Painéis trazem explicações de relatores da ONU sobre problemas nos sistemas alimentares

Para uso por comunidades, movimentos e organizações, a FIAN Internacional sintetizou em perguntas e respostas algumas das principais mensagens de documentos de três relatores especiais de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU): Michael Fakhri, David Boyd e Marcos Orellana. Cada seção da entidade criou materiais visuais pensando na realidade do seu país, sem esquecer o quadro global. E nós, da FIAN Brasil, montamos com a designer Patrícia Nardini dois painéis que você pode imprimir ou compartilhar, como carrosséis de redes sociais, no Facebook e no Instagram.

Baixe aqui os dois painéis. Cada um pode ser impresso como um A3 frente e verso, para dobrar em seis, ou como dois A3, para fixar como cartazes, ou, ainda, montado como um pôster A2 (formato maior) vertical.

São conteúdos que tratam dos problemas nos sistemas alimentares hegemônicos (ou seja, que predominam hoje), chamados industriais ou corporativos, pela abordagem do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Muitas dessas questões você já deve conhecer ou desconfiar, e é muito possível que sua comunidade já pratique os caminhos aqui descritos.

Estamos falando de práticas ligadas à agroecologia, à comida de verdade e à regeneração dos ecossistemas, que deveriam receber apoio dos governantes, legisladores e operadores da Justiça para estar no centro, e não nas bordas, dos modos de produzir, processar, comercializar, preparar e consumir alimentos, que deveriam ser condizentes com as necessidades das atuais e das futuras gerações. Temos que fazer pressão para uma transição com esse horizonte.

Sobre os/as especialistas

Os relatores e relatoras especiais são especialistas independentes a quem o Conselho de Direitos Humanos da ONU concede um mandato para vigiar, aconselhar, examinar e informar publicamente sobre uma questão específica (relatorias temáticas) ou sobre questões de direitos humanos em um determinado país (relatorias por países).

Eles/as visitam países para investigar denúncias de violações de direitos humanos e podem se dirigir aos Estados para pedir informações e formalizar recomendações. Também atuam na conscientização da população. Apresentam relatórios anuais ao Conselho de Direitos Humanos e, muitas vezes, à Assembleia Geral da ONU.

Michael Fakhri é o atual relator sobre o Direito à Alimentação; David Boyd, do Direito a um Ambiente Seguro, Limpo, Saudável e Sustentável; e Marcos Orellana acompanha o tema das Substâncias Tóxicas.

Para mergulhar mais no tema  

Leia abaixo as perguntas e respostas preparadas pela FIAN Internacional, que aprofundam o assunto sem complicar a linguagem. E saiba mais sobre o poder das grandes empresas na história em quadrinhos A Captura Corporativa de Sistemas Alimentares.

O problema com o sistema alimentar industrial
e como “consertá-lo”

O sistema alimentar industrial (ou corporativo) prejudica as pessoas e o planeta e afeta nossa capacidade de alimentar a nós mesmos, nossas famílias e nossas comunidades de maneira saudável, sustentável e digna.

Os relatores especiais da ONU sobre o Direito à Alimentação, sobre o Direito a um Ambiente Seguro, Limpo, Saudável e Sustentável e sobre Substâncias Tóxicas descreveram os principais problemas com o sistema alimentar industrial (ou corporativo), em particular no que diz respeito à destruição ambiental e violações de direitos humanos relacionadas. Eles também delinearam o que os governos devem fazer para avançar em direção a práticas agroecológicas sustentáveis, saudáveis ​​e justas que apoiem o direito à alimentação e nutrição e os direitos humanos de forma mais ampla.

I
Qual é o problema com o sistema alimentar industrial?

“O mundo tem sido dominado por corporações em sistemas alimentares que usam a riqueza para gerar mais riqueza, em vez de usar a vida para gerar mais vida.” (Fakhri, p. 9)

Existem muitos problemas com a forma como os alimentos são produzidos, processados, distribuídos, preparados e consumidos em nossos sistemas alimentares. Estes incluem a destruição de ecossistemas, exploração de trabalhadores e alimentação e dietas insalubres.

O sistema alimentar industrial é dominado por corporações e é um dos principais contribuintes para a emergência climática, perda de biodiversidade, degradação do solo, esgotamento da água e poluição.

Esse sistema depende fortemente de produtos químicos e combustíveis fósseis e desloca e marginaliza as práticas agrícolas das comunidades camponesas que foram desenvolvidas ao longo de gerações e funcionam em harmonia com a natureza. Por meio de uma combinação de incentivos e políticas públicas e privadas, os pequenos produtores de alimentos estão cada vez mais dependentes de sementes comerciais, pesticidas e fertilizantes controlados por empresas poderosas. Essas empresas podem ditar preços e empurrar os camponeses para um sistema de “agricultura por contrato”, no qual perdem o poder de decisão sobre o que e como produzem. O sistema alimentar industrial também promove a apropriação de terras e recursos naturais, minando a capacidade das comunidades de se alimentarem.

Trabalhadores agrícolas e de alimentos são frequentemente explorados e expostos a pesticidas nocivos, e não são raros os casos de trabalho escravo e infantil.

O sistema alimentar industrial deixa as pessoas doentes com produtos alimentícios ultraprocessados agressivamente promovidos pela publicidade. Dietas não saudáveis ​​são responsáveis ​​por 10 milhões de mortes anualmente. Além disso, o uso indevido de antibióticos na pecuária e na aquicultura reduz o efeito desses medicamentos quando necessários para tratar humanos.

A cada dia, a indústria de alimentos ganha mais poder para moldar mercados e pesquisas e influenciar governos e políticas públicas a seu favor. Pode fazer isso com os bilhões que ganha com a exploração de recursos naturais e mão de obra barata.

Como o sistema alimentar industrial danifica nosso planeta?

O sistema alimentar industrial é um dos principais contribuintes para as mudanças climáticas, desde as emissões e a destruição de sumidouros de carbono (por exemplo, plantas que podem armazenar carbono para que ele não entre na atmosfera). É responsável por até 37% das emissões globais de gases de efeito estufa que aumentam a temperatura do nosso planeta e levam a catástrofes, como pragas, inundações e secas. Muito disso acontece por meio do desmatamento, quando as agroindústrias convertem florestas em terras para a agricultura produzir commodities de exportação, como carne bovina, soja e óleo de palma.

A intensificação industrial da agricultura é uma “prática extrativa” que perturba as bases de nossos ecossistemas com impactos duradouros para nossos filhos e seus filhos. Isso inclui o uso excessivo de água doce, em particular pela indústria pecuária, e a poluição da água potável por meio de pesticidas, fertilizantes e dejetos animais. A agricultura industrial também é responsável pela poluição do ar e pela degradação e erosão do solo – ameaçando a própria base de nossa alimentação.

O sistema alimentar industrial destrói a diversidade biológica promovendo monoculturas (o cultivo de uma única cultura em um campo de cada vez), ameaçando os sistemas de sementes crioulas e promovendo dietas baseadas em uma gama muito estreita de culturas. A superexploração, a poluição e a destruição de áreas de pesca resultaram em um terço dos peixes de água doce ameaçados de extinção. O uso de agrotóxicos causou uma perda maciça de insetos e aves que se alimentam deles, desequilibrando o funcionamento da natureza.

O sistema alimentar industrial e a poluição, a destruição ambiental e o desmatamento que o acompanham forneceram um terreno fértil perfeito para doenças zoonóticas – doenças que passam de animais para humanos – como a Covid-19. As más condições de trabalho e os abusos ambientais na indústria alimentar também contribuíram para a sua propagação.

O que isso significa para o direito das pessoas à alimentação e direitos conexos?

Os impactos ambientais do sistema alimentar industrial aprofundam as desigualdades existentes e causam múltiplas violações dos direitos humanos.

A poluição da água, do ar, do solo e dos alimentos com produtos químicos tóxicos usados ​​na agricultura industrial tem efeitos de longo alcance na saúde de camponeses, trabalhadores, comunidades vizinhas e consumidores, podendo causar mortes prematuras.

Os agrotóxicos envenenam regularmente trabalhadores e camponeses. São responsáveis ​​por cerca de 200 mil mortes por envenenamento agudo a cada ano. Eles têm sido associados a doenças graves, incluindo câncer, derrames, anomalias congênitas e distúrbios neurodegenerativos, como a doença de Parkinson, e são particularmente prejudiciais para mulheres e crianças. As crianças expostas a agrotóxicos – por exemplo, quando trabalham em fazendas, brincam em solo contaminado ou bebem água contaminada – podem sofrer danos graves em seu desenvolvimento cognitivo e físico.

A poluição da água e o uso excessivo de água pela agricultura industrial também levam à escassez de água para as comunidades locais. Isso tem impactos diretos em seus direitos à água e à saúde. Também afeta seu direito à alimentação e nutrição, pois prejudica sua capacidade de cultivar e preparar alimentos e pode levar a doenças transmitidas pela água que afetam sua nutrição e saúde. A capacidade das comunidades de cultivar alimentos para si mesmas e ganhar a vida também é severamente prejudicada por sua exposição a mudanças e condições climáticas severas, desastres naturais e destruição do meio ambiente, incluindo a degradação do solo.

II
Como os sistemas alimentares devem ser transformados para garantir o direito à alimentação e à nutrição?

“(…) transformar os sistemas alimentares que exploram milhões de trabalhadores, prejudicam a saúde de bilhões de pessoas e infligem trilhões de dólares em danos ambientais é moral e legalmente imperativo para respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos.” (Boyd, 2021, p. 26)

Não podemos mais confiar no foco no crescimento econômico para superar a fome e a desnutrição. O direito a um ambiente saudável é protegido por lei na grande maioria dos países. Sistemas alimentares saudáveis ​​e sustentáveis ​​são um componente central desse direito, conforme confirmado por vários tribunais e instituições nacionais de direitos humanos em todas as regiões. Transformar os sistemas alimentares para se tornarem saudáveis, sustentáveis ​​e justos é essencial para enfrentar a crise ambiental global.

A agroecologia aborda muitas fraquezas do sistema alimentar industrial. Questiona as dinâmicas de poder (incluindo aquelas entre mulheres e homens), destaca a importância do acesso e controle das pessoas sobre o conhecimento e os recursos e leva a melhorias concretas no Dhana.

Essa abordagem imita processos ecológicos e interações biológicas. Muitas vezes produz rendimentos mais elevados do que a agricultura industrial. Como menos produtos químicos são usados, causa menos danos ao meio ambiente. Também corrige danos causados ​​pelo sistema alimentar industrial: reduz as emissões de gases de efeito estufa, recupera a saúde do solo, protege a diversidade biológica e diminui o risco de pandemias. Além disso, apoia a construção coletiva do conhecimento, aproxima consumidores e produtores, garante meios de vida dignos para as pessoas que trabalham nos sistemas alimentares e promove a equidade social.

O que os governos devem fazer para transformar os sistemas alimentares?

“Os efeitos ambientais devastadores dos sistemas alimentares industriais e as dietas não saudáveis ​​associadas ao gozo de uma ampla gama de direitos humanos dão origem a amplos deveres dos Estados de prevenir esses danos. Os Estados devem aplicar uma abordagem baseada em direitos a todas as leis, regulamentos, políticas e ações relacionadas à alimentação, a fim de minimizar os impactos negativos sobre o meio ambiente e os direitos humanos”. (Boyd, 2021, p. 17)

Os governos devem reduzir o uso de agroquímicos e banir os mais perigosos. Eles deveriam parar de exportar agroquímicos proibidos em seus próprios países. Eles devem introduzir regulamentações mais fortes e impostos mais altos sobre agroquímicos. O dinheiro desses impostos deve ser usado para apoiar os produtores na redução de agrotóxicos e na transição para a agroecologia. Os países precisam monitorar cuidadosamente a poluição por agroquímicos e seus impactos na saúde das pessoas.

Antibióticos devem ser permitidos apenas para tratamento veterinário individual de animais. A pecuária intensiva precisa acabar. É preciso haver regulamentações mais fortes para a agricultura industrial para evitar a propagação de doenças zoonóticas.

Os governos devem fornecer apoio técnico para práticas agrícolas que restaurem a saúde do solo, incluindo o uso de fertilizantes orgânicos, rotação diversificada de culturas e compostagem.

Eles devem adotar e fazer cumprir as leis para impedir o desmatamento e a conversão em terras agrícolas, ao mesmo tempo em que fazem isenções apropriadas para produtores de pequena escala. Devem estimular a diversificação de cultivos e torná-la obrigatória em grandes monoculturas. Os sistemas alimentares devem fazer parte das estratégias de biodiversidade.

Os governos devem proteger os sistemas de sementes dos camponeses (os direitos dos camponeses de salvar, usar e trocar sementes e raças de gado adaptadas localmente) e garantir que as leis nacionais e internacionais não os prejudiquem. Eles devem reviver e apoiar as variedades tradicionais e os conhecimentos e práticas ancestrais relacionados. Da mesma forma, devem proteger e restaurar a biodiversidade do mar.

As regras do comércio internacional precisam ser reformadas e os acordos agrícolas injustos devem ser encerrados. Novas regras comerciais devem ser baseadas na lei de direitos humanos, garantir a equidade e apoiar a transição para sistemas alimentares sustentáveis ​​e agroecologia.

Os governos devem investir na infraestrutura dos mercados territoriais nos níveis local, nacional e regional. Devem também apoiar cooperativas de produtores e consumidores que facilitem a troca de conhecimento e a adoção de práticas agroecológicas. Eles devem corrigir qualquer viés existente nas políticas que privilegiam os supermercados sobre os mercados informais de agricultores.

Os governos devem proteger e melhorar os produtores de alimentos de pequena escala, especialmente as mulheres, o direito à terra e outros recursos naturais – inclusive por meio da reforma agrária.

Eles devem desenvolver diretrizes sobre nutrição que integrem preocupações de saúde e sustentabilidade e implementar programas nacionais de refeições escolares gratuitas que forneçam alimentos saudáveis ​​a todas as crianças. Os alimentos para essas e outras instituições públicas (como hospitais) devem ser comprados de produtores locais e preparados nas cozinhas das escolas.

Os governos devem proibir a promoção de produtos alimentícios e bebidas ultraprocessadas para crianças e impor impostos e etiquetas de advertência para que as pessoas consumam menos.

A governança dos sistemas alimentares precisa mudar fundamentalmente. Os direitos e meios de subsistência dos mais desfavorecidos – incluindo aqueles que não têm acesso à terra e alimentos saudáveis ​​e sustentáveis, ou cujo direito a um ambiente saudável é ameaçado ou violado – precisam ser priorizados. Eles devem ser capazes de participar quando os governos fazem novas políticas sobre alimentos. Especialmente a participação das mulheres precisa ser fortalecida. A transformação dos sistemas alimentares deve ser baseada nas próprias soluções das pessoas, e não imposta de cima por “especialistas”.

Os governos devem incorporar o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) e o direito a um ambiente saudável e sustentável nas leis nacionais com mecanismos para responsabilizar autoridades e empresas.

As declarações das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses (Undrop) e sobre os Direitos dos Povos Indígenas (Undrip) devem ser aplicadas quando os governos adotam novas leis e políticas. Da mesma forma, eles devem aplicar as Diretrizes sobre Posse e Pesca Sustentável em Pequena Escala para evitar a apropriação de terras, água e recursos naturais. Eles também devem garantir que os trabalhadores agrícolas e de alimentos sejam protegidos pelas leis trabalhistas.

O poder corporativo nos sistemas alimentares precisa ser reduzido, inclusive por meio de legislação que reverta a concentração excessiva. A conclusão das negociações de um acordo internacional para regular as corporações transnacionais também é fundamental para isso.

Os governos devem restringir o lobby corporativo e as doações da indústria de alimentos e suas associações empresariais, e outras tentativas de influenciar as políticas relacionadas aos sistemas alimentares.

Entidades pedem audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre agrotóxicos no Brasil

Um grupo de organizações, entre elas a FIAN Brasil, pede que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh) faça uma audiência temática sobre os agrotóxicos no Brasil e as violações de direitos associadas ao uso dessas substâncias.

Requerimento nesse sentido foi apresentado pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida com a FIAN, a Via Campesina Brasil, a Terra de Direitos, a Rede Irerê de Proteção à Ciência, a Fase – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional e o MAM. O pedido dirige-se ao 184º Período de Sessões, marcado para 13 a 24 de junho. 

As organizações alertam que a aplicação de agrotóxicos, assim como a liberação desses produtos no Brasil, nunca foi tão volumosa e acelerada. Também chamam atenção para a expansão dos conflitos agrários e socioambientais, decorrentes, inclusive, do uso desses venenos como arma química contra comunidades rurais.

Pela proposta, a audiência partiria da documentação de casos concretos para apresentar evidências de abusos perpetrados por entidades privadas e violações cometidas pelo Estado brasileiro em matéria de soberania alimentar, direito a uma alimentação adequada, à água, a um ambiente equilibrado e à saúde, entre outros, em prejuízo, particularmente, de povos originários, comunidades tradicionais e agricultores/as familiares.

As organizações também pretendem apresentar recomendações à Cidh e a diferentes instâncias do Estado brasileiro para o enfrentamento do problema.

Audiência com ministro Toffoli trata de ação no STF contra a fome

A FIAN Brasil participou de audiência no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 885, que trata do combate à fome e à insegurança alimentar em geral.

A reunião, na terça-feira (26), foi com o ministro Dias Toffoli, relator da ação.

Representaram a FIAN a diretora de Articulação, Míriam Balestro, e o assessor de Direitos Humanos Adelar Cupsinski. Participaram, ainda, Sílvia Souza, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autora da ação; Rodrigo Azambuja, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro; Paulo Freire, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); Leonardo Ribas, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN); e Daniel Souza, da Ação da Cidadania.

“Expus que, dentre todos os direitos integrantes do Sistema Internacional dos Direitos Humanos, estar livre da fome era o único gravado literalmente como fundamental, dada a urgência que a fome impõe”, relata Balestro, integrante da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) e promotora de Justiça aposentada. Ela acrescenta que o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc, de 1966, ao qual o Brasil aderiu) traz obrigações aos três poderes de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) em relação ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). “Quando o Poder Judiciário atua na ausência ou na ineficiência da política pública, está cumprindo o seu dever de garantia do Dhana. Não há que se falar em violação da tripartição dos poderes nessas circunstâncias.”

Para a diretora, sem a alimentação adequada não se pode falar na realização dos demais direitos. “No caso da fome há uma clara violação do pacto internacional por parte do Estado brasileiro”, afirma.

Segundo a representante da FIAN, foi argumentado ainda que o desmonte das políticas públicas de segurança alimentar representa um retrocesso de um direito social, o que é vedado pelo Sistema Internacional dos Direitos Humanos, que somente se admite a situação depois de o Estado demonstrar que envidou todos os esforços para evitar tais casos, pedindo, se necessário, cooperação internacional.

“Ao final foi feito um apelo ao ministro para que lhe viessem à mente os milhares de homens, mulheres, crianças, indígenas, população das vilas, as pessoas nas frentes dos mercados e nas ruas que estão a clamar por alimentos. Que levasse em consideração a sensibilidade e a empatia, dentro da melhor técnica jurídica.”

Orçamento inviabilizando direitos

“O ministro mostrou sensibilidade com a questão da fome, além de demonstrar conhecer o problema”, avalia Adelar Cupsinski. “Disse que a sociedade deveria se mobilizar mais sobre o tema e, embora as políticas públicas sejam de responsabilidade do Executivo, o STF não pode deixar de apreciar a demanda considerando a gravidade do tema.”

O assessor aponta a responsabilidade das restrições orçamentárias relativas às políticas públicas no governo Temer e os retrocessos nas políticas do governo Bolsonaro pelo quadro de vulnerabilidade social e a volta da fome no Brasil.

“Os direitos à terra e ao território destinados aos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares estão assegurados na Constituição Federal de 1988”, lembra. “Nas últimas três décadas, os governos democráticos inseriram na agenda a implementação da reforma agrária e a demarcação de terras para esses grupos. Concomitantemente, uma malha de outras políticas públicas foi implementada, no campo e na cidade, visando distribuir renda e combater a fome.” Ele conclui que esse contexto beneficiou milhões de brasileiros, resultando em melhorias na qualidade de vida e a superação da fome em 2014.

“Para mim, que fui uma criança em situação de rua, com um pai preso pela ditadura, vítima da insegurança alimentar e hoje advogado, foi a realização de um sonho defender este direito na Suprema Corte do país”, conta o integrante do FBSSAN Leonardo Ribas. “O ministro Toffoli afirmou que levará a questão para o plenário. Ou seja, vai refutar o pedido de arquivamento feito pelo Aras [procurador-geral da República] e irá colocar para os demais ministros do STF a questão. Estou muito esperançoso e creio que dará tudo certo.”

Sobre a ação

Protocolada em 10 de dezembro de 2021, a ADPF 885 destaca que o enfraquecimento dos mecanismos de monitoramento da fome no país se soma ao desmonte da política de segurança alimentar.

O documento, produzido pela OAB a partir de provocação da Ação da Cidadania, sublinha o agravamento das condições econômicas, sociais e sanitárias enfrentadas ao menos desde 2014, pontuando que a explosão do número de casos e mortes pela Covid-19 chegou a colocar o país no epicentro da pandemia mundial. Ao examinar as estatísticas, constata a cor e o rosto da fome no Brasil, com os índices mais agudos nos domicílios chefiados por mulheres pretas ou pardas e de baixa escolaridade, bem como a concentração no Norte e no Nordeste.

Como contribuições da atual gestão federal para o cenário de miséria, a OAB destaca a má condução do Programa Bolsa Família e o corte severo em programas como o de cisternas para convivência com a seca.

Entre outras medidas, a OAB pede que o STF determine a retomada e a ampliação do auxílio emergencial no valor de R$ 600; o retorno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); destinação de R$ 1 bilhão para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); e recomposição dos estoques públicos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), com ações de controle de preços para evitar a inflação descompensada.

Leia mais.

Entrevistas: o Pnae, o Brasil e o mundo

Leia aqui conversas que partem da alimentação escolar para os grandes desafios relacionados a soberania e segurança alimentar e nutricional – e à defesa da democracia.

Elas também podem ser conferidas (algumas, em versão resumida) no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.

Entrevista | TEREZA CAMPELLO: “O desmonte das políticas é difícil de medir, mas parte da resistência virá das pessoas que elas envolveram”

Publicada, em versão resumida, no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

Para a economista Tereza Campello, a perda com a quebra nos circuitos curtos (locais ou microrregionais) de fornecimento e com a interrupção de diálogos setoriais e federativos em políticas como o Pnae é intangível, ou seja, não dá sequer para estimar. No entanto, ela usa o mesmo adjetivo para descrever a transformação das pessoas envolvidas pela construção conjunta – e diz que o enraizamento dessas experiências pode vir do agricultor, da merendeira, da diretora escolar que participaram de tais processos. 

Campello afirma que a integração exige caminhos mais longos, mas traz resultados melhores e mais duradouros. Como ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Dilma, ela esteve à frente do Plano Brasil Sem Miséria, que reuniu programas voltados a famílias com renda per capita de até R$ 70, de documentação a cozinhas comunitárias e bancos de alimentos.

Ela aponta a alimentação escolar com prioridade para a agricultura familiar como exemplo perfeito da transversalidade, com potencial para contribuir no enfrentamento tanto da escalada da insegurança alimentar e da obesidade quanto das mudanças climáticas.

Escolhida a professora titular da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Universidade de São Paulo (USP) em seu ano de lançamento, Campello cita a volta ao Mapa da Fome e as pessoas em postos de saúde por falta de comida como um retorno à realidade decifrada e denunciada pelo brasileiro, três vezes indicado ao Prêmio Nobel.

FIAN: Nas últimas décadas, as políticas de combate à fome e à miséria foram sendo integradas a outras políticas de desenvolvimento social, não é? Um exemplo está no Brasil Sem Miséria. Eu queria que a senhora explicasse como essas políticas interagem, dependem umas das outras, e como está essa engrenagem hoje.

Tereza Campello: Esse debate da integração é interessante porque virou uma onda, não só no Brasil, mas em tudo quanto é lugar, essa discussão de como integrar políticas públicas, políticas públicas integradas. Então isso tem um apelo enorme e a palavra é uma palavra muito positiva. Parece óbvio, “Vamos integrar políticas”. É óbvio mesmo porque na verdade o ser humano é integrado, quem é encaixotado ou quem é fragmentado é o Estado, não é? O cidadão tem necessidades múltiplas e é um ser uno. O Estado que diz “Tem aqui a caixinha da Saúde, a caixinha da Educação”, e separa as caixinhas por questões de funcionalidade, e muitas vezes faz isso de forma equivocada.

É praticamente natural você falar “Tem que integrar política”, só que fazer isso é um desafio gigantesco, eu diria que está na fronteira do conhecimento e das políticas públicas no mundo, e o Brasil de fato se diferenciou conseguindo avançar bastante nesse sentido. Então muito dos nossos programas que são conhecidos tem sucesso tem na essência da sua eficiência exatamente ter avançado no sentido da integração de política pública.

Agora, a integração não se faz nem por lei, nem por decreto, nem por comando, nem por ordem, não tem como fazer isso se não for uma determinação, um processo de construção coletiva e que aconteça por anos e anos a fio. Você decide integrar hoje e a integração só vai se fazer efetiva daqui a dez, 15 ou 20 anos, então é um processo, não é uma decisão política. Logicamente necessita dessa decisão, mas ele tem um processo continuado, ele tem de certa forma por traz dele tem dois grandes princípios, um é esse que o cidadão é integral, é a grande sacada, as políticas tem que se organizar para chegar nesse cidadão e quem é pobre de renda provavelmente é pobre de renda, é pobre de água, é pobre de saneamento, é pobre de educação, é pobre de saúde. Então você tem que garantir as proteções múltiplas, no caso da pobreza isso é mais evidente, mas em todos os outros casos deveria ser assim também, mesmo das políticas que não são de combate à pobreza e a fome, mas nessas muito mais porque o ser humano é muito mais vulnerável.

Mas o segundo grande princípio que eu acho que é uma questão estratégica para a gente poder continuar a conversa é o seguinte, diferentes olhares na mesa constroem políticas melhores, não é? Mas isso não é fácil, você falar “Vamos integrar e coisa e tal”, vai sentar todo mundo na mesa e vai ser superbacana? Não vai, vai ser superdifícil. Você senta na mesa, quem é da área de saúde tem um conjunto de metas, o povo acha que o difícil é porque tem as corporações, a coisa coorporativa e não é, as pessoas têm formações diferentes, têm metas a cumprir diferenciadas como servidores públicos inclusive serão cobradas pelas suas metas e não pelas metas dos outros. Então tem todo um processo de aprendizagem também do que é esse outro olhar, então o caminho é mais demorado, mais difícil você ofertar o Pnae por exemplo, é muito mais difícil você organizar a escola, a escola ir atrás do agricultor familiar, olhar o seu relatório, tentar pensar quais são os alimentos adequados, isso é muito mais difícil do que fazer uma licitação e comprar um monte de merenda e distribuir aquela merenda já industrializada, já pronta, é fácil, não precisa de merendeira, não precisa de cozinha, não precisa ir atrás do agricultor. Então seria muito mais rápido e fácil, mas muito menos efetivo nos resultados. O caminho para que você construa isso é um caminho longo, portanto ele tem que ser cuidado, ele tem que ser adubado permanentemente, ele tem que ser lembrado permanentemente, ele tem que ser valorizado permanentemente. Essa é uma política muito mais efetiva, com resultados muito mais estruturais e de longo prazo, mas difícil. Não adianta que achar que com grito, com decreto, com constituições, é um processo permanente e tem que acontecer em todos os níveis, tem que ser lembrado e valorizado, portanto é um processo muito complexo.

Então o Pnae, vou pegar o Pnae, é um exemplo talvez o melhor de todos, porque você chegar na criança talvez seja a forma mais eficiente de transformar alimentação e esse é o público mais vulnerável. Então você está chegando no público mais vulnerável que é a criança, chegando no público que mais teria capacidade de transformar a família e o cidadão, a gente tem vários exemplos de que capturar essa criança para uma boa ideia, ela acaba sendo um vetor de transformação da família, com a história do cinto de segurança, a história do tabagismo, a questão de como separar lixo, todas elas quando você conquista a criança você consegue efeitos muito duradouros na sociedade. Então a criança, se você ganha para essa ideia da comida de verdade é um feito, você não faz isso com aula, a melhor forma de fazer isso é ela comendo a coisa certa no ambiente certo, que é o ambiente escolar.

A educação e a escola é regulada pelo Estado, é diferente de outros ambientes, esse ambiente é um ambiente de concessão pública, mesmo quando a escola é privada ela é uma concessão pública. O Estado tem uma capacidade de intervir no ambiente escolar como em poucos outros lugares. Ele tem condições de intervir, de regular. Segundo, a criança passa a maior parte do dia dela na escola. Mesmo que esteja só um turno, ela está na escola quatro horas por dia, então, se naquele momento você conseguir proteger essa criança garantindo que ela tenha uma alimentação adequada, você está chegando no público mais estratégico, no momento mais estratégico da vida, onde você garante que os efeitos dessa aprendizagem sejam duradouros. Essa criança vai carregar isso por toda vida tendo comido direito. Essa lembrança, essa memória, esse aprendizado vai se estender e você, quando você fala “Bom, vamos garantir comida de verdade para essa criança em um ambiente que eu tenho regulação, em um ambiente onde essa criança passa um período enorme do tempo, onde garantindo alimentação eu garanto inclusive educação melhor” – porque as crianças chegavam na escola um tempo atrás e não conseguiam, o que voltou a acontecer, a menina desmaiar em sala de aula…

A criança chega muitas vezes – imaginando uma família que está passando fome  –, ela come na escola, digamos que ela almoce na escola e vá para casa, talvez seja a última refeição dela no dia, ela só vai comer de novo quando ela voltar na escola no outro dia, ou seja, essa criança chega na escola completamente desassistida do ponto de vista do direito dela a alimentação. Se ela comer de novo quando ela chegar na escola, é a única forma dela poder aprender alguma coisa, senão ela não vai conseguir nem chegar na escola e cumprir o direito dela, o segundo direito dela, que é o direito à educação. Então quando você se dá conta de que garantir comida de verdade em um ambiente escolar é talvez a ação mais fácil para o Estado executar, ele tem o poder de regulação enorme, talvez seja o mais eficiente porque ele chega em um público mais vulnerável que é a criança, e a criança pobre, e ele com isso garante um conjunto de outros direitos, não é? Inclusive o próprio direito à educação.

Então essa integração da educação com alimentação, e que acaba sendo com saúde e nutrição, é um casamento excelente, excepcional, mas não é fácil, não é fácil. Como eu disse, é muito mais fácil você fazer uma licitação e comprar, para ter comida de verdade na escola tem um conjunto de coisas que tem que acontecer, a escola tem que ter dinheiro, a escola tem que ter uma merendeira, a escola tem que ter comprado comida não pronta, então tem que ter comprado comida de verdade e não comida industrializada ou não comida ultraprocessada, ela tem que ter uma cozinha, ela tem que ter uma orientação nutricional, então você tem um conjunto de pré-requisitos para que isso aconteça, para que essa ideia linda chegue na mesa da criança, seja na hora do lanche dela, ela ter uma fruta por exemplo, a fruta tem que ter sido comprada, tem que ter sido lavada, higienizada, então tem todo um processo que acontece antes.

FIAN: O atual governo tinha aquele programa de governo que era um arremendo de Power Point e fazia parte, não deixava de ser estratégico esse nível baixo de proposição e a história do discurso de “menos Brasília e mais Brasil”. No fim das contas, em relação ao enfrentamento da pandemia deixou os estados e municípios à própria sorte e muitas vezes sabotando aquilo que as soluções mais coletivas.

Campello: No território mesmo, não é?

FIAN: No território. O governo federal se esforçou pouquíssimo para resolver, você não teve um programa por exemplo de equipar as cozinhas das escolas ou depois da pandemia, esforço nenhum de viabilizar. O Congresso chegou a algumas soluções, a sociedade civil, de garantir uma logística melhor nesse momento de calamidade, de exceção. No fim das contas, por exemplo, houve muito pouco apoio à agricultura familiar. Há coisa de uma ou duas semanas o governo celebrou essa coisa do aumento do valor permitido para a venda ao Pnae individual ou por cooperativas, só que não aumentou o orçamento do programa, no fim das contas é o mesmo dinheiro, ou menos, e vai ser repartido por menos produtores.

Campello: Deixa eu só retomar uma coisa para eu explicar e chegar nesse ponto da pandemia. Por que são anos? O Pnae, que existe desde a década de 50, ele na verdade ganhou essa dimensão de comprar da agricultura familiar só em 2009. Quando você olha o processo de construção, o que é o Pnae com essa vertente da agricultura familiar? Trinta por cento dos recursos federais destinados à compra ao Pnae têm que ser compras locais, de preferência da agricultura familiar, de preferência produtos frescos ou pouco processados, minimamente processados etc., seguindo aí o Guia alimentar da população brasileira e toda uma valorização. Agora não basta você fazer essa lei ou esse decreto, por quê? Porque a escola não está preparada para fazer isso, então você tinha uma parte da escola do Brasil que tinha cozinha, mas não compravam na agricultura familiar, você tem que ter todo um processo de construção e de montagem dos circuitos, os circuitos curtos, não é? Identificar o agricultor – no primeiro momento inclusive a própria escola entendia que aquilo era uma sobrecarga, quer dizer: a minha tarefa é educar, a minha tarefa não é comprar da agricultura familiar, isso vai me gerar um outro trabalho, vai me gerar uma outra dificuldade, vai me desviar da minha função.

Então tem toda uma questão que exigia uma transformação no conteúdo do trabalho cotidiano da escola, e isso demora um tempo para ser feito. Então identificar a rede de agricultores que poderia fazer esse fornecimento de forma regular, eu não posso comprar de um agricultor hoje e mês que vem não ter o mesmo produto, eu coloco em risco a alimentação da criança. Então eu tenho que ter para garantir a merenda funcionando, a alimentação escolar regular, eu tenho que ter regularidade de fornecimento, então eu tenho que ter tomate, tem todo um planejamento que é muito mais difícil você comprar da agricultura familiar do que você comprar de uma megarrede de fornecedor. A vantagem de comprar da agricultura familiar é que você tem muitas vantagens, a chance de esse produto chegar fresco na cozinha da sua escola é muito maior, você reduz emissões de carbono, você reduz desperdícios no transporte, isso tudo não é ganho para a escola, é ganho para a sociedade, a escola está fazendo isso, ela está gerando benefícios que não têm nada a ver com a alimentação escolar, reduzir a emissão de carbono, não tem nada a ver com alimentação escolar, reduzir desperdício não tem nada a ver com alimentação escolar, no entanto o programa como um todo está integrando esse conjunto de efeitos colaterais positivos. Mas ela tem que escolher esses agricultores, criar regularidade, o agricultor se comprometer, ter contratos que deem essa regularidade.

É um conjunto de mecanismos que só o tempo permite que sejam processados, as pessoas não conseguem entender isso, a dificuldade. Imagina isso em um pequeno município, tem toda uma dificuldade da regularidade, mas tem mais a facilidade territorial, agora imagina isso em uma cidade média, uma escola ter que ir atrás do agricultor familiar, se é orgânico ou se não é. Então tem toda uma complexidade nessa construção que só o tempo permite que seja operada, e só insistência, fiscalização, ir atrás, exigir. Então essa montagem de circuitos foi muito demorada e é um montagem também cultural, a merendeira se dar conta de que ela comprar… É diferente você fazer uma comida em casa de você fazer uma comida para 300 crianças, você tem que comprar peixe, eu não tenho refrigerador para guardar esse peixe de forme adequada, tem toda uma modificação que foi feita ao longo desses dez anos de Pnae, de 2009 até agora em 2020 na pandemia, que permitiu uma evolução muitas vezes marginal, pequena. Eu comecei a fazer peixe quando eu adquiri o refrigerador, eu demorei cinco anos para comprar um refrigerador, então tudo isso veio se transformando para dar conta não só da comida de verdade, mas de respeitar a cultura, por exemplo, a criança e o jovem comer na escola no Norte açaí, castanha-do-Brasil, peixe. Do mesmo jeito que no Rio Grande do Sul poder comer morango na época do morango, então tudo isso começou a acontecer, comer coisas da temporada, aprender a comer coisa que ela nunca teria comido e continuar comendo coisas que ela sempre comeu em casa, então respeitando essa questão cultural.

Quando veio a pandemia o governo federal deixou ao deus-dará, não cumpriu o seu papel de coordenador, de orquestrar essas milhares e milhares de escolas no Brasil, 5.570 municípios com milhares de escolas. Quem tinha que ter orquestrado isso? O governo federal, não dando ordem, “tem que ser assim ou tem que ser assado”, mas chamando os municípios para tentar entender essas diferentes realidades. Porque tem muita gente que dizia assim, logo que começou dizia assim, “Tem que obrigar a comprar da agricultura familiar e distribuir na escola”. Tem lugar onde não é a melhor opção, tem lugar, por exemplo, pegar as escolas ali no Plano Piloto de Brasília, as mães moram na periferia, a criança vai para a escola junto com a mãe quando a mãe ia trabalhar, então a escola da não é na cidade em que ela mora. A escola é no Plano Piloto e ela mora em Taguatinga, ela mora no Cruzeiro, e vinha com a mãe quando a mãe ia trabalhar. A mãe não estava mais indo trabalhar, obrigar a mãe a ir na escola buscar a comida significaria colocar a mãe no auge da pandemia em um transporte público provavelmente para se infectar. Então talvez em Brasília ou em outra cidade não fosse o adequado, ou numa das escolas em Brasília não fosse adequado, então o governo federal não pode sair obrigando a fazer isso ou fazer aquilo sem ouvir as realidades.

Em Melgaço [no Arquipélago do Marajó, Pará] como é? Aqui em Heliópolis [maior favela de São Paulo], como é? Então, assim, pensar essas diferenças alternativas para não interromper totalmente os circuitos, mas ao mesmo tempo respeitar o direito da criança e respeitar a realidade da família. Não era uma equação simples, eu tenho que tentar proteger essa família para que ela se movimente o mínimo possível para não ser contaminada, eu tenho que ouvir essa escola porque tem escola e eu tenho que evitar perder os circuitos da agricultura familiar, então você tem toda uma equação que tinha que ser olhada.

O governo federal simplesmente não fez isso, foi fazer isso três meses depois, mais uma vez sem ouvir os municípios, baixou uma regra e as coisas já estavam feitas porque onde tinha interrompido o circuito da agricultura familiar não tinha com refazer, tinha escola que construiu uma solução boa, teve escola que construiu uma péssima solução, teve escola que o prefeito se aproveitou da situação para tentar fazer, teve de tudo, por quê? Porque quem tinha que estar regulando, organizando, pensando e fazendo isso coletivamente não fez, então o governo federal cumpriu um péssimo papel e quando tentou intervir interveio da pior forma possível. Esse é um ponto. A pandemia, por isso que eu estou comentando agora, pela delicadeza que é o Pnae, o Pnae são milhares de diferentes operações acontecendo ao longo do dia, são milhares de microcircuitos acontecendo ao longo do dia, é uma operação muito refinada, muito qualificada, ela não é uma coisa simples de ser feita e ao mesmo tempo é uma ideia simples que é: a escola é quem melhor sabe, conhece esses alunos, e a escola que melhor pode identificar. Então a ideia é uma ideia simples, mas ela exige toda uma operação complexa que tem que ser respeitada, que tem que ser construída.

A pandemia interrompeu esses circuitos, o governo não se preocupou em recompô-los, em garantir que, agora que as escolas voltaram a funcionar, como isso deveria ser feito. E na minha avaliação e está tirando vantagem disso. Por quê? Como esses circuitos foram interrompidos e como não existe ninguém mais cuidando, olhando, fiscalizando, identificando problemas, tentando cobrar os municípios, vai ser muito fácil ele impor um outro modelo daqui a um tempo. É um modelo que não favorece a escola, não favorece a cultura escolar, não favorece a alimentação da criança, não ajuda a crescer, não ajuda a aprender, não ajuda a nada e favorece única e exclusivamente quem? Os grandes.

Aí eu chamo atenção especial que não é o agronegócio que é beneficiado, hoje é muito difícil a gente separar o agronegócio da grande indústria, quem opera diretamente no Parlamento, inclusive atuando de forma subterrânea para destruir o Pnae de certa forma, é uma parcela da bancada do agronegócio, mas está defendendo o interesse da grande indústria. Que o agronegócio não vende para a escola, você não vende soja, você não vende o milho diretamente da fazenda, você vende o composto que, sei lá, as latas e latas daqueles, nem sei como chama esse negócio que é processado, que não é leite, parece leite, mistura com água, a coisa mais fácil do mundo, você compra uma lata enorme daquele pó, mistura com agua e dá para as crianças um pó colorido cheio de açúcar com corante e tal. Superfácil, quem vai ganhar com isso? Somente a grande indústria, porque a criança perde, a escola perde, a cultura perde, a agricultura familiar perde, todo mundo perde.

FIAN: Quando a senhora fala de uma construção que é mais rica na medida em que ela é mais complexa, mais demorada, porque tem vários conhecimentos, vários pontos de vista, vários interesses e também na necessidade de coordenar essas reações mais emergenciais, mais diante de situações graves ou até extremas… Nesses dois sentidos faz muita falta uma instância como o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], não é?

Campello: Com certeza, o Consea e as câmeras intersetoriais. Porque o Consea é esse olhar da sociedade civil tensionando o Estado, dizendo “Olha, o Pnae está piorando, a agricultura familiar isso e aquilo” – isso o Consea e os Conseas, porque tem o Consea federal que era orquestrado com os Consea estaduais e muitos municípios e tudo mais –, mas a intersetorialidade era garantida também pelo Sisan, o Consea era a cabeça do Sisan. O Sisan, Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, é o sistema que organizava o governo federal, estados e municípios, e ele organizava também a integração nos mesmos níveis.

Então, por exemplo, tinha a Caisan [Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional], que também não funciona mais, que tinha 18 ministérios, então tinha lá o MDS [Ministério do Desenvolvimento Social, extinto] dizendo “Gente, olha só, não está funcionando, o MEC [Ministério da Educação] não está garantindo tal coisa, o dinheiro está indo e tem poucas escolas, caiu a compra da agricultura familiar”, aí tinha o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário, extinto] dizendo “Olha, tem tal coisa, quem sabe a gente mudai isso, muda aquilo”, discutindo as regras, não é? Você comentava essa regra do aumento do valor por agricultor para a venda, aparentemente parece uma coisa interessante, “Ah, o agricultor vai poder vender mais”, tem que discutir isso, não só porque não aumentou o valor da merenda, mas por quê? Então pode ser que tenha menos agricultor vendendo? E se aumentar a faixa? Será que não vai pegar os médios?

Eu fico me perguntando se ao invés do pequenininho vender para o Pnae, se eles não estão de olho que o médio venda. Isso a gente vai ter que ir atrás. Se eles não estão aumentando a faixa para não pegar o mais pobre, para pegar o médio, que é um setor hoje muito mais fácil de ser capturado por esse discurso do agronegócio do que o pequenininho, do que o camponês, o agricultor familiar tradicional. Será se eles não estão aí no caminho de excluir os pequenos e incluir os médios produtores? Isso nós vamos ficar de olho, agora que não tem ninguém fiscalizando não tem.

Então, assim, quando você senta na mesa e propõe uma coisa dessa vai ter gente dizendo: “Mas será que isso vai render mesmo”? Porque pode ser, não estou partindo do princípio que é uma má ideia, quando você tem uma câmara multidimensional intersetorial com todo mundo sentado na mesa, alguém vem com uma ideia e essa ideia é debatida, discutida, os pontos a favor, os pontos contra vêm para a mesa e você tem um debate rico que permite que você construa a melhor solução e que você identifique quais são os problemas. “Não, eu acho que você precisa mesmo aumentar, mas a gente tem que inventar que com isso o pequeno seja excluído, então como fazer isso?” Às vezes você precisa de duas medidas ao mesmo tempo, entendeu?

É isso quando você está em um espaço como era a Caisan, você tem esses diferentes olhares, “Se fizer isso vai acabar favorecer tal setor, não é isso que a gente quer, mas ao mesmo tempo tem que fazer”. Então quais são as medidas justas para que você vá construindo a melhor regra? Eles não perguntaram para os municípios, eles não perguntaram para as merendeiras, eles não estão nem aí para o que o Consea pensa, então eles têm lá uma ideia que pode até ser uma ideia bem-intencionada, coisa que nesse governo é muito difícil você imaginar, mas digamos que seja e na prática vai gerar mais concentração, vai gerar mais exclusão de agricultor familiar, vai desmontar mais ainda o programa, por quê? Porque eles não escutam ninguém, porque eles não escutam os municípios, porque eles não escutam a rede de assistência social, porque eles não escutam a agricultura familiar, então é impossível você fazer um programa bem feito com esse nível de complexidade sem escutar os atores que estão operando lá na ponta, a chance de fazer uma coisa errada é gigantesca e eles não estão nem aí para fazer a coisa certa, não é?

 Então quanto mais diz isso, que eu acho que está no fim do túnel, eles não estão nem aí com essa delicadeza, com essa construção coletiva, por essa integração no sistema, a gente está construindo um sistema, o que é o sistema? É como o SUS [Sistema Único de Saúde], o Sisan seria como o SUS, tem o governo federal, tem os estados, tem os municípios, cada um tem uma atribuição nesse processo, não é todo mundo que faz as mesmas coisas, não é cada um por si e Deus por todos, você tem toda uma integração e orquestração no processo, isto foi destruído, nunca mais o sistema sentou junto, nunca mais os órgãos dos demais entes federados foram ouvidos. Esta destruição é a verdadeira destruição da integração, porque a integração não é somente entre diferentes áreas, também é entre diferentes níveis, e aí você não escuta a merendeira, você não sabe quais os problemas delas.

É isso, essa construção que não foi uma construção simples, a coisa mais fácil é a merendeira receber uma coisa pronta, misturar com agua e distribuir para as crianças, isso é mais fácil, dá menos trabalho do que cortar cebola, do que cozinhar para 300 crianças, dá muito menos trabalho, agora, é muito pior. Em todos os sentidos, do ponto de vista cultural, do ponto de vista ambiental, do ponto de vista da educação para o futuro, do ponto de vista de fortalecer a renda no campo, no ponto de vista de dinamizar a economia local, tudo isso.

FIAN: O que a alimentação escolar tem a ver com o que vem sendo chamado de sindemia global, conceito que a senhora abordou em sua aula magna na Cátedra Josué de Castro?

Campello: Só lembrando aqui os nossos leitores, na verdade a gente já vivia uma pandemia – três pandemias: a pandemia da obesidade, a pandemia da fome e uma pandemia da emergência climática, que vai impactar a fome e todas as outras questões. Então a gente já vivia essas três pandemias juntas, que é o que a gente chamava de sindemia global, a articulação entre essas três pandemias que têm tudo a ver.

FIAN: E que ainda se cruzam com o colapso anunciado da biodiversidade, não é?

Campello: Exatamente, essas três pandemias se retroalimentam com impactos generalizados. Então o impacto das mudanças climáticas acaba impactando perda de diversidade, que piora e gera outros problemas como é o próprio coronavírus. As últimas grandes pandemias, as últimas grandes viroses no mundo foram originadas exatamente da devastação sobre ambientes protegidos como as florestas, não é?

Então o ebola, várias outras doenças que ganharam uma dimensão, ganharam amplitude, território, ameaçaram a humanidade, como é o caso do coronavírus da Covid-19, eles têm muito a ver com o impacto de sistemas alimentares devastando florestas.

Então quando essas três pandemias se somam na sindemia global, os efeitos são vários e isso se soma essa tragédia que foi a Covid-19 que acelerou a sindemia. Por quê? As pessoas passaram – é uma tragédia o que está acontecendo, a gente vai ver, eu vi a apresentação umas duas semanas atrás de um colega, Paulo Castro. Ele faz o estudo mostrando que estava previsto que os alimentos, com esse aumento dos preços gerados por toda essa crise, o aumento de preços de produtos pouco processados e produtos naturais – que são os mais impactados pelo aumento de preços que nós estamos vivendo –, provavelmente a gente vai ter os produtos ultraprocessados mais baratos, que isso ia acontecer em um horizonte de dez anos e já está acontecendo agora.

Então assim, o resultado dessa tragédia toda é que as pessoas ainda estão se alimentando pior, não só estão mais pobres, estão com mais fome, e quando buscam produtos estão prioritariamente tendo acesso a produtos ultraprocessados. Então a gente vai ter como uma saída da pandemia da Covid, que está sendo muito mais demorado do que qualquer um de nós imaginávamos, uma ampliação da sindemia ao contrário do que a gente achava, não é?

 Aumentou a fome, aumentou a obesidade, aumentaram os impactos, como, no caso do Brasil, o colapso sobre a natureza, então aumentaram as queimadas, aumentou a devastação da Amazônia, de outros biomas do Brasil e o que a merenda escolar tem a ver com isso? Tudo, a merenda escolar talvez seja um microcosmos mostrando para o mundo que é possível enfrentar essas três pandemias simultaneamente com uma alimentação escolar, com compras públicas feitas de forma correta, não é? Porque é um alimento de qualidade. Então a educação, a criança está protegida pelo menos uma parte do dia, então impacto sobre a fome, no caso do Brasil são 43 milhões de crianças.

É difícil imaginar qualquer outra política mais eficiente do que essa no acesso à alimentação e no direito à alimentação, com comida de verdade, ou seja, comida que respeita não só a quantidade, a qualidade, a variedade, a questão cultural como estabelece a legislação Brasileira. Faz isso fortalecendo os circuitos curtos, comprando da agricultura familiar, gerando renda no campo, dinamizando a economia local e regional, reduzindo as emissões de carbono, reduzindo desperdício, porque quando a comida viaja, a maior perda de produtos na agricultura acontece no transporte – a comida já chega estragada naquele lugar. Então quando a gente viaja menos com a comida não só emite menos carbono, como perde menos, estraga menos o produto.

O Pnae é um microcosmo que pode ser macro, imagina: 5.570 municípios, milhares de escolas, 43 milhões de crianças, então o impacto que isso tem é enorme, só que está sendo um impacto escola a escola e local a local. Acho que é um exemplo perfeito, educativo para o gestor entender como uma política integrada, bem pensada, bem articulada tem impactos gerais. Não só ela é integrada como os seus impactos são integrais. Ela não só impacta a criança a aprender e comer melhor, protege essa criança não só do risco de estar com fome, mas ter sobrepeso e obesidade, diabete, hipertensão e assim por diante.

FIAN:  A gente vê como importante nesse quadro a noção da captura corporativa. A humanidade está em crises que exigem uma intervenção muito rápida e não tem como ser de cima para baixo simplesmente. Como conseguir operar essa transformação, por exemplo, colocar a agroecologia no centro da agenda com a oposição das grandes empresas?

Campello: A questão da captura corporativa é que acontece inclusive nesse nível micro. Por que as escolas distribuíam esse pó para misturar com água? Porque eles iam lá e falavam: “Muito mais fácil você fazer isso, é muito mais nutritivo etc. do que você fazer. Em vez de vocês fazerem por exemplo uma canjica na escola, distribuir esse flan aqui que é muito mais fácil”.

FIAN: “E que é enriquecido…”

Campello: “E que é enriquecido por vitaminas e não sei o quê.” Ai, bom, dá muito menos trabalho. Então tem essa coisa corporativa até lá na beirada, a escola vai lá e dá um brinde para a diretora, tudo isso continua acontecendo e portanto o processo de resistência é um processo que você tem que convencer a merendeira que o que ela está fazendo foi salvar essa criança, ela tem que entender que dar o flan para a criança ou dar não sei o quê é ruim para essa criança, ela tem que aprender a comer canjica, ela tem que gostar de canjica, de arroz doce, dá muito mais trabalho fazer arroz doce do que distribuir e não sei o quê.

Arroz doce faz parte da nossa cultura e tal, não estou nem falando do arroz e do feijão, peguei algumas coisas porque fica parecendo que sobremesa é ruim, e não é, criança gosta de comer uma sobremesa, agora tem que comer um arroz doce, tem que comer uma canjica, tem que comer um pé de moleque. Ai, para as nutricionistas não me matarem: além do arroz, do feijão, da verdura.

É muito mais fácil você dar um suco açucarado do que espremer a laranja, então tudo isso tem essa corporação micro, mas tem a grande briga, quem mais resistiu às compras públicas quando a gente tentou implantar foi a grande indústria. Por quê? Porque era ela que ia perder violentamente, imagina um mercado de 43 milhões de crianças, é um mercado da Argentina, é como se elas perdessem uma Argentina que estava no bolso delas. Tinha uma Argentina no bolso vendendo bolacha, biscoito, suco açucarado, porcariíto, tudo isso, e eles perderam. Uma parcela desse mercado, nem é todo o mercado, mas perderam uma parte grande desse mercado.

Aí eu falei daquela história do agro porque indiretamente é o agro que atua muito fortemente, e quando você olha as emendas que estão sendo feitas para mudar o Pnae são da bancada do agronegócio, mas na verdade o grande interessado e o grande diretamente prejudicado com isso é quem? O multimilionário, a grande indústria de alimentos mundial que hoje não é mais uma indústria nacional, ela é mundial, ela financia uma parte gigantesca dos parlamentares. Não só a indústria de refrigerante.

FIAN: A senhora falou um pouco no dia a dia, o convencimento dos profissionais na ponta, mas também em relação a esse enfrentamento, sabendo da força que esses setores têm na balança comercial e da força que eles têm, do tanto que eles estão enraizados no Parlamento, como estão representados no governo, então tem toda essa urgência tem essas forças operando de um jeito cada vez mais. Agora entrando muito forte no conteúdo escolar, elegeram como uma prioridade, “Vamos contar do nosso jeito aqui”.

Campello: Exatamente. Aí eu vou pegar para fechar um outro lado da história porque assim, isso que a gente começou falando que pelo que eu entendo é o centro da minha ideia, já que vão ser várias entrevistas a minha está cuidando da integração. A integração talvez seja a parte mais difícil, intangível de ser medida no desmonte, eu consigo medir quanto eu diminuí a agricultura familiar por exemplo, ou pelo menos eu consigo dizer “Eu nem estou mais medindo”, eu consigo avaliar essa perda nessa fiscalização. Eu consigo medir um conjunto de questões envolvendo gasto público, mas eu não consigo medir o desmonte da integração, isso é intangível.

Do mesmo jeito que eu demorei dez anos para construir, está sendo desmontado e não tem como medir porque isso é um valor intangível, da merendeira, da diretora da escola, município a município, e isso está acontecendo de forma pulverizada no Brasil, então esse desmonte intangível é o mais dramático porque em alguns outros, aumentar o valor, o nosso presidente volta a aumentar o valor, volta a ter essa orientação, agora esses circuitos curtos, o agricultor que se perdeu, o agricultor que vendia para a escola e que teve esse circuito interrompido provavelmente faliu, não é? Para reconstruir esse circuito talvez nem seja mais com ele, talvez seja um outro circuito.

FIAN: Alguém comprou a terra dele.

Campello: Alguém comprou a terra dele, ele foi para a cidade, então tem todo um desmonte que a gente não consegue medir, até porque quem deveria estar fazendo isso, que é o governo federal, não só não tem essa preocupação como tem a preocupação de esconder o que está acontecendo. Mas tem o intangível disso que é o processo de construção que aconteceu com cada gestor, a capacitação que nós demos para as merendeiras, a capacitação que nós demos para os professores, a capacitação que nós demos para os nutricionistas, a capacitação que se foi feita conjuntamente com eles. Todo esse blablablá dos Conseas municipais chamando, indo atrás, fazendo palestra, fazendo curso, a situação do filme, tudo isso parou, foi interrompido, é difícil de ser medido porque é intangível.

Agora, também talvez seja a nossa principal força de resistência, porque você capturou uma diretora de escola para a ideia da comida de verdade, quando alguém chegar e disser “Olha, isso aqui é muito mais fácil”, ela vai falar “Não, mas isso não é apropriado para a nossa criança”. Essa diretora de escola – que na verdade quando ela estudou ela aprendeu educação, ela não aprendeu merenda escolar, com esse processo de construção coletiva, sentando na mesa, discutindo com nutricionista –, ela fala “Não, esse modelo que vocês estão me vendendo centralizado não é legal, é muito melhor comprar do agricultor familiar porque tem a educação também do agricultor familiar”.

Esse agricultor familiar quando começa a vender para a escola é lindo o que acontece, porque ele se dá conta de que o que ele está fazendo vai transformar a vida dessa criança, então ele se dá conta de que aquele produto dele não está indo para uma prateleira, está indo para o lanchinho das crianças, ele chega na escola e ver as crianças tudo correndo, feliz, bonita, rosadinha, esse processo de educação é um processo que acaba extrapolando a escola, captura o agricultor familiar, que se sente comprometido e fala “Gente, eu estou fazendo uma coisa linda, que não só eu estou melhorando a renda da minha família, eu estou colocando comida na escola”.

Quando você vai conversar com esse povo você sente eles falando, é lindo. Isso também será um elemento de resistência porque eles também não conseguem tirar isso da professora que aprendeu a usar o quilo de feijão para fazer conta de matemática, ele não vai tirar da diretora de escola esse conhecimento que ela passou a ter que essa criança vai ficar mais protegida, vai estar protegida para diabetes, para a hipertensão, ela aprendeu um monte de coisa, esses dez anos ensinaram um monte de coisa.

Isto é um elemento, na minha avaliação, de resistência, a diretora só vai resistir, um dia ela vai se aposentar, se esse processo continua por muito tempo é logico que ele vai perder, mas hoje ele é um dos elementos de resistência, a merendeira comprometida em fazer canjica, ele é um elemento de resistência na cozinha, dizendo “Não, esse suco açucarado é uma porcaria, vamos bater aqui no liquidificador, nós temos liquidificador”. Então esse é um elemento de resistência, a integração das políticas públicas é também um elemento de resistência à destruição do Pnae e do Estado e da comida de verdade.

FIAN: Houve também as iniciativas de solidariedade que também criaram ou aumentaram redes, muitas ligadas ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e à conferência popular da área…

Campello: Essa parte é fundamental, em grande medida foi o que segurou mesmo. Não só a parcela da população carente, mas iniciativas vindas das próprias escolas de como organizar cestas, nós temos exemplos maravilhosos no Brasil todo. Agora, o tempo todo a gente tem que lembrar que essas ações de solidariedade, que não vieram das grandes corporações, vieram da própria periferia, solidariedade entre iguais, essas medidas não podem substituir o Estado, não é? É a política pública que garantirá que essas crianças possam ter acesso à comida de verdade de forma a garantir o seu direito, o direito à alimentação adequada.

FIAN: A Cátedra Josué de Castro organizou um extenso seminário sobre os 75 anos de Geografia da fome. Não é chocante ver mais de metade da população privada do que ele chamou de “o primeiro direito”?  

Campello: Setenta e cinco anos depois a gente volta a falar das mesmas coisas que o Josué falava. Segunda-feira, quando a gente teve aquele episódio dramático das pessoas indo para posto de saúde porque estavam doentes, não, estavam com fome na verdade. É a mesma história de Josué, ele conta no seu livro que quando ele começou a trabalhar ele descobriu que operários estavam doentes e a doença dos operários era fome. Em 1940, aí o povo volta a ter uma doença que chama fome, não é doença fome, fome é uma questão econômica e política.

O professor [Ladislau] Dowbor, vale muito a pena assistir à palestra dele ontem, pega a renda do Brasil e divide pelo número de pessoas, dá R$ 11 mil por mês, e fala “Bom, a gente tem R$ 11 mil por mês, não tem justificativa para as pessoas passarem fome, o Brasil produz 3 quilos de comida por dia por habitante, não tem motivo”. Quando você traduz para per capita, esses milhões e milhões caem no nosso ano.

Então 75 anos depois a gente está repetindo a mesma coisa que o Josué falou, não é? E chamando de direito e dizendo que o problema não é biológico, que o problema não é na natureza, que o problema é econômico e político e ontem o Dowbor disse: é um problema ético, moral, um país conviver com uma situação dessa podendo ter outro caminho e já tendo vivido outro caminho, não é? Porque nós mostramos que é possível sair do Mapa da Fome, estamos voltando ao Mapa da Fome, não por conta da pandemia – já tínhamos voltado antes por conta da destruição das políticas públicas. E a questão da renda, não é?

A destruição do Bolsa Família é uma tragédia, mas a gente não pode discutir só a renda. O Brasil saiu do Mapa da Fome por um conjunto de políticas, a valorização do salário mínimo, o aumento de empregos formais, o Bolsa Família, a aposentadoria rural e o aumento da aposentadoria do Brasil – que é algo que aconteceu graças ao aumento do salário mínimo –, a política de combate a preço alto e regulação de preço para produtos básicos, fortalecimento da agricultura familiar, o Pnae, o Consea, o Sisan. Então nós temos aí um pacote de políticas que nos tiraram do Mapa da Fome e uma delas que é estratégica e é básica, que é proteção de renda.

O programa que eles estão criando [Auxílio Brasil] acabou com o Bolsa Família e não o substitui porque é o oposto do Bolsa Família, ele destrói as bases que organizaram o Bolsa Família no Brasil, que são o quê? Exatamente essa questão da integração de políticas públicas, o alívio à fome e à pobreza que é articulado com educação e com saúde. Ele destrói a base da construção coletiva com municípios, ele não trabalha junto com assistência social, então trabalha via aplicativo então tudo que eles estão colocando no lugar é oposto daquilo que a gente tinha, exatamente na essência que é integração de políticas públicas.

FIAN: Um programa de renda básica – como aprovado em lei e determinado pelo STF – não deveria estar no centro do enfrentamento dos impactos da pandemia e da trilha para a recuperação nos próximos anos?

Campello: A construção rumo a uma renda básica, que todos recebam uma renda, eu acho que é uma construção, eu particularmente não defendo isso agora, por exemplo eu ou você devemos receber um valor e a pessoa pobre que está passando fome deveria receber a mesma coisa? Eu não defendo isso hoje, eu acho que nós temos um caminho ainda longo de redução de desigualdade antes de ter uma renda para todos e nesse momento eu acho que nós temos que olhar do drama da situação que é a população vulnerável, não só a que está em extrema pobreza, a que está em pobreza, mas aqueles que têm uma renda que hoje recebe e amanhã não, então tem uma parcela da população enorme que é metade dos Brasileiros.

Então em vez de dar renda para os 220 milhões, eu acho que nós temos que olhar os 100 milhões hoje que não têm renda, que têm uma renda vulnerável ou que não sabem se vão comer mês que vem, ou daqui a três meses o que vai estar acontecendo com eles. Assim, a destruição do Bolsa Família foi um passo, o Bolsa Família era um passo rumo à renda de cidadania, a destruição é um passo atrás para que a gente não tenha um programa de renda básica nunca no Brasil. Então nós retrocedemos 20 anos.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, José Graziano, Maria Emília Pacheco e Sofía Monsalve.

Entrevista | SOFÍA MONSALVE: “A alimentação escolar pode contribuir para o enfrentamento ou o agravamento das crises sistêmicas do nosso tempo”

Publicada no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

A secretária-geral da FIAN Internacional, Sofía Monsalve, resalta que o colapso ecológico e climático, as pandemias e a ascensão de forças antidemocráticas se se cruzam e afetam a todas e todos – de diferentes maneiras, mas em todos os espaços sociais. No que diz respeito ao alimento das e dos estudantes, ela lembra que muitas cantinas e refeitórios têm seu cardápio ditado por corporações globais que acostumam as crianças com doces, refrigerantes e produtos alimentícios ultraprocessados em geral, criando ou reforçando hábitos alimentares responsáveis pelo aumento das taxas de obesidade.

Uma produção, acrescenta, ligada ao desmatamento e à expansão das monoculturas de cana e palma com uso intensivo de agrotóxicos (o dendê ou óleo de palma é usado em inúmeros ultraprocessados, como biscoitos, margarina e pasta de avelã com chocolate; o plantio da palmeira ocupou enormes extensões de florestas no Sudeste Asiático e agora avança na Amazônia).

“Reconectar comunidades humanas com a natureza através da comida é uma questão essencial para nossa sobrevivência”, defende Monsalve, responsável por mais de 15 anos pelo programa de terra e recursos naturais da FIAN. A seu ver, um programa como o Pnae aborda causas estruturais de fome e desnutrição, por prover alimentos frescos e saudáveis a crianças e jovens fortalecendo a agricultura familiar camponesa e indígena, assim como a agroecologia. Ela coloca políticas nessa linha como verdadeiras soluções, em oposição à dita “agricultura de precisão”, altamente mecanizada e baseada em pulverizações aéreas.

Integrante do Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (Ipes-Food, na sigla em inglês), a entrevistada critica a abordagem da cúpula da ONU sobre o tema no ano passado e diz que o Brasil abandonou a política de segurança alimentar e nutricional baseada em direitos humanos que impactou as relações internacionais nesse campo.

FIAN Brasil: O que a alimentação escolar tem a ver com as grandes crises da nossa época e com a responsabilidade das grandes corporações nela?

Sofía Monsalve: Vivemos num tempo marcado por crises simultâneas, que se cruzam: colapso ecológico e climático; pandemias, tanto Covid-19 quanto obesidade; bem como crises políticas causadas por forças autoritárias, racistas, misóginas e antidemocráticas. Essas crises são sistêmicas e não estão localizadas em uma determinada região ou país, ou em um determinado setor social ou população.  Eles afetam a todes nós, de diferentes maneiras, mas afetam a todes nós em todos os espaços de interação social. Nesse sentido, essas múltiplas crises também afetam a alimentação escolar.

Lembremos que, durante as medidas de confinamento para conter o coronavírus, as escolas foram fechadas e milhões de crianças no mundo perderam o acesso à comida escolar. Para as mais pobres entre elas, esse alimento é vital para o seu bem-estar. Lembremos também que em muitos países as cantinas e refeitórios escolares ainda são dominados por junk food: doces, refrigerantes açucarados, batatas fritas e outros lanches são oferecidos às alunas e alunos em abundância. Essas cantinas e refeitórios são o ponto de contato diário entre corporações globais como Coca-Cola, Unilever ou PepsiCo e milhões de crianças. É ali que maus hábitos alimentares responsáveis pelo aumento das taxas de obesidade em menores são formados ou reforçados.

Indiretamente, esse tipo de cantinas e refeitórios escolares também contribui para a destruição ecológica e a emissão de gases de efeito estufa. Como? Apoiando o modelo de produção agrícola industrial favorecido por essas transnacionais e que é responsável pelo desmatamento e pela expansão das monoculturas de cana-de-açúcar e palma com uso intensivo de agrotóxicos. Estas são algumas das conexões que vejo entre a alimentação escolar e as crises que estamos passando.

FIAN: Que novos elementos as discussões no Ipes-Food trazem para sua visão sobre o tema e sobre o multilateralismo, e como o acompanhamento da Cúpula de Sistemas Alimentares a impactou?

Monsalve: As discussões no Ipes-Food têm sido muito estimulantes. É um espaço de aprendizado incrível por causa da diversidade de seus membros. Participei do desenvolvimento de uma nota informativa que discute o papel da ciência e do conhecimento na governança dos sistemas alimentares.

Foi um tema controverso no contexto da Cúpula de Sistemas Alimentares, uma vez que o grupo científico da cúpula tinha uma abordagem muito tendenciosa  da ciência: privilegiava a participação de economistas e representantes das ciências naturais, marginalizava especialistas em direitos humanos, não reconhecia o conhecimento ancestral dos povos indígenas e de outras comunidades rurais,  e não tinha uma atitude crítica e pensativa que fosse capaz de questionar os limites e a legitimidade da pesquisa e da ciência financiadas por corporações e empresas.

A acumulação capitalista contemporânea depende cada vez mais da capacidade das corporações de monopolizar o acesso ao conhecimento.  Nesse sentido, a defesa da pluralidade do conhecimento no campo alimentar, o diálogo de saberes e a governança popular e democrática dos alimentos tornam-se questões essenciais em nossa agenda. Essas são as novas perspectivas que a participação no Ipes-Food me traz.

FIAN: Como a experiência brasileira das últimas décadas em soberania e segurança alimentar e nutricional era enxergada no plano internacional e como a situação atual é vista?

Monsalve: O programa brasileiro Fome Zero foi um programa que tinha um componente de política externa e política internacional. Foi assim que o Brasil, em meio à crise alimentar de 2007-2008, assumiu um claro papel de liderança em nível internacional, defendendo políticas públicas baseadas em direitos humanos para combater a fome.

Não é exagero dizer que o Brasil foi fundamental para a reforma do Comitê de Segurança Alimentar (CFS, na sigla em inglês) das Nações Unidas em 2009: essa reforma abriu um comitê da ONU para a participação real e efetiva dos setores sociais mais afetados pela fome e pela desnutrição. Em outras palavras, ela o democratizou. Foi assim que esse comitê se tornou o epicentro dos debates para o avanço de políticas públicas baseadas em direitos humanos e no âmbito da soberania alimentar: fortaleceu o direito à terra, à água, à pesca e às florestas, bem como à agricultura familiar camponesa e à pesca artesanal e de pequena escala, desenvolveu o conceito de mercados territoriais e sua importância para o fornecimento de alimentos.

Infelizmente, o atual governo do Brasil desmontou grande parte da política alimentar baseada em direitos humanos, com sérias consequências para a população brasileira. Os números dizem isso: houve um aumento dramático de pessoas que sofrem de insegurança alimentar. As consequências dessa política também são percebidas em nível internacional porque não temos mais governos que defendam a democratização da ONU, nem os direitos humanos como a bússola fundamental que norteia as políticas públicas. Assim, também enfrentamos um desmonte do CFS e uma privatização da governança alimentar internacional no sentido de que agora as corporações e suas iniciativas desempenham um papel de liderança na definição de políticas públicas.

FIAN: O que são as “falsas soluções” que as organizações do nosso campo têm denunciado sistematicamente?

Monsalve: Deixe-me dar um exemplo de soluções falsas: todos sabemos que o uso intensivo de agrotóxicos na agricultura causa sérios danos à saúde dos trabalhadores agrícolas e comunidades rurais expostas à pulverização aérea; assim como os danos ao meio ambiente, por exemplo, pela água poluidora. Qual é a falsa solução que as corporações propõem a esses problemas? Em vez de abandonar o uso de agrotóxicos, as corporações do setor vendem a solução chamada “agricultura de precisão”, ou seja, a ideia de que robôs ou drones aplicarão as quantidades exatas de agrotóxicos que são necessários sem causar danos. 

É uma manobra de distração. Brinque com a ilusão de que a tecnologia é limpa, precisa e resolve todos os problemas. Os agrotóxicos não desaparecerão do ambiente porque são aplicadas em doses precisas. Somados, milhões de doses precisas continuam sendo um problema. A agricultura industrial é baseada na produção em larga escala. Uma grande plantação continuará a precisar de uma quantidade de agrotóxicos prejudicial à saúde humana e planetária. Sem mencionar que, para proteger a saúde dos trabalhadores agrícolas, a solução não pode ser substituí-los por robôs e deixá-los sem emprego.

FIAN: Um programa como o Pnae, que atende crianças e adolescentes, prioriza a agroecologia, fortalece a agricultura familiar, reconhece a diversidade cultural, respeita a regionalidade e a temporalidade da produção, apoia indígenas e povos e comunidades tradicionais, valoriza o conhecimento técnico e tradicional, respalda a autonomia local… não estaria bem no cruzamento daquilo de que realmente se precisa?

Monsalve: Sem dúvida, um programa como o Pnae é uma solução real no sentido de que aborda causas estruturais de fome e desnutrição. O fortalecimento da agricultura familiar camponesa e indígena, bem como da agroecologia, é essencial para garantir o acesso das crianças e jovens a alimentos frescos, saudáveis, sazonais e minimamente processados. Apoiar essa forma de produzir alimentos é fundamental tanto para resfriar o planeta e recuperar a biodiversidade quanto para fortalecer a saúde das comunidades.

Reconectar comunidades humanas com a natureza através da comida é uma questão essencial para nossa sobrevivência. O Pnae desempenha um papel muito importante nesse sentido.  A FIAN Colômbia vem desenvolvendo iniciativas muito interessantes com crianças, adolescentes e jovens para revalorizar seus territórios/ecossistemas, bem como seus laços com seus ancestrais e sua cultura. Esse exercício de aplicabilidade do direito à alimentação e à nutrição adequadas fortaleceu a capacidade dos jovens de exigir das autoridades municipais programas de escolas de alimentação firmemente ancorados em uma abordagem de direitos e soberania alimentar.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, José Graziano, Maria Emília Pacheco e Tereza Campello.

Entrevista | JOSÉ GRAZIANO: “O Pnae com compras da agricultura familiar junta tudo de bom”

Publicada no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

Como ministro extraordinário de Combate à Fome, José Graziano foi responsável, em 2003, pela implementação do Programa Fome Zero, depois englobado no Bolsa Família. Os resultados das políticas de segurança alimentar e nutricional e de cooperação internacional do Brasil o levaram ao comando da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que levou essa experiência a vários países. O entrevistado conta que o Pnae, em sua versão com compra das/os agricultores familiares, foi a iniciativa mais requisitada.

“Essa modalidade combina criança na escola, comida saudável, desenvolvimento local, participação social e programas de vizinhança”, elogia o hoje diretor-geral do Instituto Fome Zero (IFZ), uma organização civil.

Para o agrônomo, com a volta ao Mapa da Fome nosso país demonstra que se, por um lado, é possível romper esse ciclo com vontade política, por outro é fácil recair nele abandonando as medidas que funcionaram. O entrevistado também alerta para a piora no padrão alimentar brasileiro e latino-americano e para a dificuldade de mostrar às pessoas que a obesidade é um problema de saúde pública.

Graziano ressalta a importância que a política de valorização do salário mínimo teve na garantia da alimentação adequada e diz que o problema hoje não está na competição da exportação de commodities agrícolas com a produção de alimentos, e sim na falta de poder aquisitivo de grande parte da população. Ele defende que nenhum governante poderia substituir o modelo agroexportador num horizonte próximo e precisaremos dos dólares do saldo comercial do próprio setor para financiar uma transição nesse sentido.  

FIAN Brasil: Por que, dentre programas brasileiros tão replicados mundo afora, o Pnae foi aquele que mais encontrou interesse dos países?

José Graziano: Na verdade, é a versão do Pnae com compras da agricultura familiar, que garante produtos frescos e saudáveis para as crianças, além de reduzir muito o custo de transporte dos alimentos. Esse é um item muito importante em alguns países que têm um custo alto de transporte.

Tem aquilo que eu chamo tudo de bom junto: criança na escola; comida saudável; circuitos curtos de produção e consumo, o que favorece o desenvolvimento local; uma participação social dos pais, envolvidos na alimentação dos seus filhos; programas de vizinhança, já que parte da comida é comprada de pais dos alunos ou pequenos produtores no entorno da escola, como ovos, leite, frutas e verduras.

Então isso que tornou muito atraente, mas devo dizer que não é um programa fácil de implementar, porque passamos de uma situação praticamente onde temos produtores de subsistência ou com pouca presença no mercado para produtores de agricultura familiar que têm de ter uma oferta regular, e isso implica políticas públicas, a prefeitura tem de estar envolvida. Não é só dizer que vai comprar, precisa ter uma oferta e uma oferta de qualidade desses produtos para garantir esse mercado do Pnae.

FIAN: No último Sofi da sua gestão, a obesidade apareceu pela primeira vez como um problema mundial da envergadura da fome [Sofi é a sigla pela qual ficou conhecido o relatório anual O Estado da Insegurança Alimentar e da Nutrição no Mundo]. Para muitas pessoas, é uma ideia estranha, embora, estatisticamente, provavelmente tenham hoje um dos problemas ou ambos em casa ou na porta ao lado. Pode comentar esse quadro, com destaque para a situação das crianças?

Graziano: É verdade, o problema é que as pessoas ainda acreditam que a obesidade é sinônimo de comer bem, de comer muito. Não é. A obesidade é sinônimo de comer mal, de comer produtos de qualidade inferior, como, por exemplo, os ultraprocessados – você troca o consumo de carne e passa a consumir salsicha. Isso faz uma enorme diferença porque, como já dizia o [Otto von] Bismarck, chanceler da Alemanha, “se as pessoas soubessem o que tem dentro de uma salsicha, haveria uma revolução”. Nós não sabemos os aditivos e toda forma de processamento da maioria dos produtos processados e principalmente dos ultraprocessados, que são os fatores fundamentais de aumento da obesidade.

Vou contar uma história: quando eu fui ajudar a implantar o programa de combate à fome na Argentina no ano anterior à pandemia, 2019, o ministro encarregado me contava a dificuldade que ele tinha na região noroeste da Argentina, que é uma região açucareira onde se ingere muito açúcar e derivados de farinha de trigo – a pão branco, mingaus, tortas, pizzas etc. As mães se orgulhavam dos pibes [crianças] gordinhos, com claros sintomas já de obesidade e uma situação de saúde muito precária, porque você sabe que a obesidade abre a porta de uma série de comorbidades, como nós vimos agora durante a pandemia – os quadros mais graves de infecção da Covid são nas pessoas com sobrepeso ou obesas.

Os últimos dados para a América Latina são aterradores. Uma publicação que saiu semana passada da FAO regional da América Latina, com sede em Santiago, mostra que o sobrepeso em menores de 5 anos aumentou muito nos últimos anos. A média da América Latina é de 7,5% de crianças com menos de 5 anos com sobrepeso e obesidade. E isso está muito longe da meta do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável, que é reduzir o sobrepeso das crianças para 3%.

A América Latina está mais de 2 pontos percentuais acima da média mundial e devo dizer que a pandemia agravou muito esse quadro. Um indicador preciso disso são os dados da pesquisa VigiSAN e os dados do Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] que mostram que em quase 50% dos domicílios com crianças houve uma redução significativa do consumo de frutas, verduras e legumes, portanto, dos produtos frescos e saudáveis. Isso leva a um aumento do que se chama insegurança alimentar leve, aquela em que as pessoas, para poderem continuar comendo com o dinheiro que têm, têm de sacrificar qualidade – como eu disse, troca carne por salsicha, deixa de comer frutas, verduras e legumes.

Para ter uma ideia, quando a gente compara a segurança alimentar no Brasil entre 2004 e 2020 – portanto, um período longo –, vamos ver que em 2004 nós tínhamos 65% da população em situação de segurança alimentar, e essa proporção cai para 45% em 2020. Pela primeira vez, o Brasil passa a ter mais da metade da sua população em situação de insegurança alimentar, e dessa segurança alimentar, a proporção dela de insegurança alimentar grave, 10%, permanece mais ou menos estável entre 2004 e 2020, da mesma forma a insegurança alimentar moderada, em 12% em 2004, também 12% em 2020. Ou seja, há uma volta daqueles números que nós tínhamos em 2004 de insegurança alimentar grave e moderada, que são as formas mais preocupantes e é o indicador de fome usado no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 2. Mas quando a gente olha o indicador de insegurança alimentar leve, vai ver que ele saltou de 14% em 2004 para 35% em 2020, ou seja, em 2020, mais de um terço da população brasileira estava comendo mal, comendo de uma forma que substituía os produtos de maior qualidade por produtos de menor qualidade – como diz o outro, comendo miojo e Coca-Cola, refrigerantes açucarados. Esse é o caminho para a obesidade, então não será de se estranhar que nós tenhamos um aumento muito forte da obesidade durante a pandemia assim que os dados de 2021 tornarem-se disponíveis.

FIAN: O que seus interlocutores de fora do país comentam sobre os rumos da segurança alimentar e nutricional do Brasil nos últimos dois governos, em especial neste?

Graziano: Bem, é difícil explicar para eles, a maioria pergunta o que está acontecendo, meio incrédulos com as estatísticas que divulgam. Outro dia, um dos coordenadores da Cúpula Mundial da Alimentação me ligou de Bruxelas para saber se era verdade os números que estavam sendo divulgados, que apontavam que apenas 45% da população brasileira tinha segurança alimentar, ou seja, mais da metade não tinha. As pessoas custam a acreditar em tamanho retrocesso de um país que saiu do Mapa da Fome tão recentemente, em 2014. Nós estamos falando de cinco anos passados.

Na verdade, o Brasil passou a ser um exemplo didático de duas coisas. Primeiro, como é possível acabar com a fome quando se dá prioridade política a isso, o que significa ter recursos orçamentários e uma ação coordenada do governo, sociedade civil, setor privado, foi o que o Brasil fez entre 2003 e 2013 para sair do Mapa da Fome em 2014. A segunda coisa do exemplo didático do Brasil é como se pode voltar rapidamente ao Mapa da Fome se a gente desmontar o sistema de proteção social e as políticas de segurança alimentar em momentos de crise econômica. É esse o exemplo que o Brasil está mostrando para o mundo.

Queria destacar aqui um ponto importante: o que acaba com a fome não são as políticas sociais e a política de segurança alimentar, essas políticas ajudam principalmente aquela parte da população mais pobre a sair da situação de insegurança alimentar, mas o que realmente acaba com a fome é o modelo econômico de crescimento do país: inclusivo, de crescimento rápido, que faz gerar empregos de qualidade e salários razoáveis. E nesse sentido queria destacar que, na minha opinião, a política mais importante que levou o Brasil a sair do Mapa da Fome, política implementada pelos governos Lula e Dilma, foi a valorização do salário mínimo. O aumento do salário mínimo, que é um dos componentes do programa Fome Zero.

O salário mínimo serve de farol para todo o setor informal, então, por exemplo, a faxineira, aquele cara que faz bico de encanador, de pedreiro. Ele, quando vai calcular o valor do seu trabalho prestado, ele tem por referência o salário mínimo vigente. Então o salário mínimo, a valorização do salário mínimo, puxa para cima os salários pagos, mesmo nos setores informais, que é um dos grandes problemas do aumento, agravamento da concentração da renda na América Latina, em particular no Brasil. Brasil teve uma subida fortíssima do Índice de Gini [que mede a desigualdade] nos últimos anos em função da redução dos salários pagos e aumento do desemprego.

FIAN: Precisaremos novamente de um ministério extraordinário de combate à fome?

Graziano: Eu diria que, infelizmente, nós vamos precisar começar tudo de novo, porque o governo atual, além de cortar os recursos do Orçamento, os parcos recursos que ainda resistiram ao governo Temer, o governo Bolsonaro está desmontando as políticas existentes. E tem se dedicado nos últimos meses – antes, digamos, de entrar em modo eleitoral full [total}, se já não está – a maquiar alguns programas, tirar a paternidade deles. É o caso do Bolsa Família, transformado em Auxílio Brasil, mas mantido basicamente com a mesma estrutura; o PAA, Programa de Aquisição de Alimentos, que também mudou de nome, o Comida no Prato, que é um programa dos bancos de alimentos, estatizou o programa Comida no Prato: agora as doações feitas por você, por qualquer pessoa, vão aparecer contabilizadas como do governo.

Então essas maquiagens que têm sido feitas não só eliminam o controle social dos programas, tiram a participação social, como abrem espaço para manipulações eleitoreiras. O que o governo Bolsonaro está fazendo é adaptar o que sobrou dos programas existentes porque cortar, acabar não pode, porque são programas previstos em lei ou causariam uma reação popular ainda maior contra o governo. O governo está transformando os programas de segurança alimentar e nutricional em um festival de cesta básica. Isso que eu vejo que vai acontecer em 2022.

FIAN: Em falas recentes, o senhor apontou o agronegócio como agravador das desigualdades. Porém, em entrevista de 2020, defendeu a inviabilidade de rever o peso dos canais exportadores do setor – o que me pareceu ser uma proposição conjuntural, algo para o momento. Em que medida um modelo agroecológico e redistributivo pode conviver com a monocultura e seu entrelaçamento com a grande indústria de produtos alimentícios, e com o capital financeiro e seu apetite por terras?  

Graziano: Bem, essa é uma pergunta complicada, não dá para responder isso rapidamente. Eu vou dar algumas indicações e me colocar à disposição para discutir um dia. Eu acho um erro muito grande a gente pensar, qualquer governo que entre em 2023, que vai poder mudar esse modelo baseado no agronegócio exportador do dia para a noite. Não dá para fazer isso.

Você tem de, para começar, por exemplo, investir muito em pesquisa agroecológica na Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], que não vai ser fácil convencer a Embrapa a mudar da sua prioridade de pesquisa em técnicas da revolução verde [conjunto de inovações tecnológicas que aumentou substancialmente a produção agrícola], mudar isso da noite para o dia. Nós vamos precisar mudar a cabeça de pesquisadores que acham que estão fazendo o melhor de si desenvolvendo o uso das tecnologias da revolução verde, principalmente o uso de químicos e maquinário.

Também tem de se levar em consideração que o novo governo vai precisar de muitos dólares para financiar essa mudança de modelo. Nós vamos ter de usar os recursos internalizados pelo agronegócio, de exportações do agronegócio, para ir financiando gradativamente os programas sociais, os programas de segurança alimentar, a própria agricultura familiar etc. Então eu já acho que vamos fazer muito se conseguirmos fazer com que, em 2023, o agronegócio comece a pagar impostos. Por exemplo, hoje eles estão isentos dos impostos de exportações pela Lei Kandir; também são isentos os principais insumos que o agronegócio usa, como máquinas e equipamentos, como os defensivos químicos etc. Se nós botarmos esses setores a pagarem o imposto devido, já vai ser uma fonte de recurso importante para poder apoiar a produção de produtos saudáveis da agricultura familiar.

O que eu quero dizer com isso é que o problema não é exportação de commodities agrícolas no Brasil. A gente tende a ficar sob a aparência dos fatos. Nós não temos falta de produto, nós temos falta de dinheiro para comprar os produtos. Os pobres não comem bem no Brasil – ou não comem, passam fome – não é porque não tem produto para comprar. Eles não têm dinheiro para pagar os produtos. Não vamos nos iludir aí… o problema verdadeiro é baixo nível dos salários. Não é o preço dos alimentos que é caro, são salários que são muito baixos. Por que a gente não pensa em aumentar os salários? Por que pensa sempre em reduzir o valor dos produtos agrícolas?

A ideia do Ford quando ele desenvolveu o modelo fordista de produção era que seus próprios trabalhadores pudessem comprar o carro Ford T que eles iriam produzir, senão não haveria demanda suficiente para comprar os carros. Então essa ideia de pagar salários melhores é uma ideia que faz parte do sistema capitalista. Não é nenhuma ideia socialista, nenhuma ideia comunista, ter salários dignos para os trabalhadores poderem comprar os produtos que produzem. Isso deveria valer para os nossos trabalhadores rurais, trabalhadores do agronegócio, aumentar os seus salários, aumentar o nível de salários em geral do Brasil. Volto a insistir: nós estamos confundindo o verdadeiro problema. O verdadeiro problema não é falta de alimentos. O verdadeiro problema é a falta de poder aquisitivo da população brasileira.

FIAN: Como o enfrentamento à pandemia poderia ter sido diferente no que refere à segurança alimentar e nutricional?

Graziano: Bom, eu diria que em tudo o enfrentamento da pandemia poderia ter sido diferente se nós não tivéssemos um governo que desde o início negou a existência do processo, não reconheceu a pandemia como um problema grave, eu diria um dos mais graves que o mundo já enfrentou na sua história. Podia ser diferente na política de saúde, por exemplo: nós podíamos ter começado a vacinação muito antes, já que tínhamos disponibilidade aqui de vacinas do Butantan. Podíamos ter fortalecido o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional]. Em vez de extinguir o Consea, fortalecer, revitalizá-lo para que ele fosse o articulador de uma verdadeira campanha brasileira como houve na época do programa Fome Zero, de arrecadação de alimentos, de distribuição às entidades sociais.

Podíamos ter apoiado a agricultura familiar, aumentado os recursos do PAA, por exemplo, em vez de reduzir os recursos do PAA, aumentado os recursos para o programa de cisterna no Semiárido em plena seca e crise econômica – nós cortamos praticamente a zero o programa de cisternas e passamos a distribuir cisterna de plástico que só beneficia, na verdade, os produtores de plástico no Brasil. Podíamos dar mais recursos ao Pnae para evitar o que houve: o corte da merenda escolar com compra da agricultura familiar em boa parte das escolas que tiveram de fechar pela pandemia. Então, em resumo, podia ter sido tudo diferente. Há alternativas de políticas, sim, que não foram seguidas. Se há uma riqueza que o Brasil tem, é essa expertise em políticas de segurança alimentar e nutricional e em políticas sociais. Podia ter sido tudo diferente.

FIAN: No plano mundial, como está a sua esperança em relação ao que chamou de um great reset, uma retomada em bases substancialmente novas? O que seria necessário por parte dos países dos organismos da ONU?

Graziano: Eu diria que a ONU perdeu duas grandes oportunidades este ano para começar a mudar o problema e produzir alimentos saudáveis de forma sustentável. Primeira oportunidade perdida foi na Cúpula dos Sistemas Alimentares, que terminou em Nova York no dia 23 de setembro. Embora houvesse uma grande presença e um grande número de promessas, de concreto não se exibiu nada. Nenhum acordo efetivo, nem mesmo um fundo mundial de combate à fome, que era o que estava desenhado desde o início, conseguiu-se. Então, de concreto não se avançou nada, mais promessa, mais blablablá.

Alguma coisa similar aconteceu na COP26 [Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021], que foi a segunda oportunidade perdida. Infelizmente, nós vimos na COP26 mais do mesmo, nenhum apetite para mudar de fato a ideia de que nós estamos a caminho da extinção. Nem mesmo aquele anúncio do tiranossauro lá [que a ONU usou para alertar sobre o risco de extinção] surtiu efeito, e a perda da liderança do presidente [Joe] Biden nos últimos meses, os americanos estão cada vez mais preocupados com os chineses, e muito menos com o futuro do mundo. Os americanos não apoiaram, por exemplo, banir o uso do carvão entre os combustíveis fósseis. Continuamos subsidiando aqueles produtos que nos levam ao caminho da extinção.

Os dois produtos que mais recebem subsídios no mundo hoje continuam sendo os combustíveis fósseis, entre eles o petróleo e o carvão, e no campo dos alimentos o trigo, que também é um produto hoje claramente na lista dos produtos que ajudam a obesidade, essa epidemia de obesidade.

Agora, eu ainda tenho esperanças porque, como todos dizemos, a esperança é a última que morre. Nós vimos na COP26 e na Cúpula dos Sistemas Alimentares uma grande participação da sociedade civil, uma grande mobilização social de setores organizados da sociedade civil. Na COP26 nós vimos também a presença de vários governadores do Brasil para contra-arrestar a ausência do governo federal, e isso abre caminho para pensar, primeiro, na descentralização das políticas públicas, que é um passo importante, e no fortalecimento da participação social nessas políticas, tanto na sua elaboração, concepção, como também na implementação.

O problema é que, infelizmente, esse caminho é longo e demorado, e se nós continuarmos só pensando nas coisas a longo prazo, podemos estar acelerando para concretizar aquela preocupação do Lord Keynes [o economista John Maynard Keynes], quando disse que a longo prazo estaremos todos mortos. Espero que a gente consiga, a tempo, evitar o caminho da extinção.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, Maria Emília Pacheco, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

Entrevista | MARIA EMÍLIA PACHECO: “Precisamos pensar as políticas a partir do princípio da emancipação”

Publicada, em versão resumida, no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae. Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

Primeira mulher a presidir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Maria Emília Pacheco conta das mediações para aprimorar o Pnae – que ela aponta como estratégico – e .para garantir aquilo que as diretrizes do programa determinam, reduzindo, por exemplo, a burocracia para o fornecimento por agricultores e agricultoras familiares e impondo limites ao “deixa fazer” das terceirizações.

Ela lembra também as mobilizações ligadas ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) e à conferência popular da área (CPSSAN) pelo enfrentamento da fome e do desmonte das políticas que ajudariam a combatê-la, a começar pela extinção do próprio colegiado.

Na entrevista, a antropóloga explica ainda a ideia do direito ao gosto, em oposição à comida de laboratório, e defende o modelo agroecológico, a importância dos bens comuns e a conexão com outras lutas sociais.  

Para Maria Emília, os desafios desta curva da história passam por desvendar e traduzir os mecanismos de dominação e opressão e controlar o poder das empresas transnacionais. Confira a conversa de quase duas horas com a assessora da Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase) e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

FIAN Brasil: Gostaria de começar pelos cinco anos em que a senhora presidiu o Consea. Pode comentar como apareceram e quais foram as principais disputas em torno da alimentação escolar que a senhora presenciou?

Maria Emília Pacheco: Naquele tempo estava em debate lá no FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação] uma resolução de número 26. Essas resoluções do FNDE sempre buscaram aperfeiçoar, detalhar mais os mecanismos de execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Naquele tempo funcionava um conselho consultivo, um comitê consultivo, com representação do Consea, da sociedade civil e também de movimentos sociais, e isso foi muito importante. Exatamente em dezembro de 2014, nós estávamos no Consea, a partir de um grupo de trabalho, debatendo o significado dessas iniciativas que iriam conter essa resolução 26. E foi bem interessante, porque se manteve um período de duração da chamada pública, que é esse mecanismo importantíssimo e inovador, que dispensa aquela providência licitatória. E nós insistimos que era importante, que a chamada pública fosse anunciada das formas mais diversas possíveis, que ela tivesse um número de dias com possibilidade dos movimentos sociais tomarem conhecimento, e isso era uma das nossas propostas.

Nós também insistimos que era importante reduzir a burocracia para a venda dos alimentos por parte dos agricultores familiares para o Estado. Naquele momento, por exemplo, se retirou a exigência que havia de consulta técnica aos extensionistas, da chamada Assistência Técnica e Extensão Rural [Ater], e responsabilizando apenas o profissional da nutrição, uma avaliação do alimento comprado e também, se necessário, uma consulta aos conselhos de Alimentação Escolar, os CAEs. Também naquele tempo discutíamos a necessidade de aumentar o prazo de validade das chamadas declarações de aptidão, a data sempre foi uma dificuldade para muitos movimentos conseguirem. Houve momentos em que, inclusive no Consea, nós propusemos que em lugar da exigência da DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf], como acesso às políticas públicas, que se trabalhasse com cadastros existentes, especialmente em se tratando dos povos indígenas, das comunidades quilombolas.

Bom, mas naquele momento, pelo menos nós estávamos insistindo que a DAP tivesse vigência por um período de tempo maior. E também, algo muito importante, que se mantivesse a possibilidade de compra de grupos informais, desde que alguma organização reconhecida publicamente desse um apoio para que grupos informais participassem. Então, são exemplos do que nós debatíamos na época do FNDE, e eu me lembro de ter sugerido aos colegas que representavam o Consea nesse comitê consultivo que não deixassem de valorizar a iniciativa do FNDE de nos consultar, ou seja, consultar os grupos de trabalho do Consea sobre as mudanças que iam imprimindo através das resoluções.

Eu queria ressaltar isso porque, a meu ver, isso tem um significado prático do que é a participação social, o controle social no escopo democrático, que é exatamente o que não temos hoje. Mas queria dar um exemplo do que você na sua pergunta chamou de disputas, que foram necessidades de mediação, isso em 2014, 2015. Em Santa Catarina nós estávamos, de fato, com problema, que chegou inclusive à necessidade da construção de um termo de compromisso e ajustamento de conduta, um TAC. Havia uma dificuldade muito grande por parte do governo de aplicar os recursos alocados pelo FNDE, destinados para a alimentação escolar, porque o recurso que era destinado, ele vinha um pouco misturado com outros itens de compra para escolas.

Então, eu até registrei aqui para lembrar que o TAC dizia que era preciso aplicar os recursos do Pnae exclusivamente na aquisição de gêneros alimentícios, desenvolvendo um processo de aquisição desvinculado de outras compras, porque, se não me falha a memória, era exatamente isso, a chamada pública era para a alimentação escolar, mas também para outros produtos destinados ao ambiente escolar. Isso trazia uma complicação na execução desse programa. Então, o TAC era para insistir que houvesse a destinação de pelo menos 30% e que seguisse os trâmites que a própria legislação reconhece.

Eu estou me referindo exatamente à legislação de 2009. Então, veja que nós estávamos no tempo histórico curto ainda, a Lei 11.947, que aperfeiçoou esse programa, é de 2009 e eu estou falando de algo acontecendo entre 2014 e 2015, que era um período em que a gente recebia, de fato, muitas queixas de não cumprimento por parte das prefeituras, daquilo que era estabelecido pela lei, porque a chamada pública não é colocada como instrumento obrigatório, mas é estimulado que seja aplicada. Por outro lado, esse momento de tensionamento, de ver como encaminhar, eu até acompanhei representantes do Consea e também do chamado Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar, o Cecane. Acompanhei pessoas representantes dessas entidades no diálogo com o FNDE para ver como mediar essa situação lá com o governo de Santa Catarina. Porque um dos aspectos contidos nestas dificuldades é que, em muitos lugares no Brasil e lá mesmo em Santa Catarina, havia a terceirização da alimentação escolar.

Eu quero insistir nesse aspecto, porque esta proposta contra a terceirização da alimentação escolar era parte de nossa pauta de propostas quando se decidiu sobre essa lei 11.947, mas não fomos vitoriosos. Eu digo “nós” me referindo especificamente ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, mas também de outras organizações que estavam mais engajadas, através do Consea, no debate sobre a formulação das propostas dessa lei. Mas nós não concluímos, não conseguimos que lá se incluísse a proibição da terceirização. Mas o debate em Santa Catarina, através das conferências estaduais e municipais, chamava a atenção para a necessidade de um processo de desterceirização, entendendo que, mesmo que ela não seja proibida na lei, a lei chama a atenção para, pelo menos os 30% de compra da agricultura familiar, [a prioridade para] povos indígenas, comunidades tradicionais. Então, esse foi um exemplo que também esteve acompanhado de outros, que a gente recebia cartas, às vezes, dos conselhos municipais, como eu disse, chamando a atenção para o fato de que não estavam sendo cumpridos esses princípios estabelecidos na própria lei.

Mas quero dar mais um exemplo, que foi em 2015, quando nós fizemos uma recomendação, pelo Consea, ao Ministério da Educação. Foi exatamente insistir naquilo que a própria lei estabelecia. Vocês vejam que esse é um processo de construção, e eu vou dizer permanente, que nos tempos atuais, sobre os quais falarei depois, temos outros desafios diante de retrocessos. Mas, naquele momento, em março de 2015, nós falávamos exatamente da necessidade de ampliação de medidas que estimulassem tanto a compra da agricultura familiar como também o controle social para que este programa tivesse a sua plena execução.

Mas, entre as medidas que são disseminadoras de práticas alimentares e sustentáveis, também chamávamos a atenção para a necessidade de reduzir, de colocar barreiras a esse domínio das empresas sobre a alimentação escolar. Falávamos disso, que é preciso restringir a presença da indústria alimentícia e também nas cantinas, mas era nesse sentido de recomendação, como eu lhe disse, não havia proibição clara. E também chamávamos a atenção para a importância de fortalecer este comitê consultivo a que eu me referi no plano federal, e também nos municípios e estados que houvesse cada vez mais uma atenção para a constituição dos conselhos de Alimentação Escolar, os CAEs. Então, insistimos também nesse fortalecimento do controle social do programa. E ainda chamávamos a atenção para esse risco muito claro, que já vinha ocorrendo e infelizmente permanece no Brasil, com a mudança da transição nutricional, com o aumento da obesidade, e por isso chamando novamente a atenção para aquilo que a lei estabelece, que é a valorização dos alimentos in natura, de acordo com a estação do ano também, em locais, regionais. Fazendo, portanto, um chamamento para o impacto que têm os ultraprocessados sobre as doenças crônicas não transmissíveis, obesidade. E também incluímos a necessidade de fazer um reajuste per capita do valor atribuído para alimentação escolar.

Nós tínhamos tido uma atualização anos antes, na primeira gestão, foi até na gestão do Francisco, do Chico Menezes. Já dizíamos novamente, que era importante um reajuste, mas também não chegamos a fazer uma proposta de quanto. Nesse momento tem esse debate novamente sobre o reajuste. Então, são exemplos de procedimentos que fomos adotando. E é preciso também reforçar que na conferência nacional – que foi a última que se realizou –, em 2015 [5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], houve um lugar de proeminência também de propostas em relação ao Pnae, nessa linha do que eu estou dizendo, de aperfeiçoamento, de redução de burocracias, de reajustes de per capita etc. Esse programa sempre teve um caráter estratégico para nós.

FIAN: Antes de a gente passar para a próxima, eu queria só confirmar se a questão foi com o governo de Santa Catarina, não municípios catarinenses.

Maria Emília: É, governo estadual, vou até confirmar. A terceirização do alimento escolar no estado, o debate estava exatamente nesse escopo da proposta de desterceirização da política de alimentação [escolar]. Eu salientei este exemplo porque ele é bem significativo, por que Santa Catarina, eu me lembro de ter participado de debate lá, tinha um Cecane, que era esse centro de colaborador em alimentação e nutrição escolar extremamente ativo, com pesquisas, com estudos muito atualizados e também um Consea [estadual] muito ativo. E um estado em que há uma produção muito significativa também da agricultura familiar, inclusive com iniciativas de valorização de frutos nativos, que passaram a ser transformados e gerar sucos de frutas nativas, geleias. Eu me lembro aqui do butiá, por exemplo, um fruto pouquíssimo conhecido, talvez, da Mata Atlântica, um fruto nativo. Então, tinha uma dinâmica muito forte com a presença da Rede Ecovida também, que articula um conjunto enorme de associações, cooperativas, muito engajados também na produção para a alimentação escolar, enfim. Acho que esse exemplo de uma reivindicação tão explícita, tão enfática de lá, advém também desse ambiente de construção, de busca de construção na prática da política. Isso é bastante interessante, por isso que eu dei esse exemplo.

Mas eu me lembro também de uma carta que nós recebemos lá de Pelotas, no Rio Grande do Sul, também carta do Consea municipal, de organizações sociais, que também chamava a atenção para essas dificuldades que eu dei exemplo. Dificuldade da DAP de umas associações, para dificuldade de muitas prefeituras praticarem em alguns lugares uma chamada pública. Eram sempre questões dessa natureza, e nós fomos vivendo e procurando sempre dialogar através de propostas, através destas resoluções também do FNDE. Essas normativas infralegais – acho que o nome é esse, não é? –, elas são muito importantes, porque é lá que você encontra os mecanismos que favorecem ou criam barreiras, às vezes, para a execução de propostas, porque, às vezes, os programas públicos têm uma definição geral extremamente valiosa, objetivos muito bem formulados, densos. E quando você chega nos mecanismos, nos instrumentos, aí criam-se barreiras, muitas vezes intransponíveis para certos segmentos do campesinato.

FIAN: Certo. Pensando que a entrevista é um pouco para quem já acompanha essas discussões, mas também buscando chegar a um público que não tem tanto contato – o Pnae e outras políticas públicas têm uma certa translucidez, muita gente que é beneficiária não sabe da existência daquele programa de quase 70 anos – a senhora pode só comentar o que a terceirização implica? Por que desterceirizar ou evitar que esse modelo se espraiasse era uma prioridade?

Maria Emília: Então, porque historicamente, no Brasil… Esse programa é bem antigo mesmo, como você acabou de dizer, é da década de 50 e ele passou por muitas transformações, mas teve um caráter muito assistencialista, inclusive da ajuda alimentar, que chegava aqui. E as empresas sempre estiveram com total liberdade para participar dos editais. Empresa alimentícia participando dos editais, que alimentos são oferecidos? Será que também podemos falar de alimento propriamente dito, ou são fórmulas, formulações dos produtos alimentícios? É muito importante você fazer essa pergunta, porque há depoimentos, tem um artigo que eu fiz, que vai ser publicado agora, eu acho. Que é um pouco uma leitura de alguns depoimentos de quilombolas e indígenas sobre o tipo de alimentação que chegava ou chega nas escolas.

E havia e há uma queixa: por que as escolas oferecem um biscoito recheado e não oferecem um alimento tradicional daquelas culturas alimentares? Eu vou tomar a liberdade de ler o depoimento aqui, para ficar bem claro o que eu quero dizer, vou ver se eu encontro aqui, porque eu anotei isso. Eu ia falar que os indígenas lá em São Paulo disseram uma vez. Quilombolas lá em Oriximiná, por exemplo, no Pará, eles fizeram uma reivindicação para a prefeitura para aumentar a compra de alimentos tradicionais como farinha de tapioca, biju, banana, jerimum, cará e outros, e faziam críticas à oferta de bolachas, porque esse é o termo usado lá na Amazônia para biscoito. E também para outros produtos industrializados, porque não faziam parte da cultura alimentar e nem eram saudáveis. Então, tem registro de reivindicações, de protestos.

Em São Paulo, os indígenas, dizem em um estudo que eu fui ler. “É tudo enlatado”, questionam. “A gente quer a comida tradicional, mas ainda não tem na escola. No meu conhecimento, o ideal era servir biju, banana com peixe, que é da tradição, o nosso bolo de milho índio, gostoso, que serve para comer com peixe e com o que tiver.” Isso, da Terra Indígena Vanuire. Assim disse uma liderança. Bom, há a liberdade de as empresas participarem das chamadas públicas, então significa a presença exatamente desses produtos alimentícios que quilombolas e indígenas e camponeses nos lugares recusam, eles querem insistir nos alimentos, e com muita justeza, no alimento saudável, tradicional. Por isso é importante, eu vou pular um pouco o tempo da história.

FIAN: Seria, no caso, essas empresas assumindo o fornecimento a uma escola?

Maria Emília: Isso, são as empresas participando de editais e entregando esses alimentos na escola. E isto é muito comum ainda pelo país. Nós não podemos dizer que todas as prefeituras nos estados do país cumprem esses 30% [da agricultura familiar]. Então, quando nós, na proposta a qual estava sendo discutida no Congresso Nacional esta lei, a que eu me referi, de 2009, nós dizíamos “Vamos proibir terceirização, vamos colocar: O alimento tem que ser o alimento saudável e o alimento tem que vir da agricultura familiar, o Estado precisa se comprometer com esta proposta que os alimentos devem ser fornecidos pela agricultura familiar”, porque daí vem o alimento saudável, e por que também sempre associamos a ideia de que é preciso fortalecer a agricultura familiar, não só através de um programa como o Pnae, mas é preciso que haja fomento, crédito, haja iniciativas e outros campos da política que favoreçam a produção de alimentos saudáveis. Então, não dá para pensar na agricultura familiar dissociando programas, que são fundamentais para fortalecê-la.

Mas, nós dizíamos, do jeito que estava, era preciso ter pelo menos ter um controle da terceirização, da presença do fornecimento de produtos ultraprocessados pelas empresas nas escolas, precisava ter um controle sobre isso. Na verdade, até chegamos a dizer: se não vai ser proibido, tem que ter um controle, é o que essa recomendação nossa do Consea, também em algum momento insistiu, é preciso controlar. E por que isso? Porque a escola é muitas vezes, no Brasil, um local por excelência onde as crianças têm o alimento. Por isso que na pandemia se aprofundou muito também a fome na situação das crianças, que provavelmente os inquéritos, as análises que serão feitas por agora, daqui para a frente, seguramente vão mostrar uma alteração no estado nutricional das crianças, no peso delas, enfim. Porque a fome é acompanhada também da desnutrição e também da obesidade. Bom, e nesse tempo de pandemia, em muitos lugares não houve oferta do alimento, ou quando houve, em muitos lugares foi através do voucher, para as famílias comprarem exatamente ultraprocessados em mercados, nos supermercados, em grandes cadeias. Então, essa é a ideia. Por isso que, quando a lei fala em conta da agricultura familiar, teve que adequar também o instrumento. Por isso se fala da chamada pública, que é um instrumento que favorece a participação dos agricultores, não sei se ficou claro agora.

FIAN: Ficou, sim, obrigado. Então, a próxima pergunta é sobre o seu discurso no encerramento do mandato no Consea. Ali, a senhora listava avanços que foram possíveis, alguns desafios ainda e ameaças, riscos iminentes. Eu queria saber em que pé nós estamos em relação àquele momento.

Maria Emília: Naquele momento eu salientava, eu destacava a saída do Brasil do Mapa da Fome, falava da importância da conjugação de iniciativas, como valorização do salário mínimo, aquele quadro de empregabilidade no Brasil muito mais favorável, dava o exemplo, também, desses programas que representaram uma inovação na nossa história, esses programas como o programa de alimentação escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos [PAA], que vinculam política social com segurança alimentar e nutricional, instrumentos da política agrícola. Enfim, essa foi uma inovação, uma nova geração de políticas que estavam sendo implantadas no país. Chamava a atenção também para a importância dos programas de convivência com o Semiárido. Mas, ao mesmo tempo já mostrava os riscos. Eu vou sublinhar principalmente esses riscos, porque este é o quadro em que se aprofundou no caminho mais do que do retrocesso, mas também da destruição de políticas que estavam sendo construídas para dar um sentido ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional [Sisan] e à Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. É importante dizer isso, porque isso ocorreu nesse período, a política veio lá de 2007, se não me engano, mas também em 2012 criou-se o decreto da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [Pnapo]. Então, um caminho virtuoso vinha sendo trilhado e este caminho foi interrompido. E mais do que interrompido, a destruição é bastante grave.

É importante dizer que eu também falava como risco naquele momento da volta do país ao Mapa da Fome e lamentava que exatamente naquele ano, em que se completavam 70 anos da Geografia da fome, do grande Josué de Castro, nós já prevíamos a volta para o Mapa da Fome, que se concretizou e sabemos o quanto se agravou. Agora, com cerca de 10% da população brasileira em uma situação de fome, e a metade da população brasileira com algum grau de insegurança alimentar e nutricional. Já chamava a atenção também para a proposta que estava sendo debatida no Congresso, que era a emenda constitucional do teto de gastos públicos, a chamada PEC 55. E nós tínhamos enviado, naquele período, um manifesto para o Senado Federal, chamando a atenção sobre as implicações da votação da emenda constitucional para as políticas sociais. E isso foi se concretizando, mas veja só que nós já estávamos naquele momento, eu estou falando exatamente de 2016, já havia sido extinto o Ministério do Desenvolvimento Agrário [MDA], secretarias voltadas para os direitos humanos, igualdade racial, política pública para as mulheres, o que mostrava um total descompromisso, já naquele momento, já estávamos aí pós-golpe no governo Temer. Um descompromisso com os sujeitos de direito, podemos dizer assim.

E quero também dizer, porque essa é uma situação que está se agravando cada vez mais, a situação dos povos indígenas. Nós havíamos feito uma comitiva para a região das etnias Guarani e Kaiowá, no cone sul do Mato Grosso do Sul, havíamos constatado um quadro de violência, com mortes por assassinato, preconceito, violação do direito humano à alimentação, uma verdadeira tragédia humana. Assim que eu sintetizei a gravidade daquele quadro, eu até me reportei ao discurso de posse. Quando eu disse que os indígenas estavam gritando: Vare’á!, V, A, R, E, apóstrofo, A, com acento agudo no A. Isso, em 2012, uma expressão que quer falar da ausência do broto da semente para exprimir a fome. Essa foi uma expressão, também de uma indígena, uma liderança guarani que participava lá no Consea, na verdade, este quadro só se acentuou com essa negação do que os indígenas Guarani chamam os seus tekoha, que são os lugares de pertencimento, eles produzem sua cultura, seus alimentos, cultivam a solidariedade, enfim, sintetizam o seu modo de ser. E essa situação dos povos indígenas se agravou, tem agravado profundamente, porque, além de se manter, já falávamos, naquele  momento, na nossa luta, através do Consea, era a favor do arquivamento da PEC que é a Proposta de Emenda à Constituição 215, sobre a demarcação, intitulação das terras indígenas, o risco de serem terras para extração mineral.

E hoje, o que nós vemos, com a expansão do garimpo, da mineração, esse debate ainda inconcluso sobre o marco temporal, que é um absurdo, e que seja reconhecida pelas terras indígenas que, a partir da Constituição de 88, isso é uma afronta a esses povos originários, que viviam sob a tutela do Estado, que não tinham o direito sequer de reclamar sobre seus próprios direitos. A Constituição de 88, que dá esse impulso, supera essa relação de tutela, mesmo assim, ainda no Brasil essa dificuldade de se referir aos povos indígenas como povos que são, enfim. Então, também naquele momento, como eu disse, essa situação está só se agravando. Agora, é importantíssimo ver a capacidade de resistência desses povos, como vimos agora, recentemente um acampamento em Brasília, na formação também das brigadas contra os incêndios criminosos, capacidade de resistência que a sociedade precisa reconhecer e entender e apoiar.

Mas, também, naquele momento chamava a atenção para a realização do encontro da Articulação Do Semiárido, era o Enconasa naquele período, com aquele lema tão importante, tão significativo, e se diz lá na Caatinga que o Semiárido é o lugar onde a vida pulsa e o povo resiste – é muito interessante. Eu quero chamar a atenção para aquela conquista que vinha sendo construída, que é bastante profunda, significa a mudança de um paradigma, a convivência com o Semiárido se baseia na noção de estoque. Estoque de terra, estoque de alimentos, estoque de sementes, estoque de alimento para as cabras, para o gado. Enfim, é uma mudança de paradigma, porque veio para combater aquela visão de seca e também do clientelismo que sustentava esse fornecimento de água, de carro-pipa etc.

E, lamentavelmente, em 2016 já questionávamos a redução do orçamento. E agora, tanto naquele programa Um Milhão de Cisternas, como também do P1+2, que é o Uma Terra, Duas Águas, e também apoio a casas de semente. Mas esse programa Uma Terra, Duas Águas é muito importante, porque significa água para produção. Imagine agora, praticamente inexistem no orçamento recursos para a continuidade desses programas. Então, é uma situação de um retrocesso inominável, o descompromisso do Estado, embora nossa Constituição tenha lá escrito o artigo 6º, que responsabiliza o Estado pelo direito humano à alimentação adequada. Nós vivemos tempos de permanente violação desses direitos, como eu disse, os dados atuais neste inquérito sobre a situação alimentar e de segurança alimentar no país revelam que não está mais na pauta de uma forma enfática, a defesa desse direito e com políticas e programas que sustentem a realização desse direito.

FIAN: E bem no primeiro ato, formado o governo Bolsonaro, teve aquela medida provisória, a MP 870, que extinguiu os colegiados, se não me engano, os não regidos por lei própria, mas colocou mesmo os que tinham lei própria no limbo. Então, no campo de soberania e segurança alimentar, que reorganização, rearticulação foi possível e foi necessária? Como isso caminhou desde então?

Maria Emília: Eu também quero lembrar que, no discurso de final de mandato, chamei atenção para a importância de uma iniciativa, que também nós estávamos constituindo, que era a interação cada vez maior entre o Consea, mas também com a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [Cnapo], com o Conselho Nacional de Saúde [CNS], o de Assistência Social [Cnass], que é aquele princípio da intersetorialidade que rege, que regeu a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e é muito importante, muito significativo. E nós vínhamos, já naquele período pré-golpe, fazendo algumas manifestações conjuntas de debate e também de audiência pública junto com a Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional, com participação de integrantes da Frente da Agricultura Familiar. Então, eu quis chamar a atenção para isso, quase chamando atenção para um novo passo e veja só o que acontece, pouco tempo depois o próprio Consea é extinto. Bom, nós tivemos muitas manifestações no Brasil extremamente significativas, como o Banquetaço, que se irradiou pelo país e teve sentido também de protestar contra a extinção do Consea. E me lembro de uma ação, de uma manifestação que tivemos aqui no Rio, com a Ação da Cidadania, um quilômetro de mesas com pratos vazios, que era exatamente o inverso do Banquetaço, exatamente como uma expressão de denúncia. E depois fizemos também um banquetaço. Mas, quero atribuir aí um papel nesse período muito importante ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, porque, ao realizar, em 2018, o oitavo encontro nacional dos fóruns, nós exatamente fizemos com a pergunta: como não falar – o “não” entre parênteses  – de comida de verdade se a fome está de volta? E nos manifestávamos, com os nossos quase 20 anos de ativismo e resistência.

E nesse encontro, exatamente problematizando já esses desafios, esses retrocessos. Até que chegamos a propor uma oficina, porque veja, com a extinção também do Consea, antes mesmo, já havia ficado no limbo a realização da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. E nós vimos que não podíamos impedir, barrar, frear esse processo, pelo contrário, exatamente porque mantivemos a nossa firmeza na defesa da Constituição, no que concerne aos direitos e também com esta ênfase em não retroceder na história e tentar avançar. Nós, então fizemos uma oficina de mobilização em defesa da cidadania, da segurança alimentar e nutricional, e nós retomamos uma leitura crítica, evidente sobre conjuntura e questionando  essa Medida Provisória 870 etc. e tal. Dissemos que era importante convocar por nós mesmos, por nossas forças, como sociedade civil, uma Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. E é bom que se diga que nós o fizemos num contexto em que muitas manifestações também estavam ocorrendo no Brasil, já tinha ocorrido a 6ª Marcha das Margaridas, que as mulheres trabalhadoras do campo, da floresta e das águas, com o lema “Na luta pelo Brasil, soberania popular, democracia, justiça e igualdade, livre da violência”. Tinha havido a Marcha das Mulheres Indígenas também. Tinha acontecido o Acampamento Terra Livre, que tinha sido realizado em abril, pelo movimento indígena. Enfim, essas manifestações também foram atravessadas, nelas se incorporou também a luta pela continuidade desses programas e pelo direito humano à alimentação, e tudo isso.

Portanto, quando nós concluímos pela importância de realizar uma conferência popular, nós o fizemos buscando realizar uma conexão entre dois processos, porque as conferências estaduais e municipais já haviam sido realizadas. Então, nós dissemos: “Vamos fazer um processo virtuoso, vamos relacionar esse processo institucional”, porque os Conseas estaduais – é claro que mais em alguns lugares, mais em uns estados do que em outros – estavam ativos. E também conselhos municipais, não tantos, mas vários conselhos municipais pelo país. Dissemos: vamos juntar isso como uma iniciativa de mobilização de movimentos sociais, ONGs, articulações etc. no caminho de uma conferência popular, autônoma, com direitos, democracia, soberania e segurança alimentar e nutricional. E assim fizemos e construímos uma comissão organizadora, com mais de 20 organizações, entre elas a FIAN, o fórum, evidentemente, a Fase, entidade em que trabalho, foi indicada para essa comissão organizadora.

E nós seguimos então este período, tomando iniciativas que tiveram vários sentidos, não só fizemos debates virtuais sobre o impacto da pandemia na situação de segurança alimentar e nutricional do país, como fazemos debates da importância de comitês emergenciais para enfrentar esta situação na pandemia, aplaudimos e debatemos também o incentivo dos comitês e das iniciativas de solidariedade cidadã, realizada pelos movimentos sociais nos bairros populares, nas periferias, assim como articulações outras. Mais recentemente, tomamos a iniciativa de fazer o Tribunal Popular sobre a Fome e concluímos já o nosso ano agora com essa jornada de debate, com tribunal popular e também com uma sistematização de uma agenda de mobilização que vai permanecer. E essa agenda também foi construída a partir dos debates que nós realizamos nas várias regiões do país, com a presença muito ativa dos Conseas estaduais, de movimentos populares etc. Então, veja que, nesse contexto de destruição de políticas, de retrocesso e de medidas autoritárias, antidemocráticas, nós conseguimos manter acesa esta causa, que tem relações com várias políticas e com vários atores sociais, enfim.

FIAN: E o tribunal, em um julgamento político…

Maria Emília: O tribunal tem uma sentença, nós buscamos a colaboração, evidentemente na expertise dos profissionais na área, e ele se realizou mesmo simbolicamente como um tribunal e com uma sentença, que acusa o Estado brasileiro de violador dos direitos. E a nossa perspectiva é dar continuidade, fazer chegar essa sentença onde ela precisa chegar, no sistema de justiça, porque também é bom lembrar que lá no Supremo Tribunal Federal tem uma ADPF [arguição de descumprimento de preceito fundamental], que é a 871, e tem agora a 883, da Ação da Cidadania. E que nós, ex-presidentes de Consea, entramos como amicus curiae, também o Conselho Nacional de Direitos Humanos entrou, a FIAN… E nós queremos também, com essa sentença do tribunal popular, reforçar a importância do julgamento dessas ADPFs. E queremos manter esta agenda de mobilização no contexto eleitoral.

Sim, eu queria acrescentar também que nossa mobilização na conferência popular ecoou também em um debate sobre a Cúpula dos Sistemas Alimentares [da ONU] e fizemos parte aqui de uma articulação latino-americana, que se manifestou com documento que também introduziu debate. E tanto é que nós temos essa perspectiva, através da conferência, de dar uma continuidade nesse debate sobre os impactos dos resultados da Cúpula de Sistemas Alimentares. E inclusive, relacionar com os impactos agora da COP 26 [conferência das Nações Unidas] que acabou de ser realizada sobre o clima. E também queremos analisar o que será a COP sobre biodiversidade no próximo ano. Compreender a crise alimentar em suas várias manifestações significa fazer uma análise comparativa do que é a questão climática e ambiental hoje, como também o que significa o avanço do domínio das corporações nesses vários terrenos.

Na verdade, a Cúpula de Sistemas Alimentares foi uma cúpula de captura corporativa no sistema alimentar. Por isso que nós nos mantivemos com a firme decisão de que, para contrapor a esse domínio de corporações, é preciso que a gente mantenha no centro o direito humano à alimentação, que nem constava nos debates da cúpula e depois entrou marginalmente. Mas no centro, para nós, está a questão dos direitos humanos, a soberania alimentar – que por sinal também acaba de fazer 25 anos agora este ano, a construção histórica desse conceito –, e articular com a agroecologia, com os princípios da agroecologia, não como alternativa, mas como um imperativo para enfrentar a crise alimentar nos seus vários sentidos.

É preciso que a gente aposte nos sistemas alimentares com sua diversidade, de acordo com os princípios da agroecologia, que nos recoloca na relação com a natureza e nos traz também a valorização dos saberes tradicionais, em diálogo com saberes técnicos, e sobretudo a diversidade dos alimentos e da alimentação é cada vez mais uma necessidade, porque os nossos padrões alimentares vão ficando cada vez mais restritos, monótonos, com a imposição desses ultraprocessados, da indústria alimentícia. Por isso que precisa também combinar com regulação do Estado, que sempre foi um tema de debate nosso, no Consea.

A todo tempo nós trazemos, não só como eu exemplifiquei, uma problematização do que oferecem as cantinas alimentares, as cantinas nas escolas, mas também o que representa o peso do ultraprocessado na alimentação escolar. Mas, também, insistindo que precisa haver uma regulação da publicidade de alimentos, que atinge muito as crianças, tanto é que o Conanda [Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente] chegou a se manifestar a respeito, também sempre defendendo, nós defendemos a rotulagem para anunciar o que são os transgênicos, e a rotulagem nutricional. Finalmente, no ano passado, o Brasil acabou adotando uma rotulagem frontal, mas não exatamente como a gente propunha, como é no Chile, que representa mais uma atitude de prevenção – tem mais nitidez o símbolo adotado lá para chamar a atenção de consumidores sobre o que representam os riscos para a saúde humana desses produtos químicos que entram na composição desses ultraprocessados.

FIAN: Certo. Então, em um evento recente nosso, da FIAN, a senhora participou e passou por vários elementos, como agora está tecendo esse cenário, essa conjuntura e deu ênfase a uma ideia que é a do direito ao gosto. Pode explicar o que essa expressão significa e como ela se relaciona com esses elementos?

Maria Emília: Bom, é que na atualidade, de fato, nós vemos crescer para alguns segmentos da sociedade – isso infelizmente não é traduzido, como eu já disse, nas políticas e programas  –, que cresce o debate dos sistemas alimentares e sua relação com a saúde, com meio ambiente. Fala-se também da necessidade de dietas sustentáveis, saudáveis. E eu costumo acrescentar que é preciso incluir o direito ao gosto. Por que eu digo isso? Por várias razões, primeiro porque, falar do direito ao gosto, significa a gente se remeter aos hábitos alimentares, que são tão distintos historicamente no país. Eu me lembro, lá em São Paulo, em dado momento em que queriam defender a proposta da chamada farinata, que nós acabamos chamando de ração humana para os pobres. Naquele momento, alguns políticos diziam que o pobre não tem hábitos alimentares.

Então, é extremamente grave você negar a humanidade ao humano e falar do direito ao gosto, significa, portanto, a meu ver é uma conjugação de questões, porque se relaciona com a visão que nós temos da comida de verdade como um patrimônio e não uma mercadoria. E isso é defendido pelo fórum, o fórum tem uma campanha que vai entrar agora na sua quarta etapa, que fala da comida como um patrimônio, porque isso remete à variedade de culturas alimentares, a memória alimentar, que presidem essa visão. E, ao mesmo tempo, quando a gente fala da crise alimentar, essa crise combina o aumento da fome com o processo de financeirização, de artificialização da natureza, porque nós temos uma destruição, a gente chama de uma erosão da nossa biodiversidade, contaminação de alimentos, dos solos, ao mesmo tempo que cresce essa indústria e consumo de ultraprocessados e tecnologias que vão nos afastando da variedade de alimentos e dos seus gostos. Então, a ideia da saúde, tem que vir combinada também com a ideia do prazer.

E quando a gente fala do gosto, como eu disse, nós nos remetemos também à história, que é uma maneira de pensar, as formas também de dominação. Tem havido lugares no Brasil, felizmente, que se inicia o debate da relação de sistemas alimentares e racismo. A nossa história é uma história que contém, muitas vezes uma classificação de alimentos que está relacionada com o domínio, com a dominação colonial. Então, é uma gama de sentidos que, a meu ver, por exemplo, se nós falamos dos ultraprocessados, que é uma forma, a meu ver, de enganar o gosto, eu diria, porque essas formulações que tentam imitar, elas estão baseadas mesmo em alguns alimentos in natura. Os ultraprocessados têm um bocado de soja, de milho. Agora, combinado com essas substâncias, espessantes, aromatizantes, são muitos aditivos que mexem com os nossos sentidos sensoriais. Então, é diferente você fazer uma batata assada em casa, que comprar uma batata congelada, que dura não sei quanto tempo dentro da geladeira, ou algum produto que dura lá na prateleira.

São incógnitas, uma nutricionista, Regina Miranda, que cunhou essa expressão muito interessante, ela disse “incógnitas alimentares”, é isso mesmo, não sabemos como decifrar esses aditivos todos. E eles têm um efeito sensorial, mas isso, é como eu digo, engana também o gosto. Tanto é preciosa a classificação pioneira no Brasil, feita pelo Guia alimentar para a população brasileira, na sua edição, que vem lá do período em que eu estava na presidência do Consea, é uma grande satisfação lembrar disso, foi no ano de 2014, se não me falha a memória, e também é interessante o livro lançado na época, ambos pelo Ministério da Saúde, que é um livro de alimentos regionais brasileiros. E essa é uma lição básica que o guia alimentar traz, a importância do consumo in natura, e ver que a população brasileira está consumindo cada vez mais ultraprocessados, porque é este alimento que engana o gosto, é barato e que provoca essas alterações, alergias alimentares e também diabetes, variação de pressão arterial e tudo isso. Então, eu acho que eu penso que falar do direito ao gosto é, na verdade, um chamamento para esses debates políticos profundos e para reconhecer o que é o nosso país, costuma-se dissociar muitas vezes a rica biodiversidade do Brasil com quem protege essa biodiversidade.

Então, falar do gosto é também chamar atenção para quem protege a biodiversidade, com os seus frutos nativos, com suas variedades tão grandes, que são um legado de permanência da domesticação de plantas e do manejo delas, e também do cultivo diverso, como, eu expliquei, os princípios da agroecologia nos inspiram. Há povos indígenas que tem que manter, que asseguram essa diversidade, e é como coleção de plantas, esse sentido que se afugenta com o processo de financeirização da natureza, de artificialização, ele é mantido pelos povos indígenas em comunidades tradicionais, e isso, é preciso que a sociedade entenda que é importante para nossa saúde e, por isso acho que falar do direito ao gosto é uma maneira de estimular o debate, uma maneira de entrar na história dos alimentos e dos povos na nossa plurietnicidade, que é tão rica no país. O respeito e proteção são vanguardas para esses povos, que o segmento do campesinato, com seus sistemas agrícolas. E nós corremos o risco de perder esse direito ao gosto, com essa artificialização. Imagine que agora já falam nos alimentos produzidos em laboratório e, muitas vezes, essa defesa é como se fosse uma proteção para natureza.

É um equívoco, eu acho que a pandemia nos ensina o quanto nós precisamos retomar o debate da relação cultura e natureza, sociedade e natureza. Não é ela continuar sendo subjugada, como é pelo agronegócio, que destrói, que desmata, não é o caminho, mas também não é o caminho manter a natureza intocada, Carlos Diegues nos ensinou sobre o mito da natureza intocada. Nós precisamos retrabalhar essa relação com a natureza, inclusive porque a natureza também é produzida socialmente, a floresta amazônica nos ensina que são milhares e milhares de anos para compor aquela floresta, com as suas espécies e variedades e seus gostos, que, infelizmente muita gente, às vezes nem conhece ainda, às vezes é tal a dimensão de um país continental, com tantos biomas, tantos povos, que é uma complexidade. Então, façamos a defesa ao gosto junto, que é estar junto com a defesa do direito a uma alimentação que seja de qualidade.

FIAN: Só um parêntese, viajando um pouco, mas me ocorreu uma associação, porque na natureza existe o vermelho forte, o amarelo forte, existem padrões ali que são o oposto da camuflagem, são padrões de alerta. Então, tem flores venenosas, cobra-coral, algumas espécies de vespas. E os ultraprocessados operam em uma lógica meio contraditória, que é como se fosse tudo gritante, vem ingerir esse veneno, no fim das contas é como se fosse um sinal trocado de alerta.

Maria Emília: É verdade, é interessante o seu pensamento. E operam também de uma forma gritante a maneira como são anunciados os novos produtos. Eu me lembro, inclusive quando nós cunhamos aquele lema comida de verdade no campo e na cidade, com direito à cidadania alimentar, que foi exatamente o lema da última conferência nacional, pouco tempo depois, esses produtos ultra processados apareciam em campanha publicitária, chamando de comida de verdade. É uma total inversão.

FIAN: Ele tem um refinamento, que é justamente isso. Gastam bilhões e mais a publicidade para aquilo ficar com: aqui você vai sentir o gosto de infância, com essa coisa feita de inúmeros pozinhos.

Maria Emília: E com uma inversão total, porque, se a gente for pensar na questão da tributação, é um escárnio que acontece no país, porque os agrotóxicos comercializados também têm lá uma benesse em relação ao tributo. E também, as empresas que produzem as bebidas açucaradas, também tem lá. Eu até uma vez eu vi a dimensão disso, do ponto de vista monetário, é muito o que deixa de ser cobrado. E você veja que, por outro lado, nós vamos falar já do Pnae de novo. Por outro lado, você veja que esses programas que nós estamos falando sobre eles, vão perdendo o que tinha uma importância para a vida, para a saúde, vão perdendo orçamento, ou vão sendo descaracterizados, é muito grave, é uma inversão completa, eu acho que nós estamos vivendo também no tempo sem limites, sem barreiras para frear processos tão destrutivos.

FIAN: Verdade. Bom, então voltando ao Pnae, por que ele é considerado tão importante no combate à fome? Em que medida ele se liga às diferentes dimensões da sustentabilidade? Tem muita, se entrelaçam muito nesse sentido?

Maria Emília: Então, na sua concepção, com certeza essa lei aí de 2009, ela avançou significativamente. Como ele é um projeto, de fato estratégico, não me lembro se no início da nossa conversa, se eu cheguei a dizer que, nas avaliações do por que o Brasil saiu do Mapa da Fome, se inclui este programa, que é um dos maiores do mundo, no ponto de vista da população que atinge, que são milhões e por isso também são bilhões, é uma montante monetário enorme, que é uma forma de atrair as empresas. Participar desta grande fatia de mercado. Mas ele é estratégico e ele é muito interessante na história, porque ele atravessa, interessante no Brasil que ele atravessa a nossa história, chegando a milhões de escolares hoje.

Agora ele é um programa que inclusive passou a integrar uma diretriz da promoção de acesso a alimentação adequada e saudável na política nacional de segurança alimentar e nutricional. Esse reconhecimento, inclusive reconhecimento pelos legisladores também, é bastante importante nessa história, porque o Estado passou a valorizar outros valores nas aquisições públicas, como o aspecto social, o aspecto ambiental, a saúde, e não ficar reduzido àquilo que a licitação, que a Lei Geral de Licitações prevê, que é menor preço, concorrência. Então, você vê que tem uma inovação significativa, que nos remete a pensar, vamos dizer, nas dimensões de sustentabilidade.

Então, porque do ponto de vista social, assegurando a compra de 30% da agricultura familiar, povos indígenas e comunidades tradicionais, tudo isso também, do ponto de vista ambiental, a valorização do alimento local, de acordo com a época dos alimentos e da sua variedade. Então, ele relaciona e, portanto, buscando frear nas escolas. E como eu disse, não está estabelecido na lei, mas freia o consumo de ultraprocessados lá onde tem essa compra. Então, tem várias dimensões aí que se cruzam, mas acho que são bastante importantes.

FIAN: E que as propostas de mudança ameaçam…

Maria Emília: O que está acontecendo com esses projetos de lei é grave, porque tem uma tendência descaracterizar aquilo que deu esse sentido inovador ao programa, os legisladores querem agora estabelecer cardápios, vamos dizer cotas de determinado cardápio, do leite, leite fluido, leite em pó, da carne de porco, enfim, não cabe aos legisladores fazer esta proposta, é absolutamente contra os princípios que estão contidos na lei, que ressalta exatamente em nome de dimensões de sustentabilidade, a valorização do alimento local. Não é lugar de trabalhar num programa público desse, em que o Estado, vamos dizer, passou a considerar outros valores, imprimir um retrocesso desse em nome de reserva de mercado, é o que parece, reserva de mercado para laticínio, enfim. Então, é muito grave essa proposta de descaracterização.

E a redução do orçamento também é gravíssima. Porque um programa estratégico que precisa ser aperfeiçoado – acabei de dizer que a gente defende uma atualização do per capita, que aliás o Observatório da Alimentação Escolar está propondo atualmente – está lá no projeto de lei orçamentária, que é o POA, cai de R$ 4,6 bilhões em 2021 para R$ 3,96 bilhões em 2022. Ao mesmo tempo, alguém vai nos perguntar: sim, mas o governo acaba de editar alguma medida para aumentar o limite de venda dos agricultores, de R$ 20.000 para 40.000. Olha, essa é uma proposta polêmica, aumenta para atender a quem? Nós já vínhamos percebendo uma certa, como se diz, concentração de compra através de cooperativas maiores, mais estabilizadas, vamos assim dizer, isso em detrimento de pequenas cooperativas, de pequenas associações. De todo modo, eu quero é sublinhar isso sim, que aumentar o limite não significa a mesma coisa do que democratizar esse importante programa. Se aumenta o volume é uma parcela de agricultores que vão conseguir atender e não aquela parcela também mais pobre, que participa também do programa.

Eu conheço muitos exemplos, porque eu trabalho numa entidade que contribui apoiando os camponeses a acessar o programa de alimentação escolar, e em muitos lugares nós vimos que o exercício do PAA, o Programa de Aquisição de Alimentos, favoreceu também que essas organizações menores pudessem acessar depois o Pnae. Então, eu queria dizer o seguinte: tem uma contradição, se realmente vai ser reduzido o valor do orçamento do programa, e aumentar o limite para o agricultor, esta conta, esta equação não exprime, a meu ver, o que deve ser o princípio de política distributiva, em alguma sinalização aí que não coaduna.

FIAN: Certo. Então, aqui passando um pouco mais por esse caráter, tanto da política pública, quanto o debate em torno dela, que nem sempre transparece naquilo que chega à sociedade e aos beneficiários e beneficiárias específicos. Então, tanto os pratos, como os lanches oferecidos nas escolas, nem sempre é fácil ir além, compreender, saber dos debates e que você já passou bastante aqui e também dos interesses envolvidos, muitas vezes milionários ou bilionários. Por que é difícil isso chegar ao conhecimento das pessoas, até para a sociedade ter condições melhores de reivindicar, em uma situação de exigibilidade mais sólida?

Maria Emília: A meu ver, não é amplamente expandido na sociedade essa concepção mais abrangente, que articula várias dimensões da segurança alimentar e nutricional e soberania alimentar. E eu acho também que nas escolas, você veja, uma das conquistas importantes dessa lei de 2009 foi falar da importância da educação alimentar e nutricional. Tem experiências no Brasil muito exitosas, a entidade em que eu trabalho mesmo está com uma experiência lá na Bahia, que é de envolver o ambiente escolar, porque esse é um lugar muito importante para formar hábitos, para as crianças conhecerem, as crianças estão perdendo a informação sobre os alimentos em muitos lugares. E conversar sobre o cardápio, sobre a origem do alimento, o papel do agricultor familiar e até ter experiências de horta escolar. Tudo isso conforma um conjunto de iniciativas, levar para dentro do próprio currículo das várias matérias sobre o que é o alimento, tomando exemplos, e pode trabalhar com isso do ponto de vista da Geografia, da História, da Matemática.

E é muito interessante que lá no Consea nós escutamos, muitas vezes, experiências que estavam mais concentradas na Semana da Alimentação, aí as escolas fazem atividades extremamente criativas. Seria importante que fosse uma atividade mais constante, porque assim também irradia mais para a sociedade. Eu conheço um exemplo lá no Mato Grosso, também de uma articulação que se chama Arpa, que é articulação de produtores agroecológicos. Eles, quando começaram a fornecer alimentos para as escolas, o professorado mesmo se interessou por alimentos e começaram também a perguntar se não tinham galinhas.

Tem que explicar também que a legislação, a vigilância sanitária no Brasil, ela cria muitas barreiras para o alimento artesanal, eu até queria realçar uma iniciativa que precisa também ser conhecida, que é uma iniciativa do Ministério Público, que nasceu lá na Amazonas, que hoje está se estendendo pelo Brasil, a Catrapovos, porque diz respeito a alimentos tradicionais, que é esse debate de assegurar melhores condições para que o alimento artesanal, tradicional chegue nas escolas. Eles começaram debate sobre povos indígenas e também comunidades tradicionais, considerando que os indígenas, as escolas nas aldeias equivalem ao autoconsumo. Trazer o alimento todo processado, o alimento de outras regiões, além de ser desfavorável ao clima, rompe com a tradição da alimentação escolar, da alimentação tradicional.

Mas então, acho que tem um trabalho a ser feito nas próprias escolas, e por isso também eu disse que os Cecanes têm um papel importante, não sei se eles têm apoio hoje, mas já houve no passado esses núcleos nas universidades, eles participavam de editais que ocorreram para fazer esse trabalho junto ao Conselho de Alimentação Escolar e esses diagnósticos e tudo isso. Então, precisamos, não podemos nos abdicar desse papel na sociedade de manter acesa essa pauta da alimentação, com a sua qualidade, direitos. E eu acho que tem que aumentar o exemplo das experiências nas escolas. Nós, da Articulação Nacional de Agroecologia, junto com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, estamos fazendo uma pesquisa sobre alimentação escolar e estudos de caso em várias regiões do país e junto a escolas. Então, acho que isso também vai nos dar muitos elementos de análise, porque é uma análise sobre os vários atores envolvidos, quem recebe o alimento, quem entrega o alimento, na escola também como age também o profissional de nutrição, o conselho, enfim. Essa análise conjugada, ela também favorece a explicação sobre o que significa essa alimentação que chega lá nas escolas, acho que é um pouco por aí, que é tornar mais conhecido.

FIAN: Aquela pesquisa que ia ser concluída no ano passado?

Maria Emília: E com a pandemia, foi adiada, não sei se vão conseguir concluí-la este ano também [a entrevista foi em dez/2021], ela teve o cronograma alterado, mas é uma pesquisa interessante.

FIAN: Bom, se as forças minimamente comprometidas com a ideia de um país mais justo conseguirem virar esta página que nós estamos vivendo, um termo que tem sido usado é o de reconstrução nacional. No campo de SSAN, que prioridades despontam para um momento como esse?

Maria Emília: Então: nós fizemos, no âmbito lá da conferência popular, nós acabamos fazendo uma agenda de mobilização que inclui, inclusive uma proposta, como eu disse é uma agenda resultando dos debates regionais e desses webseminários também, que nós fizemos. Mas há uma proposta de que a gente consiga uma verdadeira frente nacional em defesa desses programas, como PAA, Pnae, mas também na defesa da agricultura familiar, camponesa, dos povos indígenas, comunidades tradicionais. A gente tem que conseguir uma adesão ampla, mais ampla sobre isso. Também nós precisamos fortalecer essas articulações em defesa do direito à terra, do território, da agrobiodiversidade. Nós estamos atravessando, no país, um momento de uma reestruturação do mercado de terras, é uma quantidade grande de terra arrecadada pelo mercado, com essas mudanças, essa flexibilização de legislação fundiária, ambiental. Então, é muito grave o cerco sobre essas populações crescendo de uma forma absurda.

Mas também queremos reforçar essa perspectiva política, do que representa a cultura alimentar, que é uma forma também de luta pela comida, pelo alimento como um patrimônio, preservação do patrimônio alimentar. Isso é um aspecto bastante importante para nós. Inclusive, isso também foi uma história interrompida dentro do Ministério da Cultura, com a formação do conselho [Conselho Nacional de Política Cultural, criado em 2005], houve no passado recente, uma proposta para que se criasse um grupo de trabalho sobre a cultura alimentar. E isso foi aceito, na época, o ministro da Cultura estava até interessado em ingressar, em ser parte também do Consea, enfim. Agora, quando se discutiu a lei, Projeto de Lei Aldir Blanc, sobre cultura, que era um apoio emergencial para os realizadores da Cultura, se inseriu também lá a cultura alimentar, isso foi importante, embora os recursos, quando chegaram, eles não destinaram tanto aos pontos de cultura.

Mas tem um debate que ganhou um sentido maior nos últimos tempos e a gente precisa fortalecer, também as políticas de acesso à água, a água potável, de qualidade, saneamento básico, isso também é fundamental nessa agenda, priorizar a agroecologia, como uma possibilidade de construção de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. Nós temos insistido que temos que fortalecer o diálogo com articulações e frentes de combate ao racismo. E também a luta das mulheres, essa interação com os movimentos de mulheres, o movimento feminista é extremamente importante, porque as mulheres têm um papel extremamente ativo, tanto como eu disse, na proteção da biodiversidade e transformação dos alimentos. E é preciso romper com essa desigualdade e ver nas mulheres como sujeitos ativos, sujeitos que precisam ser fortalecidos na sua autorrealização, nas iniciativas que representem a emancipação política e econômica das mulheres. E aquilo que a gente vinha construindo com o programa de fortalecimento à produção de alimentos, por exemplo, pelas mulheres.

Algumas iniciativas e programas deixaram de existir. Nós temos que cerrar fileiras nessa movimentação para articular movimentos de mulheres, movimentos feministas. É preciso, evidentemente que só haverá Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com a reconstituição das bases de poder, de participação da sociedade, de formas de controle social. O Consea foi, por excelência, um lugar em que propostas de aperfeiçoamento de políticas, como o Pnae que nós estamos dizendo, proposta de novos programas, como o Programa Aquisição de Alimentos, PGPM-Bio [Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade], e também os programas sobre convivência com o Semiárido, enfim. É preciso que o Consea seja reconstruído nas bases em que ele era, dsois terços da sociedade civil, presidência da sociedade. E junto disso, a Caisan, evidentemente, que é a câmara interministerial. Porque também não há política de segurança alimentar e nutricional sem a inter-relação de políticas e programas de vários ministérios.

Bom, então são algumas propostas que a gente precisa considerar e essa interação com os outros conselhos, de saúde, de assistência social, para retomada também para uma comissão nacional de agroecologia é produção orgânica, tudo isso, essas interações no âmbito também da participação social, de incidência também, é bem importante. Mas, eu queria reforçar também o papel dessas frentes parlamentares, uma frente parlamentar de segurança alimentar e nutricional precisa exercer o papel extremamente importante, dialogando também com o Consea. São exemplos, a meu ver, dessa reconstrução. Mas tem uma questão fundamental, que programas e políticas sejam pensados a partir do princípio da emancipação. Nós estamos sob a égide neoliberal, em que o indivíduo, no caso brasileiro, inclusive passa a ser responsabilizado pelo seu próprio fracasso, pela sua história, quiçá até pela situação de insegurança alimentar que vive. Isso nós temos que questionar em permanência, essa visão, como a visão da “economia da prosperidade”.

É por isso que é preciso sedimentar propostas que sejam baseadas em princípios e valores, que tenham o sentido da política redistributiva, nós precisamos fazer a defesa de bens comuns, porque isso dialoga com essa visão da comida como patrimônio, porque as sementes precisam ser conservadas na sua diversidade e quem conserva é a agricultura familiar, camponeses também precisam de apoio das casas de sementes, intercâmbio de sementes. A semente tem que ser vista como um patrimônio. E há mudanças sendo propostas, talvez em relação à Lei de Sementes [Lei 10.711/2003], que nos preocupam. Então, a variedade que tem no Brasil das formas de apropriação e uso das terras são muito diversas, a Constituição assegura esse direito e fala das terras tradicionalmente ocupadas, e que são sistemas de uma complexidade enorme e que relacionam a ação de uma família com uma área que é protegida, cultivada, como ela é apropriada de forma coletiva.

Então, esses princípios, lá já se foi o princípio da precaução, que virou uma página da história, absolutamente gravíssima a liberação desses agentes químicos, que já foram suspensos e proibidos nos países de origem. E agora, veja que a CNA [Confederação Nacional da Agropecuária] tem propostas de ação de constitucionalidade em relação à definição, a proibição de pulverização aérea no Ceará, enfim, isso é que eu chamo de restaurar princípios e valores, que eu exemplifiquei aí. É desafiador, e nós temos que debater profundamente o que representa o impacto dessas novas tecnologias, que eu dizia que artificializam. Que a defesa das corporações é da biofortificação, como os se os alimentos fossem fracos e precisassem ser fortificados nos seus nutrientes, nós precisamos é assegurar  a comida com variedade, em quantidade suficiente, e não uma nova revolução verde, como querem trazer com essas tecnologias, biotecnologias e a chamada bioeconomia, que é converter tudo em mercadoria. Precisamos analisar os impactos, está aí o que nos diz a Conferência do Clima.

Nós não podemos sair deste lugar que coloca no centro os direitos e a responsabilização do Estado com políticas estruturantes. Essa visão que soma auxílios e que dá uma temporalidade para algumas propostas, isso nós temos que questionar, tem o exemplo desse Auxílio Brasil. Precisamos dessas propostas que nos levem à emancipação, mas nós temos que ser bem enfáticos em questionar que o mercado, as corporações não podem comandar as nossas vidas.

FIAN: Essa lógica toda tem muita eficiência e a radicalização dela veio pela tecnologia e como estratégia de guerra cultural. E levou a uma adesão mais ativa a esse tipo de pensamento. Tanto no sentido de um liberalismo bem sem freio, como nessa caricatura do empreendedorismo, que está na uberização, enfim. E é isso, muitas vezes a gente presencia, as pessoas que não estão sendo beneficiadas com esse sistema, elas estão sendo pauperizados, tendo a exploração. E que ridicularizam tudo o que trata de política pública, de proposta redistributiva. Então, é muito esse discurso assim: “Ah, manda carpir um lote”. Esse tipo, como você já passou bastante pelo que precisa ser afirmado, mas como sair e como atingir quem não é convertido por esses valores que a gente procura, ainda mais quem vem recebendo sistematicamente – já há alguns anos, cinco anos, sei lá – mensagens que, de certa maneira, blindaram mais esse tipo de entendimento? Como a gente pode conseguir dialogar e, quem sabe, de alguma maneira convencer?

Maria Emília: Esse é um desafio enorme e, a meu ver, ele cada vez vai exigir também mais imaginação e criatividade, porque, para lidar com essas expressões dessa cultura política, eu acho que nós temos uma tarefa de desvendar o que são esses mecanismos de dominação e opressão. Mas temos que manter esse debate aceso em um contexto que, às vezes, eu acho que tem um bocado de cansaço. A pandemia também criou uma ambientação que, talvez tenha contribuído um pouco com isso, uma certa desesperança, ou como se a humanidade não tivesse outro caminho para trilhar, porque tem uma força muito grande contra, uma força de dominação da guerra cultural, porque tem uma guerra cultural mesmo. E também tem uma crença impressionante, de vários lados, tem uma crença nas tecnologias. Nós também, com essa coisa das chamadas forças produtivas. E essa foi a resposta na cúpula de sistemas alimentares. O centro para as corporações estava lá: “As respostas são tecnológicas”. Então nós temos que trabalhar isso, nós temos que, eu, aliás não coloquei aqui como um desafio isso. Há a necessidade da gente entender mais, de clarear o que são essas propostas tecnológicas, o que são, o que eles chamam de soluções baseadas na natureza e que nós chamamos de falsa soluções. Tem que desligar esses significados.

Outro dia, eu comecei a tentar listar as várias denominações que vem cada vez mais sendo usadas para caracterizar os tempos de uma nova agricultura. Então, agricultura 4.0, digitalização na agricultura. Tudo isso tem um sentido, isso não é, acho que, às vezes a gente focaliza muito esse debate sobre enfrentar, disputar narrativas, não. É muito mais complexo que isso, é narrativa e as propostas concretas que essas narrativas encerram. Agricultura sensível à nutrição, e vai por aí afora. Então, são analisadas, do ponto de vista da dominação, eu insisto isso, dominação sociopolítica, analisar do ponto de vista do impacto no meio ambiente, analisar do ponto de vista econômico, porque nós corremos o risco de ter recursos para essas respostas tecnológicas e não se valorizar um orçamento como responsabilização do estado para assegurar o direito à alimentação, com uma alimentação que seja reconhecida como tal na sua suficiência, qualidade. Então, é um momento da história de uma conjugação de crises, que nos faz pensar muito como fazê-lo. Bom, primeiro que nós não podemos abdicar do que nós já estamos fazendo, a exemplo da conferência popular, mas temos que ir mais além, nós precisamos analisar, de fato, olha, nós já temos programas no Brasil que a gente precisa conhecer bem, o que é o programa Adote um Parque, eu esqueci o nome do programa lá do Pará, que é baseado na chamada bioeconomia. Tem muita controvérsia, às vezes no interior dos próprios movimentos, é uma tamanha complexidade.

Agora, nós temos que também procurar nos articular mais, do ponto de vista internacional, acho que isso é necessário, onde estão as plataformas, as articulações internacionais. E há um debate, que a meu ver é bastante importante, do ponto de vista internacional, que tem agora, em vistas de um novo encontro em Nyélény, dos movimentos que se articulam com a Via Campesina, começa-se a discutir uma conferência – conferência mesmo, multilateral – sobre alimentação, porque o que essa cúpula também trouxe à tona é uma reversão das práticas de governança, porque foi muito mais baseada no multiatores, “multistakeholderismo”, como se não houvesse conflito de interesses. E com um risco muito grande disso incidir agora sobre o Comitê de Segurança Alimentar Mundial das Nações Unidas. Isso está em debate atualmente, o poder de influência das corporações. No entanto, eu queria sublinhar isso também, nós precisamos dar a conhecer mais o que representa aquela declaração que foi reconhecida na Assembleia da ONU, sobre os direitos dos camponeses e outras pessoas que trabalham na área rural.

Isso é um importante debate que o Brasil se absteve. O Brasil era um país que batalhava, que estava apoiando na formulação da declaração, mas quando ela foi votada, já era o governo Temer, já era pós-golpe. E o Brasil se absteve.

FIAN: E até uma parte do embate na cúpula foi assim, países alegando que não eram obrigados a seguir, né?          ue ela valia só para quem aderisse.

Maria Emília: É, então tem um debate internacional também sobre a regulação das corporações. Esses dias nós tivemos uma reunião com a Sofía [Monsalve], da FIAN. E ela falou sobre isso também.

FIAN: A FIAN Internacional participa bastante dessa pauta.

Maria Emília: Tratado internacional dos povos para o controle das empresas transnacionais, eu tenho aqui um texto que é de dezembro de 2014, é porque a campanha é exatamente isto daqui: desmantelemos o poder corporativo, é isso – “Stop Corporation”. Isso que eu estou observando que está voltando a ganhar mais força. O documento faz referência a implementar soberania alimentar, reforma agrária, agroecologia e vai embora, fala dos princípios gerais, olha aí, direitos humanos, Estados, normas de comércio, enfim. Isso é a proposta de um tratado, então eu acho que esses temas têm que entrar mais.

Nós vivemos sob uma pressão tão grande de reagir ao que é destruído no dia a dia que essas questões também acabam não ganhando a devida relevância, acho que a gente precisa trazer para esse debate, agora você não tem dúvida que há um certo, mais do que desprezo, uma negação do Estado – bom, né?, aí até tem quem diga “Mas os Estados também já foram capturados pelas corporações”, por isso que eu me lembrei do tratado. A questão, a meu ver, é a gente conseguir articular aquilo que tem um caráter emergencial, que responda pelos momento de emergência, com propostas que precisam ser reconstruídas, novas propostas. Enfim, é um desafio hercúleo.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, José Graziano, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

Entrevista | DEBORAH DUPRAT: “Um governo que não provê direitos é inconstitucional”

Publicada, em versão resumida, no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

O neoliberalismo não é uma possibilidade constitucional no Brasil, defende a ex-subprocuradora-geral da República Deborah Duprat. Ela ressalta que a Constituição Federal de 1988 traz a clara opção por um Estado forte, provedor de políticas públicas. Nesse sentido, aponta contribuições do Ministério Público à defesa da coletividade, mas também uma pendência exagerada da instituição para o lado penal. Com relação ao Judiciário, ela alerta para o distanciamento cada vez maior da vida real e, assim, das necessidades da população.

Homenageada por três ex-procuradores-gerais e mais de 300 procuradores e procuradoras ao se aposentar, ela voltou à advocacia, com o combate à fome como prioridade. É uma das autoras da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 831, que pede ao Supremo Tribunal Federal (STF) a determinação de medidas urgentes para combater a insegurança alimentar e nutricional. A entrevistada ressalta a importância da agricultura familiar – e do Pnae – no enfrentamento desse cenário.

Para a ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão, o desmonte da estrutura de proteção social nos últimos anos foi de tal ordem que pedirá uma resposta similar a uma justiça de transição, estratégia excepcional para julgar e superar o legado de violência em massa de períodos de ditadura ou guerra.

Duprat enfatiza a necessidade de o país recompor seu funcionalismo e as agências governamentais responsáveis pelas políticas de direitos humanos, mas diz que precisamos examinar um certo esgotamento do espírito constitucional, que vai levando a competição a deslocar a solidariedade e constitui, a seu ver, um elemento-chave na ascensão de um governo como o de Jair Bolsonaro.

FIAN Brasil: A primeira pergunta passa pela atuação da senhora no Ministério Público, que contemplou muitas pautas que nós – entidades e movimentos progressistas – consideramos fundamentais. Com o Direito Achado na Rua e a participação de outras organizações, fizemos aquele livro de enunciados jurídicos em torno do Dhana, diante de uma percepção de que é como se uma parte da Constituição estivesse sempre sendo secundarizada ou ignorada. A senhora concorda com essa leitura sobre o funcionamento do nosso sistema de justiça?

Deborah Duprat: Eu concordo, sim. Acho que a ênfase, inclusive, deve ser no próprio Judiciário, porque é interessante a gente analisar a Constituição de 1988, a partir das lutas que foram travadas desde a década de 70, para, enfim, uma emancipação da sociedade ainda vítima do projeto colonial. A Constituição de 1988 vai ser o primeiro documento constitucional, primeiro documento jurídico a reconhecer direitos para todas as pessoas. Então é interessante que uma Constituição com essa característica, que favorece muito o acesso à justiça, porque cria a Defensoria Pública, tanto da União, quanto dos estados, coloca no Ministério Público também a atribuição de zelar pelos direitos fundamentais, pelos direitos da cidadania, e pouca ou nenhuma preocupação teve com uma remodelagem, digamos assim, do Poder Judiciário.

É um Poder Judiciário que até quando estava mais próximo da Constituição… Enfim, a potência daquele movimento ainda tornava o Judiciário, vamos dizer, mais atencioso aos direitos que se inauguravam. Com o passar do tempo, com o distanciamento da potência constitucional, é um Judiciário cada vez mais pouco conhecedor, digamos, das normas da Constituição, mas não é porque não conhece o Direito. Na verdade o Judiciário não conhece o mundo, não conhece a vida real. Se é um Judiciário que não vai ao supermercado, que tem alguém abrindo a porta, tem um elevador exclusivo, tem um local, tem motorista para transportá-lo, enfim, todas essas circunstâncias tornam o Judiciário extremamente oligárquico, distante da sociedade, e se isso é fato em meio urbano, mais ainda em meio rural, em meio agrário.

FIAN: Certo. A gente vai voltar um pouco a esse ponto, mas, com relação ao Ministério Público, nós presenciamos a contribuição em algumas lutas e vitórias importantes na garantia da alimentação escolar ou da universalidade dela. Na avaliação da senhora, a atuação, em um tema como esse, é exemplar em relação ao papel do MP? E esse tipo de atuação vem sendo, vamos dizer, a média da instituição? Como corpo, ela vem cumprindo satisfatoriamente esse papel?

Duprat: A gente tem que lembrar que esse desenho do Ministério Público, que acumula ação penal pública, a pauta de direitos humanos e o controle externo da atividade policial, é uma jabuticaba brasileira, não existe em nenhum outro lugar do mundo. Geralmente o Ministério Público só tem a função de acusador na ação penal no resto do mundo. Esse desenho também é anterior à Constituição. Na década de 80, no período da redemocratização, o Ministério Público começou a assumir funções de defesa de direitos coletivos, como é o caso da questão ambiental, e logo depois na lei da ação civil pública, também em relação a consumidor – nós estamos falando de uma lei de 1985 –, a patrimônio cultural, a patrimônio paisagístico, estético, histórico, enfim, é um Ministério Público que nasce com essa conformação de ter as três atribuições.

O que eu acho que é o problema? Nós temos Ministério Público que atua na defesa de direitos da cidadania, da coletividade? Temos. Isso aí é inegável, a maior parte das ações propostas ao longo desse período pós-88, a maioria das ações foi proposta pelo Ministério Público, tanto nos estados quanto o Ministério Público Federal. Mas também é uma instituição que, com o passar do tempo, ela tem um crescimento do direito penal, ela volta à sua atribuição típica e parece que essa atribuição engole os demais campos. Se você procurar na organização do Ministério Público, a área penal é uma área superdimensionada, contra a área da cidadania, a área de direitos fundamentais. Então se você me perguntar, é uma atribuição típica do Ministério Público? É. É exercida? É. Por muitas pessoas? Não, por uma minoria, quem pode vai para a área penal. Isso é eterno? Não, eu acho que vive de ciclos, talvez a pior fase tenha passado e a gente esteja de volta ao Ministério Público atuante na área da cidadania, afinal, a pandemia veio para escancarar as nossas mazelas sociais, a mostrar que muito pouco foi feito, pós-88, para diminuir o fosso de desigualdade e injustiça social.

Então eu tenho esperança de que o Ministério Público possa, sim, desempenhar esse papel. Eu só quero fazer uma parte muito breve, eu fui examinadora, de Direito Constitucional e Filosofia do Direito, nos quatro últimos concursos do Ministério Público Federal, e eu acho que uma chave importante está exatamente no concurso para essas carreiras. Você tem capacidade de recrutar, de acordo com uma prova que leve para esses lugares, uma prova adequada, tem capacidade de recrutar pessoas muito interessantes.

FIAN: Fazendo um paralelo, como, no Itamaraty [Ministério das Relações Exteriores], você ter também um concurso que não foque excessivamente em questões de etiqueta.

Duprat: É. Olha, as minhas provas, se você procurasse na Constituição você não tinha resposta, elas envolviam violência doméstica, envolviam relações de gênero, de identidade sexual, reforma agrária, demarcação de terras indígenas, marco temporal, enfim, eram pessoas que tinham que estar antenadas com discussões muito contemporâneas e muito pouco preocupadas com aquele Direito que, enfim, é mais revestido de fórmulas e de protocolos do que de conteúdo.

FIAN: Então, para termos agentes públicos mais sensíveis às dificuldades e às vulnerabilidades da população, a chave estaria principalmente no processo seletivo e isso puxaria um pouco a formação também?

Duprat: Olha, eu acho que não só, sabe? Em relação ao Ministério Público, eu acho que alguns outros pressupostos são muito importantes. Primeiro, eu acho que demorou muito para incorporar o sistema de cotas – cotas raciais, cotas étnico-raciais –, sempre teve dificuldade com as cotas desde a inclusão de pessoas com deficiência, que foi o primeiro regime de cotas para concurso público. Isso tem que ser superado, é preciso você ter diversidade institucional se você quer ter uma instituição atenta ao diverso, ao democrático. Eu acho também, em relação ao Ministério Público, era preciso ter espaços institucionais de participação social, então isso não dependeria da vontade do membro do Ministério Público, mas seria, enfim, um imperativo institucional.

Óbvio que isso demanda uma reforma constitucional, uma emenda constitucional, e nos tempos atuais não é algo fácil e nem é algo talvez interessante, mas em momentos mais oportunos convém pensar se não é preciso redesenhar uma instituição que trabalha tão fortemente com a população, que tem obrigação de defender a cidadania, se ela não tem que ter espaços de participação social.

FIAN: Voltando à primeira resposta, para a divisão constitucional na defesa dos direitos da coletividade, na avaliação da senhora o ideal seria o MP assumir um caráter mais focado na parte penal, como na maioria dos países, e a Defensoria Pública ser fortalecida?

Duprat: Não, não. Eu acho que é muito interessante o desenho institucional. Acho que a Defensoria Pública tem que ser fortalecida, eu acho que quanto mais força institucional a gente tiver nesse campo, melhor ainda. Nós temos que lembrar que nós temos um fosso aí, de 500 anos, que precisa ser superado, eu acho que nós temos que somar forças e não ficar em um regime de exclusão. Não é o Ministério Público ou a Defensoria, é o Ministério Público e a Defensoria, enfim, a advocacia pro bono [voluntária], quem mais quiser, eu acho que é um campo em que você tem que somar, jamais diminuir.

FIAN: Está ótimo. Então, levando o foco um pouco ao governo federal, o presidente da República, em dois momentos, vetou apoios aprovados de uma forma praticamente consensual no Congresso Nacional. Projetos de lei que beneficiavam segmentos que estão ligados à segurança alimentar de todos, e que, por outro lado, muitas vezes vivem à beira da insegurança alimentar. Também em relação ao PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. Por exemplo, houve aquela carta, praticamente todos os movimentos mais ligados à segurança alimentar, dizendo: “Olha, o PAA, assim como o Pnae, está no centro da solução para tudo, amarra as duas pontas”. E ainda com relação a uma renda mínima, uma renda básica – vários países adotaram soluções desse tipo nos últimos dois anos, com diferentes formas, diferentes volumes, lógicas, mas com uma base comum. Tudo isso o governo tratou como inviável, como uma ameaça à responsabilidade fiscal, uma ameaça a outras políticas, enfim, o discurso de que a conta não fecha. E depois, agora toda essa ênfase no Auxílio Brasil e no Alimenta Brasil, procurando colocar, vamos dizer, dois novos programas, megaprogramas, no lugar do Bolsa Família e do PAA. E a omissão do governo é alvo de uma ação, a ADPF 831, da qual a senhora é uma das autoras, e também foi alvo de um tribunal popular, o Tribunal Popular da Fome, que considerou o governo culpado pelo avanço da insegurança alimentar grave. Com esses novos programas o governo se redime disso, ele deixa de merecer ser alvo de uma contestação como essa ADPF, ou como a conclusão desse tribunal simbólico?

Duprat: Eu acho que não, mas eu tenho que admitir que para o Supremo Tribunal Federal vai ser muito difícil dizer que essas são medidas que não são suficientes. Mas eu quero começar um pouquinho lá trás, eu quero lembrar que nós talvez devamos ter que fazer uma espécie de justiça de transição a respeito do retorno da fome ao Brasil, nos níveis em que ela se encontra. Cinquenta e cinco por cento dos domicílios brasileiros em algum tipo de insegurança alimentar, 9% em situação de insegurança alimentar grave na cidade, 11% no campo.

Lembrando que logo na primeira medida do governo Bolsonaro, da MP 870, em que ele reorganiza a Presidência da República, ele extingue o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], e a gente tem que lembrar que o papel que o Consea teve no enfrentamento à fome, que é reconhecido pela própria ONU, vários relatores do direito à alimentação adequada, enfim, vários relatores apontaram esse dado. O Bolsonaro extingue o Consea e não põe nada no lugar, desorganizando, portanto, a lei do Sisan [Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] – esse dispositivo o Congresso conseguiu tirar fora, mas o Bolsonaro vetou. Então ele havia, de fato, deliberado que o Consea não ia existir e não haveria nenhuma política de eficaz combate à fome.

O PAA, como você apontou, é um programa muito interessante, porque em 2020 foi lançada a declaração da ONU sobre o direito dos camponeses e das camponesas, e a Bachelet [alta comissária da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet], por ocasião dessa declaração, da publicidade dessa declaração, ela disse que camponesas e camponeses alimentam o mundo, reconhecendo que não é o agronegócio que produz alimento, na verdade quem produz alimento é a agricultura familiar, então é preciso fortalecer esses programas para vencer a fome, para vencer a insegurança alimentar.

Então, na ação é pedido que o PAA, que vem da agricultura familiar, assim como parte do Pnae também vem da agricultura familiar, eles sejam fortalecidos, porque são mecanismos importantes de geração de renda para esses segmentos, mas também, mais importante ainda, uma garantia de segurança alimentar para a população brasileira. Então esses vetos que o Bolsonaro… Esse veto mais recente, eu acho que teria que ser levado para ser noticiado no âmbito dessa ação, que procura vencer a situação de insegurança alimentar. Também quero lembrar que essa questão da renda básica é uma diretriz da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] no contexto da pandemia. Houve uma pesquisa da FAO com uma outra instituição da América Latina e do Caribe, que agora eu não estou me lembrando, me fugiu completamente, mostrando os cenários…

FIAN: Cepal?

Duprat: Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe]. Fizeram um estudo mostrando os cenários possíveis da pandemia, então desabastecimento, fome estavam no radar. E é interessante, porque esse diagnóstico recomenda exatamente o fortalecimento dos programas de agricultura familiar, alimentação escolar e mecanismos de geração de renda. Lembrando que o Brasil tem essa experiência acumulada de muitos anos, de um programa que mereceu prêmios no mundo, que é o Bolsa Família.

É óbvio que o Bolsa Família estava, sim, com os seus valores desatualizados, tanto em termos de benefício, como de faixa de renda para ingresso no programa, principalmente considerando o aumento, a carestia dos alimentos, o aumento do valor da cesta básica. Mas a substituição, sem você incorporar essa experiência de muitos anos, sem incorporar a experiência do CadÚnico [Cadastro Único], enfim, ela mais assusta do que tranquiliza, principalmente porque nós não sabemos qual vai ser a fonte de renda permanente para o financiamento desse programa. Eu não tenho acompanhado isso nos últimos dias [a entrevista foi realizada em dez./21], mas o financiamento que vinha da PEC dos Precatórios até agora é incerto. Então, enfim, não sei lhe falar, não sou uma especialista da sustentabilidade desse programa Auxílio Brasil, mas sei do receio de você desprezar um programa que foi ganhando consistência ao longo dos tempos e que um mero reajuste seria suficiente, mas certamente o Supremo Tribunal Federal não vai entrar nessa discussão, ele vai acatar, enfim, a opção que o governo fizer, porque não cabe a uma Suprema Corte ficar dizendo qual é a melhor opção, desde que venha uma opção que se comprometa a gerar essa renda mínima, certamente o Supremo vai admiti-la.

FIAN: Certo. Então, a gente – a FIAN e organizações próximas – trabalha muito com a ideia da exigibilidade, de haver condições para que os direitos possam ser reivindicados, um eixo também importante para setores do Ministério Público e para a Defensoria Pública. Isso está associado a uma cultura de direitos, de as pessoas saberem que têm direitos, que a Constituição garante. Como trabalhar essa frente em um momento em que existem articulações muito fortes – em parte, visíveis em partes ocultas – de promoção de uma ideia de que o Estado existe só para atrapalhar?

Duprat: Não escutei.

FIAN: A gente sabe que existe uma certa ideologia nesse sentido, mas existe uma articulação internacional que opera por meios os mais diversos, muito focada em promover uma desconfiança em relação ao Estado e de procurar fazer valer uma ideia de um individualismo que é muito à revelia do Estado e do coletivo, e que também coloca qualquer associação civil como algo também que vai contra essa liberdade e, muitas vezes, como se fosse parasita do Estado. Essas tendências estão sujeitas a ciclos, como a senhora frisou, mas é uma frente que tem conseguido convencer, ou converter, muita gente. Como fazer avançar uma agenda de direitos nesse contexto?

Duprat: Olha, eu não sei se é uma articulação. O fato é que a chegada… Se é uma articulação internacional, ou de que maneira há uma percepção de um sentimento difuso na sociedade, um mal-estar em relação à Constituição de 1988 e às institucionalidades. Isso foi certamente o motor da campanha eleitoral que levou Bolsonaro ao poder. A gente tem que entender que a sociedade brasileira de 2020 não é a sociedade de 1970, 1980, muita coisa mudou, uma é que, de fato, há de um lado essa cultura neoliberal, enfim, que leva a noção de empresa para toda a sociedade, cada indivíduo se realiza a partir de se configurar como uma empresa, e a relação entre empresas é de concorrência, de competição, então você acaba com aquela noção de igualdade, que é o motor da Constituição de 1988, em favor de uma noção de competição.

Com essa ideia neoliberal vem o máximo individualismo, sendo que a Constituição de 88 convoca para um exercício de solidariedade, é um projeto de sociedade em que todas as pessoas são mobilizadas para vencer essas desigualdades históricas, as discriminações de todos os tipos. Há muita reflexão também psicanalítica, porque esses governos populistas surgem em um momento de, digamos, falência geral das instituições, um sentimento de que não funciona nada. E a busca também de porquês, por que o Estado deixou de funcionar.

E um discurso que é muito recorrente é que o Estado não funcionou porque ele deu muito para determinados grupos, e aí os cotistas negros vão culpar o movimento LGBT, que vai culpar o movimento de mulheres, enfim, é uma transferência de responsabilidades que faz com que o regime de direitos seja visto como formas parasitas e não como os sujeitos de direitos, como pessoas que dependem do Estado, dependem daquele – isso volta e meia é dito  –, daquele “auxiliozinho”, e isso também é uma ideia neoliberal, que você tem que acabar com o Estado nesses espaços em que o indivíduo tem que se fazer por si próprio. Então nós temos muito prejudicado o regime de direitos, não só por conspirações ou não só por alianças, e sim por esse sentimento que atravessou a sociedade e que chega até os nossos dias. Eu converso, enfim, fui recentemente à área indígena, converso com o movimento da reforma agrária, e sei que não está fácil. Sabe? Então se nós não entendemos isso, nós não entendemos também as lutas necessárias para vencer esse período.

FIAN: Certo. Sem dúvida, tem o esgotamento, os limites, aquilo que se alcançou e que não se alcançou, mas não houve também, como em outros países, a captura desse momento propício?, enfim, mecanismos que também em outros lugares conseguiram aproveitar esses estágios, ou momentos como esse, para implementar experiências autoritárias ou levar ao extremo um projeto de espoliação, de retirada de direitos?

Duprat: Desculpa, eu não entendi. Porque o fenômeno Bolsonaro não é um fenômeno único no mundo, nós temos tido no mundo esse avanço autoritário, que se vale exatamente desses momentos de fragilidade do Estado, e o Estado se fragiliza quando ele entra na lógica neoliberal, isso vem assolando a Europa desde as décadas de 80 e 90. No entanto, o neoliberalismo não é uma possibilidade constitucional, a gente tem que pensar que quando a Constituição foi discutida o neoliberalismo já era um modelo hegemônico no mundo, já tinha sido adotado pelas duas grandes maiores economias – na ocasião, Estados Unidos e Inglaterra –, já era fórmula do FMI [Fundo Monetário Internacional], do Banco Mundial, e no entanto, a gente tem muito clara, na Constituição, essa opção por um Estado forte, um Estado provedor de direitos, um Estado provedor de políticas públicas para implementação de direitos, então, o que nós temos de muito peculiar é que, além do autoritarismo, nós temos um modelo de funcionamento de governo absolutamente inconstitucional.

FIAN: E agora, enfim, se como esperado, as forças sociais e políticas conseguirem superar esse momento que nós vivemos, e seja qual for a chapa, a frente, o que nos levar a superar esse momento… Se for bem-sucedida, o que seriam prioridades? Seria uma retomada de determinados aspectos da Constituição? O que poderia ser o prioritário, para o que muita gente tem chamado, eu acho que com razão, de uma ideia de reconstrução nacional? A senhora até usou, em outro momento, o termo “justiça de transição”, que normalmente tem a ver com contextos de restituição democrática, ou volta de uma situação de guerra, não é isso?

Duprat: Isso. Período de graves violações de direitos humanos. O que eu acho que é prioritário: recompor a burocracia [o corpo do funcionalismo] federal, que foi devastada por Bolsonaro. Bem ou mal, ela vinha crescendo desde o primeiro presidente democraticamente eleito, que foi o Collor. Há a partir de 1990 até a Emenda Constitucional 95 [também chamada Teto dos Gastos], em 2016, um crescimento na capacidade do Estado de formular políticas públicas.

E crescimento em que sentido? Primeiro, especializando o Estado, criando agências – isso vem de antes, mas depois isso é potencializado –, então você vai ter ministérios com temas específicos, vai ter agências, como Funai, Ibama, ICMBio, Fundação Palmares, todas criadas para agenciar políticas de direitos humanos. Você cria um aparato, um corpo funcional capacitado, que é recrutado mediante concurso público, a maneira como a Constituição determina que o servidor público seja recrutado, e ele é treinado para essas atribuições, porque a Constituição determina que a progressão na carreira dependa de cursos de especialização.

 E um outro elemento é a participação social, foram, enfim, desde 93, na Conferência de Viena de Direitos Humanos, tem-se presente que não é possível construir políticas de direitos humanos sem a participação dos sujeitos afetados por essas políticas, dos sujeitos implicados nessas políticas. Então esse regime de participação social também foi construído ao longo do tempo.

Nada disso existe mais, não existe a capacidade administrativa, não existe a especialização, o Bolsonaro conseguiu colocar, nas pastas, pessoas contrárias aos objetivos daquelas pastas, veja o que se passa na Fundação Cultural Palmares, que é o caso, na atualidade, para mim mais paradigmático. Uma pessoa [o presidente da fundação, Sérgio Camargo] que nega o racismo, quando o racismo é, enfim, ele tem estatuto constitucional, a Constituição determina que o racismo seja punido como crime… Enfim, isso tudo precisa ser recomposto. Eu não sei que tempo vai levar isso, a gente avalia que o tamanho do estrago do Estado seja enorme, porque a pandemia veio evidenciar isso: o quanto o SUS [Sistema Único de Saúde], enfim, que é essa nossa maravilha, mas o quanto ele estava precarizado, o quanto o Programa Nacional de Imunizações estava precarizado, tanto que se o programa estivesse operando como operou no enfrentamento da H1N1, nós já teríamos um contingente, se ele estivesse operante, se as vacinas estivessem sido adquiridas no tempo certo, nós estaríamos com a capacidade de vacinação muito mais ampla do que a que se chegou.

Enfim, eu não sei estimar o tempo, mas vai ser preciso um investimento, uma engenharia absurda. Tem servidores que procuraram se afastar dos órgãos onde estavam, porque eram perseguidos exatamente pelo conhecimento que detinham, os que puderam se aposentaram, então isso já não se recupera mais, enfim, os que ficaram vão ter que recuperar a capacidade de acreditar no Estado, de que estão, de fato, em uma função pública, guiada pelo interesse público, e que o trabalho que produzem é independente, é baseado em conhecimento científico, é baseado em evidências científicas. Enfim, é um trabalho de reconstrução enorme.

FIAN: E mesmo sendo um governo eleito, então seria comparável a situações muito fora de qualquer normalidade democrática, não é?

Duprat: Completamente. Não é casualidade que haja 150 pedidos de impeachment, não é só uma insurreição da sociedade, é um descalabro. O que mostra como as instituições são capturadas é exatamente a gente conviver com um fenômeno como o Bolsonaro sem uma resposta institucional adequada.

Confira também o que disseram José Graziano, Maria Emília Pacheco, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

Coleção reúne cinco publicações sobre o Pnae pela perspectiva da comida de verdade

Um livro, dois livretos e duas cartilhas compõem a coleção de publicações do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade – pelo Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas na Escola.

A iniciativa, executada pela FIAN Brasil ao longo de 2021, teve como objetivo contribuir para a promoção desse direito humano, conhecido pela sigla Dhana, no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

O livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae reúne as atividades realizadas – de produção de conhecimento, formação, articulação, sensibilização e incidência, num contexto fortemente impactado pela pandemia de Covid-19 e pelo desmonte das políticas sociais, marcado ainda por tentativas de captura do cardápio escolar

Também compila materiais produzidos pela equipe da FIAN e pelo portal jornalístico O Joio e o Trigo, parceiro na iniciativa. Entre eles, a linha do tempo “Da política ao prato”, que abrange de 1945 a 2001; o artigo “O primeiro direito e a alimentação escolar”; e cinco entrevistas inéditas com Deborah Duprat, José Graziano, Maria Emília Pacheco, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

O livreto O Pnae em fatos e números: a importância do Programa Nacional de Alimentação Escolar foi elaborado no intuito de propiciar um primeiro contato com essa política pública, apresentar fundamentos e particularidades de sua execução e oferecer informação para consulta constante. Outro objetivo era contribuir para uma cultura de direitos no país.

A publicação traz histórico e legislação, objetivos e diretrizes e a dimensão do programa. Também apresenta os avanços e desafios, passando por fatos relevantes como a nova realidade imposta pela pandemia.

Orientações para pôr as diretrizes em prática

Na perspectiva formativa, a FIAN produziu as cartilhas Como exigir o direito à alimentação e à nutrição adequadas no Pnae? e Alimentação e nutrição adequadas no Pnae: mais alimentos frescos, menos ultraprocessados. Ambas receberam contribuições de organizações parceiras e foram usadas nas oficinas do projeto.

A primeira trata do direito de toda e todo estudante da educação básica da rede pública a receber, durante o período letivo, uma alimentação adequada. Nesse sentido, explica as diretrizes do Pnae e os princípios e dimensões do Dhana.

O conteúdo apresenta o conceito de exigibilidade – de forma bem simplificada, o exercício do direito de exigir a garantia de direitos –, detalhando as obrigações e responsabilidades das partes envolvidas com o Pnae. Um passo a passo mostra um dos caminhos possíveis para uma reclamação ou denúncia de violação do Dhana no contexto das escolas.

Na segunda cartilha são abordados, entre outros pontos, os motivos de veto ou limitação dos produtos alimentícios ultraprocessados no cardápio; a importância de comprar mais alimentos frescos, da agricultura familiar local; e os impactos dessas medidas para a saúde dos estudantes, para os pequenos agricultores e agricultoras, para a sociedade e para o meio ambiente.

Mergulho na exigibilidade

Programa Nacional de Alimentação Escolar: diretrizes e exigibilidade em tempos de pandemia, como o título indica, aprofunda-se nos pilares da política pública e nos impactos da Covid-19 em sua execução.

A ideia é contribuir para que os sujeitos de direito possam exigir aquilo que a legislação consagra, e que os/as agentes públicos se engajem com propriedade nessa causa ou, no mínimo, façam sua parte.

Sob a ótica do Dhana, o material traz os marcos legais do Pnae e sua implementação no cenário atual, examinando as modalidades de gestão e a situação das compras púbicas. São apresentadas as principais violações desse direito fundamental no período, argumentos para exigir sua garantia e experiências de exigibilidade em seus diferentes níveis (administrativo, político, quas judicial e judicial). O texto explica, ainda, quem e como pode recorrer a cada caminho desses.

Mais uma parceria com o FBSSAN, o livreto foi elaborado por Mariana Santarelli e Vanessa Schottz, pelo fórum nacional, e Nayara Côrtes e Valéria Burity, pela FIAN, com contribuição de Vanessa Manfre. O texto foi originalmente escrito como material de apoio a módulo de curso de extensão sobre o tema.

Restrição aos ultraprocessados e apoio à agricultura familiar

O Crescer e Aprender, desenvolvido ao longo de 2021 com apoio da Global Health Advocacy Incubator (Ghai), teve como foco a restrição aos produtos alimentícios ultraprocessados e o incentivo a uma maior participação da agricultura familiar no fornecimento de alimentos para as escolas públicas. Foram ações de produção de conhecimento, formação, articulação, sensibilização e incidência, num contexto fortemente impactado pela pandemia de Covid-19 e pelo desmonte das políticas sociais, marcado ainda por tentativas de captura do cardápio escolar.  

As atividades envolveram estreita colaboração com a ACT Promoção da Saúde, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP), além do portal jornalístico O Joio e o Trigo, na produção de conteúdo. Um novo parceiro foi o Instituto Desiderata, que no período desenvolveu projeto focado na saúde de crianças e adolescentes, em âmbito municipal, no Rio de Janeiro.

Na iniciativa, a FIAN Brasil também contou com a parceria da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da Universidade de Brasília (UnB), entre outras organizações. As conversas com a FIAN Colômbia trouxeram conceitos e uma forma de olhar para programas de alimentação escolar alinhada ao Dhana e à soberania alimentar.

Todas as escutas, diagnósticos e interações reafirmaram a importância do Pnae, uma das maiores políticas de alimentação escolar do mundo, que faz bem para a cidade e o campo – e a necessidade de defender esse programa que é referência para vários países.

Também trouxeram novos elementos para nossa atuação em 2022 e 2023, num projeto que buscará contribuir para o enfrentamento das desigualdades no Brasil a partir dos sistemas alimentares.