O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2017, publicado anualmente pelo Cimi, constata aumento em 14 dos 19 tipos de violência sistematizados; apropriação das terras indígenas é um dos principais vetores da violência
Houve um aumento no número de casos em 14 dos 19 tipos de violência sistematizados no Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2017, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).Em três tipos de violência foram registrados a mesma quantidade de casos que no ano anterior; e apenas em dois tipos de violência houve menos casos registrados que em 2016. No entanto, estes dois dados são parciais e podem ser maiores, conforme reconhece a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
As informações sistematizadas evidenciam que continua dramática a quantidade de registros de suicídio (128 casos), assassinato (110 casos), mortalidade na infância (702 casos) e das violações relacionadas ao direito à terra tradicional e à proteção delas.
“Esta edição do Relatório explicita uma realidade de absoluta insegurança jurídica no que tange aos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas no país. Para piorar, os Três Poderes do Estado têm sido cúmplices da pressão sobre o território, que pretende permitir a exploração de seus recursos naturais, e resulta em violência nas aldeias”, explica Roberto Liebgott, coordenador do Regional Sul do Cimi e um dos organizadores da publicação.
Ele complementa sua avaliação: “além disso, especialmente a bancada ruralista tem atuado no sentido de garantir todas as condições para que um novo processo de esbulho das terras tradicionais seja consolidado no país. Ou seja, através do estrangulamento das terras indígenas por diversos vetores, o que se pretende, de fato, é usurpar as terras dos povos originários deste país”.
Contra o patrimônio
Neste sentido, chama atenção o consolidado aumento nos três tipos de “violência contra o patrimônio”, que formam o primeiro capítulo do Relatório: omissão e morosidade na regularização de terras (847 casos); conflitos relativos a direitos territoriais (20 casos); e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio (96 casos registrados).
Observa-se um significativo aumento no que concerne às invasões; ao roubo de bens naturais, como madeira e minérios; caça e pesca ilegais; contaminação do solo e da água por agrotóxicos; e incêndios, dentre outras ações criminosas. No ano anterior, 2016, haviam sido registrados 59 casos – houve, portanto, um aumento de 62% em 2017.
Além da violação dos direitos dos povos em relação ao usufruto exclusivo do seu território e dos bens nele contidos, estes crimes são agravados pelo fato de, recorrentemente, junto com eles também ocorrer intimidações, ameaças e, muitas vezes, ações físicas violentas contra os indígenas, como ataques às comunidades.
Este é o caso do povo Karipuna, em Rondônia. Quase extintos na época dos primeiros contatos com a sociedade não indígena, nos anos de 1970, os Karipuna não podem caminhar livremente pelo seu território, homologado em 1998. Além do aprofundamento da invasão da Terra Indígena Karipuna desde 2015 para o roubo de madeira, a grilagem e o loteamento são outros crimes que vêm sendo, insistentemente, denunciados pelo povo aos órgãos do Estado brasileiro e até mesmo na Organização das Nações Unidas (ONU).
O Cimi constatou que o governo do presidente Michel Temer não homologou nenhuma terra indígena em 2017. Este fato o coloca como o presidente com o pior desempenho neste quesito, ultrapassando em muito Dilma Rousseff – que era quem, com média anual de 5,25 homologações, ocupava a pior posição entre os presidentes do Brasil desde a retomada da democracia, em 1985. No ano passado, o Ministério da Justiça assinou apenas duas Portarias Declaratórias e a Fundação Nacional do Índio (Funai) identificou seis terras como sendo de ocupação tradicional indígena.
Das 1.306 terras reivindicadas pelos povos indígenas no Brasil, um total de 847 terras (o que representa 64%) apresenta alguma pendência do Estado para a finalização do processo demarcatório e o registro como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Destas 847, um volume de 537 terras (63%) não teve ainda nenhuma providência adotada pelo Estado. Considerando que a Constituição Federal de 1988 determinou a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil até 1993, fica evidente uma completa omissão do Executivo no cumprimento desta sua obrigação constitucional.
Em relação à “violência contra a pessoa”, houve um agravamento da situação registrada em sete dos nove tipos avaliados: tentativa de assassinato (27 casos), homicídio culposo (19 casos), ameaça de morte (14), ameaças várias (18), lesões corporais dolosas (12), racismo e discriminação étnico cultural (18) e violência sexual (16). Em relação ao abuso de poder, houve o registro de 8 casos, mesma quantidade de 2016.
Em 2017 foram registrados 110 casos de assassinato de indígenas, oito a menos que os registrados em 2016. Cabe ressaltar que a própria Sesai reconhece que este dado é parcial, já que ainda pode receber a notificação de novos assassinatos. Desse modo, fica evidente que a situação real em relação ao assassinato de indígenas pode ser ainda mais grave.
Os três estados que tiveram o maior número de assassinatos registrados foram Roraima (33), Amazonas (28) e Mato Grosso do Sul (17). Estes dados fornecidos pela Sesai sobre “óbitos resultados de agressões” não permitem análises mais aprofundadas, já que não há informações sobre a faixa etária e o povo das vítimas e nem as circunstâncias destes assassinatos.
Dentre os casos de violência contra a pessoa, destacamos o massacre ocorrido contra o povo Akroá-Gamella, no Maranhão, no dia 30 de abril de 2017, quando um grupo de aproximadamente 200 pessoas atacou severamente a comunidade indígena que vem, desde 2015, retomando áreas de seu território tradicional. No ataque, 22 Gamella foram feridos, sendo que dois deles foram baleados e outros dois tiveram suas mãos decepadas. Os outros Gamella sofreram severos golpes de facão, pedradas e pauladas.
Apesar do ataque ter sido convocado através de um programa em uma rádio local e de carros de som nas ruas de municípios no entorno da área de ocupação dos Akroá-Gamella, os órgãos do Estado nada fizeram para evitar esta ação violenta. Indígenas afirmam que policiais teriam, inclusive, assistido a violência e culpado os Gamella pela situação.
Devido ao processo de intensificação da luta pela terra ancestral, as lideranças deste povo vêm sendo ameaçadas e criminalizadas e a comunidade como um todo tem sido hostilizada e sofrido violências físicas e simbólicas em diversos lugares, como hospitais, onde não recebem atendimentos médicos, e escolas; além de terem suas lavouras incendiadas, dentre outras ações preconceituosas.
Omissão do poder público
Com base na Lei de Acesso à Informação, o Cimi também obteve da Sesai dados parciais de suicídio e mortalidade indígena na infância. Dos 128 casos de suicídio registrados pela Sesai em 2017 em todo o país (22 a mais que em 2016), os estados que apresentaram as maiores ocorrências foram Amazonas (54 casos) e Mato Grosso do Sul (31 casos).
Em relação à mortalidade de crianças de 0 a 5 anos, dos 702 casos registrados, 236 ocorreram no Amazonas, 107 no Mato Grosso e 103 em Roraima. Cabe ressaltar que, assim como os dados de assassinato, as informações da Sesai sobre os registros relativos a suicídio e mortalidade na infância são parciais e estão sujeitas a atualizações. Ou seja, estes dados podem ser ainda mais graves.
Os registros do Cimi em relação à desassistência na área de saúde (42) e desassistência geral (42) em 2017 tiveram a mesma quantidade de casos que em 2016. Já em relação à morte por desassistência à saúde (8 casos), disseminação de bebida alcóolica e outras drogas (10 casos) e desassistência na área de educação escolar indígena (41 casos) houve um aumento dos registros.
O Relatório do Cimi traz ainda análises sobre a atual conjuntura política e sobre alguns temas específicos, como a ameaça ao futuro dos povos isolados (que evitam contato com a sociedade não indígena); a inconstitucionalidade do Parecer 001, da Advocacia-Geral da União – que, assim como o Marco Temporal, fundamenta as novas formas de esbulho possessório; o orçamento das políticas indigenistas; e a necessidade do Estado implementar reparações para os povos indígenas que sofreram, e continuam a sofrer, violência e violação de seus direitos, como é o caso dos Karipuna.
Em seu artigo de apresentação do Relatório, o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto, avalia que: “com Temer no comando do Executivo federal, os agressores se sentiram mais seguros para cometer seus crimes. A invasão e o esbulho possessório alastraram-se como pólvora sobre os territórios e ameaçam a sobrevivência de muitos povos, inclusive os isolados. Está claro que o Brasil foi tomado de assalto, feito refém de interesses privados da elite agrária, ‘agraciada’ com novas ‘capitanias hereditárias’, que são distribuídas em troca da morte dos povos que habitam os territórios”.