Guarani e Kaiowá exigem demarcação de suas terras e revogação da Portaria 80 do Ministério da Justiça

Em documento produzido ao final da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, os indígenas exigem a demarcação de suas terras tradicionais no Mato Grosso do Sul e a revogação da Portaria 80, publicada pelo Ministério da Justiça em janeiro, que criou uma nova instância para analisar os relatórios de identificação e delimitação de terras indígenas produzidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

O novo presidente da Funai, Antônio Costa, compareceu ao encontro, realizado entre os dias 8 e 10 de fevereiro no tekoha – lugar onde se é – Guaiviry, uma área de retomada onde, em 2011, o cacique Nísio Gomes foi assassinado a mando de fazendeiros.

Na assembleia, os Guarani e Kaiowá fizeram um grande círculo ao redor de Costa, com idosos e crianças à frente. Com severidade, apontaram ao novo presidente do órgão: “são estas as pessoas que estão sendo mortas enquanto a Funai não demarca as terras indígenas”.

“O Governo Brasileiro nos obriga a autodemarcar nossas terras, uma vez que sua convivência com setores e políticos do Agronegócio não o permite. Então este mesmo Governo é o responsável pelo sangue, que estamos dispostos a derramar em defesa de nossos direitos!”, afirma o documento final da Aty Guasu.

Os indígenas cobraram do presidente uma resposta, especialmente, sobre as áreas que estão em processo de identificação por Grupos de Trabalho (GTs) e sobre quatro terras que, com relatórios já publicados, estão com seu processo administrativo emperrado pela negligência do órgão indigenista: são as Terras Indígenas (TIs) Ypo’i-Triunfo, Dourados-Amambaipeguá I, Iguatemipegua I e Lagoa Rica/Panambi – no caso das duas últimas, o atraso já supera os três anos.

Os indígenas também cobraram da Funai o cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado com o Ministério Público Federal (MPF) em 2007, que determinava que diversos tekoha tivessem seus estudos concluídos até 2010. A cada dia sem demarcar as terras Guarani e Kaiowá, a Funai acumula R$ 1000 de multa.

Como resposta, o presidente Antônio Costa afirmou que ainda está se inteirando dos processos da Funai e garantiu que, em 20 dias, retornará ao Mato Grosso do Sul com uma equipe técnica, para organizar um grupo de trabalho voltado a resolver os problemas da região marcada pela violência contra os indígenas.

O documento da Aty Guasu também marca a posição dos indígenas em repúdio à Portaria 80, que cria um Grupo Técnico Especializado (GTE) no Ministério da Justiça – na prática, uma instância política que servirá para rever os relatórios da Funai e retardar ou inviabilizar os procedimentos demarcatórios. Esta é a segunda portaria publicada pelo ministro Alexandre de Moraes – cuja indicação para preencher a vaga de Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal (STF) também não é aceita pelos Guarani e Kaiowá. A primeira, de número 68, trazia uma série de elementos explicitamente contrários aos direitos indígenas e foi revogada após fortes críticas de indígenas e indigenistas.

“Repudiamos a Portaria 80 do Ministério da Justiça que na prática tenta criar um mecanismo de impedimento das demarcações, camuflando as mentiras do chamado marco temporal e subjugando nossas terras aos interesses do Agronegócio. Exigimos sua imediata revogação por parte do Ministro da Justiça e Cidadania”, afirma o documento.
A Aty Guasu ainda prega a unidade entre os povos indígenas na luta por seus territórios e repudia o Fórum de Caciques, criado, segundo o documento, por deputados ruralistas com o “o objetivo de cooptar lideranças através de promessas e mentiras”.

“As lideranças da Aty Guasu reunidas em Guayviry, repudiam a criação deste Fórum cujo objetivo é tentar dividir o movimento indígena em especial Terena. Não o reconhecemos como legítimos e não o autorizamos a utilizar em suas publicações nas redes sociais o nome da Aty Guasu Guarani e Kaiowá”, prossegue o documento.

Frente à morosidade do governo para dar andamento às demarcações, o comunicado avisa que “a Aty Guasu seguirá autodemarcando seus territórios através de retomadas”.

Leia o documento completo da Aty Guasu ou clique aqui para ler a versão em pdf:

ATY GUASU GUARANI E KAIOWÁ
Tekoha Guayviry 8 a 10 de fevereiro de 2017

Nós, lideranças da Aty Guasu Guarani e Kaiowá, reunidos em Guayviry terra indígena de Nizio Gomes, Nhanderú assassinado por fazendeiros em 2011, por ocasião da visita do Presidente da Funai, queremos comunicar nossas decisões e exigências, junto à diversas autoridades competentes, tanto no Brasil quanto no exterior.

Poder Executivo
Recebemos o Presidente da Funai, mais uma vez, em terras Guarani e Kaiowá, que é símbolo de nossa resistência, banhada com o suor e o sangue do nosso povo. Guayviry, carrega as marcas da omissão do Estado Brasileiro e a ação das milícias armadas de fazendeiros. Resiste fortemente a todo tipo de violência e nos une na esperança de nossas crianças guerreiras.

Assim, queremos exigir do Poder Executivo Brasileiro cumpra com sua obrigação constitucional e demarque nossas terras.

A Funai deve publicar todos os relatórios de identificação dos GTs Guarani e Kaiowá que estão parados há anos. Em última reunião com o atual Presidente da Funai deixamos claro os prazos que aceitamos aguardar, no entanto até agora nada foi feito.

O Governo Brasileiro nos obriga a autodemarcar nossas terras, uma vez que sua convivência com setores e políticos do Agronegócio não o permite. Então este mesmo Governo é o responsável pelo sangue, que estamos dispostos a derramar em defesa de nossos direitos!

Repudiamos a Portaria 80 do Ministério da Justiça que na prática tenta criar um mecanismo de impedimento das demarcações, camuflando as mentiras do chamado marco temporal e subjugando nossas terras aos interesses do Agronegócio. Exigimos sua imediata revogação por parte do Ministro da Justiça e Cidadania.

Poder Judiciário
Não aceitamos a indicação, por parte do Presidente Temer, de Alexandre de Morais para uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Suas ações, como Ministro da Justiça, atestam contra suas capacidades, além de ter demonstrado um desleixo com seu dever frente aos direitos dos povos indígenas.

Queremos celeridade nos julgamentos dos processos judiciais que envolvam a demarcação de nossas terras. Nosso povo não aguenta mais esperar 10, 20 anos por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. A demora, tem provocado morte, ataques e o despejo violento.

Não podemos mais aceitar a dor do despejo de nossas terras tradicionais e sagradas, por isso, repudiamos qualquer interpretação jurídica de “Marco temporal”. Nossos direitos são originários e o Estado Brasileiro deve respeitar este reconhecimento, contido na Constituição.

Poder Legislativo
Avisamos ao senhores deputados e Senadores que estamos prontos para resistir, em Brasilia, a qualquer avanço das iniciativas anti-leis que violam nossos direitos. Não vamos aceitar a PEC 215 e tantas outras, que na surdina tentam destruir as conquistas históricas dos povos indígenas.

A CPI contra a Funai é uma farsa comandada por ruralistas racistas que em nada defendem os direitos indígenas. Não nos enganam e não vamos aceitar o desmonte das funções legais da Funai, muito menos a criminalização do movimento indígena, das lideranças e de nossos aliados.

Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Gostaríamos de solicitar a Comissão Interamericana que aceite a denúncia que a Aty Guasu fez ano passado contra o Estado Brasileiro. Ela representa esperança de justiça para nossas comunidades e lideranças que foram assassinadas e que até hoje seus assassinos andam soltos e plantando em nossas terras.

Queremos também convidar o Sr. Francisco José Eguiguren Praeli, relator sobre os direitos dos Povos Indígenas, para nos visitar, assim como outros povos indígenas no Brasil e assim, conhecer com seus próprios olhos as muitas situações de violência contra os povos indígenas do Brasil.

Nações Unidas
Está preste a completar 1 ano que a relatora das Nações Unidas para os Direitos dos Povos indígenas esteve em nossas terras. Seu relatório fez outros governos e organismos da ONU conhecer nosso sofrimento e a omissão do Estado Brasileiro diante do dever de nos proteger e respeitar nossos direitos.

Queremos alertar a relatora para todas estas iniciativas antindigena que estão ocorrendo no Brasil. Não sabemos até onde isto tudo irá nos levar, mas queremos que saiba que estamos dispostos a ir até as últimas consequências. Precisamos da Sra. Para alertar os diversos governos de que o Brasil e seu agronegócio nos assassina e impede de viver nosso jeito próprio de vida.

Parlamento Europeu
Com esperança e agradecimentos, nós lideranças da Aty Guasu recebemos a resolução de urgência que o Parlamento emitiu em virtude do aumento das violências contra os povos indígenas e a situação desumana de nossas comunidades.

Agradecemos a visita dos parlamentares que puderam também sentir a dor do nosso povo e as consequências da omissão brasileira. Queremos cobrar os compromissos assumidos e também saber as respostas dos organismos e instâncias que receberam recomendações.

A Europa precisa saber que a soja, carne, milho do Mato Grosso do Sul tem sangue indígena. E por isso, queremos que as decisões sobre o boicote, as condicionantes nos acordos comerciais e os alertas para a sociedade europeia sejam cumpridos.

Coordenações locais da Funai
A Aty Guasu foi informada da intenção do Governo de unificar as coordenações da Funai de Campo Grande, Dourados e Ponta Porã.

Repudiamos este retrocesso e não vamos aceitá-lo.

As coordenações refletem as necessidades do Estado que possui a segunda maior população indígena do Brasil.

Exigimos sim, a manutenção organizativa e que estas coordenações sejam dadas melhores condições de trabalho, pessoal e recursos.

Agradecemos os trabalhos que Vander desenvolveu ao longo dos anos que esteve à frente da coordenação de Dourados. Também a Aty Guasu decidiu apoiar a permanência como Coordenador de Dourados o Sr. José Vitor. Por isso, não aceitaremos qualquer nomeação, por motivação político partidário estadual.

DSEI – MS
Reunidos na Terra Indígena de Jaguapiré, a Aty Guasu em acordo com parentes de outros povos, decidiu indicar a liderança Kaiowá Daniel Leme Vasque para a coordenação do DSEI em Campo Grande, uma vez que até o momento nenhum Guarani e Kaiowá ocupou esta função.

Queremos reafirmar esta nomeação novamente e que o Secretário Especial de Saúde Indígena, tome as devidas providências.

O chamado “Fórum” dos Caciques
Também na reunião de Jaguapiré, a Aty Guasu foi informada que deputados ruralistas do estado e federal criaram um Fórum de caciques com o objetivo de cooptar lideranças através de promessas e mentiras. Também que este mesmo Fórum, apesar de envolver mais pessoas do Povo Terena, tem utilizado o nome da Aty Guasu para tentar legitimar suas ações enganosas.

Por unanimidade, assim como em Jaguapiré, as lideranças da Aty Guasu reunidas em Guayviry, repudiam a criação deste Fórum cujo objetivo é tentar dividir o movimento indígena em especial Terena. Não o reconhecemos como legítimos e não o autorizamos a utilizar em suas publicações nas redes sociais o nome da Aty Guasu Guarani e Kaiowá.

Reconhecemos como único movimento indígena do povo Terena o seu Conselho, fundado com a participação de lideranças da Aty Guasu e que, assim como a Aty Guasu, é vinculado à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB.

Pedimos aos parentes Terenas e demais parentes de outros povos que não se enganem com promessas e análises falsas e integracionistas. Prezem pelo bem do povo e a unidade das nossas comunidades e lideranças. É o momento de nos unir, mais do que nunca, entorno das nossas rodas em defesa de nossos direitos, de nossas terras e principalmente modo de vida. Não podemos aceitar benefícios pessoais e particulares. Se há problemas de divergência interna, ela deve ser resolvida entre nós indígenas e não permitindo a deputados ruralista decidam o que é organização indígena. Eles nunca serão como nós, eles só pensam em seus bolsos e interesses.

É a vida de nosso povo e o nosso jeito de ser e se organizar que está em risco!

Conclamamos à União!

A Aty Guasu seguirá autodemarcando de seus territórios através de retomadas. Patrícios e parentes de todo Brasil, precisamos nos unir para enfrentar os inimigos de nossos povos.
Continuemos em retomadas, por nossas Vidas, nossos Direitos!

Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Rumo à Realização Plena do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas – Flávio Valente

Artigo de Flávio Valente, originalmente publicado em inglês na Revista Development 57 (2), p. 155-170, dezembro de 2014. Traduzido para o português em maio de 2016 para a FIAN Brasil.

RESUMO Este artigo descreve a evolução conceitual do direito à alimentação rumo à sua atual denominação como direito humano à alimentação e à nutrição adequadas em um contexto mais amplo da indivisibilidade dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e da soberania alimentar. O artigo também explora os desafios e as oportunidades oferecidos pela Segunda Conferência Internacional sobre Nutrição (ICN2) e descreve os fundamentos políticos do engajamento da sociedade civil na preparação da conferência e nas ações planejadas subsequentes a ela.

PALAVRAS-CHAVE: direito à alimentação; direitos humanos; nutrição; sistemas alimentares; ICN2, Comitê de Segurança Alimentar.

O objetivo final do direito à alimentação adequada é atingir o bem-estar nutricional. O bem-estar nutricional depende de medidas paralelas nos campos da educação, da saúde e do cuidado. Nesse sentido mais amplo, o direito à alimentação adequada deve ser compreendido como o direito à alimentação e à nutrição adequadas. (FIAN Internacional, 1997)

Leia o artigo na íntegra AQUI

HEKS-EPER Brasil abre editais para preenchimento de vagas

A HEKS/EPER, Agência de Cooperação Internacional, com sede na cidade de Zurique, com escritório de representação no Brasil onde apoia projetos com ações e iniciativas que promovem o desenvolvimento de comunidades rurais e a transformação de conflitos com a promoção da cultura da paz, torna pública a realização de processo de seleção simplificado para contratação de Oficial de Projetos para o tema “Transformação de conflitos e direitos humanos” e de Secretária. As pessoas interessadas devem encaminhar currículo até o dia 28 de fevereiro.

Confira os editais:

Edital para contratação de Oficial de Projetos para o tema “Transformação de conflitos e direitos humanos”  AQUI.

Edital para contratação de Secretária AQUI.

Nota Pública do CNDH sobre o emprego das Forças Armadas no Sistema Prisional

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), órgão de Estado criado pela Lei Nº 12.986/2014, vem a público manifestar sua discordância em relação ao emprego das Forças Armadas em unidades prisionais do País, conforme previsto no Decreto Presidencial Nº 17, de 17 de janeiro de 2017:

Art. 1º Fica autorizado o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, nos termos deste Decreto.

Art. 2º As Forças Armadas executarão essa atividade nas dependências de todos os estabelecimentos prisionais brasileiros para a detecção de armas, aparelhos de telefonia móvel, drogas e outros materiais ilícitos ou proibidos.

§ 1º O emprego das Forças Armadas, nos termos do caput, observado o princípio federativo, dependerá de anuência do Governador do Estado ou do Distrito Federal e será realizado em articulação com as forças de segurança pública competentes e com o apoio de agentes penitenciários do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça e Cidadania. 

§ 2º O Ministro de Estado da Defesa editará normas complementares para dispor sobre o emprego das Forças Armadas a que se refere este Decreto.

Art. 3º A autorização a que se refere o caput do art. 2º fica concedida pelo prazo de doze meses. 

Art. 4º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação 

Além de desvirtuamento da função constitucional das Forças Armadas, a medida não responderá aos enormes e complexos desafios do sistema prisional brasileiro – marcado pela superlotação carcerária e pelo descumprimento de patamares minimamente dignos para o cumprimento das penas, da segurança aos próprios presos, de seus visitantes e dos trabalhadores do sistema. A explosão de violência no sistema carcerário – expressada nos recentes episódios ocorridos em presídios do Amazonas, de Roraima e do Rio Grande do Norte, que resultaram em mais de 130 mortes – tem relação direta com o encarceramento em larga escala com a omissão do Estado brasileiro no desenvolvimento de uma política criminal em consonância com parâmetros nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos.

Trata-se, portanto, de fenômeno estrutural, e não episódico, donde não caber o chamamento das Forças Armadas para a defesa da lei e da ordem.

De resto, a atuação de membros das Forças Armadas em presídios é medida que poderá resultar em mais violações a direitos, considerando que essas tropas são treinadas para situações específicas, baseadas na lógica da guerra. Não por acaso, possuem legislação própria.

Espera-se do Estado brasileiro coragem e capacidade para verdadeiramente enfrentar os mecanismos que contribuem para a grave situação dos estabelecimentos penais no País.

Brasília-DF, 03 de fevereiro de 2017.

CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS – CNDH

Fonte: SDH

Conselho Nacional dos Direitos Humanos elege novo presidente

Darci Frigo, representante da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Plataforma Dhesca Brasil) é o novo presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH). Frigo é advogado e coordenador da organização de direitos humanos Terra de Direitos. Ele foi eleito na manhã desta quinta-feira (2) na 24ª reunião ordinária do Conselho, em Brasília.

“O Conselho vai se debruçar sobre graves questões que estão postas, que foram apresentadas no Congresso Nacional como reformas e que vão retirar direitos de trabalhadores, sejam trabalhistas ou previdenciários. Isso preocupa hoje o conjunto da população brasileira, vai ser motivo de grandes mobilizações sociais e o Conselho não pode se ausentar desse debate”, declara Frigo.

O novo presidente do CNDH enfatizou ainda que o Conselho atua, ou pelas demandas que recebe, ou pelas projeções que as comissões permanentes fazem sobre determinados temas. “As comissões, que já são de blocos temáticos, deverão se preocupar com temas transversais como temas de gênero, de raça, o tema de empresas e violações dos direitos humanos e outras questões que estão colocadas no âmbito da conjuntura, como a violência nos presídios, que é um sintoma da grave situação que o país vive hoje.”

No encontro, que contou com a presença da secretária Flávia Piovesan e de representantes da sociedade civil e do poder público que compõem o colegiado, também foi eleita a vice-presidente do CNDH, Fabiana Severo.

Fabiana Galera Severo é defensora pública federal do 3º Ofício de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União (DPU), em São Paulo. Atualmente exerce a função de Defensora Regional de Direitos Humanos de Direitos Humanos e representa a Defensoria Pública da União no Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Mestranda pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com pesquisa sobre o trabalho escravo contemporâneo, representa ainda a DPU na Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo, de São Paulo.

A pauta da reunião contemplou também a aprovação do Relatório sobre o Sistema Sócio Educativo de Pernambuco, com o resultado da Missão Emergencial que aconteceu nos dias 24 e 25 de novembro de 2016, e do Relatório sobre a População atingida pela implementação da UHE Belo Monte e pelo projeto de instalação da mineradora Belo Sun, resultado da Missão que ocorreu entre os dias 9 e 12 de outubro de 2016 na região de Altamira, sudoeste do Pará.

Nova composição da Mesa Diretora para o mandato 2016-2018

Presidente: Darci Frigo – Plataforma Dhesca Brasil

Vice-presidente: Fabiana Severo – Defensoria Pública da União

Deborah Duprat – Ministério Público Federal

Flávia Piovesan – Secretaria Especial de Direitos Humanos

Leonardo Pinho – Unisol Brasil

Sandra Carvalho – Justiça Global

Fonte: Ascom CNDH

Terra tradicionalmente ocupada, Direito originário e a inconstitucionalidade do Marco Temporal

Adelar Cupsinski1
Alessandra Farias Pereira2
Rafael Modesto dos Santos3
Íris Pereira Guedes4
Roberto Antônio Liebgott5

Resumo: O presente artigo tem como objetivo abordar alguns dos aspectos acerca da demarcação de terras indígenas no Brasil, em especial, o entendimento e aplicação do denominado “marco temporal” pelos tribunais, como condicionante para determinar a tradicionalidade, ou não, destas terras. Da mesma forma, serão analisados os possíveis avanços dos direitos indigenistas após a promulgação da Constituição Federal brasileira de 1988. Este estudo se justifica na medida em que se percebe que mesmo diante da existência de um arcabouço jurídico de proteção e promoção dos direitos dos indígenas (no âmbito nacional e internacional) o Estado brasileiro não tem conseguido atuar de forma significativa para alterar a realidade de muitas destas comunidades. Ao contrário, notam-se processos sistemáticos que visam o retrocesso destes direitos, nas mais diversas esferas da sociedade. Portanto, este estudo pretende demonstrar que este tipo de fenômeno pode-se apresentar também através de novas interpretações e entendimentos na aplicação do direito, acarretando em decisões judiciárias sem respaldo constitucional e violadoras de direitos e garantias fundamentais e coletivos. O método de pesquisa utilizado foi o hipotético-dedutivo, com técnicas de pesquisa documental, bibliográfica, jurisprudencial e análise de sítios eletrônicos de forma qualitativa.

Caso prefira, clique aqui para acessar o artigo em pdf.

I – Introdução

Neste artigo propomos uma análise do que vem sendo denominado, no âmbito do Poder Judiciário, de “marco temporal”. Trata-se de uma interpretação que restringe o alcance do direito à demarcação das terras indígenas, já que vincula este direito à presença física das comunidades e povos indígenas na terra ao período de 05 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal do país.

Neste sentido, o estudo tem como objetivo apresentar uma reflexão crítica a esta orientação interpretativa dos direitos constitucionais dos povos indígenas que, na prática, trazem insegurança jurídica para estas populações no Brasil. Entende-se que o limite constitucional às demarcações, expresso no estabelecimento de um marco temporal, relaciona-se ao emprego do instituto civilista da posse em contraponto ao usufruto e posse imemorial indígena.

Especialistas do Direito e da Antropologia, assim como as próprias comunidades indígenas, alertam para o perigo de retrocesso dos direitos reconhecidos, já que o uso do marco temporal como condicionante na demarcação de terras, se aplicado pelos tribunais, afrontarão o disposto nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, assim como, Tratados e Convenções Internacionais a respeito.

Portanto o presente artigo será dividido em dois capítulos de desenvolvimento textual, sendo o primeiro destinado à análise do texto constitucional, buscando aclarar ao leitor os avanços das garantias e direitos fundamentais conquistados após 1988, para então, no segundo capítulo, abordar os entendimentos e possíveis retrocessos decorrentes da aplicação do marco temporal nas decisões sobre demarcação das terras indígenas pelos tribunais brasileiros.

O método de pesquisa empregado foi o hipotético-dedutivo e o de revisão bibliográfica, portanto, parte-se da hipótese de que existem controvérsias acerca das novas interpretações e do uso do entendimento do marco temporal pelos tribunais brasileiros, para por fim, após a análise das bibliografias e material doutrinário, verificar a possibilidade de dedução de que tal entendimento não possuí base constitucional, afrontando diretamente o disposto nos artigos 231 e 232 e demais direitos e garantias fundamentais dispostos na Constituição Federal Brasileira de 1988. As técnicas de pesquisa foram a jurisprudencial, documental, bibliográfica e análise de sítios eletrônicos, com análise de dados de forma qualitativa.

II- Os Direitos Consagrados na Constituição Federal

Com a promulgação da Constituição Federal em 1988 (CF), rompe-se a perspectiva da política estatal da aculturação, que tinha como premissa a integração indígena à comunhão nacional. Com isto, passou-se a reconhecer o direito à diferença aos povos indígenas suas organizações sociais, seus usos, costumes, crenças, tradições, línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. O reconhecimento destes direitos no texto constitucional consolida garantias individuais e coletivas de todos os povos, base essencial de qualquer direito humano.

O Capítulo VIII da Constituição, intitulado “Dos Índios”, em seus artigos 231 e 232  explicitam o reconhecimento à identidade cultural própria e diferenciada dos povos indígenas, bem como, os seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Nota-se que, em que pese tais direitos não estejam dispostos no rol dos direitos e garantias fundamentais, os mesmos são compreendidos como tais, portanto, de aplicação imediata.

De acordo com o Artigo 231:

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar, e as necessárias à sua reprodução física cultural, segundo seus usos, costumes e tradições6.

O texto constitucional determina que o Estado brasileiro deve promover a demarcação das terras, reconhecendo os direitos originários e imprescritíveis dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e lagos das áreas caracterizadas como sendo de ocupação tradicional. Há, além disso, a obrigação da União em proteger, fiscalizar e fazer respeitar todos os bens, inclusive os imateriais, tais como as culturas, costumes, crenças e tradições de cada povo.

Para além das especificidades no que tange ao modo de ser de cada povo e de seus vínculos e concepções com a territorialidade, o artigo 232 consagra o entendimento de que os povos indígenas são donos de seu futuro,  assegurando-lhes a possibilidade de exercitarem a cidadania desvinculada da tutela estatal. Afirma-se que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público Federal em todos os atos do processo”.

Tal dispositivo configura-se em importante ferramenta de luta para os povos indígenas, uma vez que suas comunidades passam a ser consideradas entes com personalidade jurídica (não necessitando, para isso, obter registros e estatutos específicos), dispensando inclusive a intermediação (tutela) de órgãos indigenistas em ações ajuizadas de seu interesse ou da comunidade.

É necessário fazer referência também ao que determina o Artigo 20, XI, da Constituição. Nele fica estabelecido que as terras tradicionais indígenas são bens da União e, portanto, a propriedade não é indígena. Essa norma protege não somente a ocupação física da terra, mas também o direito à ocupação tradicional. Se extrai deste conteúdo, combinado com o artigo 231, que o uso da terra não se restringe aos aspectos econômicos e sociais, pois projetam uma expectativa futura, onde os povos tenham condições de se expressarem (social, política e economicamente) a partir das suas diferenças étnicas. E é obrigação do Estado assegurar-lhes proteção às áreas ambientais, os espaços sagrados e aqueles de caráter simbólico, tendo como referência o futuro do povo.

O direito à posse da terra é explicitado como direito originário, portanto não depende de titulação e precede os demais direitos (Art. 231, caput). Por isso que o parágrafo 6º deste artigo expressamente estabelece que os títulos que incidem sobre uma terra indígena são declarados nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos.

São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé7.

De acordo com notícia veiculada pelo Superior Tribunal de Justiça em 19 de abril de 20168, estão catalogadas atualmente aproximadamente 115 decisões colegiadas sobre processos envolvendo as demarcações de terras indígenas no órgão. Em suma, foram analisadas diretamente as decisões concedidas nos Recurso Especial (REsp) 1133648, REsp 1551033, na Medida Cautelar (MC) 25148, Mandado de Segurança (MS) 21572, MS 14987 e MS 158229 que abrangem análises do parágrafo 6º do artigo 231. Nas decisões abordadas, o entendimento é o de garantir os direitos dos povos indígenas às demarcações de terras,  posse e ao seu usufruto exclusivo. O STJ dá essa garantia sem nenhum tipo de vínculo interpretativo que tenha por objetivo limitar seu alcance e abrangência. Reforça, além disso, o entendimento de que todo e qualquer título de propriedade que incida sobre as áreas indígenas são efetivamente nulos, mesmo aqueles considerados de boa-fé. Também reconhece que é dever da União, através de seu ente indigenista, proceder aos estudos administrativos de demarcação, através das regras estabelecidas pelo Decreto número 1775 de 1996.

O STJ segue, neste caminho de reconhecimento dos direitos indígenas, afirmando que as terras habitadas por estes são inalienáveis – o que significa dizer que o seu domínio não pode ser transferido a outro – bem como indisponíveis, portanto ninguém pode dispor desse direito independentemente das finalidades ou interesses.

Consolida-se assim o conceito fundamental de que os direitos dos Povos Indígenas sobre as terras são originários, anteriores inclusive as normas estabelecidas e que estes são imprescritíveis, ou seja, não prescrevem com o passar do tempo (Art. 231, § 4º). E, neste sentido, destaca-se o fato de que os povos indígenas não podem ser removidos de suas terras em função de interesses outros – incluem-se os econômicos, políticos, ambientais – que não sejam em casos de catástrofe, epidemia e ou de interesse da soberania do país, com o referendo do Congresso Nacional, garantindo, em qualquer dos casos supracitados, o retorno imediato da população indígena a sua terra, tão logo cesse o risco (Art. 231, § 5º).

A Corte reforça o entendimento, expresso no parágrafo 2º do artigo 231, de que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam à sua posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas que não se encontram no subsolo. Vale ressaltar, no entanto, que a possibilidade de exploração dos recursos naturais só será permitida em caso de relevante interesse público da União, e esta depende de lei complementar (que ainda não foi aprovada). Em relação às ocupações de boa-fé, o mesmo artigo estabelece que a União deve indenizar as benfeitorias construídas pelos ocupantes – edificações, plantações perenes, por exemplo – mas não há previsão de indenização pela terra (pelas razões constitucionais expressas anteriormente).

No que tange a consolidação dos direitos à terra – sua posse e usufruto – as Disposições Constitucionais Transitórias (Artigo 67)10; determinam que o Estado brasileiro teria o prazo de 5 anos para a conclusão das demarcações das terras indígenas, tendo encerrado em 5 de outubro de 1993. Ainda hoje, no Brasil, existem, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário11, mais de 600 terras indígenas a serem demarcadas.

III – A Inconstitucionalidade do Marco Temporal

Como visto no capítulo anterior, o texto constitucional promove o caráter pluriétnico de sua população, dispondo sobre a proteção e manutenção das tradições culturais dos povos indígenas, a qual está intrinsecamente ligada à permanência em suas terras tradicionalmente ocupadas.

Segundo o acórdão do caso Raposa Serra do Sol (Petição n. 3.388)12, terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são aquelas:

[…] demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas, “segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade.

Significa dizer que terra indígena e posse nativa são conceitos mais amplos que permanência física em certo espaço territorial. Na perspectiva de terra tradicionalmente ocupada por esse ou aquele povo indígena, vale dizer, prevalece toda a área necessária à reprodução física e cultural do povo.

Nesse ínterim, para melhor compreender a extensão do direito originário às terras reconhecidas como de ocupação tradicional, deve-se levar em consideração as especificidades de cada povo que habita um determinado território. Estas especificidades, demonstradas pelo trabalho especializado que constituem os laudos antropológicos, delimitam os lugares de caça e pesca, por exemplo, que podem ser elementos indispensáveis para sua reprodução cultural. Se o povo depende de uma paragem sagrada, um acidente geográfico venerado ou se o seu cemitério se encontra nos limites da área reivindicada, naturalmente aquela área pertence ao território indígena, independentemente da posse.

Neste sentido, não só devem ser consideradas como terras tradicionalmente ocupadas aquelas onde residem os indígenas, como também aquelas necessárias à sua reprodução física e cultural. José Afonso da Silva explica que da Constituição Federal se consegue concluir que sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, incidem os direitos de propriedade e os direitos originários13. O Jurista argumenta que esses direitos são “direitos fundamentais dos índios”, que podem ser classificados na categoria dos “direitos fundamentais de solidariedade”, tal como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado14.

A Constituição desfaz, portanto, o nexo entre o conceito civilista – posse e propriedade – da posse indígena, cujo reconhecimento passou a ser fixado como direito originário ou congênito (nato, natural). Há, portanto, o reconhecimento não apenas da ocupação física das terras habitadas pelos indígenas, mas também da ocupação de toda uma extensão de terras necessárias ao resguardo cultural e à manutenção de práticas econômicas e religiosas de cada povo.

Apesar das garantias, há a necessidade de se assegurar, de modo prático, a aplicação desse direito, tornando-se imprescindível formalizá-lo em procedimentos demarcatórios específicos capazes de determinar qual(is) povo(s) habita(m) determinada área, quais os limites geográficos, considerando aspectos ambientais, arqueológicos, dentre outros. Estes aspectos dizem respeito ao preceito da tradicionalidade que deve ir além de circunstâncias temporais:

A tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições15.

O jurista Dalmo de Abreu Dallari (1991, p. 320) vai mais além, e vincula o direito constitucional ao que estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, pois para ele:

É possível sustentar que os objetivos inspiradores do art. 14 da Convenção nº 169 da OIT são coincidentes com os que deram origem ao art. 231 da Constituição. E os efeitos de ambos são praticamente os mesmos, pois se é verdade que pelo fato de não serem proprietários os índios brasileiros não poderão dispor das terras que tradicionalmente ocupam é igualmente certo que também a União, embora proprietária, não tem o poder de disposição16.

Analisando estes aspectos sobre a tradicionalidade, percebe-se equivocada e violadora dos preceitos constitucionais a imposição do marco temporal, apoiado na data de 05 de outubro de 1988, como data insubstituível e componente necessário para determinar ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.  Neste sentido, de acordo com o parecer de José Afonso da Silva não há previsão constitucional para tal orientação17:

Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data, se ela nada diz a esse respeito nem explícita nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário, se se ler com a devida atenção o caput do art. 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa.

Na sequência, o Supremo Tribunal Federal – STF disse o seguinte, deslocando o marco temporal, incontinenti, do complexo conteúdo do acórdão18:

É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.

Diante disso, não há que falar em aplicação do marco temporal por mais de um motivo: primeiro pela existência do esbulho e da titulação a particulares (nula e extinta, a partir da CF/88) e depois pela ininterrupta ocupação anímica, psíquica e de perdurabilidade para além do lugar de habitação, mas também aqueles necessários à preservação e física (caça, pesca, coleta) e os necessários à reprodução cultural (religião, cemitérios, perambulação, rituais). Significa dizer, sem risco de erros, que o marco temporal, constante em um curto parágrafo no acórdão da Petição 3388/RR, de forma isolada e desproporcional ao arcabouço constitucional do direito indígena, não se sustenta, seja pela incidência do §6º do art. 231 da CF/88, pela posse nativa e anímica, seja pelo esbulho praticado face os povos originários. Diante da afirmativa extraída do art. 231 da CF/88, resta evidente que se haviam títulos sobre terras indígenas, a posse da terra era, em 05 de outubro de 1988, dos não-índios, seja por força de esbulho ou existência de títulos, que passaram a ser nulos e extintos a partir de então.

Significa dizer, ainda, que diante da interpretação sistêmica do direito constitucional indígena, e não apenas de uma palavra que se isola no caput do art. 231 da CF/88 (ocupam), não há que falar em marco temporal, já que o fato de não estar na data da promulgação na posse da terra não significa perda de direito, ante a previsão do §6º do art. 231 e que, independentemente desse fator, o título é nulo e extinto e a posse é originária.

São, portanto, equivocadas as interpretações do Poder Judiciário no tocante ao marco temporal, pois a atual Constituição não limita os direitos ordinários dos povos indígenas às suas terras ao dia 05 de outubro de 198819:

O termo “marco” tem sentido preciso. Em sentido espacial, marca limite territorial. Em sentido temporal, como é o caso, marca limites históricos, ou seja, marca quando se inicia algum fato evolutivo. O documento que marcou o início do reconhecimento jurídico-formal dos direitos dos índios foi a Carta Régia de 30 de junho de 1611, promulgada por Fellipe III, que firmou o princípio de que os índios são senhores de suas terras, “sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstias ou injustiça alguma.

Acerca do instituto do renitente esbulho, o jurista observa que não é correto interpretar, à luz da Constituição Federal, que os conflitos envolvendo terras indígenas tenham um caráter tipicamente possessório na forma caracterizada pelo direito civil. Para o jurista, a ocupação indígena de suas terras não é uma mera posse, pois eles as ocupam com fundamento no indigenato. Para ele, a ocupação é fundada em direitos originários “de sorte que quando o não-índio se apossa dessas terras, ele não retira apenas a posse dos índios sobre elas, mas um conjunto de direitos que integram o conceito de indigenato”20.

O jurista alerta de modo enfático que a interpretação restritiva de esbulho renitente como controvérsia possessória judicializada é absolutamente inaceitável porque21:

A controvérsia não é tipicamente possessória […], ou seja, não é uma disputa individual em que um possuidor retira a posse do outro, pois os direitos ordinários dos índios sobre a terra, como visto no correr deste parecer, não pertence a eles como indivíduos, mas às comunidades indígenas; ademais os índios e as comunidades indígenas antes da Constituição de 1988 não tinham legitimidade processual, pois estavam sujeitas ao regime tutelar.

Ademais, sobre o renitente esbulho, há que se ressaltar, como já observou o nobre jurista, que até 1988 os povos indígenas eram tutelados pelo Estado, portanto não poderiam pleitear seus direitos autonomamente (essa função era da União, através de seus órgãos de assistência). E há que se considerar as frequentes denúncias de que os próprios órgãos de assistência foram responsáveis pelo esbulho e exploração das terras, tendo alguns servidores públicos atuado para coibir e reprimir as comunidades e lideranças indígenas. No mesmo sentido, o Relatório Figueiredo22 traz com nitidez, atrocidades praticadas contra as comunidades indígenas nos anos de 1950 a 1970.

Em síntese, para o autor é na conjugação de conceitos que se subtraem direitos fundamentais e originários dos índios em favor de usurpadores de suas terras. Há, segundo, ele vários absurdos anti-índios nessa configuração do renitente esbulho23:

O primeiro, bastante sutil, é esse modo de exprimir os termos do conceito: renitente esbulho em vez de esbulho renitente, pondo o destaque na qualificadora, para irrogar os ônus sobre a renitência, com o que impõe aos índios esbulhados a obrigação de provar os fatos. O segundo, e grave, é a utilização do conceito de esbulho num contexto que não lhe cabe, como veremos, como se se tratasse de um conflito de posse do direito civil. O terceiro é essa ideia de que o conflito, mesmo iniciado no passado, tem que persistir até o marco temporal; quer dizer, forja-se um marco temporal deslocado para o último elo da cadeia jurídico-constitucional que reconheceu os direitos indígenas, deixando ao desamparo os direitos que as constituições anteriores reconheceram, e daí se exige que os índios sustentem um conflito ao longo do tempo, inclusive na via judicial, para que os seus direitos usurpados sejam restabelecidos. O quarto é essa exigência de que o conflito se materialize, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada, como se se tratasse de uma disputa dentre dois possuidores tutelados pelo direito civil, mas os indígenas não são possuidores nesse sentido. É uma torção semântica calamitosa essa de tratar o indigenato, ou seja, os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam, como se se tratasse de posse do direito civil.

O Supremo Tribunal Federal deixa evidente que a existência do direito indígena originário de posse sobre uma determinada gleba de terra, não está vinculada à presença física da comunidade na área, nos casos em que os indígenas tenham sido expulsos das terras por força de renitente esbulho praticado por não-índios. As demais condicionantes oriundas do caso Raposa Serra do Sol, assim como o marco temporal, foram debatidas e julgadas como sendo decisão vinculada apenas àquela demarcação, portanto não se poderia vinculá-las a outros procedimentos para assim desqualificar o direito de outros povos. Se as condicionantes são generalizadoras, aniquila-se com o que é de mais precioso no direito, sua aplicabilidade.

IV – Conclusão

Diante do exposto, conclui-se que a aplicação do chamado marco temporal não recebe respaldo constitucional, ao contrário representa uma afronta em uma série de direitos e garantias fundamentais, dentre os quais o disposto nos artigos 231 e 232 (CF/88). Ressaltando, que no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, houve entendimento de que as condicionantes que dele decorreram não seriam vinculantes, ou seja, não estenderiam seus efeitos em outros processos envolvendo demarcação de terra indígena.

Da mesma forma em que a figura do renitente esbulho, e a prova de sua existência, demonstram-se no mínimo contraditórios, o que gera insegurança jurídica no caso concreto. Não há consenso doutrinário ou jurisprudencial acerca do seu conceito e requisitos. Esse argumento se fundamenta na concepção de que os conflitos não são tipicamente possessórios como prescreve o direito civil, haja vista que a ocupação das terras pelos povos indígenas não se restringe a posse conceituada no direito civil. Os povos as ocupam com base nos direitos originários, portanto, não se pode utilizar de uma interpretação restritiva acerca do renitente esbulho, como se a controvérsia judicializada fosse uma disputa possessória individual.

Ao exigir a sua comprovação, como prova da tentativa de regresso e interesse por parte da comunidade indígena em ocupar a terra tradicional, o judiciário brasileiro desqualifica e desconsidera uma série de fatos históricos importantes desde o processo de colonização. Desconsidera também, questões básicas que envolvem as diferenças culturais, como a língua, costumes e formas de organização daquelas comunidades. A própria tutela por parte de entes do poder estatal serviu como barreira para que os indígenas pudessem reivindicar seus direitos. Situação comprovadamente agravada no período ditatorial (1964-1985), pois conforme mencionado neste estudo pela menção ao Relatório Figueiredo, foram anos de terror, com políticas voltadas para o extermínio das comunidades indígenas, orquestradas inclusive pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Portanto, exigir que as comunidades comprovem o esbulho renitente, em situação de conflito pela terra e anterior ao ano de 1988, por meio de boletins de ocorrência ou processos judiciais instaurados, apresenta-se pelo menos como um entendimento esquizofrênico. Salientando que os indígenas estavam submetidos à tutela do Estado, ou seja, deles não se poderia exigir o ônus de fazerem a defesa das terras que ocupavam, uma vez que estas são de propriedades da União e cabia a ela esse dever.

Quanto ao marco temporal, assume-se a convicção do ilustre Jurista José Afonso da Silva que sustenta não ser correto interpretar a atual Constituição como se ela tivesse limitado os direitos ordinários dos povos indígenas as suas terras a ocupação em 5 de outubro de 1988. Isso, na prática, impede a demarcação das terras para aqueles povos e comunidades que só conseguiram retornar a elas depois dessa data. O Jurista afirma que o termo “marco” tem sentido preciso: em sentido espacial, marca limite territorial; em sentido temporal, como é o caso, marca limites históricos, ou seja, marca quando se inicia algum fato evolutivo.

Por fim, além de se configurar como uma interpretação distanciada do contexto histórico e social, é visivelmente inconstitucional. A consequência disto será o desamparo e ceifamento de direitos dos povos indígenas. Assim como, viola os compromissos de proteção e promoção de direitos e garantias firmados com a comunidade internacional por meio de Tratados e Convenções ratificadas pelo Brasil. Verifica-se, que se tenta impor uma interpretação jurídica desvinculada dos sujeitos de direito de hoje – os povos indígenas –, como se não houvesse relação entre o passado, o presente e futuro das 305 etnias que vivem no território brasileiro atualmente.

Notas de rodapé

  1. Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
  2. Bacharel em Direito e assessora do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
  3. Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
  4. Pesquisadora nas áreas de Direitos Humanos, Direito Internacional Público, Direitos Indigenistas, Estado, Democracia e Administração Pública e Social. Bolsista CAPES/CNPQ no Mestrado em Direito – UNIRITTER.
  5. Bacharel em Direito, formado no Curso de Filosofia e missionário do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
  6. BRASIL. Constituição Federal Brasileira de 05 de outubro de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  7. BRASIL. Constituição Federal Brasileira de 05 de outubro de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  8. STJ. “Demarcação de Terras Indígenas é Tema de 115 Decisões Colegiadas no STJ”. Disponível aqui. Acesso em 26 de setembro de 2016.
  9. Na análise do REsp 1133648, a Segunda Turma do STJ considerou que somente com a Constituição Federal de 1988 (CF/88) surgiu o conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a serem demarcadas pela União (Ministro Herman Benjamin). Para ele o artigo 231, parágrafo 6º, da CF/88 diz que a nulidade e a extinção de direitos relativos à ocupação, ao domínio e à posse privada sobre as terras indígenas não geram direito de indenização contra a União. No julgamento do REsp 1551033, a Segunda Turma do STJ consignou que a demarcação das terras indígenas é definida pelo Decreto 1.775/96, que regulamenta a Lei 6.001/73, sendo expressa em seu artigo 2º a necessidade de elaboração de estudo técnico-antropológico e de levantamento da área demarcada. Na análise do MS 14987, a Primeira Seção do STJ decidiu que a existência de propriedade, devidamente registrada, não impede que a Funai investigue e demarque terras indígenas, tradicionalmente ocupadas. A ocupação da terra pelos índios transcende ao que se entende pela mera posse da terra, no conceito do direito civil. Deve-se apurar se a área a ser demarcada guarda ligação anímica com a comunidade indígena”, lê-se no acórdão. No MS 15822 sobre a demarcação de terras da etnia Guarani Nhandéva, a Primeira Seção do STJ considerou que a demarcação processada e conduzida na instância administrativa, sem necessidade de apreciação judicial, é prática reiterada na administração pública federal, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1988. Os atos administrativos são passíveis de revisão judicial segundo o princípio da inafastabilidade. Isso não implica, todavia, que o Poder Judiciário tenha que intervir, sempre e necessariamente, como condição de validade de todo e qualquer ato administrativo, referiu o acórdão. Na decisão, o relator do caso, ministro Castro Meira, salientou ainda que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se incluem no domínio constitucional da União. As áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição aquisitiva. Mesmo que comprovada a titulação de determinada área, se essa for considerada como de ocupação indígena tradicional, os títulos existentes, mesmo que justos, são nulos, de acordo com o já citado Art. 231, § 6º, da CF/88”, disse Castro Meira. Fragmentos da notícia supracitada in STJ. “Demarcação de Terras Indígenas é Tema de 115 Decisões Colegiadas no STJ”. Disponível aqui. Acesso em 26 de setembro de 2016.
  10. SENADO FEDERAL. Art. 67 das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  11. Conselho Indigenista Missionário. Brasil – Quadro-Resumos das Terras Indígenas. Disponível aqui. Acesso em 30 de maio de 2016.
  12. BRASIL. Supremo Tribunal Federal: Plenário. Petição n. 3.388. Augusto Affonso Botelho Neto e União Federal. Relator: Min. Ayres Britto. DJE de 1º/07/2010.
  13. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  14. Sobre a categoria dos direitos humanos de solidariedade, cf. Antônio Augusto Cançado Trindade, “Derechos de Solidariedad”, em Asdrúbal Aguiar Aranguren e outros, Estudios Básicos de Derechos Humanos I, San José, CR, IIDH, 1994, pp. 63s. e José Afonso da Silva, Teoria do Conhecimento Constitucional, São Paulo, Malheiros, 2014, pp. 551s.
  15. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  16. DALLARI, Dalmo de Abreu. Reconhecimento e proteção dos direitos dos índios. Revista Informação Legislativa, Brasília, a. 28, n. 111, julho/setembro 1991.
  17. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  18. BRASIL. Supremo Tribunal Federal: Plenário. Petição n. 3.388. Augusto Affonso Botelho Neto e União Federal. Relator: Min. Ayres Britto. DJE de 1º/07/2010.
  19. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em 21 de abril de 2016.
  20. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em 21 de abril de 2016.
  21. Idem.
  22. MPF. Relatório Figueiredo. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  23. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em 21 de abril de 2016.

Relatório Direitos Humanos no Brasil 2016

Nesta 17ª edição do livro Direitos Humanos no Brasil, além de relatar e analisar fatos em diversas áreas de atuação e pesquisa, os artigos buscam trazer sinais de esperança, em um momento crítico para a democracia. A esperança vem do exemplo daqueles que enfrentam dificuldades sem medo e nos animam com sua luta e resistência; de quem segue sem hesitar, mesmo consciente do recrudescimento da violência e da criminalização dos movimentos sociais. Como nos artigos sobre as mulheres que utilizam o futebol como ferramenta de emancipação feminina, sobre a constante denúncia do desastre ambiental em Mariana (MG), nas análises que mostram como o passado recente da ditadura no Brasil nos faz compreender melhor o momento presente, entre tantos outros exemplos apresentados no livro. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Acesse aqui.

Com “probabilidade de mortes”, Justiça Federal suspende despejos contra comunidades Guarani Kaiowá

No contexto de violências contra os indígenas no Cone Sul sul-mato-grossense, um alento aos Guarani e Kaiowá da demarcação Dourados Amambai Peguá I – chamada pelo povo de Tekoha Guasu. A 2ª Vara da Justiça Federal de Dourados (MS) suspendeu o cumprimento de despejos envolvendo duas fazendas incidentes nos tekoha – lugar onde se é – Nãmoy Guavira’y e Jeroky Guasu. A decisão, todavia, é provisória e aguarda sentenças aos processos.

As reintegrações de posse foram determinadas no último mês de dezembro, com prazo inicial de despejo a ser cumprido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Como o órgão indigenista tem funções constitucionais inversas, acabou para a Polícia Federal executar a reintegração – o que ocorreria à força. Na última semana, os prazos foram encerrados sem a retirada das comunidades das áreas.

Em ofício à Justiça Federal, o comando da PF argumentou sobre a “probabilidade concreta de mortes durante a execução do provimento jurisdicional”. Dando procedência ao ponderado pelos agentes federais, o juiz suspendeu as reintegrações alegando ainda “recentes decisões do STF no sentido de obstar o cumprimento de mandado de reintegração de posse quando houver risco de remoção de grandes contingentes de pessoas”.

O Supremo Tribunal Federal (STF) possui jurisprudências contra reintegrações de posse envolvendo territórios indígenas. O que pode influenciar outras situações. São duas fazendas incidentes em cada um dos tekoha com pedidos de reintegração de posse deferidos. Com isso, outros dois pedidos de despejo ainda estão valendo. No entanto, para estes, a Justiça Federal solicitou mais informações aos fazendeiros com prazo estabelecido em dez dias.

Mais dados também foram solicitados pela Justiça federal aos ‘proprietários’ de duas áreas a serem reintegradas na Reserva de Dourados, que compõem o tekoha Yvu Vera. Casos de despejos também determinados em dezembro pela 2ª Vara num pacote de tensão lançado sobre as comunidades Guarani e Kaiowá na virada de ano. A decisão dos indígenas era e é a de não sair das retomadas e resistir.  

No interior da Dourados Amambai Peguá I, município de Caarapó, estão diversos tekoha retomados pelos Guarani e Kaiowá nas últimas décadas – Paí Tavy Terã, Ñandeva, Ñamoy Guavira’y, Jeroky Guasu, Tey’Jusu, Kunumi Vera, Guapo’y, Pindo Roky e Itagua. Sem a conclusão do procedimento demarcatório, os indígenas sofrem sucessivos ataques de pistoleiros e fazendeiros, além dos despejos judiciais.

Em dezembro ainda outro tekoha teve decisão de despejo concedida pela 2ª Vara: Kunumi Vera. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu a retirada da comunidade. No local onde o agente de saúde Guarani e Kaiowá Clodiodi Aquileu de Souza, de 26 anos, acabou  assassinado a decisão foi a segunda tentativa de despejo dos indígenas nos últimos seis meses.

Yvu Vera

De acordo com o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), Yvu Vera é uma área de quase 20 hectares que integra a Reserva de Dourados e foi invadida por não-indígenas. Na terra tradicional não vivem apenas indígenas Guarani e Kaiowá, mas também Guarani Ñandeva e Terena. Para a reserva os indígenas foram expulsos de forma violenta de suas aldeias.

Os indígenas retomaram as “propriedades” incidentes em Yvu Vera em fevereiro do ano passado como forma de realocar famílias que saíram da Reserva por falta de espaço físico. Com quase 3.500 hectares, a área reservada ainda na época do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na primeira metade do século XX, é ocupada por 13.100 indígenas (Funai, 2015).

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi  

Em Nota Coletiva organizações repudiam portaria que altera demarcações de terras indígenas

Nota de Repúdio à Portaria MJ n.º 80/2017

As organizações abaixo-assinadas vêm manifestar seu repúdio à Portaria n.º 80/2017, expedida pelo ministro da Justiça, dado seu nítido caráter de fazer prevalecer decisões de natureza política sobre conclusões eminentemente técnicas que fundamentam o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de terras indígenas, elaborado no âmbito da Fundação Nacional do Índio (Funai).

A medida segue na linha do enfraquecimento do órgão indigenista federal, atualmente com o pior orçamento de sua história, e consiste numa forte concessão do Governo Michel Temer a bancadas parlamentares anti-indígenas, em contraposição aos direitos ligados à vida dos povos indígenas do Brasil, notadamente o direito originário às suas terras tradicionais.

Repudiamos, ainda, a ausência de diálogo com o Conselho Nacional de Política Indigenista – CNPI (ligado ao próprio Ministério da Justiça), o descumprimento do direito à consulta livre, prévia e informada, bem como a orquestração de tentativas de impor graves retrocessos à legislação que rege o procedimento de demarcação de Terras Indígenas, mantida em vigor há mais de 20 anos, como a minuta de Decreto divulgada pela imprensa em dezembro de 2016 e a Portaria n.º 68/2017, recentemente revogada após manifestações contrárias do movimento indígena, de especialistas e do Ministério Público Federal.

Todas estas medidas têm o claro objetivo de retardar ou impedir a conclusão dos processos de demarcação, revelando o propósito do atual governo no sentido de enterrar políticas de demarcação de terras indígenas e outras pautas de regularização fundiária, o que só contribui para a ampliação e perpetuação dos conflitos existentes.

Diante desse cenário, as organizações signatárias exigem a imediata revogação da Portaria nº 80/2017, bem como pugnam pela atuação do Governo Federal no sentido de fortalecer a Funai para o cumprimento de sua missão institucional e pela retomada urgente dos processos de demarcação de terras indígenas.

Assinam conjuntamente:

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB

Centro de Trabalho Indigenista – CTI

Conselho Indigenista Missionário – CIMI

Greenpeace Brasil

Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC

Instituto Internacional de Educação do Brasil – IEB

Instituto Socioambiental – ISA

Operação Amazônia Nativa – OPAN

Plataforma DHesca/Relatoria de Direitos Humanos e Povos Indígenas

Nota de Repúdio contra a Portaria nº 68 que muda os procedimentos de demarcação das terras indígenas

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) atendendo o clamor de suas bases manifesta publicamente a sua indignação e repúdio à decisão do governo de facto de Michel Temer de publicar por meio do seu Ministro da Justiça e Cidadania, Alexandre de Moraes, a Portaria Nº 68, de 14 de janeiro de 2017, através da qual, pretende mudar os procedimentos de demarcação das terras indígenas estabelecidos pelo Decreto 1775 / 96.

O governo, com essa medida, rasga de cara o texto constitucional que reconhece os direitos indígenas, e o Decreto 1775 que embasa a demarcação das terras indígenas.

A Constituição afirma: “São reconhecidos aos índios, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos seus bens”. A carta magna não diz que os povos indígenas só tem direitos a partir da promulgação da mesma, em 1988. No entanto, os inimigos dos povos indígenas fazem de tudo para negar os direitos originários dos povos indígenas às terras que não só tradicionalmente mas milenarmente lhes pertence mesmo não sendo todas as que possuíam no momento da invasão colonial.

A publicação da Portaria Nº 68, – primeira norma explícita de mudanças nos procedimentos de demarcação das terras indígenas-, como foi no caso das indicações do Presidente e de diretores para a Funai, sob pressão do Partido Social Cristão (PSC) é só mais um indicativo de que o Governo Temer é mesmo subserviente do poder econômico vinculado ao agronegócio e de seus porta-vozes agrupados na bancada ruralista do Congresso Nacional. Nesse sentido, após ter negado a existência de um novo decreto que altera o procedimento de demarcação, publica uma portaria recheada de propostas contidas na minuta desse instrumento vazada pela imprensa a finais de 2016, todas absolutamente inconstitucionais e violadoras dos direitos originários dos povos indígenas.

A portaria manifesta de início preocupação pela desconstituição do “domínio privado” em decorrência das demarcações; deturpa o texto constitucional na tentativa deslegitimar as demandas territoriais dos povos indígenas; manipula o teor do decreto 1775 e da Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, redunda em procedimentos, como o princípio do contraditório já assegurado desde os inícios do processo de demarcação, e institui um Grupo de Trabalho que terá o propósito de “avaliar” os processos de demarcação das terras indígenas, possibilitando que decisão de natureza política prevaleça sobre as conclusões de estudos técnicos e multidisciplinares da Funai; abre as possibilidade da realização de diligências, audiências públicas e meios de participação das “partes interessadas”; e propõe a observância de uma “jurisprudência do STF sobre a demarcação de Terras Indígenas” que não existe.

Contrariamente ao propósito de “conciliar celeridade e segurança jurídica”, o governo Temer cria mais entraves à conclusão dos procedimentos de demarcação, ou seja, quer inviabilizar a demarcação das terras indígenas, o que faz mediante a criação de uma instância política no âmbito do Ministério da Justiça para subsidiar a tomada de decisão sobre os processos de demarcação, enfraquecendo, assim, a já fragilizada Funai e seus análises de mérito sobre o direito territorial dos povos indígenas. Em suma, o governo baixa uma portaria para emperrar ou inviabilizar a demarcação das terras indígenas em favor dos invasores desses territórios.

Mais uma vez esse governo desrespeita a legislação que garante a participação dos povos indígenas na tomada de decisões que os afeta e avança nos seus propósitos de desconstruir os direitos indígenas assegurados pela Constituição e tratados internacionais assinados pelo Brasil, como a Convenção 169 de Organização Internacional do Trabalho.

Se quiser mesmo dar celeridade às demarcações das terras indígenas e seguridade jurídica aos povos indígenas, o governo Temer, por meio de seu ministro da justiça, deve revogar imediatamente a Portaria 68, a qual constitui notoriamente mais um ataque frontal, flagrante violação aos direitos humanos fundamentais dos povos indígenas que vem sendo denunciada reiteradamente por esses povos e seus aliados, inclusive em foros internacionais.

A APIB e suas organizações não se calarão diante de tamanhas atrocidades, repudiam integralmente o conteúdo da Portaria 68, que constitui mais uma afronta aos povos indígenas, exigem a sua revogação imediata e convocam as suas bases para a primeira mobilização nacional contra essas ameaças. Que a partir da primeira semana de fevereiro estejamos todos juntos e firmes mobilizados na luta nas distintas regiões e na capital federal. Pela garantia dos direitos dos nossos povos.

Brasília – DF, 19 de janeiro de 2017.

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB