Entrevista | MARIA EMÍLIA PACHECO: “Precisamos pensar as políticas a partir do princípio da emancipação”

Publicada, em versão resumida, no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae. Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

Primeira mulher a presidir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Maria Emília Pacheco conta das mediações para aprimorar o Pnae – que ela aponta como estratégico – e .para garantir aquilo que as diretrizes do programa determinam, reduzindo, por exemplo, a burocracia para o fornecimento por agricultores e agricultoras familiares e impondo limites ao “deixa fazer” das terceirizações.

Ela lembra também as mobilizações ligadas ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) e à conferência popular da área (CPSSAN) pelo enfrentamento da fome e do desmonte das políticas que ajudariam a combatê-la, a começar pela extinção do próprio colegiado.

Na entrevista, a antropóloga explica ainda a ideia do direito ao gosto, em oposição à comida de laboratório, e defende o modelo agroecológico, a importância dos bens comuns e a conexão com outras lutas sociais.  

Para Maria Emília, os desafios desta curva da história passam por desvendar e traduzir os mecanismos de dominação e opressão e controlar o poder das empresas transnacionais. Confira a conversa de quase duas horas com a assessora da Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase) e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

FIAN Brasil: Gostaria de começar pelos cinco anos em que a senhora presidiu o Consea. Pode comentar como apareceram e quais foram as principais disputas em torno da alimentação escolar que a senhora presenciou?

Maria Emília Pacheco: Naquele tempo estava em debate lá no FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação] uma resolução de número 26. Essas resoluções do FNDE sempre buscaram aperfeiçoar, detalhar mais os mecanismos de execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Naquele tempo funcionava um conselho consultivo, um comitê consultivo, com representação do Consea, da sociedade civil e também de movimentos sociais, e isso foi muito importante. Exatamente em dezembro de 2014, nós estávamos no Consea, a partir de um grupo de trabalho, debatendo o significado dessas iniciativas que iriam conter essa resolução 26. E foi bem interessante, porque se manteve um período de duração da chamada pública, que é esse mecanismo importantíssimo e inovador, que dispensa aquela providência licitatória. E nós insistimos que era importante, que a chamada pública fosse anunciada das formas mais diversas possíveis, que ela tivesse um número de dias com possibilidade dos movimentos sociais tomarem conhecimento, e isso era uma das nossas propostas.

Nós também insistimos que era importante reduzir a burocracia para a venda dos alimentos por parte dos agricultores familiares para o Estado. Naquele momento, por exemplo, se retirou a exigência que havia de consulta técnica aos extensionistas, da chamada Assistência Técnica e Extensão Rural [Ater], e responsabilizando apenas o profissional da nutrição, uma avaliação do alimento comprado e também, se necessário, uma consulta aos conselhos de Alimentação Escolar, os CAEs. Também naquele tempo discutíamos a necessidade de aumentar o prazo de validade das chamadas declarações de aptidão, a data sempre foi uma dificuldade para muitos movimentos conseguirem. Houve momentos em que, inclusive no Consea, nós propusemos que em lugar da exigência da DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf], como acesso às políticas públicas, que se trabalhasse com cadastros existentes, especialmente em se tratando dos povos indígenas, das comunidades quilombolas.

Bom, mas naquele momento, pelo menos nós estávamos insistindo que a DAP tivesse vigência por um período de tempo maior. E também, algo muito importante, que se mantivesse a possibilidade de compra de grupos informais, desde que alguma organização reconhecida publicamente desse um apoio para que grupos informais participassem. Então, são exemplos do que nós debatíamos na época do FNDE, e eu me lembro de ter sugerido aos colegas que representavam o Consea nesse comitê consultivo que não deixassem de valorizar a iniciativa do FNDE de nos consultar, ou seja, consultar os grupos de trabalho do Consea sobre as mudanças que iam imprimindo através das resoluções.

Eu queria ressaltar isso porque, a meu ver, isso tem um significado prático do que é a participação social, o controle social no escopo democrático, que é exatamente o que não temos hoje. Mas queria dar um exemplo do que você na sua pergunta chamou de disputas, que foram necessidades de mediação, isso em 2014, 2015. Em Santa Catarina nós estávamos, de fato, com problema, que chegou inclusive à necessidade da construção de um termo de compromisso e ajustamento de conduta, um TAC. Havia uma dificuldade muito grande por parte do governo de aplicar os recursos alocados pelo FNDE, destinados para a alimentação escolar, porque o recurso que era destinado, ele vinha um pouco misturado com outros itens de compra para escolas.

Então, eu até registrei aqui para lembrar que o TAC dizia que era preciso aplicar os recursos do Pnae exclusivamente na aquisição de gêneros alimentícios, desenvolvendo um processo de aquisição desvinculado de outras compras, porque, se não me falha a memória, era exatamente isso, a chamada pública era para a alimentação escolar, mas também para outros produtos destinados ao ambiente escolar. Isso trazia uma complicação na execução desse programa. Então, o TAC era para insistir que houvesse a destinação de pelo menos 30% e que seguisse os trâmites que a própria legislação reconhece.

Eu estou me referindo exatamente à legislação de 2009. Então, veja que nós estávamos no tempo histórico curto ainda, a Lei 11.947, que aperfeiçoou esse programa, é de 2009 e eu estou falando de algo acontecendo entre 2014 e 2015, que era um período em que a gente recebia, de fato, muitas queixas de não cumprimento por parte das prefeituras, daquilo que era estabelecido pela lei, porque a chamada pública não é colocada como instrumento obrigatório, mas é estimulado que seja aplicada. Por outro lado, esse momento de tensionamento, de ver como encaminhar, eu até acompanhei representantes do Consea e também do chamado Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar, o Cecane. Acompanhei pessoas representantes dessas entidades no diálogo com o FNDE para ver como mediar essa situação lá com o governo de Santa Catarina. Porque um dos aspectos contidos nestas dificuldades é que, em muitos lugares no Brasil e lá mesmo em Santa Catarina, havia a terceirização da alimentação escolar.

Eu quero insistir nesse aspecto, porque esta proposta contra a terceirização da alimentação escolar era parte de nossa pauta de propostas quando se decidiu sobre essa lei 11.947, mas não fomos vitoriosos. Eu digo “nós” me referindo especificamente ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, mas também de outras organizações que estavam mais engajadas, através do Consea, no debate sobre a formulação das propostas dessa lei. Mas nós não concluímos, não conseguimos que lá se incluísse a proibição da terceirização. Mas o debate em Santa Catarina, através das conferências estaduais e municipais, chamava a atenção para a necessidade de um processo de desterceirização, entendendo que, mesmo que ela não seja proibida na lei, a lei chama a atenção para, pelo menos os 30% de compra da agricultura familiar, [a prioridade para] povos indígenas, comunidades tradicionais. Então, esse foi um exemplo que também esteve acompanhado de outros, que a gente recebia cartas, às vezes, dos conselhos municipais, como eu disse, chamando a atenção para o fato de que não estavam sendo cumpridos esses princípios estabelecidos na própria lei.

Mas quero dar mais um exemplo, que foi em 2015, quando nós fizemos uma recomendação, pelo Consea, ao Ministério da Educação. Foi exatamente insistir naquilo que a própria lei estabelecia. Vocês vejam que esse é um processo de construção, e eu vou dizer permanente, que nos tempos atuais, sobre os quais falarei depois, temos outros desafios diante de retrocessos. Mas, naquele momento, em março de 2015, nós falávamos exatamente da necessidade de ampliação de medidas que estimulassem tanto a compra da agricultura familiar como também o controle social para que este programa tivesse a sua plena execução.

Mas, entre as medidas que são disseminadoras de práticas alimentares e sustentáveis, também chamávamos a atenção para a necessidade de reduzir, de colocar barreiras a esse domínio das empresas sobre a alimentação escolar. Falávamos disso, que é preciso restringir a presença da indústria alimentícia e também nas cantinas, mas era nesse sentido de recomendação, como eu lhe disse, não havia proibição clara. E também chamávamos a atenção para a importância de fortalecer este comitê consultivo a que eu me referi no plano federal, e também nos municípios e estados que houvesse cada vez mais uma atenção para a constituição dos conselhos de Alimentação Escolar, os CAEs. Então, insistimos também nesse fortalecimento do controle social do programa. E ainda chamávamos a atenção para esse risco muito claro, que já vinha ocorrendo e infelizmente permanece no Brasil, com a mudança da transição nutricional, com o aumento da obesidade, e por isso chamando novamente a atenção para aquilo que a lei estabelece, que é a valorização dos alimentos in natura, de acordo com a estação do ano também, em locais, regionais. Fazendo, portanto, um chamamento para o impacto que têm os ultraprocessados sobre as doenças crônicas não transmissíveis, obesidade. E também incluímos a necessidade de fazer um reajuste per capita do valor atribuído para alimentação escolar.

Nós tínhamos tido uma atualização anos antes, na primeira gestão, foi até na gestão do Francisco, do Chico Menezes. Já dizíamos novamente, que era importante um reajuste, mas também não chegamos a fazer uma proposta de quanto. Nesse momento tem esse debate novamente sobre o reajuste. Então, são exemplos de procedimentos que fomos adotando. E é preciso também reforçar que na conferência nacional – que foi a última que se realizou –, em 2015 [5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], houve um lugar de proeminência também de propostas em relação ao Pnae, nessa linha do que eu estou dizendo, de aperfeiçoamento, de redução de burocracias, de reajustes de per capita etc. Esse programa sempre teve um caráter estratégico para nós.

FIAN: Antes de a gente passar para a próxima, eu queria só confirmar se a questão foi com o governo de Santa Catarina, não municípios catarinenses.

Maria Emília: É, governo estadual, vou até confirmar. A terceirização do alimento escolar no estado, o debate estava exatamente nesse escopo da proposta de desterceirização da política de alimentação [escolar]. Eu salientei este exemplo porque ele é bem significativo, por que Santa Catarina, eu me lembro de ter participado de debate lá, tinha um Cecane, que era esse centro de colaborador em alimentação e nutrição escolar extremamente ativo, com pesquisas, com estudos muito atualizados e também um Consea [estadual] muito ativo. E um estado em que há uma produção muito significativa também da agricultura familiar, inclusive com iniciativas de valorização de frutos nativos, que passaram a ser transformados e gerar sucos de frutas nativas, geleias. Eu me lembro aqui do butiá, por exemplo, um fruto pouquíssimo conhecido, talvez, da Mata Atlântica, um fruto nativo. Então, tinha uma dinâmica muito forte com a presença da Rede Ecovida também, que articula um conjunto enorme de associações, cooperativas, muito engajados também na produção para a alimentação escolar, enfim. Acho que esse exemplo de uma reivindicação tão explícita, tão enfática de lá, advém também desse ambiente de construção, de busca de construção na prática da política. Isso é bastante interessante, por isso que eu dei esse exemplo.

Mas eu me lembro também de uma carta que nós recebemos lá de Pelotas, no Rio Grande do Sul, também carta do Consea municipal, de organizações sociais, que também chamava a atenção para essas dificuldades que eu dei exemplo. Dificuldade da DAP de umas associações, para dificuldade de muitas prefeituras praticarem em alguns lugares uma chamada pública. Eram sempre questões dessa natureza, e nós fomos vivendo e procurando sempre dialogar através de propostas, através destas resoluções também do FNDE. Essas normativas infralegais – acho que o nome é esse, não é? –, elas são muito importantes, porque é lá que você encontra os mecanismos que favorecem ou criam barreiras, às vezes, para a execução de propostas, porque, às vezes, os programas públicos têm uma definição geral extremamente valiosa, objetivos muito bem formulados, densos. E quando você chega nos mecanismos, nos instrumentos, aí criam-se barreiras, muitas vezes intransponíveis para certos segmentos do campesinato.

FIAN: Certo. Pensando que a entrevista é um pouco para quem já acompanha essas discussões, mas também buscando chegar a um público que não tem tanto contato – o Pnae e outras políticas públicas têm uma certa translucidez, muita gente que é beneficiária não sabe da existência daquele programa de quase 70 anos – a senhora pode só comentar o que a terceirização implica? Por que desterceirizar ou evitar que esse modelo se espraiasse era uma prioridade?

Maria Emília: Então, porque historicamente, no Brasil… Esse programa é bem antigo mesmo, como você acabou de dizer, é da década de 50 e ele passou por muitas transformações, mas teve um caráter muito assistencialista, inclusive da ajuda alimentar, que chegava aqui. E as empresas sempre estiveram com total liberdade para participar dos editais. Empresa alimentícia participando dos editais, que alimentos são oferecidos? Será que também podemos falar de alimento propriamente dito, ou são fórmulas, formulações dos produtos alimentícios? É muito importante você fazer essa pergunta, porque há depoimentos, tem um artigo que eu fiz, que vai ser publicado agora, eu acho. Que é um pouco uma leitura de alguns depoimentos de quilombolas e indígenas sobre o tipo de alimentação que chegava ou chega nas escolas.

E havia e há uma queixa: por que as escolas oferecem um biscoito recheado e não oferecem um alimento tradicional daquelas culturas alimentares? Eu vou tomar a liberdade de ler o depoimento aqui, para ficar bem claro o que eu quero dizer, vou ver se eu encontro aqui, porque eu anotei isso. Eu ia falar que os indígenas lá em São Paulo disseram uma vez. Quilombolas lá em Oriximiná, por exemplo, no Pará, eles fizeram uma reivindicação para a prefeitura para aumentar a compra de alimentos tradicionais como farinha de tapioca, biju, banana, jerimum, cará e outros, e faziam críticas à oferta de bolachas, porque esse é o termo usado lá na Amazônia para biscoito. E também para outros produtos industrializados, porque não faziam parte da cultura alimentar e nem eram saudáveis. Então, tem registro de reivindicações, de protestos.

Em São Paulo, os indígenas, dizem em um estudo que eu fui ler. “É tudo enlatado”, questionam. “A gente quer a comida tradicional, mas ainda não tem na escola. No meu conhecimento, o ideal era servir biju, banana com peixe, que é da tradição, o nosso bolo de milho índio, gostoso, que serve para comer com peixe e com o que tiver.” Isso, da Terra Indígena Vanuire. Assim disse uma liderança. Bom, há a liberdade de as empresas participarem das chamadas públicas, então significa a presença exatamente desses produtos alimentícios que quilombolas e indígenas e camponeses nos lugares recusam, eles querem insistir nos alimentos, e com muita justeza, no alimento saudável, tradicional. Por isso é importante, eu vou pular um pouco o tempo da história.

FIAN: Seria, no caso, essas empresas assumindo o fornecimento a uma escola?

Maria Emília: Isso, são as empresas participando de editais e entregando esses alimentos na escola. E isto é muito comum ainda pelo país. Nós não podemos dizer que todas as prefeituras nos estados do país cumprem esses 30% [da agricultura familiar]. Então, quando nós, na proposta a qual estava sendo discutida no Congresso Nacional esta lei, a que eu me referi, de 2009, nós dizíamos “Vamos proibir terceirização, vamos colocar: O alimento tem que ser o alimento saudável e o alimento tem que vir da agricultura familiar, o Estado precisa se comprometer com esta proposta que os alimentos devem ser fornecidos pela agricultura familiar”, porque daí vem o alimento saudável, e por que também sempre associamos a ideia de que é preciso fortalecer a agricultura familiar, não só através de um programa como o Pnae, mas é preciso que haja fomento, crédito, haja iniciativas e outros campos da política que favoreçam a produção de alimentos saudáveis. Então, não dá para pensar na agricultura familiar dissociando programas, que são fundamentais para fortalecê-la.

Mas, nós dizíamos, do jeito que estava, era preciso ter pelo menos ter um controle da terceirização, da presença do fornecimento de produtos ultraprocessados pelas empresas nas escolas, precisava ter um controle sobre isso. Na verdade, até chegamos a dizer: se não vai ser proibido, tem que ter um controle, é o que essa recomendação nossa do Consea, também em algum momento insistiu, é preciso controlar. E por que isso? Porque a escola é muitas vezes, no Brasil, um local por excelência onde as crianças têm o alimento. Por isso que na pandemia se aprofundou muito também a fome na situação das crianças, que provavelmente os inquéritos, as análises que serão feitas por agora, daqui para a frente, seguramente vão mostrar uma alteração no estado nutricional das crianças, no peso delas, enfim. Porque a fome é acompanhada também da desnutrição e também da obesidade. Bom, e nesse tempo de pandemia, em muitos lugares não houve oferta do alimento, ou quando houve, em muitos lugares foi através do voucher, para as famílias comprarem exatamente ultraprocessados em mercados, nos supermercados, em grandes cadeias. Então, essa é a ideia. Por isso que, quando a lei fala em conta da agricultura familiar, teve que adequar também o instrumento. Por isso se fala da chamada pública, que é um instrumento que favorece a participação dos agricultores, não sei se ficou claro agora.

FIAN: Ficou, sim, obrigado. Então, a próxima pergunta é sobre o seu discurso no encerramento do mandato no Consea. Ali, a senhora listava avanços que foram possíveis, alguns desafios ainda e ameaças, riscos iminentes. Eu queria saber em que pé nós estamos em relação àquele momento.

Maria Emília: Naquele momento eu salientava, eu destacava a saída do Brasil do Mapa da Fome, falava da importância da conjugação de iniciativas, como valorização do salário mínimo, aquele quadro de empregabilidade no Brasil muito mais favorável, dava o exemplo, também, desses programas que representaram uma inovação na nossa história, esses programas como o programa de alimentação escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos [PAA], que vinculam política social com segurança alimentar e nutricional, instrumentos da política agrícola. Enfim, essa foi uma inovação, uma nova geração de políticas que estavam sendo implantadas no país. Chamava a atenção também para a importância dos programas de convivência com o Semiárido. Mas, ao mesmo tempo já mostrava os riscos. Eu vou sublinhar principalmente esses riscos, porque este é o quadro em que se aprofundou no caminho mais do que do retrocesso, mas também da destruição de políticas que estavam sendo construídas para dar um sentido ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional [Sisan] e à Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. É importante dizer isso, porque isso ocorreu nesse período, a política veio lá de 2007, se não me engano, mas também em 2012 criou-se o decreto da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [Pnapo]. Então, um caminho virtuoso vinha sendo trilhado e este caminho foi interrompido. E mais do que interrompido, a destruição é bastante grave.

É importante dizer que eu também falava como risco naquele momento da volta do país ao Mapa da Fome e lamentava que exatamente naquele ano, em que se completavam 70 anos da Geografia da fome, do grande Josué de Castro, nós já prevíamos a volta para o Mapa da Fome, que se concretizou e sabemos o quanto se agravou. Agora, com cerca de 10% da população brasileira em uma situação de fome, e a metade da população brasileira com algum grau de insegurança alimentar e nutricional. Já chamava a atenção também para a proposta que estava sendo debatida no Congresso, que era a emenda constitucional do teto de gastos públicos, a chamada PEC 55. E nós tínhamos enviado, naquele período, um manifesto para o Senado Federal, chamando a atenção sobre as implicações da votação da emenda constitucional para as políticas sociais. E isso foi se concretizando, mas veja só que nós já estávamos naquele momento, eu estou falando exatamente de 2016, já havia sido extinto o Ministério do Desenvolvimento Agrário [MDA], secretarias voltadas para os direitos humanos, igualdade racial, política pública para as mulheres, o que mostrava um total descompromisso, já naquele momento, já estávamos aí pós-golpe no governo Temer. Um descompromisso com os sujeitos de direito, podemos dizer assim.

E quero também dizer, porque essa é uma situação que está se agravando cada vez mais, a situação dos povos indígenas. Nós havíamos feito uma comitiva para a região das etnias Guarani e Kaiowá, no cone sul do Mato Grosso do Sul, havíamos constatado um quadro de violência, com mortes por assassinato, preconceito, violação do direito humano à alimentação, uma verdadeira tragédia humana. Assim que eu sintetizei a gravidade daquele quadro, eu até me reportei ao discurso de posse. Quando eu disse que os indígenas estavam gritando: Vare’á!, V, A, R, E, apóstrofo, A, com acento agudo no A. Isso, em 2012, uma expressão que quer falar da ausência do broto da semente para exprimir a fome. Essa foi uma expressão, também de uma indígena, uma liderança guarani que participava lá no Consea, na verdade, este quadro só se acentuou com essa negação do que os indígenas Guarani chamam os seus tekoha, que são os lugares de pertencimento, eles produzem sua cultura, seus alimentos, cultivam a solidariedade, enfim, sintetizam o seu modo de ser. E essa situação dos povos indígenas se agravou, tem agravado profundamente, porque, além de se manter, já falávamos, naquele  momento, na nossa luta, através do Consea, era a favor do arquivamento da PEC que é a Proposta de Emenda à Constituição 215, sobre a demarcação, intitulação das terras indígenas, o risco de serem terras para extração mineral.

E hoje, o que nós vemos, com a expansão do garimpo, da mineração, esse debate ainda inconcluso sobre o marco temporal, que é um absurdo, e que seja reconhecida pelas terras indígenas que, a partir da Constituição de 88, isso é uma afronta a esses povos originários, que viviam sob a tutela do Estado, que não tinham o direito sequer de reclamar sobre seus próprios direitos. A Constituição de 88, que dá esse impulso, supera essa relação de tutela, mesmo assim, ainda no Brasil essa dificuldade de se referir aos povos indígenas como povos que são, enfim. Então, também naquele momento, como eu disse, essa situação está só se agravando. Agora, é importantíssimo ver a capacidade de resistência desses povos, como vimos agora, recentemente um acampamento em Brasília, na formação também das brigadas contra os incêndios criminosos, capacidade de resistência que a sociedade precisa reconhecer e entender e apoiar.

Mas, também, naquele momento chamava a atenção para a realização do encontro da Articulação Do Semiárido, era o Enconasa naquele período, com aquele lema tão importante, tão significativo, e se diz lá na Caatinga que o Semiárido é o lugar onde a vida pulsa e o povo resiste – é muito interessante. Eu quero chamar a atenção para aquela conquista que vinha sendo construída, que é bastante profunda, significa a mudança de um paradigma, a convivência com o Semiárido se baseia na noção de estoque. Estoque de terra, estoque de alimentos, estoque de sementes, estoque de alimento para as cabras, para o gado. Enfim, é uma mudança de paradigma, porque veio para combater aquela visão de seca e também do clientelismo que sustentava esse fornecimento de água, de carro-pipa etc.

E, lamentavelmente, em 2016 já questionávamos a redução do orçamento. E agora, tanto naquele programa Um Milhão de Cisternas, como também do P1+2, que é o Uma Terra, Duas Águas, e também apoio a casas de semente. Mas esse programa Uma Terra, Duas Águas é muito importante, porque significa água para produção. Imagine agora, praticamente inexistem no orçamento recursos para a continuidade desses programas. Então, é uma situação de um retrocesso inominável, o descompromisso do Estado, embora nossa Constituição tenha lá escrito o artigo 6º, que responsabiliza o Estado pelo direito humano à alimentação adequada. Nós vivemos tempos de permanente violação desses direitos, como eu disse, os dados atuais neste inquérito sobre a situação alimentar e de segurança alimentar no país revelam que não está mais na pauta de uma forma enfática, a defesa desse direito e com políticas e programas que sustentem a realização desse direito.

FIAN: E bem no primeiro ato, formado o governo Bolsonaro, teve aquela medida provisória, a MP 870, que extinguiu os colegiados, se não me engano, os não regidos por lei própria, mas colocou mesmo os que tinham lei própria no limbo. Então, no campo de soberania e segurança alimentar, que reorganização, rearticulação foi possível e foi necessária? Como isso caminhou desde então?

Maria Emília: Eu também quero lembrar que, no discurso de final de mandato, chamei atenção para a importância de uma iniciativa, que também nós estávamos constituindo, que era a interação cada vez maior entre o Consea, mas também com a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [Cnapo], com o Conselho Nacional de Saúde [CNS], o de Assistência Social [Cnass], que é aquele princípio da intersetorialidade que rege, que regeu a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e é muito importante, muito significativo. E nós vínhamos, já naquele período pré-golpe, fazendo algumas manifestações conjuntas de debate e também de audiência pública junto com a Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional, com participação de integrantes da Frente da Agricultura Familiar. Então, eu quis chamar a atenção para isso, quase chamando atenção para um novo passo e veja só o que acontece, pouco tempo depois o próprio Consea é extinto. Bom, nós tivemos muitas manifestações no Brasil extremamente significativas, como o Banquetaço, que se irradiou pelo país e teve sentido também de protestar contra a extinção do Consea. E me lembro de uma ação, de uma manifestação que tivemos aqui no Rio, com a Ação da Cidadania, um quilômetro de mesas com pratos vazios, que era exatamente o inverso do Banquetaço, exatamente como uma expressão de denúncia. E depois fizemos também um banquetaço. Mas, quero atribuir aí um papel nesse período muito importante ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, porque, ao realizar, em 2018, o oitavo encontro nacional dos fóruns, nós exatamente fizemos com a pergunta: como não falar – o “não” entre parênteses  – de comida de verdade se a fome está de volta? E nos manifestávamos, com os nossos quase 20 anos de ativismo e resistência.

E nesse encontro, exatamente problematizando já esses desafios, esses retrocessos. Até que chegamos a propor uma oficina, porque veja, com a extinção também do Consea, antes mesmo, já havia ficado no limbo a realização da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. E nós vimos que não podíamos impedir, barrar, frear esse processo, pelo contrário, exatamente porque mantivemos a nossa firmeza na defesa da Constituição, no que concerne aos direitos e também com esta ênfase em não retroceder na história e tentar avançar. Nós, então fizemos uma oficina de mobilização em defesa da cidadania, da segurança alimentar e nutricional, e nós retomamos uma leitura crítica, evidente sobre conjuntura e questionando  essa Medida Provisória 870 etc. e tal. Dissemos que era importante convocar por nós mesmos, por nossas forças, como sociedade civil, uma Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. E é bom que se diga que nós o fizemos num contexto em que muitas manifestações também estavam ocorrendo no Brasil, já tinha ocorrido a 6ª Marcha das Margaridas, que as mulheres trabalhadoras do campo, da floresta e das águas, com o lema “Na luta pelo Brasil, soberania popular, democracia, justiça e igualdade, livre da violência”. Tinha havido a Marcha das Mulheres Indígenas também. Tinha acontecido o Acampamento Terra Livre, que tinha sido realizado em abril, pelo movimento indígena. Enfim, essas manifestações também foram atravessadas, nelas se incorporou também a luta pela continuidade desses programas e pelo direito humano à alimentação, e tudo isso.

Portanto, quando nós concluímos pela importância de realizar uma conferência popular, nós o fizemos buscando realizar uma conexão entre dois processos, porque as conferências estaduais e municipais já haviam sido realizadas. Então, nós dissemos: “Vamos fazer um processo virtuoso, vamos relacionar esse processo institucional”, porque os Conseas estaduais – é claro que mais em alguns lugares, mais em uns estados do que em outros – estavam ativos. E também conselhos municipais, não tantos, mas vários conselhos municipais pelo país. Dissemos: vamos juntar isso como uma iniciativa de mobilização de movimentos sociais, ONGs, articulações etc. no caminho de uma conferência popular, autônoma, com direitos, democracia, soberania e segurança alimentar e nutricional. E assim fizemos e construímos uma comissão organizadora, com mais de 20 organizações, entre elas a FIAN, o fórum, evidentemente, a Fase, entidade em que trabalho, foi indicada para essa comissão organizadora.

E nós seguimos então este período, tomando iniciativas que tiveram vários sentidos, não só fizemos debates virtuais sobre o impacto da pandemia na situação de segurança alimentar e nutricional do país, como fazemos debates da importância de comitês emergenciais para enfrentar esta situação na pandemia, aplaudimos e debatemos também o incentivo dos comitês e das iniciativas de solidariedade cidadã, realizada pelos movimentos sociais nos bairros populares, nas periferias, assim como articulações outras. Mais recentemente, tomamos a iniciativa de fazer o Tribunal Popular sobre a Fome e concluímos já o nosso ano agora com essa jornada de debate, com tribunal popular e também com uma sistematização de uma agenda de mobilização que vai permanecer. E essa agenda também foi construída a partir dos debates que nós realizamos nas várias regiões do país, com a presença muito ativa dos Conseas estaduais, de movimentos populares etc. Então, veja que, nesse contexto de destruição de políticas, de retrocesso e de medidas autoritárias, antidemocráticas, nós conseguimos manter acesa esta causa, que tem relações com várias políticas e com vários atores sociais, enfim.

FIAN: E o tribunal, em um julgamento político…

Maria Emília: O tribunal tem uma sentença, nós buscamos a colaboração, evidentemente na expertise dos profissionais na área, e ele se realizou mesmo simbolicamente como um tribunal e com uma sentença, que acusa o Estado brasileiro de violador dos direitos. E a nossa perspectiva é dar continuidade, fazer chegar essa sentença onde ela precisa chegar, no sistema de justiça, porque também é bom lembrar que lá no Supremo Tribunal Federal tem uma ADPF [arguição de descumprimento de preceito fundamental], que é a 871, e tem agora a 883, da Ação da Cidadania. E que nós, ex-presidentes de Consea, entramos como amicus curiae, também o Conselho Nacional de Direitos Humanos entrou, a FIAN… E nós queremos também, com essa sentença do tribunal popular, reforçar a importância do julgamento dessas ADPFs. E queremos manter esta agenda de mobilização no contexto eleitoral.

Sim, eu queria acrescentar também que nossa mobilização na conferência popular ecoou também em um debate sobre a Cúpula dos Sistemas Alimentares [da ONU] e fizemos parte aqui de uma articulação latino-americana, que se manifestou com documento que também introduziu debate. E tanto é que nós temos essa perspectiva, através da conferência, de dar uma continuidade nesse debate sobre os impactos dos resultados da Cúpula de Sistemas Alimentares. E inclusive, relacionar com os impactos agora da COP 26 [conferência das Nações Unidas] que acabou de ser realizada sobre o clima. E também queremos analisar o que será a COP sobre biodiversidade no próximo ano. Compreender a crise alimentar em suas várias manifestações significa fazer uma análise comparativa do que é a questão climática e ambiental hoje, como também o que significa o avanço do domínio das corporações nesses vários terrenos.

Na verdade, a Cúpula de Sistemas Alimentares foi uma cúpula de captura corporativa no sistema alimentar. Por isso que nós nos mantivemos com a firme decisão de que, para contrapor a esse domínio de corporações, é preciso que a gente mantenha no centro o direito humano à alimentação, que nem constava nos debates da cúpula e depois entrou marginalmente. Mas no centro, para nós, está a questão dos direitos humanos, a soberania alimentar – que por sinal também acaba de fazer 25 anos agora este ano, a construção histórica desse conceito –, e articular com a agroecologia, com os princípios da agroecologia, não como alternativa, mas como um imperativo para enfrentar a crise alimentar nos seus vários sentidos.

É preciso que a gente aposte nos sistemas alimentares com sua diversidade, de acordo com os princípios da agroecologia, que nos recoloca na relação com a natureza e nos traz também a valorização dos saberes tradicionais, em diálogo com saberes técnicos, e sobretudo a diversidade dos alimentos e da alimentação é cada vez mais uma necessidade, porque os nossos padrões alimentares vão ficando cada vez mais restritos, monótonos, com a imposição desses ultraprocessados, da indústria alimentícia. Por isso que precisa também combinar com regulação do Estado, que sempre foi um tema de debate nosso, no Consea.

A todo tempo nós trazemos, não só como eu exemplifiquei, uma problematização do que oferecem as cantinas alimentares, as cantinas nas escolas, mas também o que representa o peso do ultraprocessado na alimentação escolar. Mas, também, insistindo que precisa haver uma regulação da publicidade de alimentos, que atinge muito as crianças, tanto é que o Conanda [Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente] chegou a se manifestar a respeito, também sempre defendendo, nós defendemos a rotulagem para anunciar o que são os transgênicos, e a rotulagem nutricional. Finalmente, no ano passado, o Brasil acabou adotando uma rotulagem frontal, mas não exatamente como a gente propunha, como é no Chile, que representa mais uma atitude de prevenção – tem mais nitidez o símbolo adotado lá para chamar a atenção de consumidores sobre o que representam os riscos para a saúde humana desses produtos químicos que entram na composição desses ultraprocessados.

FIAN: Certo. Então, em um evento recente nosso, da FIAN, a senhora participou e passou por vários elementos, como agora está tecendo esse cenário, essa conjuntura e deu ênfase a uma ideia que é a do direito ao gosto. Pode explicar o que essa expressão significa e como ela se relaciona com esses elementos?

Maria Emília: Bom, é que na atualidade, de fato, nós vemos crescer para alguns segmentos da sociedade – isso infelizmente não é traduzido, como eu já disse, nas políticas e programas  –, que cresce o debate dos sistemas alimentares e sua relação com a saúde, com meio ambiente. Fala-se também da necessidade de dietas sustentáveis, saudáveis. E eu costumo acrescentar que é preciso incluir o direito ao gosto. Por que eu digo isso? Por várias razões, primeiro porque, falar do direito ao gosto, significa a gente se remeter aos hábitos alimentares, que são tão distintos historicamente no país. Eu me lembro, lá em São Paulo, em dado momento em que queriam defender a proposta da chamada farinata, que nós acabamos chamando de ração humana para os pobres. Naquele momento, alguns políticos diziam que o pobre não tem hábitos alimentares.

Então, é extremamente grave você negar a humanidade ao humano e falar do direito ao gosto, significa, portanto, a meu ver é uma conjugação de questões, porque se relaciona com a visão que nós temos da comida de verdade como um patrimônio e não uma mercadoria. E isso é defendido pelo fórum, o fórum tem uma campanha que vai entrar agora na sua quarta etapa, que fala da comida como um patrimônio, porque isso remete à variedade de culturas alimentares, a memória alimentar, que presidem essa visão. E, ao mesmo tempo, quando a gente fala da crise alimentar, essa crise combina o aumento da fome com o processo de financeirização, de artificialização da natureza, porque nós temos uma destruição, a gente chama de uma erosão da nossa biodiversidade, contaminação de alimentos, dos solos, ao mesmo tempo que cresce essa indústria e consumo de ultraprocessados e tecnologias que vão nos afastando da variedade de alimentos e dos seus gostos. Então, a ideia da saúde, tem que vir combinada também com a ideia do prazer.

E quando a gente fala do gosto, como eu disse, nós nos remetemos também à história, que é uma maneira de pensar, as formas também de dominação. Tem havido lugares no Brasil, felizmente, que se inicia o debate da relação de sistemas alimentares e racismo. A nossa história é uma história que contém, muitas vezes uma classificação de alimentos que está relacionada com o domínio, com a dominação colonial. Então, é uma gama de sentidos que, a meu ver, por exemplo, se nós falamos dos ultraprocessados, que é uma forma, a meu ver, de enganar o gosto, eu diria, porque essas formulações que tentam imitar, elas estão baseadas mesmo em alguns alimentos in natura. Os ultraprocessados têm um bocado de soja, de milho. Agora, combinado com essas substâncias, espessantes, aromatizantes, são muitos aditivos que mexem com os nossos sentidos sensoriais. Então, é diferente você fazer uma batata assada em casa, que comprar uma batata congelada, que dura não sei quanto tempo dentro da geladeira, ou algum produto que dura lá na prateleira.

São incógnitas, uma nutricionista, Regina Miranda, que cunhou essa expressão muito interessante, ela disse “incógnitas alimentares”, é isso mesmo, não sabemos como decifrar esses aditivos todos. E eles têm um efeito sensorial, mas isso, é como eu digo, engana também o gosto. Tanto é preciosa a classificação pioneira no Brasil, feita pelo Guia alimentar para a população brasileira, na sua edição, que vem lá do período em que eu estava na presidência do Consea, é uma grande satisfação lembrar disso, foi no ano de 2014, se não me falha a memória, e também é interessante o livro lançado na época, ambos pelo Ministério da Saúde, que é um livro de alimentos regionais brasileiros. E essa é uma lição básica que o guia alimentar traz, a importância do consumo in natura, e ver que a população brasileira está consumindo cada vez mais ultraprocessados, porque é este alimento que engana o gosto, é barato e que provoca essas alterações, alergias alimentares e também diabetes, variação de pressão arterial e tudo isso. Então, eu acho que eu penso que falar do direito ao gosto é, na verdade, um chamamento para esses debates políticos profundos e para reconhecer o que é o nosso país, costuma-se dissociar muitas vezes a rica biodiversidade do Brasil com quem protege essa biodiversidade.

Então, falar do gosto é também chamar atenção para quem protege a biodiversidade, com os seus frutos nativos, com suas variedades tão grandes, que são um legado de permanência da domesticação de plantas e do manejo delas, e também do cultivo diverso, como, eu expliquei, os princípios da agroecologia nos inspiram. Há povos indígenas que tem que manter, que asseguram essa diversidade, e é como coleção de plantas, esse sentido que se afugenta com o processo de financeirização da natureza, de artificialização, ele é mantido pelos povos indígenas em comunidades tradicionais, e isso, é preciso que a sociedade entenda que é importante para nossa saúde e, por isso acho que falar do direito ao gosto é uma maneira de estimular o debate, uma maneira de entrar na história dos alimentos e dos povos na nossa plurietnicidade, que é tão rica no país. O respeito e proteção são vanguardas para esses povos, que o segmento do campesinato, com seus sistemas agrícolas. E nós corremos o risco de perder esse direito ao gosto, com essa artificialização. Imagine que agora já falam nos alimentos produzidos em laboratório e, muitas vezes, essa defesa é como se fosse uma proteção para natureza.

É um equívoco, eu acho que a pandemia nos ensina o quanto nós precisamos retomar o debate da relação cultura e natureza, sociedade e natureza. Não é ela continuar sendo subjugada, como é pelo agronegócio, que destrói, que desmata, não é o caminho, mas também não é o caminho manter a natureza intocada, Carlos Diegues nos ensinou sobre o mito da natureza intocada. Nós precisamos retrabalhar essa relação com a natureza, inclusive porque a natureza também é produzida socialmente, a floresta amazônica nos ensina que são milhares e milhares de anos para compor aquela floresta, com as suas espécies e variedades e seus gostos, que, infelizmente muita gente, às vezes nem conhece ainda, às vezes é tal a dimensão de um país continental, com tantos biomas, tantos povos, que é uma complexidade. Então, façamos a defesa ao gosto junto, que é estar junto com a defesa do direito a uma alimentação que seja de qualidade.

FIAN: Só um parêntese, viajando um pouco, mas me ocorreu uma associação, porque na natureza existe o vermelho forte, o amarelo forte, existem padrões ali que são o oposto da camuflagem, são padrões de alerta. Então, tem flores venenosas, cobra-coral, algumas espécies de vespas. E os ultraprocessados operam em uma lógica meio contraditória, que é como se fosse tudo gritante, vem ingerir esse veneno, no fim das contas é como se fosse um sinal trocado de alerta.

Maria Emília: É verdade, é interessante o seu pensamento. E operam também de uma forma gritante a maneira como são anunciados os novos produtos. Eu me lembro, inclusive quando nós cunhamos aquele lema comida de verdade no campo e na cidade, com direito à cidadania alimentar, que foi exatamente o lema da última conferência nacional, pouco tempo depois, esses produtos ultra processados apareciam em campanha publicitária, chamando de comida de verdade. É uma total inversão.

FIAN: Ele tem um refinamento, que é justamente isso. Gastam bilhões e mais a publicidade para aquilo ficar com: aqui você vai sentir o gosto de infância, com essa coisa feita de inúmeros pozinhos.

Maria Emília: E com uma inversão total, porque, se a gente for pensar na questão da tributação, é um escárnio que acontece no país, porque os agrotóxicos comercializados também têm lá uma benesse em relação ao tributo. E também, as empresas que produzem as bebidas açucaradas, também tem lá. Eu até uma vez eu vi a dimensão disso, do ponto de vista monetário, é muito o que deixa de ser cobrado. E você veja que, por outro lado, nós vamos falar já do Pnae de novo. Por outro lado, você veja que esses programas que nós estamos falando sobre eles, vão perdendo o que tinha uma importância para a vida, para a saúde, vão perdendo orçamento, ou vão sendo descaracterizados, é muito grave, é uma inversão completa, eu acho que nós estamos vivendo também no tempo sem limites, sem barreiras para frear processos tão destrutivos.

FIAN: Verdade. Bom, então voltando ao Pnae, por que ele é considerado tão importante no combate à fome? Em que medida ele se liga às diferentes dimensões da sustentabilidade? Tem muita, se entrelaçam muito nesse sentido?

Maria Emília: Então, na sua concepção, com certeza essa lei aí de 2009, ela avançou significativamente. Como ele é um projeto, de fato estratégico, não me lembro se no início da nossa conversa, se eu cheguei a dizer que, nas avaliações do por que o Brasil saiu do Mapa da Fome, se inclui este programa, que é um dos maiores do mundo, no ponto de vista da população que atinge, que são milhões e por isso também são bilhões, é uma montante monetário enorme, que é uma forma de atrair as empresas. Participar desta grande fatia de mercado. Mas ele é estratégico e ele é muito interessante na história, porque ele atravessa, interessante no Brasil que ele atravessa a nossa história, chegando a milhões de escolares hoje.

Agora ele é um programa que inclusive passou a integrar uma diretriz da promoção de acesso a alimentação adequada e saudável na política nacional de segurança alimentar e nutricional. Esse reconhecimento, inclusive reconhecimento pelos legisladores também, é bastante importante nessa história, porque o Estado passou a valorizar outros valores nas aquisições públicas, como o aspecto social, o aspecto ambiental, a saúde, e não ficar reduzido àquilo que a licitação, que a Lei Geral de Licitações prevê, que é menor preço, concorrência. Então, você vê que tem uma inovação significativa, que nos remete a pensar, vamos dizer, nas dimensões de sustentabilidade.

Então, porque do ponto de vista social, assegurando a compra de 30% da agricultura familiar, povos indígenas e comunidades tradicionais, tudo isso também, do ponto de vista ambiental, a valorização do alimento local, de acordo com a época dos alimentos e da sua variedade. Então, ele relaciona e, portanto, buscando frear nas escolas. E como eu disse, não está estabelecido na lei, mas freia o consumo de ultraprocessados lá onde tem essa compra. Então, tem várias dimensões aí que se cruzam, mas acho que são bastante importantes.

FIAN: E que as propostas de mudança ameaçam…

Maria Emília: O que está acontecendo com esses projetos de lei é grave, porque tem uma tendência descaracterizar aquilo que deu esse sentido inovador ao programa, os legisladores querem agora estabelecer cardápios, vamos dizer cotas de determinado cardápio, do leite, leite fluido, leite em pó, da carne de porco, enfim, não cabe aos legisladores fazer esta proposta, é absolutamente contra os princípios que estão contidos na lei, que ressalta exatamente em nome de dimensões de sustentabilidade, a valorização do alimento local. Não é lugar de trabalhar num programa público desse, em que o Estado, vamos dizer, passou a considerar outros valores, imprimir um retrocesso desse em nome de reserva de mercado, é o que parece, reserva de mercado para laticínio, enfim. Então, é muito grave essa proposta de descaracterização.

E a redução do orçamento também é gravíssima. Porque um programa estratégico que precisa ser aperfeiçoado – acabei de dizer que a gente defende uma atualização do per capita, que aliás o Observatório da Alimentação Escolar está propondo atualmente – está lá no projeto de lei orçamentária, que é o POA, cai de R$ 4,6 bilhões em 2021 para R$ 3,96 bilhões em 2022. Ao mesmo tempo, alguém vai nos perguntar: sim, mas o governo acaba de editar alguma medida para aumentar o limite de venda dos agricultores, de R$ 20.000 para 40.000. Olha, essa é uma proposta polêmica, aumenta para atender a quem? Nós já vínhamos percebendo uma certa, como se diz, concentração de compra através de cooperativas maiores, mais estabilizadas, vamos assim dizer, isso em detrimento de pequenas cooperativas, de pequenas associações. De todo modo, eu quero é sublinhar isso sim, que aumentar o limite não significa a mesma coisa do que democratizar esse importante programa. Se aumenta o volume é uma parcela de agricultores que vão conseguir atender e não aquela parcela também mais pobre, que participa também do programa.

Eu conheço muitos exemplos, porque eu trabalho numa entidade que contribui apoiando os camponeses a acessar o programa de alimentação escolar, e em muitos lugares nós vimos que o exercício do PAA, o Programa de Aquisição de Alimentos, favoreceu também que essas organizações menores pudessem acessar depois o Pnae. Então, eu queria dizer o seguinte: tem uma contradição, se realmente vai ser reduzido o valor do orçamento do programa, e aumentar o limite para o agricultor, esta conta, esta equação não exprime, a meu ver, o que deve ser o princípio de política distributiva, em alguma sinalização aí que não coaduna.

FIAN: Certo. Então, aqui passando um pouco mais por esse caráter, tanto da política pública, quanto o debate em torno dela, que nem sempre transparece naquilo que chega à sociedade e aos beneficiários e beneficiárias específicos. Então, tanto os pratos, como os lanches oferecidos nas escolas, nem sempre é fácil ir além, compreender, saber dos debates e que você já passou bastante aqui e também dos interesses envolvidos, muitas vezes milionários ou bilionários. Por que é difícil isso chegar ao conhecimento das pessoas, até para a sociedade ter condições melhores de reivindicar, em uma situação de exigibilidade mais sólida?

Maria Emília: A meu ver, não é amplamente expandido na sociedade essa concepção mais abrangente, que articula várias dimensões da segurança alimentar e nutricional e soberania alimentar. E eu acho também que nas escolas, você veja, uma das conquistas importantes dessa lei de 2009 foi falar da importância da educação alimentar e nutricional. Tem experiências no Brasil muito exitosas, a entidade em que eu trabalho mesmo está com uma experiência lá na Bahia, que é de envolver o ambiente escolar, porque esse é um lugar muito importante para formar hábitos, para as crianças conhecerem, as crianças estão perdendo a informação sobre os alimentos em muitos lugares. E conversar sobre o cardápio, sobre a origem do alimento, o papel do agricultor familiar e até ter experiências de horta escolar. Tudo isso conforma um conjunto de iniciativas, levar para dentro do próprio currículo das várias matérias sobre o que é o alimento, tomando exemplos, e pode trabalhar com isso do ponto de vista da Geografia, da História, da Matemática.

E é muito interessante que lá no Consea nós escutamos, muitas vezes, experiências que estavam mais concentradas na Semana da Alimentação, aí as escolas fazem atividades extremamente criativas. Seria importante que fosse uma atividade mais constante, porque assim também irradia mais para a sociedade. Eu conheço um exemplo lá no Mato Grosso, também de uma articulação que se chama Arpa, que é articulação de produtores agroecológicos. Eles, quando começaram a fornecer alimentos para as escolas, o professorado mesmo se interessou por alimentos e começaram também a perguntar se não tinham galinhas.

Tem que explicar também que a legislação, a vigilância sanitária no Brasil, ela cria muitas barreiras para o alimento artesanal, eu até queria realçar uma iniciativa que precisa também ser conhecida, que é uma iniciativa do Ministério Público, que nasceu lá na Amazonas, que hoje está se estendendo pelo Brasil, a Catrapovos, porque diz respeito a alimentos tradicionais, que é esse debate de assegurar melhores condições para que o alimento artesanal, tradicional chegue nas escolas. Eles começaram debate sobre povos indígenas e também comunidades tradicionais, considerando que os indígenas, as escolas nas aldeias equivalem ao autoconsumo. Trazer o alimento todo processado, o alimento de outras regiões, além de ser desfavorável ao clima, rompe com a tradição da alimentação escolar, da alimentação tradicional.

Mas então, acho que tem um trabalho a ser feito nas próprias escolas, e por isso também eu disse que os Cecanes têm um papel importante, não sei se eles têm apoio hoje, mas já houve no passado esses núcleos nas universidades, eles participavam de editais que ocorreram para fazer esse trabalho junto ao Conselho de Alimentação Escolar e esses diagnósticos e tudo isso. Então, precisamos, não podemos nos abdicar desse papel na sociedade de manter acesa essa pauta da alimentação, com a sua qualidade, direitos. E eu acho que tem que aumentar o exemplo das experiências nas escolas. Nós, da Articulação Nacional de Agroecologia, junto com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, estamos fazendo uma pesquisa sobre alimentação escolar e estudos de caso em várias regiões do país e junto a escolas. Então, acho que isso também vai nos dar muitos elementos de análise, porque é uma análise sobre os vários atores envolvidos, quem recebe o alimento, quem entrega o alimento, na escola também como age também o profissional de nutrição, o conselho, enfim. Essa análise conjugada, ela também favorece a explicação sobre o que significa essa alimentação que chega lá nas escolas, acho que é um pouco por aí, que é tornar mais conhecido.

FIAN: Aquela pesquisa que ia ser concluída no ano passado?

Maria Emília: E com a pandemia, foi adiada, não sei se vão conseguir concluí-la este ano também [a entrevista foi em dez/2021], ela teve o cronograma alterado, mas é uma pesquisa interessante.

FIAN: Bom, se as forças minimamente comprometidas com a ideia de um país mais justo conseguirem virar esta página que nós estamos vivendo, um termo que tem sido usado é o de reconstrução nacional. No campo de SSAN, que prioridades despontam para um momento como esse?

Maria Emília: Então: nós fizemos, no âmbito lá da conferência popular, nós acabamos fazendo uma agenda de mobilização que inclui, inclusive uma proposta, como eu disse é uma agenda resultando dos debates regionais e desses webseminários também, que nós fizemos. Mas há uma proposta de que a gente consiga uma verdadeira frente nacional em defesa desses programas, como PAA, Pnae, mas também na defesa da agricultura familiar, camponesa, dos povos indígenas, comunidades tradicionais. A gente tem que conseguir uma adesão ampla, mais ampla sobre isso. Também nós precisamos fortalecer essas articulações em defesa do direito à terra, do território, da agrobiodiversidade. Nós estamos atravessando, no país, um momento de uma reestruturação do mercado de terras, é uma quantidade grande de terra arrecadada pelo mercado, com essas mudanças, essa flexibilização de legislação fundiária, ambiental. Então, é muito grave o cerco sobre essas populações crescendo de uma forma absurda.

Mas também queremos reforçar essa perspectiva política, do que representa a cultura alimentar, que é uma forma também de luta pela comida, pelo alimento como um patrimônio, preservação do patrimônio alimentar. Isso é um aspecto bastante importante para nós. Inclusive, isso também foi uma história interrompida dentro do Ministério da Cultura, com a formação do conselho [Conselho Nacional de Política Cultural, criado em 2005], houve no passado recente, uma proposta para que se criasse um grupo de trabalho sobre a cultura alimentar. E isso foi aceito, na época, o ministro da Cultura estava até interessado em ingressar, em ser parte também do Consea, enfim. Agora, quando se discutiu a lei, Projeto de Lei Aldir Blanc, sobre cultura, que era um apoio emergencial para os realizadores da Cultura, se inseriu também lá a cultura alimentar, isso foi importante, embora os recursos, quando chegaram, eles não destinaram tanto aos pontos de cultura.

Mas tem um debate que ganhou um sentido maior nos últimos tempos e a gente precisa fortalecer, também as políticas de acesso à água, a água potável, de qualidade, saneamento básico, isso também é fundamental nessa agenda, priorizar a agroecologia, como uma possibilidade de construção de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. Nós temos insistido que temos que fortalecer o diálogo com articulações e frentes de combate ao racismo. E também a luta das mulheres, essa interação com os movimentos de mulheres, o movimento feminista é extremamente importante, porque as mulheres têm um papel extremamente ativo, tanto como eu disse, na proteção da biodiversidade e transformação dos alimentos. E é preciso romper com essa desigualdade e ver nas mulheres como sujeitos ativos, sujeitos que precisam ser fortalecidos na sua autorrealização, nas iniciativas que representem a emancipação política e econômica das mulheres. E aquilo que a gente vinha construindo com o programa de fortalecimento à produção de alimentos, por exemplo, pelas mulheres.

Algumas iniciativas e programas deixaram de existir. Nós temos que cerrar fileiras nessa movimentação para articular movimentos de mulheres, movimentos feministas. É preciso, evidentemente que só haverá Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com a reconstituição das bases de poder, de participação da sociedade, de formas de controle social. O Consea foi, por excelência, um lugar em que propostas de aperfeiçoamento de políticas, como o Pnae que nós estamos dizendo, proposta de novos programas, como o Programa Aquisição de Alimentos, PGPM-Bio [Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade], e também os programas sobre convivência com o Semiárido, enfim. É preciso que o Consea seja reconstruído nas bases em que ele era, dsois terços da sociedade civil, presidência da sociedade. E junto disso, a Caisan, evidentemente, que é a câmara interministerial. Porque também não há política de segurança alimentar e nutricional sem a inter-relação de políticas e programas de vários ministérios.

Bom, então são algumas propostas que a gente precisa considerar e essa interação com os outros conselhos, de saúde, de assistência social, para retomada também para uma comissão nacional de agroecologia é produção orgânica, tudo isso, essas interações no âmbito também da participação social, de incidência também, é bem importante. Mas, eu queria reforçar também o papel dessas frentes parlamentares, uma frente parlamentar de segurança alimentar e nutricional precisa exercer o papel extremamente importante, dialogando também com o Consea. São exemplos, a meu ver, dessa reconstrução. Mas tem uma questão fundamental, que programas e políticas sejam pensados a partir do princípio da emancipação. Nós estamos sob a égide neoliberal, em que o indivíduo, no caso brasileiro, inclusive passa a ser responsabilizado pelo seu próprio fracasso, pela sua história, quiçá até pela situação de insegurança alimentar que vive. Isso nós temos que questionar em permanência, essa visão, como a visão da “economia da prosperidade”.

É por isso que é preciso sedimentar propostas que sejam baseadas em princípios e valores, que tenham o sentido da política redistributiva, nós precisamos fazer a defesa de bens comuns, porque isso dialoga com essa visão da comida como patrimônio, porque as sementes precisam ser conservadas na sua diversidade e quem conserva é a agricultura familiar, camponeses também precisam de apoio das casas de sementes, intercâmbio de sementes. A semente tem que ser vista como um patrimônio. E há mudanças sendo propostas, talvez em relação à Lei de Sementes [Lei 10.711/2003], que nos preocupam. Então, a variedade que tem no Brasil das formas de apropriação e uso das terras são muito diversas, a Constituição assegura esse direito e fala das terras tradicionalmente ocupadas, e que são sistemas de uma complexidade enorme e que relacionam a ação de uma família com uma área que é protegida, cultivada, como ela é apropriada de forma coletiva.

Então, esses princípios, lá já se foi o princípio da precaução, que virou uma página da história, absolutamente gravíssima a liberação desses agentes químicos, que já foram suspensos e proibidos nos países de origem. E agora, veja que a CNA [Confederação Nacional da Agropecuária] tem propostas de ação de constitucionalidade em relação à definição, a proibição de pulverização aérea no Ceará, enfim, isso é que eu chamo de restaurar princípios e valores, que eu exemplifiquei aí. É desafiador, e nós temos que debater profundamente o que representa o impacto dessas novas tecnologias, que eu dizia que artificializam. Que a defesa das corporações é da biofortificação, como os se os alimentos fossem fracos e precisassem ser fortificados nos seus nutrientes, nós precisamos é assegurar  a comida com variedade, em quantidade suficiente, e não uma nova revolução verde, como querem trazer com essas tecnologias, biotecnologias e a chamada bioeconomia, que é converter tudo em mercadoria. Precisamos analisar os impactos, está aí o que nos diz a Conferência do Clima.

Nós não podemos sair deste lugar que coloca no centro os direitos e a responsabilização do Estado com políticas estruturantes. Essa visão que soma auxílios e que dá uma temporalidade para algumas propostas, isso nós temos que questionar, tem o exemplo desse Auxílio Brasil. Precisamos dessas propostas que nos levem à emancipação, mas nós temos que ser bem enfáticos em questionar que o mercado, as corporações não podem comandar as nossas vidas.

FIAN: Essa lógica toda tem muita eficiência e a radicalização dela veio pela tecnologia e como estratégia de guerra cultural. E levou a uma adesão mais ativa a esse tipo de pensamento. Tanto no sentido de um liberalismo bem sem freio, como nessa caricatura do empreendedorismo, que está na uberização, enfim. E é isso, muitas vezes a gente presencia, as pessoas que não estão sendo beneficiadas com esse sistema, elas estão sendo pauperizados, tendo a exploração. E que ridicularizam tudo o que trata de política pública, de proposta redistributiva. Então, é muito esse discurso assim: “Ah, manda carpir um lote”. Esse tipo, como você já passou bastante pelo que precisa ser afirmado, mas como sair e como atingir quem não é convertido por esses valores que a gente procura, ainda mais quem vem recebendo sistematicamente – já há alguns anos, cinco anos, sei lá – mensagens que, de certa maneira, blindaram mais esse tipo de entendimento? Como a gente pode conseguir dialogar e, quem sabe, de alguma maneira convencer?

Maria Emília: Esse é um desafio enorme e, a meu ver, ele cada vez vai exigir também mais imaginação e criatividade, porque, para lidar com essas expressões dessa cultura política, eu acho que nós temos uma tarefa de desvendar o que são esses mecanismos de dominação e opressão. Mas temos que manter esse debate aceso em um contexto que, às vezes, eu acho que tem um bocado de cansaço. A pandemia também criou uma ambientação que, talvez tenha contribuído um pouco com isso, uma certa desesperança, ou como se a humanidade não tivesse outro caminho para trilhar, porque tem uma força muito grande contra, uma força de dominação da guerra cultural, porque tem uma guerra cultural mesmo. E também tem uma crença impressionante, de vários lados, tem uma crença nas tecnologias. Nós também, com essa coisa das chamadas forças produtivas. E essa foi a resposta na cúpula de sistemas alimentares. O centro para as corporações estava lá: “As respostas são tecnológicas”. Então nós temos que trabalhar isso, nós temos que, eu, aliás não coloquei aqui como um desafio isso. Há a necessidade da gente entender mais, de clarear o que são essas propostas tecnológicas, o que são, o que eles chamam de soluções baseadas na natureza e que nós chamamos de falsa soluções. Tem que desligar esses significados.

Outro dia, eu comecei a tentar listar as várias denominações que vem cada vez mais sendo usadas para caracterizar os tempos de uma nova agricultura. Então, agricultura 4.0, digitalização na agricultura. Tudo isso tem um sentido, isso não é, acho que, às vezes a gente focaliza muito esse debate sobre enfrentar, disputar narrativas, não. É muito mais complexo que isso, é narrativa e as propostas concretas que essas narrativas encerram. Agricultura sensível à nutrição, e vai por aí afora. Então, são analisadas, do ponto de vista da dominação, eu insisto isso, dominação sociopolítica, analisar do ponto de vista do impacto no meio ambiente, analisar do ponto de vista econômico, porque nós corremos o risco de ter recursos para essas respostas tecnológicas e não se valorizar um orçamento como responsabilização do estado para assegurar o direito à alimentação, com uma alimentação que seja reconhecida como tal na sua suficiência, qualidade. Então, é um momento da história de uma conjugação de crises, que nos faz pensar muito como fazê-lo. Bom, primeiro que nós não podemos abdicar do que nós já estamos fazendo, a exemplo da conferência popular, mas temos que ir mais além, nós precisamos analisar, de fato, olha, nós já temos programas no Brasil que a gente precisa conhecer bem, o que é o programa Adote um Parque, eu esqueci o nome do programa lá do Pará, que é baseado na chamada bioeconomia. Tem muita controvérsia, às vezes no interior dos próprios movimentos, é uma tamanha complexidade.

Agora, nós temos que também procurar nos articular mais, do ponto de vista internacional, acho que isso é necessário, onde estão as plataformas, as articulações internacionais. E há um debate, que a meu ver é bastante importante, do ponto de vista internacional, que tem agora, em vistas de um novo encontro em Nyélény, dos movimentos que se articulam com a Via Campesina, começa-se a discutir uma conferência – conferência mesmo, multilateral – sobre alimentação, porque o que essa cúpula também trouxe à tona é uma reversão das práticas de governança, porque foi muito mais baseada no multiatores, “multistakeholderismo”, como se não houvesse conflito de interesses. E com um risco muito grande disso incidir agora sobre o Comitê de Segurança Alimentar Mundial das Nações Unidas. Isso está em debate atualmente, o poder de influência das corporações. No entanto, eu queria sublinhar isso também, nós precisamos dar a conhecer mais o que representa aquela declaração que foi reconhecida na Assembleia da ONU, sobre os direitos dos camponeses e outras pessoas que trabalham na área rural.

Isso é um importante debate que o Brasil se absteve. O Brasil era um país que batalhava, que estava apoiando na formulação da declaração, mas quando ela foi votada, já era o governo Temer, já era pós-golpe. E o Brasil se absteve.

FIAN: E até uma parte do embate na cúpula foi assim, países alegando que não eram obrigados a seguir, né?          ue ela valia só para quem aderisse.

Maria Emília: É, então tem um debate internacional também sobre a regulação das corporações. Esses dias nós tivemos uma reunião com a Sofía [Monsalve], da FIAN. E ela falou sobre isso também.

FIAN: A FIAN Internacional participa bastante dessa pauta.

Maria Emília: Tratado internacional dos povos para o controle das empresas transnacionais, eu tenho aqui um texto que é de dezembro de 2014, é porque a campanha é exatamente isto daqui: desmantelemos o poder corporativo, é isso – “Stop Corporation”. Isso que eu estou observando que está voltando a ganhar mais força. O documento faz referência a implementar soberania alimentar, reforma agrária, agroecologia e vai embora, fala dos princípios gerais, olha aí, direitos humanos, Estados, normas de comércio, enfim. Isso é a proposta de um tratado, então eu acho que esses temas têm que entrar mais.

Nós vivemos sob uma pressão tão grande de reagir ao que é destruído no dia a dia que essas questões também acabam não ganhando a devida relevância, acho que a gente precisa trazer para esse debate, agora você não tem dúvida que há um certo, mais do que desprezo, uma negação do Estado – bom, né?, aí até tem quem diga “Mas os Estados também já foram capturados pelas corporações”, por isso que eu me lembrei do tratado. A questão, a meu ver, é a gente conseguir articular aquilo que tem um caráter emergencial, que responda pelos momento de emergência, com propostas que precisam ser reconstruídas, novas propostas. Enfim, é um desafio hercúleo.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, José Graziano, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

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