“Eu acredito e persigo a liberdade, a justiça, a equidade e a igualdade. Acredito em direitos humanos, em deveres e direitos iguais para todos.” Makota Valdina

No início deste ano, a lei 14.519 instituiu o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, a ser celebrado neste 21 de março.

Para a FIAN Brasil, além de referendar os povos originários provindos do continente africano, a data traz reflexões acerca do racismo estrutural no Brasil, determinante de violações aos direitos humanos e, portanto, da ainda persistente discriminação de raça, classe e gênero.

O racismo é um processo histórico e político na sociedade. Constrói relações que garantem privilégios a determinados grupos, em detrimento dos direitos e, muitas vezes, de condições mínimas para a sobrevivência de pessoas negras. Isso acontece porque nossas estruturas são racistas e porque o racismo está presente na subjetividade da sociedade brasileira, assim como na economia e no direito.

Em entrevista à TVE Bahia (2013), uma das principais ativistas contra o racismo e a intolerância religiosa no Brasil, a educadora e mestra de saberes Makota Valdina disse que a sociedade precisa admitir que é racista para que se desconstrua o racismo.

“Infelizmente nós ainda temos que lutar contra o racismo aqui [no Brasil] onde somos maioria. Temos que lutar por cotas, mesmo depois da lei de cotas. O racismo está por trás disso, a intolerância está aí e não é uma questão só do negro, é de toda a sociedade. Todo ser humano tem que se comprometer em extirpar o racismo da sociedade”, disse.

Para Makota Valdina, que morreu em março de 2019 aos 65 anos, “ser uma mulher negra no Brasil é desafio, porque temos que lutar para manter o lugar que sempre foi nosso. As mães sempre tiveram um papel preponderante.”

Essa realidade tem impacto direto e muito contundente sobre o processo alimentar da população negra no país, em que as pessoas mais pobres são negras e as pessoas mais afetadas pelo desemprego são mulheres negras.

Segundo o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (2022), muitos lares comandados por pessoas pretas ou pardas convivem com restrição de alimentos em qualquer nível. Em 18,1% deles, elas passam fome. No início de 2022, a insegurança alimentar esteve presente em 65% dos lares com responsáveis de raça/cor preta ou parda. Quando a mulher negra é a pessoa de referência da casa, os índices de insegurança alimentar são sempre maiores.

Porém, importante manter por perto a sabedoria ancestral de Makota Valdina: “Começamos realmente a ter espaço. Ainda tem muito por que lutar, o que desconstruir e o que conseguimos nos apropriar. E uma dessas conquistas fundamentais, e que não podemos nos esquecer, é o poder de fala. Não dá para voltar atrás nunca mais. Essa conquista ninguém vai nos tirar.”

FIAN Brasil com informações do Informe Dhana, do II VIGISAN e de entrevista de Makota Valdina concedida à TVE Bahia em 2013. Foto de Ubirajara Machado/Arq. FIAN Brasil

Dia da Consciência Negra: o racismo estrutural como causa de violações ao Dhana

Estar livre da fome e comer bem é um direito de todas as pessoas, mas, no Brasil, a população negra ainda enfrenta o racismo estrutural como causa de violações ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana).

Hoje, praticamente metade da população brasileira (112 milhões de pessoas) convive com a insegurança alimentar. Entre domicílios em que a pessoa responsável é negra, essa parcela é ainda maior: 67,8% entre pessoas pardas e 66,8% entre pretas, chegando a 73,8% quando a responsável é mulher.

No nosso país, as pessoas mais pobres são negras e as pessoas mais afetadas pelo desemprego são mulheres negras, como observamos no Informe Dhana 2021: pandemia, desigualdade e fome:

O desemprego, que já vinha subindo desde 2015, chegou a 14,7% no 1º trimestre de 2021 e atingiu o recorde de 14,8 milhões de brasileiros. É a maior taxa e o maior contingente de desocupados já registrado pela série histórica do IBGE, iniciada em 2012. […] Vale destacar que, com relação à taxa de desemprego, entre as mulheres negras, o crescimento foi de 17,3% para 21,4% entre o primeiro trimestre de 2020 e o de 2021. Enquanto entre homens brancos a taxa cresceu menos, de 8,4% para 10%, o que mostra que o desemprego e seus efeitos são maiores entre as mulheres e a população negra.

Mesmo assim, a ação governamental vai na direção oposta à solução. Políticas públicas essenciais para a garantia da alimentação e da renda dessa população seguem sendo desmontadas, como o Bolsa Família, substituído por um programa sem estrutura definida e sem sustentabilidade orçamentária. As demais políticas federais que geravam alimento e renda foram extintas ou completamente desidratadas.

Enquanto isso, nas periferias das cidades, onde a maioria da população é negra, a escolha do alimento não é uma opção. Produtos ultraprocessados, que não alimentam de verdade, são alternativas incontornáveis quando a inflação de alimentos dispara. No campo, o desmatamento e a grilagem de terras em territórios tradicionais violam o acesso aos alimentos. A vegetação nativa e a roça do pequeno agricultor foram destruídas para plantação de grandes monoculturas e para a transformação do alimento em commodity. Essa desigualdade também está expressa na estrutura fundiária brasileira:

Segundo os dados do IBGE, cerca de 47,9% dos estabelecimentos agropecuários tinham produtores autodeclarados brancos, proporção maior do que a dos estabelecimentos com produtores autodeclarados pardos (42,6%), pretos (7,8%), indígenas (0,8%) e amarelos (0,6%). Nos estabelecimentos com mais de 500 ha, 72,2% dos produtores proprietários são brancos, 23,9% são pardos, 2,5% são pretos, 0,4% são indígenas e 0,06% são amarelos. Ou seja, quanto maior a área dos estabelecimentos, maior a predominância dos produtores autodeclarados brancos.

A pandemia de Covid-19 também pesa mais forte sobre a população negra, que conta com menos saneamento básico nas periferias, que foi a parcela que mais necessitou do auxílio emergencial e a quem, junto com os povos indígenas, foi inicialmente negada a garantia dos direitos à saúde, à alimentação e à água nos vetos presidenciais ao projeto de lei 1.142/2021 (posteriormente derrubados parcialmente pelo Congresso). Mesmo frente a essas adversidades, brotou a solidariedade:

A volta da fome e o contexto de crise sanitária reativaram uma enorme rede de solidariedade e repercutiram nas doações filantrópicas durante a pandemia. A Ação da Cidadania, por exemplo, fundada nos anos 1990 por Herbert de Souza, o Betinho, distribuiu 8 mil toneladas de alimentos durante a pandemia . Já a iniciativa Se tem gente com fome, dá de comer! , organizada pela Coalizão Negra por Direitos e pela Anistia Internacional, além de outras organizações da sociedade civil, já arrecadou mais de 18 milhões de reais.

Por isso, no Dia da Consciência Negra, afirmamos que é preciso compreender de que maneira o sistema alimentar e o sistema econômico contribuem para a manutenção das iniquidades, para assim construir alternativas fundamentadas na justiça social, no respeito às diferenças e na garantia de direitos humanos. Desconstruir o racismo estrutural nos sistemas alimentares é um passo fundamental para, de fato, alimentar a vida.

Acesse o resumo executivo do Informe Dhana, que lançaremos em 10 de dezembro.