso diferenciado de biopesticidas, agrotóxicos, sementes, desenvolvimento de tecnologia, e esse efeito de rede faz com que elas de fato controlem toda a produção de insumos para agricultura.

IHU On-Line – Por que o senhor afirma que essa fusão poderá ter implicações no sentido de agravar a insegurança alimentar no Brasil? Quais os impactos dessa fusão para os agricultores e consumidores?

Victor Pelaez Alvarez – Porque os custos de produção são cada vez maiores na medida em que essas empresas controlam os mercados de forma concentrada. Vou mencionar o exemplo publicado na revista da Embrapa, que trata justamente da elevação dos preços dos insumos e das commodities. É possível verificar que enquanto o valor da produção de soja é 100, 150%, o valor da semente aumentou o dobro disso, e no caso do algodão a situação é ainda mais dramática, porque o preço da semente aumentou quatro vezes mais que o valor da produção. Isso faz com que o custo de produção só possa ser sustentado por subsídios agrícolas e, portanto, essas empresas acabam sendo subsidiadas com dinheiro público. Esse é o modelo de produção agrícola instalado com a Revolução Verde, e que viabiliza a produção em grande escala para que o custo unitário seja menor. Então, obviamente que, em grande escala, o preço cai de modo significativo. Mas esse modelo agrícola foi implantado no contexto da Guerra Fria, onde estava em disputa uma ideologia de esquerda x direita, onde a direita colocou, a partir dos EUA, o capitalismo numa perspectiva de que poderia resolver a fome no mundo produzindo alimentos a baixo custo.

Mas falta uma variável nessa equação: a distribuição de renda. Se não há renda para adquirir os alimentos, por mais que o preço deles seja baixo, isso não será o suficiente para resolver o problema da fome. Esta questão que está em jogo: não basta reduzir custo de produção; é importante distribuir renda, mas esse modelo é concentrador de renda na medida em que poucos agricultores têm condições de produzir. É por isso que os agricultores acabam utilizando crédito agrícola para viabilizar esse modelo. Então, quanto mais há essa concentração, mais os custos se elevam; e o custo das sementes se elevou muito, porque os mercados são concentrados e as empresas fixam preços, desenvolvem tecnologias cada vez mais caras, e isso gera um impacto na renda do agricultor. Assim, para não onerar o consumidor final, volta-se à questão dos subsídios.

IHU On-Line – Hoje, como é possível romper com essa proposta da Revolução Verde?

 

Victor Pelaez Alvarez – A questão é repensar o modelo de produção. Quando esse modelo foi instituído, a rota alternativa, que seria hoje a chamada agroecologia, com o uso de insumos biológicos e não químicos, foi inibida. Ou seja, houve uma trajetória tecnológica baseada no uso intensivo de agrotóxicos porque, ao fazer sementes melhoradas, com determinadas características, elas perdiam resistência a algumas pragas, mas esse pacto tecnológico foi adotado com um custo elevado. Hoje, se resgata a ideia do insumo biológico como algo que tem um menor risco ambiental e um menor custo. Tudo isso está colocado e de fato há que se repensar sempre os modelos de monocultivo em grande escala, e esse é o desafio em termos de políticas públicas.

IHU On-Line – Quais são os impactos causados pelo uso dessas duas tecnologias?

Victor Pelaez Alvarez – O primeiro impacto é a perda de biodiversidade biológica. O uso da transgenia é uma iniciativa da Revolução Verde, de monocultivos produzidos em grande escala para reduzir os custos unitários de produção. O segundo impacto é que as sementes resistentes a herbicidas foram desenvolvidas justamente para se usar mais herbicidas, fazendo com que o uso continuado desses produtos gerasse uma resistência às plantas indesejadas, as chamadas ervas daninhas, e fazendo com que se usasse uma combinação de herbicidas altamente tóxicos, como o caso do 2,4D, que já estava no fim do seu ciclo de vida. Há um retrocesso tecnológico acontecendo nessa perspectiva, onde cada vez mais se utilizam e se combinam esses herbicidas.

O problema é justamente que o processo de avaliação de agrotóxicosavalia a toxicidade dos herbicidas com cada ingrediente ativo em separado, e não pela combinação deles, embora se saiba que esse uso combinado gera um efeito sinérgico, que tem um impacto ainda desconhecido tanto no ser humano quanto no meio ambiente. Os órgãos reguladores dos países desenvolvidos começaram a se preocupar com essa combinação de herbicidas, mas o Brasil ainda está longe de tratar essa questão.

No dia em que houver esse controle de forma sistemática, esse modelo agrícola vai simplesmente substituir os agrotóxicos por produtos de base biológica e é por isso que as empresas já se preparam para essa transição e, obviamente, vão continuar atuando nessa lógica de grande escala. O que hoje é um modelo alternativo de pequenos agricultores que usam ativos biológicos, em pouco tempo será controlado pelas grandes empresas. Esse é o risco que está colocado.

IHU On-Line – Então as empresas já estão investindo num modelo alternativo, mas esse não mudará a lógica da produção agrícola?

Victor Pelaez Alvarez – Exato. Trata-se de um oligopólio, em que poucas empresas controlam e concentram o mercado cada vez mais. O papel dos órgãos de concorrência é importante, mas mesmo aí há certas limitações, porque a capacidade que as empresas têm de exercer um poder de mercado vai além da questão de preço. As outras empresas ficam com pouca alternativa e pouco espaço de mercado para atuar. Mesmo que as grandes não imponham preços maiores, as pequenas ficam impossibilitadas de atuar em mercados que são extremamente marginais.

IHU On-Line – Como se dá a dinâmica do comércio internacional de agrotóxicos e qual é a participação do Brasil nesse comércio?

Victor Pelaez Alvarez – O Brasil, a partir de 2008, passou a ser o segundo líder no mercado mundial de agrotóxicos e o primeiro exportador mundial de agrotóxicos. Hoje, Brasil e EUA correspondem a quase metade do consumo mundial de agrotóxicos e são os primeiros exportadores de alimentos. O que faz o Brasil ser um grande importador de agrotóxicos é o fato de produzir as principais commodities agrícolas que mais usam agrotóxicos, como a soja, o milho, o algodão e o café. Então, o Brasil é destinatário desse modelo de produção em que, ao mesmo tempo, importa esses insumos da China e é o maior exportador de alimentos para a China. O comércio mundial de agrotóxicos é, portanto, um comércio intraempresas, porque são essas maiores empresas que têm subsidiárias em várias partes do mundo. Nesse contexto, França e Alemanha, portanto, são as maiores importadoras e exportadoras de agrotóxicos.

IHU On-Line – O que seria uma alternativa para romper com esse mercado?

Victor Pelaez Alvarez – As alternativas são variadas e aqui é possível incluir desde leis que consigam reduzir essa concentração de capitais, até leis que incentivem capitais de menor porte, com alternativas tecnológicas. Alguns argumentam que não é possível alimentar a população com produto orgânico por uma questão de escala, mas quando começou aRevolução Verde, ela também não era viável. Então, tudo depende de uma trajetória tecnológica e de uma continuidade de investimentos e de assistência técnica. Isso significa que precisamos de políticas de curto, médio e longo prazo para incentivar alternativas tecnológicas e isso está ligado não só à segurança alimentar, mas a uma questão de soberania.

No Brasil, nós temos uma grande empresa de referência na área de pesquisa, que é a Embrapa. O importante é como vai se utilizar esse saber para garantir a soberania nacional nesse processo, porque o fato de hoje o Brasil ser o segundo maior exportador de alimentos também tem a ver com a experiência da Embrapa.

Fonte: Brasil de Fato