Retrocesso e criminalização: diagnósticos de ameaças aos direitos dos povos indígenas

Protesto durante os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas em 2015 / Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Com o avanço de forças conservadoras e o governo de Temer, situações graves de violações de direitos podem se agravar

 
Cortes no orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), mudanças em seu corpo administrativo, reinstalação da CPI do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da Funai, utilização da Tese do Marco Temporal e Tradicional, avanço de proposições legislativas como a PEC 215, e muita violência. Este é o resumo do que representam nos últimos meses os retrocessos imputados aos povos indígenas pelo Estado Brasileiro.

O relatório especial das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas do Brasil, apresentado no último dia 20 de setembro em Genebra, na Suíça, enfatizou que o país não avançou e, inclusive, está piorando na proteção dos Direitos Indígenas. Além de tornar evidentes as violências e violações de direitos cometidas contra os povos originários, o Relatório da ONU também faz diversas recomendações para o Estado Brasileiro e expressa preocupação com relação às políticas implantadas desde maio de 2016.

Outro documento, lançado em agosto deste ano pela FIAN Brasil, “O Direito Humano à Alimentação Adequada e Nutrição do Povo Guarani e Kaiowá: um enfoque holístico” traz dados alarmantes sobre a situação de insegurança alimentar e nutricional deste povo. Em três comunidades pesquisadas o índice de insegurança alimentar era de 100% – em comparação, a média deste índice entre a população brasileira não-indígena é de 26,6%.

O estudo atribui esta gravíssima situação às precárias condições de vida que enfrentam os Guarani e Kaiowá, em que predominam a lentidão da demarcação de seus territórios tradicionais, a ausência de respeito à sua cultura, a violência física a que estão submetidos por ataques paramilitares e a ausência ou inadequação de políticas públicas específicas para estes povos. Com o avanço de forças conservadoras pelo país e com o governo de Michel Temer, situações graves de violações de direitos como essas podem se agravar não só para os Guarani e Kaiowá, mas para todos os povos indígenas do Brasil.

A demarcação de terras tem sido o pano de fundo de diversos conflitos que afetam os povos indígenas. Neste contexto, a luta histórica pela demarcação dos territórios tradicionais esbarra nas lutas políticas institucionais, bem como nas jurídicas. Dois grandes exemplos disto são a reinstalação da CPI do Incra e da Funai, no último dia 17 de outubro pela bancada ruralista, e o uso cada vez mais frequente da Tese Jurídica do Marco Temporal e Tradicional pelo Poder Judiciário.

A CPI do Incra/Funai tem sido utilizada para criminalizar entidades sociais que apoiam a luta pela demarcação das terras indígenas e quilombolas. É importante enfatizar que a citada CPI não atendeu a mandamentos constitucionais básicos como, por exemplo, a criação para apurar um “fato certo”, como mostra o requerimento de sua instalação.

A Tese do Marco Temporal e Tradicional, por sua vez, é uma criação jurídica que ocorreu no âmbito do julgamento do caso Raposa Serra do Sol no Supremo Tribunal Federal, em 2009. Em resumo, trata-se de impor a data da promulgação da Constituição Federal (5 de Outubro de 1988) como marco temporal para se reconhecer uma terra indígena: caso os indígenas não estivessem na área demandada àquela época, eles não teriam direito a ela. A exceção a tal regra se daria caso os povos originários estivessem pleiteando àquela época a posse da terra no Poder Judiciário, ou ainda se, àquela época, estivessem sofrendo violência física direta contra a ocupação. Esta teoria não abarca, portanto, milhares de casos em que os povos indígenas já haviam sido expulsos e não haviam ajuizado ações na justiça por quaisquer razões. Nos últimos anos o Poder Judiciário vem barrando a demarcação de terras indígenas com base nesta teoria, a exemplo das Terras Indígenas Limão Verde, Panambi-Lagoa Rica e Guyraroka, todas no estado do Mato Grosso do Sul.

Em paralelo a tais entraves, o presidente Michel Temer apresentou ao Congresso Nacional a menor proposta de orçamento para a Funai dos últimos 10 anos, com o teto de R$ 110 milhões para despesas discricionárias da instituição. Há nove anos havia sido aprovado um valor de R$ 120,4. Como destacou o Secretário Executivo do Cimi, Cleber Buzatto, se levarmos em consideração a inflação acumulada do período, estamos falando de 60,88% de perda orçamentária. Em 2013 o orçamento aprovado foi de R$ 194 milhões.

O que se via no Brasil até o início deste ano é que, mesmo com investimentos em programas sociais e com maior orçamento para ações que mantêm estreita conexão com os direitos humanos, tal como o direito à alimentação e à nutrição adequada, os povos indígenas estavam sofrendo graves violações de todos os seus direitos. Sendo assim, a atual proposta de corte no orçamento da FUNAI, sem que haja qualquer justificativa devidamente fundamentada, já é em si um grave retrocesso que viola direitos humanos e representa o absoluto desrespeito aos compromissos internacionais e nacionais assumidos pelo Estado brasileiro.

No Direito Internacional, por exemplo, o Princípio da Vedação do Retrocesso Social proíbe que se retroaja em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais sem que haja graves razões que justifiquem tal retrocesso. Esta tem sido a interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversos casos já analisados. Em sentido semelhante, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos indicourecentemente que cortes anunciados pelo governo de Temer em programas sociais podem configurar infração ao Protocolo de San Salvador.

Ressalta-se assim, portanto, a importância de uma abordagem de direitos humanos nas lutas sociais, inclusive indígenas. Historicamente, tais lutas têm provocado o reconhecimento de direitos em instrumentos legais. Contudo, esse reconhecimento pode e deve retroalimentar essas mesmas lutas, em um ciclo contra hegemônico de construção e exigibilidade de direitos humanos que permitam a todos e todas uma vida digna em sociedades mais justas e igualitárias.

Flávia Quirino é jornalista

Lucas Prates é assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil

Valéria Burity é advogada e Secretária Geral da FIAN Brasil

Publicado, originalmente, no Brasil de Fato.

Crédito foto:  Marcelo Camargo/ Agência Brasil

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