Em audiência pública, organizações e especialistas defendem fim das isenções tributárias para agrotóxicos

Divulgação: Supremo Tribunal Federal

Na última terça-feira (5), o Supremo Tribunal Federal (STF) promoveu audiência pública vinculada à Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 5553, com o objetivo de debater as isenções tributárias concedidas ao setor de agrotóxicos. O evento reuniu especialistas, representantes do poder público e de movimentos sociais para discutir os impactos do uso de agrotóxicos no Brasil, especialmente em relação à saúde, ao meio ambiente e à segurança alimentar.

Ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2016, a ADI questiona as cláusulas 1ª e 3ª do Convênio nº 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e o Decreto 7.660/2011. Esses dispositivos concedem redução de 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), além da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de determinados tipos de agrotóxicos. A medida ficou conhecida em vários setores como “bolsa-agrotóxicos”. 

Sob condução do ministro e relator da ação, Edson Fachin, a audiência contou com exposição de representantes de diversas organizações da sociedade civil, parlamentares, representantes do Executivo e de institutos de pesquisa. 

Durante a audiência, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) destacou que o agronegócio é responsável por envenenar a população, os alimentos e águas. Por isso, “a importância de tributar e não isentar de imposto o mercado de agrotóxicos”. 

Entre os expositores, Maurício Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), trouxe à tona casos de populações indígenas afetadas pela contaminação por agrotóxicos. Ele destacou, em particular, os recentes conflitos em Terra Roxa, onde a disputa territorial pela demarcação de terras indígenas é marcada pelo uso frequente de agrotóxicos como armas químicas. Terena ressaltou a violência e os riscos que essas substâncias representam para as comunidades que já enfrentam desafios históricos de sobrevivência e dignidade.

Darcy Frigo, diretor executivo da Terra de Direitos, também foi enfático em sua fala, criticando o argumento de que os incentivos fiscais aos agrotóxicos seriam necessários para garantir a segurança alimentar da população brasileira. Frigo destacou que o agronegócio não é responsável pela alimentação do povo brasileiro, uma vez que 84% dos agrotóxicos utilizados no país são destinados à produção das quatro principais commodities de exportação — soja, milho, algodão e cana-de-açúcar — cujos preços são definidos pelo mercado internacional. Por outro lado, a agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais são responsáveis por grande parte da produção dos alimentos consumidos internamente, utilizando significativamente menos agrotóxicos. Ele ainda afirmou que a agricultura familiar é responsável por produzir 69,6% do feijão, 83% da mandioca, 45,6% do milho e 38% do café no Brasil.

Fernando da Cunha, Defensor Público da União, abordou o crescente número de processos relacionados a problemas de saúde causados pela exposição a agrotóxicos. Ele questionou o custo de uma vida para o poder público, sinalizando que a saúde da população e a proteção do meio ambiente não podem ser tratadas como questões secundárias.

A geógrafa Larissa Bombardi também contribuiu com dados alarmantes sobre os impactos da exposição a agrotóxicos, especialmente em bebês. Bombardi destacou que cinco dos principais agrotóxicos usados no Brasil são proibidos na União Europeia, devido aos riscos que representam tanto para a saúde humana quanto para o meio ambiente.

Adelar Cupsinski, assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil, em sua sustentação destacou os resultados de pesquisas realizadas pela organização em territórios onde atua, com foco na exigibilidade do direito humano à alimentação e nutrição adequadas. Segundo Cupsinski, todas as investigações realizadas revelaram a contaminação por agrotóxicos, apontando um risco significativo à saúde e à segurança alimentar. Cupsinski ressaltou que qualquer ação ou omissão que afete negativamente a produção ou o consumo de alimentos, especialmente quando contraria os princípios dos direitos humanos, configura uma violação desses direitos.

Representando o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o engenheiro agrônomo Álvaro Delatorre defendeu a necessidade de uma transição para a produção orgânica, agroecológica e regenerativa. Ele afirmou que a agenda para o futuro deve incluir a soberania alimentar, a função social da terra e a democratização do acesso à terra.

Para o deputado estadual Renato Roseno (Psol-CE) é “uma questão de justiça ambiental, justiça fiscal e tributária que o agronegócio pague imposto [sobre os agrotóxicos] e ajude a financiar as políticas sociais e, sobretudo, a transição agroecológica”.

Durante as exposições, diversos participantes ressaltaram que a isenção fiscal concedida ao setor de agrotóxicos viola direitos fundamentais, como o direito ao meio ambiente saudável e o princípio da equidade geracional. É dever do Estado proteger as gerações futuras, adotando políticas públicas que promovam alternativas sustentáveis e seguras ao uso indiscriminado de agrotóxicos.

Em entrevista na Alemanha, assessor da FIAN Brasil comenta lobby e contradições das transnacionais dos agrotóxicos

Entrevista realizada em Berlim, em 20 de outubro, e publicada originalmente em alemão no site da Fundação Heinrich Böll

Brasil: Por que o agro não é pop

Milhões de brasileiros são afetados pela insegurança alimentar. Conversamos com Pedro Vasconcelos Rocha, da FIAN Brasil, sobre a agricultura no Brasil e o lobby brasileiro e alemão dos agrotóxicos.

Por Mareike Bödefeld e Almudena Abascal

O que você espera de uma proibição de exportação de agrotóxicos da Alemanha ou da Europa? Que efeitos positivos tal proibição teria sobre o povo do Brasil, especialmente os trabalhadores rurais e as comunidades indígenas ou quilombolas?

Em primeiro lugar, para nós é um sinal positivo de igualdade de tratamento, porque nós, brasileiros, pegamos doenças dos agrotóxicos assim como os europeus. A afirmação das empresas de que são necessários mais agrotóxicos para uma agricultura bem-sucedida nos países tropicais do que nos países europeus não é eficaz. O solo contaminado acaba por contaminar também os europeus, pois os produtos produzidos no solo são exportados para a Europa. Não é fácil para os europeus determinar quais ingredientes invisíveis acabam em seus pratos. No entanto, foi comprovado que o [queijo] grana padano italiano, por exemplo, contém vestígios de agrotóxicos do Brasil. Os animais de onde vem o presunto espanhol foram alimentados com soja brasileira, para a qual provavelmente foram usados ​​agrotóxicos além da engenharia genética. A decisão de interromper em breve a exportação de agrotóxicos proibidos para outros países, anunciada pelo governo alemão, é, portanto, crucial. Porque as empresas alemãs Bayer e Basf estão na vanguarda do comércio de agrotóxicos. No Brasil, eles simbolizam um comércio eticamente questionável. Um comércio que só funciona com violência e pulverização de agrotóxicos do ar. As pessoas nas proximidades dos campos cultivados com produtos da Bayer ou da Basf sofrem consequências para a saúde, como deformidades genéticas ou câncer. E não são as únicas empresas atuantes no Brasil.

Lobby alemão no Brasil?

No Brasil, o instituto Pensar Agro – com o apoio financeiro de empresas alemãs – promoveu mudanças na legislação ambiental brasileira. A meu ver, os lobistas alemães estão tentando influenciar o pacote de legislação brasileira sobre venenos (PL 6.299). Eu queria obter mais informações sobre isso na Alemanha, mas infelizmente não deu certo.

A FIAN Brasil espera que a Alemanha apresente uma proposta mais ambiciosa para a proibição de exportação de agrotóxicos, uma proposta que sinaliza compromisso e responsabilidade ética. Em geral, pedimos mais transparência em relação às vendas e exportações desses produtos. Alguns produtos não são regulamentados na Alemanha. Precisamos saber quais substâncias não são regulamentadas na Alemanha para poder regulá-las no Brasil, se necessário. Porque não sabemos o que os produtos podem fazer aqui ou como serão usados ​​posteriormente. Gostaríamos de saber dos parlamentares alemães como eles conseguiram regulamentar certos agrotóxicos na Alemanha para aprender com eles para nosso trabalho de lobby no Brasil. O uso de agrotóxicos, a legislação ambiental e a mineração em territórios indígenas estão sendo flexibilizados aqui.

Também é importante para nós se as proibições se aplicam apenas a produtos agrotóxicos acabados ou também a ingredientes ativos individuais. O Brasil tem capacidade de produção própria: ou seja, se apenas os produtos acabados forem proibidos e os ingredientes ativos continuarem sendo exportados, isso não nos ajuda muito. Os problemas ambientais causados ​​pelos produtos também devem receber maior reconhecimento.

Quando há problemas ou danos, as empresas alemãs dizem que os agricultores brasileiros não estão usando seus produtos adequadamente. Mas na realidade eles vendem produtos que são pulverizados do ar como armas químicas em indígenas, por exemplo. Esses ingredientes ativos agora podem ser encontrados em nossos rios e em nossa água potável. Também aqui na Alemanha existem responsáveis ​​que realmente sabem que as substâncias são prejudiciais à saúde e, portanto, foram proibidas aqui.

Também trabalhamos a questão da responsabilidade corporativa, especialmente das empresas transnacionais que atuam no Brasil e no mundo. Junto com a sociedade civil brasileira, estamos trabalhando no Projeto de Lei 572/22, lei da cadeia produtiva brasileira que propõe um acordo entre direitos humanos e negócios, com foco em empresas transnacionais. O lobby empresarial no Brasil é muito poderoso e está tentando barrar o projeto. Fazemos networking com outros latino-americanos e internacionais, por exemplo, atores asiáticos. A União Europeia sinalizou que adotará uma postura de apoio. Uma proposta sobre cadeias de abastecimento livres de desmatamento também está sendo discutida. É importante que as questões de indenização e reparação sejam claramente definidas, não como no caso do Rio Doce, por exemplo, em que os responsáveis ​​ainda são procurados até hoje. Os princípios fundamentais são: prevenção, transparência, reparação e não reincidência. A consulta aos povos indígenas deve ser uma diretriz. Assim, com toda a pressão, o debate sobre a responsabilidade pode ter algum sucesso afinal. As preocupações com a prestação de contas não devem ser apenas uma questão do Sul Global.

Qual é o estágio da implementação de uma política nacional de redução de agrotóxicos no Brasil?

Fizemos uma luta e uma grande coalizão contra a iniciativa legislativa 1.459/22 (o “Pacote do Veneno”, como chamamos) e pedimos apoio internacional. Os relatores especiais da ONU sobre o impacto de substâncias tóxicas e resíduos nos direitos humanos, Marcos Orellana, e sobre o direito à alimentação, Michael Fakhri, viam o projeto com grande preocupação em um comunicado. A lei flexibilizaria a legislação brasileira – ainda que o Brasil já tenha aprovado um número recorde de agrotóxicos nos últimos anos. A informação sobre substâncias cancerígenas e desreguladoras do sistema endócrino deve ser removida do registro e apenas uma categoria de risco deve ser utilizada. O nome “agrotóxico” também deve ser alterado para “produto fitossanitário”. Não há revisão regular dos registros, então existe o risco de que os agrotóxicos sejam liberados indefinidamente. Expressamos repetidamente a nossa preocupação com esse pacote legislativo e, mais recentemente, nós o submetemos à Comissão da Agricultura. Ao mesmo tempo, vemos na Câmara dos Deputados uma redução gradativa do financiamento da agroecologia.

Por que a agroecologia é uma alternativa e como ela pode ser fortalecida?

Com o slogan “O agro é pop”, uma certa visão de como a agricultura deve ser feita é popularizada. Esse modelo agrícola gera renda para poucos no Brasil e certamente não alimenta a população brasileira. Atualmente, 33 milhões de brasileiros vivem em grave situação de insegurança alimentar. Cento e vinte e cinco milhões de brasileiros são afetados por algum tipo de insegurança alimentar. Famílias com filhos são particularmente dependentes do programa de merenda escolar já mencionado. Para muitas crianças brasileiras, a alimentação escolar é a única refeição do dia. Como na escola tem o que comer, conseguimos manter alto o nível de alfabetização e frequência escolar. É claro que é um problema sério quando uma criança vai para a escola só porque está com fome. Agro não é pop. Não alimenta a população brasileira. O agronegócio ganha dinheiro nas costas da população.

A sociedade civil brasileira insiste, portanto, num modelo agrícola diferente: a agroecologia. A agroecologia trata bem a agricultura e o solo e atua de forma ambientalmente responsável. Nas mais diversas regiões do país, as pessoas estão lidando com novos modelos agrícolas e estabelecendo redes. Os povos indígenas estão lutando com a questão da agrofloresta. Vale destacar o movimento Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra [MSTR], que são os maiores produtores de arroz orgânico da América Latina. Seria ótimo se tivéssemos ainda mais apoio nacional e internacional para esse projeto. Porque o Brasil não tem uma política agroecológica forte há muito tempo. Durante os governos do PT houve iniciativas de planos nacionais – mas acabaram falhando na implementação. Em princípio, preferia-se um modelo agrícola diferente, mas algumas medidas a favor dos pequenos produtores poderiam ser implementadas.

Deve haver mais foco no meio ambiente e no envolvimento de quem cuida dele.

Conte-nos um pouco mais sobre a merenda escolar brasileira.

Temos feito muito lobby no Congresso Brasileiro para o programa estadual de alimentação escolar, o Programa Nacional de Alimentação Escolar [Pnae], e como resultado temos conseguido muita atenção da mídia.

O programa existe desde a década de 1960 e é um modelo para muitos outros países. Porque: 40 milhões de crianças e jovens são alimentados em instituições de ensino estaduais com refeições gratuitas que fortalecem seu desenvolvimento biopsicossocial. O programa foi regulamentado pela sociedade civil no passado e tivemos acesso ao Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

O resultado da nossa luta foi, entre outras coisas, que desde 2009 o estado se comprometeu a comprar pelo menos 30% dos alimentos para a merenda escolar dos pequenos produtores. A alimentação entregue nas escolas também deve ter uma ligação cultural com a região, de acordo com a legislação do programa. Os especialistas decidem o que as crianças e os jovens vão comer. Por exemplo, o lobby do leite gostaria de se envolver – isso faz sentido para regiões com muito gado leiteiro, mas não para a região amazônica, porque como o leite deveria ser entregue em grandes quantidades aqui? Não dá para levar comida do sul do Brasil que não tem ligação com uma comunidade indígena da Amazônia.

Os tempos mudaram nos últimos anos, especialmente sob o governo Bolsonaro: o Brasil sofre atualmente com uma inflação alta. A insegurança alimentar é um grande problema. Mesmo antes da guerra na Ucrânia e antes da pandemia, alimentos agroecológicos bons, orgânicos, de alta qualidade e de produção familiar eram caros. Recentemente, faltou dinheiro e vontade política para implementar esse gigantesco programa de merenda escolar. Os alimentos regionais e saudáveis ​​foram então trocados, de modo que hoje nossas crianças e jovens às vezes comem alimentos ultraprocessados ​​ou apenas biscoitos, que podem causar doenças crônicas, entre outras coisas.

Como o senhor vê o acordo UE-Mercosul?

Para nós, é uma prioridade abordar o acordo UE-Mercosul a partir de uma perspectiva de direitos humanos. Tanto quanto sabemos, existe um princípio no direito internacional que diz que os direitos humanos têm precedência sobre outros tipos de tratados. Quando se propõem esses tipos de tratados bilaterais e multilaterais, corre-se o risco de que a ambição envolvida leve ao esquecimento deste princípio. Portanto, no UE-Mercosul, estamos lidando com direitos humanos e padrões ambientais muito baixos. Por exemplo, identificamos a questão da proibição da exportação de agrotóxicos proibidos na União Europeia como uma condição importante para o andamento desse tratado. A tendência do acordo até agora é aumentar ainda mais as exportações de agrotóxicos da Europa para a América Latina, inclusive os proibidos aqui. Este contrato foi feito dentro do atual modelo dominante de agricultura industrial e produção de commodities. O contrato reduz os requisitos ao mínimo. Há uma boa chance de que esse tratado seja ratificado pelo novo governo do Brasil – um governo que tem maior interesse em uma posição internacional privilegiada.

Novo governo Lula da Silva

Nos governos anteriores de Lula [2003-2011] houve um pacote de medidas com propostas econômicas e fiscais, que incluíam também a segurança alimentar e o salário mínimo. Sob Bolsonaro, o único pacote era o subsídio ao gás, que vence no final do ano.

Sob Lula havia um ministério da agricultura de exportação [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa] e um do Desenvolvimento Agrário [MDA], no qual a agroecologia também era promovida. Esse ministério já foi dissolvido no governo Temer. No processo de transição, Lula criou três grupos de trabalho: um sobre povos indígenas e tradicionais; um sobre agricultura, do qual participam representantes do agronegócio, e o terceiro sobre desenvolvimento agrícola, tendo como participantes sindicalistas e movimento sem-terra.

Informe da FIAN Brasil mostra como desmonte de políticas no governo Bolsonaro agravou fome

A FIAN Brasil acaba de divulgar, com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), o Informe Dhana 2021 – pandemia, desigualdade e fome.

A publicação, de periodicidade bienal, aborda a situação do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas no país. Esta edição – que compreende dois anos do governo Bolsonaro – analisa os impactos da Covid-19 e das ações e omissões do poder público diante da crise sanitária, econômica e social.

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“Em 2017 elaboramos a primeira edição porque, ante o contexto de acelerado desmonte de direitos e de crise democrática, achamos fundamental registrar os avanços, as lacunas e os retrocessos que impactavam o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas”, explica a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity. “A segunda foi elaborada em 2019, destacando como neoliberalismo e autoritarismos estavam contribuindo para violações de direitos no Brasil. Em 2021, apontamos como a chegada da Covid-19 tornou ainda mais dramática uma situação geral de ataque à vida e à dignidade humana.”

Ela avalia que o cenário tende a se agravar com medidas como a extinção do Programa Bolsa Família para dar lugar a um programa (o Auxílio Brasil) ainda cheio de incertezas e sem garantia de orçamento. “Hoje, mais da metade da população sofre algum nível de insegurança alimentar e nutricional e tudo de que precisamos para a construção de sistemas alimentares soberanos e regenerativos – terra, água, proteção ambiental, política de estoques e preços, apoio à agricultura familiar – está sendo negado.”

“O mesmo presidente que em 2019 negou a fome no Brasil foi o que tratou a maior pandemia do século como uma gripezinha, e mais uma vez se esquivou de suas obrigações enquanto representante do Estado”, observa a assessora de Direitos Humanos da FIAN Nayara Côrtes. “O mesmo governo que desmontou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em seus primeiros dias no poder criou um falso dilema entre a fome e a Covid-19 e se recusou a tomar providências para tentar conter o previsível avanço dessa situação desumana que é não ter acesso a comida suficiente.”

Ela acrescenta que quem primeiro sentiu as consequências dessas decisões foram os grupos que têm seus direitos negados historicamente: a população negra, as mulheres, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais (como quilombolas e caiçaras) e os grupos empobrecidos do campo e das cidades.

Sistematizar para resistir – e reconstruir

A partir da perspectiva de que é preciso sistematizar para resistir – e reconstruir –, o Informe Dhana 2021 detalha o esvaziamento orçamentário e institucional das políticas que permitiriam conter parcialmente o impacto da calamidade e pavimentar o caminho para uma recuperação com justiça social. Também mostra a relação desse quadro com as opções macroeconômicas dos últimos anos e com a ditadura da austeridade fiscal – marcada a ferro e fogo pelo Teto dos Gastos Sociais, a Emenda 95.

Os dados e gráficos compilados pela FIAN “desenham” a ação de um Executivo que fala grosso com os vulneráveis, fino com os poderosos e de igual para igual com os aproveitadores, criando todo tipo de facilidade para grupos que vão de grileiros a grandes redes de supermercados, passando por mineradores e fabricantes de agrotóxicos e pela indústria de refrigerantes e outras bebidas açucaradas. E que faz isso de braços dados com o grupo dominante no Legislativo – o Centrão – e frequentemente respaldado pelo Judiciário, em especial nas instâncias inferiores.

O material situa a realidade brasileira, ainda, nas tendências internacionais de maior presença das corporações nos sistemas alimentares, que gera mais desigualdade e vai emplacando falsas soluções para a fome.

Acesse também o resumo executivo da publicação e assista ao pré-lançamento.

Mas, afinal, o que é o “Dhana”?

O conceito de direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) vai além do suprimento das exigências mínimas nutricionais dos indivíduos, propondo garantir os aspectos da acessibilidade física e econômica, da disponibilidade, da adequação e da sustentabilidade (De Schutter, 2014).

Essa conceituação vem sendo construída ao longo da história, sobretudo nos séculos 20 e 21. No âmbito internacional, o Dhana foi inicialmente previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 25), em 1948, estando também presente no artigo 11 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), de 1966, e no Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 12), de 1988.

No Brasil, esse direito ganha contornos mais definidos a partir de sua incorporação, em 2010, ao artigo 6º da Constituição Federal (CF), de 1988. Em 1999, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas elaborou o Comentário Geral 12. O documento vem contribuindo para as iniciativas subsequentes sobre o tema, por trazer as principais diretrizes do Dhana, sinalizando que tal direito só se realiza “quando todo homem, mulher e criança, sozinho ou em comunidade com outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, a uma alimentação adequada ou aos meios necessários para sua obtenção” (ONU, 1999, p. 2), estando, dessa forma, livres da fome.

‘Disrupção’ ou Déjà Vu? Digitalização,Terra e Direitos Humanos – estudos de caso de Brasil, Indonésia, Geórgia, Índia e Ruanda

‘Disrupção’ ou Déjà Vu? Digitalização,Terra e Direitos Humanos – estudos de caso de Brasil, Indonésia, Geórgia, Índia e Ruanda é uma publicação da FIAN Internacional traduzida pela FIAN Brasil.

Clique para acessar o livro, o anexo 1 e o anexo 2.

Quadrinhos mostram o controle das grandes empresas sobre o nosso alimento, das sementes ao prato

Uma parceria entre a FIAN Internacional e os irmãos artistas Zago Brothers desenvolveu os quadrinhos A Captura Corporativa de Sistemas Alimentares.

A publicação ganhou versão em português por iniciativa da FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), no intuito de fortalecer o debate sobre o tema no nosso país. 

Originalmente produzido em inglês para série da ESCR-Net, o material detalha como as grandes empresas do agronegócio, de finanças, de tecnologia e de alimentos usam seus recursos para ditar a lógica de produção e oferta de comida e produtos alimentícios. Também ilustra, de forma artística e intuitiva, os impactos negativos na saúde das pessoas e do planeta.

Os sistemas alimentares, que representam tudo aquilo que tem relação com a produção, distribuição, oferta e consumo de alimentos, estão cada vez mais sob o controle de um pequeno número de empresas poderosas. O controle corporativo sobre o que comemos e cultivamos prejudica o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana), causando fome, obesidade e impactos ambientais que colaboram para as mudanças climáticas. A transformação radical desses sistemas é mais urgente do que nunca.

A Captura Corporativa de Sistemas de Alimentos foi lançado durante o evento de estreia do documentário Big Food: O Poder das Indústrias de Ultraprocessados, que também denuncia a influência das grandes corporações na saúde pública.

“Se antes eram os países mais ricos que dominavam os sistemas alimentares, hoje são as grandes corporações que exercem esse domínio, o que tem gerado graves violações de direitos, em todo o mundo”, destaca a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.

Para Janine Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, a iniciativa é uma importante ação para comunicar de maneira didática as complexas relações entre empresas, governos e nossa alimentação. “Precisamos promover de maneira urgente uma transição para sistemas alimentares focados nos direitos humanos, e não nos interesses das empresas de aumentarem seus lucros. Só assim poderemos combater as crises globais de fome, obesidade e mudanças climáticas”, defende ela.

Acesse a íntegra da história em quadrinhos A Captura Corporativa de Sistemas Alimentares.

O Modo de Vida Geraizeiro: Território, Alimento e Direitos no Vale das Cancelas

A publicação aborda o modo de vida do povo tradicional geraizeiro que vive no norte de Minas Gerais, no Território do Vale das Cancelas. Baixe aqui.

As comunidades geraizeiras ocupam esse território há pelo menos 150 anos, porém nas últimas décadas seu espaço tem sido ocupado por grandes empreendimentos, como monoculturas, hidrelétricas, rede de transmissão e projeto de mineração.

As comunidades têm sofrido a perda de suas terras sem ser devidamente consultadas sobre os projetos e sem receber a devida compensação pelos danos causados.

Buscamos então compreender como os empreendimentos privados ou públicos no território geraizeiro têm afetado os direitos dessa população, principalmente no que diz respeito ao direito humano à alimentação e nutrição adequadas (Dhana).

Para tanto, iniciamos a publicação com o histórico e descrição sobre a vida no Vale das Cancelas, em seguida apresentamos os principais projetos em curso no território e seus impactos, trazendo os relatos dos geraizeiros e geraizeiras, e, por fim, apontamos os conceitos e dimensões relacionados ao Dhana e de que forma o Estado tem falhado com suas obrigações de respeitar, proteger, promover e prover esse direito.

O informe também tem versão impressa.

Informe mostra impactos dos agrotóxicos na América Latina e no Caribe

A FIAN lançou nesta terça-feira (27) o informe Agrotóxicos na América Latina: violações contra o direito à alimentação e à nutrição adequadas.

Com 108 páginas, a publicação reúne dados e relatos sobre os impactos dessas substâncias no Brasil e em mais sete países latino-americanos e caribenhos: Colômbia, Paraguai, Equador, Honduras, Guatemala, México e Haiti.

O relatório mostra como os agrotóxicos impactam a saúde humana e o meio ambiente, e como isso impede a realização plena do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Também identifica um padrão na estratégia das corporações na região.

O lançamento contou com a participação do relator especial para Substâncias Tóxicas e Perigosas da ONU, Marcos Orellana, e da geógrafa Larissa Bombardi, autora do atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia. Foram apresentados testemunhos sobre comunidades atingidas de Brasil, Haiti e Paraguai. A documentação do caso brasileiro, em que pulverização aérea foi usada como arma para expulsão de posseiros de área rural em disputa em Pernambuco, será entregue a Orellana e possivelmente a relatores/as especiais de outros temas. 

A mediação coube a Valéria Burity, da FIAN Brasil, e o informe foi apresentado por Juan Carlos Morales González, da FIAN Colômbia, e pelo pesquisador Leonardo Melgarejo. Mais de 700 pessoas participaram.

Confira como foi o debate e acesse a publicação em português, espanhol ou inglês.

No dia 5 o relatório terá novo momento de divulgação global: um seminário no qual a FIAN Internacional vai apresentar também os resultados de estudo sobre experiências de transição para comunidades e sistemas alimentares livres de agrotóxicos.

Múltiplos impactos

Agrotóxicos na América Latina parte da conceituação do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana), consagrado em tratados internacionais, para mostrar como esse direito é violado na região.

O Dhana deve ser considerado em suas duas dimensões: o direito de estar livre da fome e o direito à alimentação e à nutrição adequadas. Esse direito não se restringe a uma condição biológica. Portanto, é preciso falar de todo o processo alimentar (o conjunto de processos sociais, econômicos e culturais nos quais a alimentação está envolta), visando que ele esteja direcionado para a promoção da dignidade humana e garantindo a sustentabilidade socioambiental desse processo.

Assim, a garantia efetiva do Dhana relaciona-se à garantia, para toda população, do consumo, por seus próprios meios e de forma emancipatória, de alimentos adequados, saudáveis, nutritivos e culturalmente aceitáveis, sem discriminação por motivos de raça, de etnia, de gênero, de geração, ou de questões econômicas e sociais. Os dados e relatos apresentados no informe mostram como o uso dessas substâncias afeta todas essas dimensões do Dhana.

Estado capturado por corporações

Os dados e os relatos trazidos pelas FIANs evidenciam que existe uma captura do Estado por parte das grandes corporações. Há tolerância, aquiescência e até protagonismo de nossos Estados diante das diferentes formas de violência que permitem que agrotóxicos sejam usados sem controle. Há, assim, a violação sistemática e deliberada das obrigações estatais para com o Dhana e direitos relacionados, priorizando o lucro em lugar do respeito aos direitos humanos, à sustentabilidade ambiental e à própria democracia. A agenda legislativa e várias mudanças regulatórias ocorrem para favorecer essa situação e os interesses das empresas.

Por padrão, houve aumento do uso e comercialização de agrotóxicos na última década. O produto de maior uso é o herbicida glifosato, classificado como cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc). Esse aumento está associado também ao aumento das lavouras geneticamente modificadas (GM), no contexto da venda de pacotes tecnológicos. Seguem-se a esse modelo a simplificação dos hábitos alimentares e a destruição de práticas e de saberes culturais. Os impactos sobre a saúde e o meio ambiente concentram-se nos países exportadores de commodities (basicamente soja, milho, algodão e colza) dominadas por essas transnacionais.

Violência e desregulação

A flexibilização das legislações é agravada por perseguições e mortes de ativistas, criminalização de movimentos sociais, legalização de crimes e abafamento de reações. Os conflitos de interesses associados a tais desvios da comunidade científica e política expressam-se na omissão ou na culpa direta de agências responsáveis pelo controle da qualidade dos alimentos, dos insumos e da proteção à saúde e ao ambiente, estabelecendo um ciclo vicioso no qual o agravamento de problemas soma-se a decisões que recrudescem suas causas.

O uso de agrotóxicos proibidos na Comunidade Europeia cresce em nossa região, onde registra-se que, atualmente, pelo menos um terço dos produtos mais vendidos corresponde a praguicidas altamente perigosos, vetados em seus países de origem.

Também tem ocorrido aumento no número de intoxicações aliado à subnotificação dessa questão. As informações sobre intoxicação e altas taxas de enfermidades relacionadas ao emprego de agrotóxicos, apesar da ausência de espaços de denúncia para tais casos, são bastante numerosas em praticamente todos os países que participam deste informe.

Na Guatemala, por exemplo, houve registro de resíduo do agrotóxico DDT no leite materno em volume 185 vezes superior ao limite considerado tolerável pela OMS, enquanto na Colômbia agrotóxicos representaram 28,67% das intoxicações por substâncias químicas em 2014. Esses dados se agravam pela ausência de políticas públicas aplicadas à análise e ao monitoramento de resíduos desses princípios ativos.

Recomendações

Agrotóxicos na América Latina aponta os Estados onde estão localizadas as sedes das empresas fabricantes dessas substâncias como os grandes responsáveis por seus danos. A FIAN identifica graves deficiências nos mecanismos universais e regionais de direitos humanos ao propor medidas vinculativas para reverter e punir o uso crescente de desses produtos e suas consequências.

A entidade defende que os países da região estabeleçam moratórias sobre culturas geneticamente modificadas ou outros modelos agroprodutivos altamente exigentes de agrotóxicos e observem o princípio da precaução em qualquer decisão sobre o assunto. O relatório enfatiza a necessidade de estruturar mecanismos de nacionais de justiciabilidade, reparação, indenização e não repetição acerca de violações dos direitos de populações, comunidades e indivíduos. Propõe também que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos incorpore e aplique o enfoque das obrigações extraterritoriais ao analisar a situação em nossos países.

FIAN e outras entidades da Rede Global pelo Dhana manifestam apoio a Larissa Bombardi

A partir de proposta da FIAN Brasil, a FIAN Internacional e 11 seções da entidade divulgaram nota pública de apoio à professora Larissa Bombardi e contra a perseguição a pesquisadores e pesquisadoras.

A manifestação defende a liberdade de pesquisa, o direito de informação e a democracia. É assinada por mais 22 organizações da Rede Global pelo Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN) – entre elas o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) – e três coletivos latino-americanos de agricultura familiar.

Bombardi, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), anunciou em março a decisão de deixar o país em razão das intimidações que vem sofrendo há anos. Elas buscam interromper seus trabalhos sobre os impactos dos agrotóxicos nos direitos humanos e no meio ambiente, além de suas investigações sobre a ligação entre sistemas alimentares corporativos e pandemias como a que vivemos agora.

Participação em lançamento da FIAN

Autora do atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, Bombardi participará do lançamento do informe regional Agrotóxicos na América Latina: Violações Contra o Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas, previsto para o dia 27, com transmissão ao vivo. A publicação é uma iniciativa da FIAN Brasil realizada em parceria com a FIAN Colômbia e com a colaboração das seções, coordenações e grupos da FIAN no Paraguai, no Equador, em Honduras, na Guatemala, no México e no Haiti.

A geógrafa tem recebido apoio massivo de entidades acadêmicas e organizações civis. Leia, abaixo, a manifestação organizada pela FIAN.

Nota de apoio das seções da FIAN à professora Larissa Bombardi, do Departamento de Geografia da USP

As seções da FIAN que assinam esta nota repudiam as ameaças sofridas pela professora Dra. Larissa Bombardi, da Universidade de São Paulo, em razão de suas pesquisas sobre agrotóxicos e seus impactos nos direitos humanos e no meio ambiente no Brasil, sendo um de seus principais trabalhos como pesquisadora o atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia. Bombardi também tem alertado como sistemas alimentares corporativos apresentam graves externalidades e podem estar associados a pandemias, como a que vivemos agora.

Reconhecemos a qualidade técnica e relevância do seu trabalho, especialmente em um momento de grave crise ambiental e sanitária que afeta a população mundial. 

É inaceitável que pesquisadores e pesquisadoras sejam perseguidos/as e criminalizados/as em decorrência de seus trabalhos científicos. Essa é uma violação à liberdade de pesquisa, ao direito de informação da sociedade e à democracia.

Declaramos que estamos atentos/as à gravidade desta situação e incansavelmente solidários/as à professora Larissa Mies Bombardi.

Assinam:

FIAN Internacional
FIAN Brasil
FIAN Colômbia
FIAN Equador
FIAN Índia
FIAN Indonésia
FIAN Nepal
FIAN Portugal
FIAN Sri Lanka
FIAN Suécia
FIAN Suíça
FIAN Uganda

Outros membros da Rede Global pelo Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN):

African Centre for Biodiversity
Biowatch South Africa
Bread for all, Switzerland
Center for Food and Adequate Living Rights (CEFROHT), Uganda
Focus on the Global South
Food Security Network-Khani, Bangladesh
Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN)
International Union of Food, Agricultural, Hotel, Restaurant, Catering, Tobacco and Allied Workers’ Associations (IUF)
Katarungan, the Philippines
Maleya Foundation, Bangladesh
Movimiento de la Juventud Kuna, Panama
Nafso, Sri Lanka
Pakistan Kissan Rabita Committee, Pakistan
PPSS/ Anti-Jindal & Anti-POSCO Movement, India
Right To Food Campaign, West Bengal, India
Sri Lanka Nature Group
The Right to Food Network Malawi
Why Hunger, USA
World Forum of Fisher People’s (WFFP)
Youth’s Forum for Protection of Human Rights (YFPHR), India
Zambia Alliance for Agroecology and Biodiversity

Também assinam:

Centro Agrícola Cantonal de Quevedo
Colectivo Agroecologico del Ecuador
Colectivo de Jóvenes Rurales Machete y Garabato


Foto: Cecília Bastos (publicada no Portal USP)

FIAN manifesta à ONU preocupação com Cúpula de Sistemas Alimentares

Um apelo pela correção das rotas da Cúpula de Sistemas Alimentares, marcada para setembro. Esse foi o teor da declaração lida pela secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, no diálogo interativo com o relator especial de Direito à Alimentação, na 46ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Burity falou em nome da FIAN Internacional e das seções nacionais da entidade.

A manifestação endossou as preocupações externadas pelo relator especial Michael Fakhri quanto à urgência de transformar o sistema alimentar, acrescentando que o informe produzido por ele reafirma vários dos resultados do monitoramento realizado pela Rede Global pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas.

A FIAN lembrou a carta de mais de 150 organizações apresentada pelo Mecanismo da Sociedade Civil (MSC) do Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA) no começo de fevereiro. O documento alerta para a captura corporativa no processo de preparação da cúpula do tema, conjugada à falta de uma base sólida de direitos humanos; à ausência de um enfoque que realinhe os sistemas alimentares corporativos aos direitos das pessoas, dos povos e da natureza; e à ameaça de que as instituições públicas democráticas e o multilateralismo sejam postos em segundo plano pelo modelo de múltiplas partes interessadas (multistakeholder).

Na intervenção, a FIAN exorta os Estados-membros a reorientar radicalmente o curso do evento de setembro nas suas instâncias decisórias. “Não tem sentido para nossas organizações participar de uma cúpula assim”, alerta o texto, pedindo o fortalecimento dos atores e instituições comunitárias e públicas como vitais para o funcionamento dos sistemas alimentares e da democracia. “Também pedimos ao relator que considere a importância dos sistemas camponeses de sementes e dos povos indígenas e investigue o impacto da digitalização, tomando como exemplo o contexto da Covid-19”, finaliza a mensagem lida por Valéria Burity.

Ao lado da desmaterialização e da financeirização, a digitalização está transformando profundamente nossos sistemas alimentares, num processo que alguns chamam de “Quarta Revolução Industrial”. Uma das bases dela é uma fusão de tecnologias que apaga as fronteiras entre as esferas física, digital e biológica.

Desigualdades acentuadas

Ao falar ao Conselho de Direitos Humanos CDH na sessão de 2 de março, o relator Michael Fakhri observou que o mundo estava ficando para trás em realizar plenamente o direito à alimentação mesmo antes da pandemia, e que esta revelou as iniquidades do sistema alimentar e acelerou essa tendência. A seu ver, muitos Estados relutaram em considerar a crise de fome causada pelo contexto da Covid-19 uma questão de direitos humanos, e não houve uma ação coordenada para enfrentá-la.

Fakhri apresentou o relatório que descreve os rumos que pretende tomar durante sua gestão. Ele destacou mais três áreas temáticas prioritárias: sistemas alimentares e governança global; sementes e direitos dos agricultores; e o direito à alimentação em conflitos armados e crises prolongadas.

O Programa Mundial de Alimentos (PMA) estimou que o número total de pessoas que sofrem de fome aguda dobraria em 2020 para 265 milhões. Para o relator, não seria muito difícil desenvolver um plano internacional baseado nos direitos humanos que ajudasse a superar essa crise. Ele alertou que quase metade dos 3,3 bilhões de trabalhadores do mundo corriam o risco de perder seus meios de subsistência.

Em seu relatório, ele defende uma aliança entre o Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) para enfrentar a crise da fome iminente. Com relação à Cúpula de Sistemas Alimentares, pontuou que ela estava priorizando soluções científicas e baseadas no mercado, e que era importante observar que organizações que representam milhões de pessoas protestaram porque os direitos humanos foram inicialmente excluídos da agenda.

Fakhri assinalou que agroecologia e direitos humanos andam de mãos dadas e devem estar no centro da cúpula. Ele pontuou, ainda, que muitos países começaram a envolver o direito à alimentação ao discutir a mudança climática, o que representaria uma oportunidade de colocar a questão na agenda da conferência das Nações Unidas sobre o clima, marcada para dezembro.

Leia mais  e assista à sessão do conselho da ONU (em inglês) e à declaração da FIAN (em espanhol).

Prato do Dia: O que é essencial? A vida ou o veneno? O STF dirá

Por Valéria Burity, secretária geral da Fian Brasil

Está agendado para esta quarta-feira, 19 de fevereiro, o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5553. Ajuizada pelo PSOL em junho de 2016, a ação questiona a constitucionalidade das cláusulas 1ª e 3ª  do Convênio nº 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), que reduzem 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) dos agrotóxicos. Questiona também a constitucionalidade do Decreto 7.660/2011 que concede Isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a vários agrotóxicos estipulados na Tabela de Impostos sobre Produtos Industrializados. 

As normas que concedem estas isenções aos agrotóxicos se pautam no princípio da seletividade em função da essencialidade dos seus objetos, isto é, os produtos devem sofrer menor tributação se são considerados essenciais para a sociedade.  Então, nesse julgamento, o STF terá a oportunidade de responder se, de acordo com os preceitos constitucionais, os agrotóxicos são essenciais a ponto de não serem tributados. Ainda não sabemos como o STF irá julgar. Mas entendemos o momento em que estamos, assim como as externalidades que decorrem da comercialização e do uso de agrotóxicos. Com isso,  podemos desde já resgatar algumas normas da Constituição para termos nós, a nossa resposta. 

Não se pode ignorar que vivemos um momento não apenas de crise, mas de colapso ambiental – e o uso de agrotóxicos pode agravar essa situação. Portanto, qualquer ação que vise regular este tema, não diz respeito apenas à nossa saúde como indivíduos, mas também à saúde do planeta em que vivemos, o que faz com que esse assunto seja de extrema relevância. Qualquer julgamento que ignore esse fato ignora também o momento histórico em que a humanidade se encontra. Pode, só por isso, ser um desserviço à vida.

Sindemia global

A Revista Lancet registrou em 2019 que os sistemas alimentares são responsáveis por uma “sindemia global”, ou seja, a sinergia entre três pandemias: obesidade, má nutrição e mudanças climáticas, invocando a extrema necessidade de mudarmos a forma como produzimos e consumimos alimentos como condição para reverter esse quadro. Ainda em 2014, em seu informe final, Olivier de Schutter, então relator da ONU para o direito humano à alimentação, deu ênfase à insustentabilidade desses sistemas, destacando o seu impacto destruidor sobre a natureza e o papel que os agrotóxicos têm nesse processo.

Ao final do informe, o Relator também chamou a atenção para urgente necessidade de redirecionarmos os sistemas alimentares para padrões mais sustentáveis, sob pena de vivermos crises de segurança alimentar e nutricional em apenas algumas décadas. 

Em 2018, dois relatores da ONU também trataram do tema agrotóxicos no relatório A/HRC/34/48. Apontaram, neste documento, que os pesticidas são responsáveis por 200.000 mortes por envenenamento agudo por ano, dos quais 99% ocorrem em países em desenvolvimento. Esse dado escancara a perversidade do uso de agrotóxicos, pois não há fiel da balança: a maior parte do lucro desse mercado vai para poucas corporações que o monopolizam, as externalidades recaem sobre grupos mais vulneráveis dos países mais pobres.

O relatório também traz dados do impacto dos agrotóxicos sobre a saúde de agricultoras e agricultores, de trabalhadores e trabalhadoras rurais, de povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais, crianças, gestantes e consumidores e consumidoras, bem como sobre o meio ambiente.  Ao final do informe, os autores também alertam que é necessária uma mudança urgente na forma de produzir alimentos. E trazem recomendações, dentre elas a de que haja a eliminação de subsídios aos pesticidas e o pagamento de taxas por sua utilização.

Liberação recorde de agrotóxicos

No Brasil, assim como no restante do mundo, também persistem graves violações aos direitos humanos nos sistemas alimentares. Em 2019, o Brasil foi responsável pela liberação recorde de agrotóxicos (474, de acordo com MAPA). Enfraqueceu ou desmontou as políticas de incentivo à agricultura familiar e à agroecologia.

Entre 2007 e 2015, foram notificados 84.206 casos de intoxicação por agrotóxicos – e pesquisadoras nos alertam que há um grave problema de subnotificação do problema, que pode ser 50 vezes maior. Agrotóxicos têm sido utilizados como arma química contra povos indígenas. Isso foi comprovado recentemente, quando a Justiça Federal do Mato Grosso do Sul condenou um fazendeiro, um piloto e uma empresa a pagarem R$ 150 mil à comunidade indígena Tey Jusu, da etnia Guarani e Kaiowá, que sofreu pulverização de veneno, sendo crianças e adultos intoxicados neste episódio.

Com as isenções e as reduções de impostos sobre os agrotóxicos, o Estado deixa de arrecadar quase R$ 10 bilhões por ano, segundo estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Essa injustiça fiscal é um exemplo de como o Estado contribui para desigualdade no país. De um lado, se constitucionaliza a política de austeridade, com a Emenda Constitucional 95, que gerou expressivos cortes em importante políticas públicas voltadas para agricultura familiar e para a agroecologia, dentre outras. De outro lado, permite a isenção bilionária de tributos para grandes empresas. É o Estado ajudando a mão do mercado – invisível, mas pesada – a passar o fardo da concentração de renda para a população mais pobre do país. 

Os agrotóxicos afetam nossa saúde, o meio ambiente e deixam um buraco na receita pública. E tudo isso serve para quê? Não, não é para nos alimentar.

Segundo dados da SINDVEG de 2018, 80% dos agrotóxicos utilizados se destinam às monoculturas de soja, milho, cana de açúcar e algodão, favorecendo o mercado de commodities e não a produção de alimentos para a população brasileira. Além disso, apesar de sermos campeões no consumo de venenos, nunca eliminamos a fome do nosso país. E, com o aumento a todo vapor da pobreza e da extrema pobreza, há o temor de que esse fenômeno volte a horrorizar vidas, pois como disse Elza Soares: “a fome é uma coisa horrorosa”.

Esperamos que o Supremo Tribunal Federal faça valer os direitos fundamentais previstos na Constituição. Todas as externalidades ligadas à comercialização e ao uso de agrotóxicos se chocam com nossa Constituição, que prevê o direito à alimentação, que deve ser garantido com políticas de proteção social e com a promoção de sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis.

A nossa Constituição, graças a muitas lutas, também prevê o direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado, bem como a redução da desigualdade e o direito de todas as pessoas viverem com dignidade.

Todos esses direitos põem em xeque o argumento da essencialidade dos agrotóxicos. A vida é essencial, veneno, não.