Nota Pública: ONU Mulheres externa preocupação com a redução de status das Secretarias de Políticas para as Mulheres e de Promoção de Políticas de Igualdade Racial

É com preocupação que a ONU Mulheres Brasil avalia a transformação da Secretarias Especiais de Políticas para as Mulheres e de Promoção da Igualdade Racial em Secretarias Nacionais pela Medida Provisória n. 768/2017, publicada em 3 de fevereiro de 2017, no Diário Oficial da União. Nos últimos dois anos, os órgãos passaram por duas fortes alterações nas suas competências, incidindo de maneira prejudicial na gestão, no orçamento e na estrutura organizacional.

São amplamente conhecidas as causas das desigualdades de gênero no Brasil, as quais têm impedido as mulheres de viver uma vida sem violência, com igualdade salarial, sem racismo e outras formas de discriminação seja pela orientação sexual, faixa etária ou território. No que se refere ao racismo, a discriminação racial tem ação sistemática no assassinato de jovens negros e negras, nas barreiras de acesso ao mercado de trabalho e nas vulnerabilidades de saúde, educação, moradia, entre outras.

Nesse sentido, é fundamental que as Secretarias de Políticas para as Mulheres e de Promoção da Igualdade Racial estejam posicionadas no nível estratégico do Poder Executivo e dotadas de alta capacidade de tomada de decisão, corpo funcional adequado e orçamento capaz de atender aos desafios de gestão de políticas públicas inovadoras e eficazes para os 51,5% da população brasileira formada por mulheres e de 52% composta por negras e negros. Até então, a Secretaria de Políticas para as Mulheres correspondia ao desenho institucional recomendado pela Plataforma de Ação de Pequim, assim como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial era instância institucional em conformidade com o Plano de Ação de Durban.

Por fim, a ONU Mulheres Brasil registra o êxito da trajetória dos órgãos como expressão do comprometimento político com os direitos das mulheres e para o enfrentamento ao racismo, reconhecida como exemplar na América Latina e Caribe. Que o histórico de progresso promovido pelas Secretarias de Políticas para as Mulheres e de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – a exemplo do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Ligue 180, Lei Maria da Penha, Lei do Feminicídio, programas de autonomia econômica, educação, saúde, enfrentamento ao racismo e lesbofobia, comunidades tradicionais, ações afirmativas e juventude -, seja iluminador para a consecução das suas atribuições, tendo em vista a alta demanda de direitos a serem realizados para as mulheres e a população negra no Brasil em consonância com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 dos Estados-Membros da ONU e os desafios firmados para enfrentar o racismo na Década Internacional de Afrodescendentes.

 

ONU Mulheres Brasil

O difícil impasse para a efetivação do Subsistema de Saúde Indígena no Brasil

A principal dificuldade para a viabilização do Subsistema Especial de Atenção à Saúde Indígena no Brasil, que se arrasta desde a sua criação no ano de 1999, diz respeito ao mecanismo de contratação dos Recursos Humanos para o desenvolvimento das ações de assistência à saúde nas comunidades. Tanto a criação dos Distritos Sanitários ESPECIAIS Indígenas em 1999, como da Secretaria ESPECIAL de Saúde Indígena em 2010, foram fundamentadas no caráter EXCEPCIONAL que caracteriza a assistência à saúde das populações indígenas no país. A modalidade de contratação de recursos humanos adotada desde o início e até hoje, por meio de convênios com organizações da sociedade civil, não é a mais adequada, sendo objeto de um Termo de Conciliação Judicial (TCJ) assinado há vários anos que obriga o governo federal a adotar uma nova forma de contratação para a prestação deste serviço.

Recentemente o Ministério da Saúde criou um Grupo de Trabalho paritário, envolvendo usuários, trabalhadores e gestores para analisar e apresentar propostas a esta questão. Entre as dificuldades levantadas e que levaram a um verdadeiro impasse na primeira reunião do grupo, estão a percepção de que a contratação por meio de Concurso Público e Regime Jurídico Único não é viável para as características EXCEPCIONAIS da assistência à saúde prestada diretamente nas comunidades indígenas; a privatização da saúde indígena por meio de um Instituto, Fundação ou de Organizações Sociais (OS) compromete os princípios básicos da autonomia e do controle social nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas; e a terceirização por meio de Organizações da Sociedade Civil (OSC) carece de um marco regulatório legal mais adequado para as relações entre o Estado e o Terceiro Setor.

A Assembleia Extraordinária dos Povos Indígenas de Roraima sobre Saúde Indígena, realizada nos dias 30 de outubro a 01 de novembro de 2016, em Boa Vista, reunindo quase duas mil lideranças indígenas, profissionais de saúde e gestores dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas Yanomami e Leste de Roraima, representando uma população aproximada de 70.000 indígenas e 630 comunidades, aprovou entre as suas principais propostas a realização de um processo amplo de discussão e consulta prévia aos povos indígenas visando a elaboração de uma proposta de LEI ESPECÍFICA PARA A CONTRATAÇÃO DIFERENCIADA DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE INDÍGENA, a ser apresentada ao Congresso Nacional.

De acordo com esta proposta, deveria ser regulamentada por lei a necessidade de contratação EXCEPCIONAL dos profissionais da Saúde Indígena por meio de um Regime Diferenciado e via CLT, conforme admite a Constituição Federal. A polêmica da contratação de servidores públicos pela CLT pode ser resumida nas seguintes citações (extraídas de artigos da internet):

“O art. 37, IX, da Constituição do Brasil autoriza contratações, sem concurso público, desde que indispensáveis ao atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público, quer para o desempenho das atividades de caráter eventual, temporário OU EXCEPCIONAL, quer para o desempenho das atividades de caráter REGULAR E PERMANENTE.” (Ministro Maurício Correa – STF)

A interpretação do artigo 37, inciso IX, da Constituição Federal, deve ser feita de modo restritivo; a lei do ente federado deve estabelecer quais os casos de contratação, isto é, quais são as necessidades temporárias de interesse público excepcional; a lei do ente federado deve estabelecer qual o prazo máximo do contrato e quantas vezes pode ser prorrogado, o que não poderá ser muitas vezes, senão descaracteriza o caráter temporário da necessidade.

Esta discussão é absolutamente necessária e urgente para garantir a efetiva implementação e continuidade da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) nos termos e princípios estabelecidos desde as primeiras Conferências Nacionais de Saúde Indígena, sob o protagonismo decisivo das Organizações Indígenas e seus parceiros do movimento indigenista em todo o país.

Por Paulo Daniel, especialista em Saúde Indígena

Publicado, originalmente, no site do CIMI

Carta aos povos indígenas do Brasil: por um parlamento cada vez mais indígena

Nos últimos anos os Povos Indígenas do Brasil tem enfrentado fortes pressões que têm se intensificado em todos os espaços de poder do Estado. No parlamento, têm prevalecido em todos os seus níveis, os interesses de grupos majoritariamente contrários aos direitos dos povos indígenas. Tendo em vista que é no parlamento o lugar aonde se constrói regramentos legais que vinculam toda a sociedade, faz-se necessário enxergarmos esse espaço como estratégico para o empoderamento dos nossos povos e conseguir que de forma efetiva as nossas lutas e pautas sejam evidenciadas e transformadas em instrumentos de resistência e de poder nesse contexto acentuado de correlação de forças e de ataques permanentes aos direitos indígenas.

São evidentes os prejuízos causados nas câmaras de vereadores nos municípios que possuem populações indígenas, e nas assembleias legislativas, mas que não tem representação indígena. Tais prejuízos são ainda maiores no âmbito do Congresso Nacional que na sua composição não possui sequer um indígena. Essa característica de ausência de legítimos representantes dos povos indígenas dá margem para a forte agenda reacionária, fundamentalista e de interesse dos grupos econômicos, com destaque para a bancada ruralista, que historicamente atuam como inimigos dos Povos Indígenas.

Nas últimas eleições municipais, atuamos fortemente no incentivo ao lançamento de candidaturas indígenas em todo território brasileiro. Essa tática gerou resultados importantes. Centenas de candidatos indígenas concorreram aos cargos de vereadores e prefeitos em diversas cidades do país. Atingimos a marca histórica de 167 indígenas eleitos para os cargos de vereador e 05 indígenas eleitos prefeitos em suas cidades de origem, pelo que acreditamos que essas eleições defenderão uma agenda progressista e positiva que tenha como foco a luta e reivindicações dos povos originários e das comunidades tradicionais, a pauta dos direitos humanos, a defesa do meio ambiente e da democracia, enfim, o conjunto das políticas sociais conquistadas por toda sociedade brasileira.

O sistema político porém está arcaico, alicerçado no poder econômico e instrumentalizado pelas elites deste país. Por essas razões faz se necessário continuar lutando pela reforma política, que não se reduz à reforma eleitoral, para assegurar aos distintos segmentos da sociedade tradicionalmente marginalizados espaços de poder e de democracia real e participativa, que permitam por exemplo aos povos indígenas participação nas disputas eleitorais, seja por meio da via clássica partidária, de colégios eleitorais diferenciados ou de mecanismos autônomos de organização social própria, espaços coletivos de decisão.

Considerando que em 2018 todo o país estará voltado para as eleições a cargos de deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente da República, o foco é que os nossos povos não atuem mais como meros coadjuvantes nesse processo de eleição. Por isso, conclamamos a todos os povos indígenas do Brasil para que a partir de agora, iniciem suas discussões no âmbito local e regional sobre a necessidade de lançarmos cada vez mais indígenas candidatos para a disputa nessas próximas eleições, guerreiras e guerreiros encorajados, dispostos a ocupar o parlamento nos estados e no Congresso Nacional.

Levar a agenda da luta dos povos indígenas para o debate político deve ser encarado como uma missão de todo movimento indígena brasileiro.

Por um parlamento cada vez mais indígena!

Brasília-DF, 31 de Janeiro de 2017.

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB

HEKS-EPER Brasil abre editais para preenchimento de vagas

A HEKS/EPER, Agência de Cooperação Internacional, com sede na cidade de Zurique, com escritório de representação no Brasil onde apoia projetos com ações e iniciativas que promovem o desenvolvimento de comunidades rurais e a transformação de conflitos com a promoção da cultura da paz, torna pública a realização de processo de seleção simplificado para contratação de Oficial de Projetos para o tema “Transformação de conflitos e direitos humanos” e de Secretária. As pessoas interessadas devem encaminhar currículo até o dia 28 de fevereiro.

Confira os editais:

Edital para contratação de Oficial de Projetos para o tema “Transformação de conflitos e direitos humanos”  AQUI.

Edital para contratação de Secretária AQUI.

Nota Pública do CNDH sobre o emprego das Forças Armadas no Sistema Prisional

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), órgão de Estado criado pela Lei Nº 12.986/2014, vem a público manifestar sua discordância em relação ao emprego das Forças Armadas em unidades prisionais do País, conforme previsto no Decreto Presidencial Nº 17, de 17 de janeiro de 2017:

Art. 1º Fica autorizado o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, nos termos deste Decreto.

Art. 2º As Forças Armadas executarão essa atividade nas dependências de todos os estabelecimentos prisionais brasileiros para a detecção de armas, aparelhos de telefonia móvel, drogas e outros materiais ilícitos ou proibidos.

§ 1º O emprego das Forças Armadas, nos termos do caput, observado o princípio federativo, dependerá de anuência do Governador do Estado ou do Distrito Federal e será realizado em articulação com as forças de segurança pública competentes e com o apoio de agentes penitenciários do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça e Cidadania. 

§ 2º O Ministro de Estado da Defesa editará normas complementares para dispor sobre o emprego das Forças Armadas a que se refere este Decreto.

Art. 3º A autorização a que se refere o caput do art. 2º fica concedida pelo prazo de doze meses. 

Art. 4º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação 

Além de desvirtuamento da função constitucional das Forças Armadas, a medida não responderá aos enormes e complexos desafios do sistema prisional brasileiro – marcado pela superlotação carcerária e pelo descumprimento de patamares minimamente dignos para o cumprimento das penas, da segurança aos próprios presos, de seus visitantes e dos trabalhadores do sistema. A explosão de violência no sistema carcerário – expressada nos recentes episódios ocorridos em presídios do Amazonas, de Roraima e do Rio Grande do Norte, que resultaram em mais de 130 mortes – tem relação direta com o encarceramento em larga escala com a omissão do Estado brasileiro no desenvolvimento de uma política criminal em consonância com parâmetros nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos.

Trata-se, portanto, de fenômeno estrutural, e não episódico, donde não caber o chamamento das Forças Armadas para a defesa da lei e da ordem.

De resto, a atuação de membros das Forças Armadas em presídios é medida que poderá resultar em mais violações a direitos, considerando que essas tropas são treinadas para situações específicas, baseadas na lógica da guerra. Não por acaso, possuem legislação própria.

Espera-se do Estado brasileiro coragem e capacidade para verdadeiramente enfrentar os mecanismos que contribuem para a grave situação dos estabelecimentos penais no País.

Brasília-DF, 03 de fevereiro de 2017.

CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS – CNDH

Fonte: SDH

Temer antecipa ‘pacote do veneno’ e proíbe Anvisa de se manifestar sobre agrotóxicos

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), subordinada ao Ministério da Saúde, não presta mais informações a respeito de agrotóxicos, inclusive sobre aqueles registrados antes de 2016. A informação é da assessoria de imprensa da agência. Indagada na tarde da quarta-feira (1º) sobre as substâncias registradas ano passado – um recorde, segundo nota do Ministério da Agricultura (Mapa) –, limitou-se a informar que os questionamentos devem ser encaminhados diretamente à Agricultura.

No último dia 10, o Mapa divulgou que foram registrados 277 novos agroquímicos, um recorde histórico segundo o próprio ministério. Do total, 161 são produtos técnicos equivalentes (PTEs) – os chamados genéricos –, o que corresponde a alta de 374% em comparação a 2015, quando foram registrados 43 PTEs, além de 139 novos produtos. A média histórica anual é de 140 registros.

No anúncio do recorde, o coordenador geral de agroquímicos e afins do Mapa, Júlio Sergio de Britto, observou “grande evolução na qualidade e no número de produtos ofertados, graças ao esforço dos técnicos dos ministérios da Agricultura, da Saúde (Anvisa) e do Meio Ambiente (Ibama)”.

Anvisa recebe solicitações de informações sobre facilidades dada pelo governo Temer à indústria de agrotóxicos, ainda sem resposta

Até a conclusão desta reportagem, a assessoria de imprensa do ministério que abrange ainda a Pecuária e o Abastecimento, cujo titular é o ruralista Blairo Maggi, o “rei da soja”, não havia respondido à solicitação de informações.

Ação coordenada

Para especialistas da área, a mudança no controle das informações faz parte de uma ação coordenada por representantes do agronegócio que trabalham para acelerar a tramitação e aprovação de projetos de lei que compõem o chamado pacote do veneno. São projetos que, entre outras coisas, vão facilitar a aprovação, o registro, a comercialização, a utilização, o armazenamento e o transporte de agrotóxicos, aumentando a presença dessas substâncias nas lavouras brasileiras.

“O controle de informações no Mapa ocorre paralelamente a outras medidas em curso, sugerindo que o ‘pacote do veneno’ está sendo implementado mesmo antes de ter sido aprovado no Congresso e sancionado por Temer”, diz o coordenador da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida – Agrotóxico Mata, Alan Tygel.

O “pacote” inclui o Projeto de Lei (PL) 3.200/2015, do deputado federal Luis Antonio Franciscatto Covatti (PP-RS), que praticamente revoga a atual lei de agrotóxicos. Para ambientalistas, promotores federais, movimentos sociais e defesa do consumidor, a proposta é um retrocesso. Veta o termo “agrotóxico”, substituindo por “fitossanitário”, e cria a Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito) no âmbito do Mapa.

Estão entre as prerrogativas dessa nova comissão apresentar “pareceres técnicos conclusivos aos pedidos de avaliação de novos produtos defensivos fitossanitários, de controle ambiental, seus produtos técnicos e afins”. O colegiado também indicará os 23 membros efetivos e suplentes, deixando de fora representantes dos consumidores, da Anvisa e do Ibama – um ataque aos princípios da precaução, conforme os críticos.

Também no “pacote” está o PL 6.299/2002, do então senador Blairo Maggi, que altera regras para a pesquisa, experimentação, produção, embalagem e rotulagem,  transporte,  armazenamento, comercialização, propaganda, utilização, importação, exportação, destino final dos resíduos e embalagens, registro, classificação, controle, inspeção e  fiscalização. Se for aprovado, a embalagem dos agroquímicos deixará de ter, por exemplo, a presença da caveira – símbolo de veneno conhecido universalmente, até mesmo por pessoas analfabetas e crianças.

“São alterações que vão afrouxar ainda mais as normas, como proibir apenas os venenos que causem intoxicação aguda, aquelas que ocorrem imediatamente à exposição ao produto. No entanto, estudos mostram que há intoxicações crônicas, que surgem tempo depois, pela exposição continuada a essas substâncias no ambiente de trabalho ou pelo acúmulo de substâncias nocivas no organismo depois de anos consumindo alimentos com agrotóxicos”.

Segundo Tygel, estudos recentes associam a exposição a agrotóxicos com o surgimento do Mal de Parkinson, doença degenerativa do sistema nervoso central, crônica e progressiva, que ocorre pela queda da produção de dopamina, neurotransmissor envolvido no fluxo de informação entre os neurônios. Já está estabelecido em estudos neurocientíficos que esta diminuição está associada a causas ambientais, e não apenas genéticas.

Omissão

A Campanha Permanente não estranha a submissão da Anvisa ao agronegócio e considera a agência omissa na defesa da saúde da população. Desde 2012 não divulga o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), e em 2016 nem sequer coletou amostras de alimentos. Além disso, não avalia a presença de venenos em alimentos como carne, leite, ovos, industrializados para alimentação infantil e de adulto e água mineral, suspendeu a fiscalização das indústrias de agrotóxicos, não consolida nem divulga dados sobre esse mercado.

Outros aspectos graves são a lentidão nas reavaliações iniciadas em 2008, com resultados questionáveis, a falta de previsão de novas reavaliações apesar de decisões internacionais importantes sobre seus efeitos à saúde, de participação da sociedade civil nos processos decisórios,

Os sistemas informatizados para permitir organização, divulgação e acesso a dados seguem sem conclusão, fazendo com que a Anvisa descumpra integralmente a Lei de Acesso à Informação.

Coquetel venenoso

Presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e integrante da Associação  Brasileira de Agroecologia, o agrônomo Leonardo Melgarejo destaca a prevalência do viés comercial em detrimento da preocupação com a saúde nesse recorde de registros. “Não temos tamanha variedade de insetos e ervas daninhas que exijam tamanha diversidade de venenos”, diz.

E aponta falhas metodológicas. “No caso dos venenos genéricos, há uma confusão. Passam a ideia de que se trata de algo semelhante aos remédios, onde o princípio ativo é o que interessa. No caso dos agrotóxicos, devemos nos preocupar com os químicos utilizados no coquetel colocado à venda, junto com o princípio ativo”, afirma.

Conforme exemplifica, o herbicida 2,4-D contém entre as impurezas um grupo de substâncias, as dioxinas. Extremamente perigosas, estão entre os agentes cancerígenos. Além disso, há outros produtos associados igualmente tóxicos, que têm a função de desintegrar a gota de agrotóxico em contato com as folhas das plantas, facilitando sua absorção e a ação tóxica.

“Sem contar aqueles resultantes da transformação destes e de outros componentes, seja pela metabolização da planta, como o AMPA, a partir da aplicação do glifosato, pela ação do sol, de elementos químicos que compõem o solo”, destaca o agrônomo. “Estes subprodutos do princípio ativo e dos demais componentes geram novos riscos de combinações e sinergias perigosas. Portanto, liberar o uso de um agrotóxico sem estudos, apenas baseado na afirmação de que outros com o mesmo princípio ativo, com efeito similar, já foram aprovados, vale para o agronegócio mas não vale para a saúde e nem para o meio ambiente.”

Na avaliação de Melgarejo, a decisão da pasta conduzida por Blairo Maggi deveria ser repudiada pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério do Meio Ambiente. “Nós, ambientalistas, consideramos que esta decisão só poderia ser tomada em um governo que não tem compromissos com o futuro. Quanto mais barato for um agrotóxico genérico, maior será o risco de problemas associados aos demais componentes, mesmo que o princípio ativo corresponda ao que se verifica em todas as formulações. São os trabalhadores rurais, os agricultores e os consumidores que verificarão isso no futuro.”

Informações da Rede Brasil Atual

Fonte: Justificando

Conselho Nacional dos Direitos Humanos elege novo presidente

Darci Frigo, representante da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Plataforma Dhesca Brasil) é o novo presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH). Frigo é advogado e coordenador da organização de direitos humanos Terra de Direitos. Ele foi eleito na manhã desta quinta-feira (2) na 24ª reunião ordinária do Conselho, em Brasília.

“O Conselho vai se debruçar sobre graves questões que estão postas, que foram apresentadas no Congresso Nacional como reformas e que vão retirar direitos de trabalhadores, sejam trabalhistas ou previdenciários. Isso preocupa hoje o conjunto da população brasileira, vai ser motivo de grandes mobilizações sociais e o Conselho não pode se ausentar desse debate”, declara Frigo.

O novo presidente do CNDH enfatizou ainda que o Conselho atua, ou pelas demandas que recebe, ou pelas projeções que as comissões permanentes fazem sobre determinados temas. “As comissões, que já são de blocos temáticos, deverão se preocupar com temas transversais como temas de gênero, de raça, o tema de empresas e violações dos direitos humanos e outras questões que estão colocadas no âmbito da conjuntura, como a violência nos presídios, que é um sintoma da grave situação que o país vive hoje.”

No encontro, que contou com a presença da secretária Flávia Piovesan e de representantes da sociedade civil e do poder público que compõem o colegiado, também foi eleita a vice-presidente do CNDH, Fabiana Severo.

Fabiana Galera Severo é defensora pública federal do 3º Ofício de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União (DPU), em São Paulo. Atualmente exerce a função de Defensora Regional de Direitos Humanos de Direitos Humanos e representa a Defensoria Pública da União no Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Mestranda pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com pesquisa sobre o trabalho escravo contemporâneo, representa ainda a DPU na Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo, de São Paulo.

A pauta da reunião contemplou também a aprovação do Relatório sobre o Sistema Sócio Educativo de Pernambuco, com o resultado da Missão Emergencial que aconteceu nos dias 24 e 25 de novembro de 2016, e do Relatório sobre a População atingida pela implementação da UHE Belo Monte e pelo projeto de instalação da mineradora Belo Sun, resultado da Missão que ocorreu entre os dias 9 e 12 de outubro de 2016 na região de Altamira, sudoeste do Pará.

Nova composição da Mesa Diretora para o mandato 2016-2018

Presidente: Darci Frigo – Plataforma Dhesca Brasil

Vice-presidente: Fabiana Severo – Defensoria Pública da União

Deborah Duprat – Ministério Público Federal

Flávia Piovesan – Secretaria Especial de Direitos Humanos

Leonardo Pinho – Unisol Brasil

Sandra Carvalho – Justiça Global

Fonte: Ascom CNDH

Os venenos genéricos do Ministério da Agricultura

Registros agrotóxicos genéricos aumentaram 374% em 2016 na comparação com o ano anterior / Antonio Cruz/ABr

No dia 10 de janeiro, o Ministério da Agricultura (Mapa) comemorou grande avanço nos registros de agrotóxicos no Brasil. A notícia menciona não apenas o registro de 277 novos venenos, como ainda destaca que, entre eles, se incluem 161 “genéricos”. Um recorde! Avanço de 374% em relação aos registros ocorridos em 2015, que foram largamente influenciados pela administração anterior, a qual aprovou – contra nossos interesses – 43 “equivalentes genéricos”. Os novos registros de 2017 foram publicados no Ato nº 3 do Diário Oficial da União de 9 de janeiro de 2017.

Tenta-se passar com isso uma ideia positiva de agregação de eficiência nos avanços regulatórios trabalhados pelo governo golpista. Mas, possivelmente, estamos agora diante de novas ameaças, talvez crimes, contra a sociedade e a natureza.

Vejamos:

1 – Como se “acelera” um processo de análise de riscos para a saúde e o meio ambiente?

Contratando servidores, qualificando laboratórios, sofisticando os processos analíticos e estendendo o escopo das avaliações. O governo fez isso? Infelizmente, não.

Evidentemente também se poderia economizar tempo fazendo vista grossa ou simplesmente deixando de lado a avaliação de alguns tipos de problemas, que poderiam decorrer de situações de baixa exposição aos venenos ou a alguns de seus componentes, em longo prazo. Ou, simplesmente, deixando de avaliar os possíveis impactos de alguns componentes químicos, ou das combinações de venenos, sobre o solo, a água, a microvida do solo, os trabalhadores, os consumidores em geral. Ou ainda, em especial, deixando de avaliar riscos afetos a indivíduos com quadro de deficiência renal, ou em fase de formação, gestação, senescência. Em outras palavras, deixando de lado públicos especiais, bebês e velhos, esquecendo de fazer algumas perguntas e atribuindo escassa relevância ao ciclo de vida completo dos indivíduos. O agronegócio não se preocupa com isso. Para nós é que é importante saber implicações dos venenos usados nas lavouras sobre a fertilidade sexual dos nossos netos. Mas porque isso preocuparia um criador de suínos alimentados com o mesmo milho que usamos na nossa polenta?

O governo adotou este mecanismo torpe para acelerar as análises? Não sabemos. Esperamos que não. Sabemos apenas que com o golpe de estado foram alterados os gestores públicos e que o governo golpista, com isso, entre tantas coisas que já fez, também acelerou a aprovação de venenos a serem usados em nossa agricultura.

2 – O que seriam estes produtos genéricos, aprovados “por semelhança”?

No caso dos remédios entendemos bem. Quando um princípio ativo combate a pressão alta e outro impede a multiplicação de determinadas bactérias, cada um deles se destina a controlar problemas específicos. E ambos podem ser vendidos em formatos diferentes, com nomes diferentes, em embalagens distintas. As “marcas” diferentes terão o mesmo “sentido médico” e poderão ser comercializadas a preços diferentes. Nestes “remédios” distintos não haverão “venenos” ocultos, escamoteados aos processos de análise de risco. Enfim, o conhecimento de um princípio ativo, sua utilidade e funcionamento, permite aprovação por analogia de vários remédios “similares”. Os “genéricos”, sem o peso das marcas, das propagandas, serão mais baratos e não causarão problemas porque ali não se escondem elementos perigosos. Coisa boa e barata.

Mas e nos agrotóxicos? Remédios “genéricos” seriam equivalentes aos venenos “genéricos”? O mesmo raciocínio utilizado para o controle da pressão alta se aplicaria a um herbicida ou a um inseticida?

Não. No caso dos agrotóxicos estamos sempre diante de um coquetel. Ali existe, além do princípio ativo, destinado a matar insetos ou plantas, outros produtos químicos não menos perigosos. São substancias úteis para eliminar a cerosidade das folhas ou da pele dos insetos, para facilitar a absorção dos venenos, para romper a tensão superficial das gotas e assim por diante. Existem as impurezas e os resíduos do processo de fabricação ou da transformação natural dos químicos, por ação do tempo, da presença do oxigênio, da ação metabólica realizada pelas próprias plantas e animais.

Como exemplo, considere as dioxinas presentes em algumas formulações de herbicidas a base de 2,4 D. Ou o AMPA, resultante da metabolização do glifosato, pelas plantas. Nestes dois casos estamos diante de venenos mais perigosos do que no caso do princípio ativo original.

Portanto, no caso dos agrotóxicos, analisamos o princípio ativo, um veneno, e deixamos de lado todo um vasto leque de outros venenos. Que segurança a análise do princípio ativo oferece para decisão de segurança de outros agrotóxicos, que utilizam o mesmo princípio ativo, se deixamos de considerar os demais venenos?

Não parece óbvio que um veneno genérico, com mais impurezas, tenderá a ser mais barato, mas também mais perigoso?

Cabe aqui um comentário final: as análises de risco para a saúde e o ambiente que aprovam os agrotóxicos para uso na agricultura não levam em conta todos os componentes dos produtos comerciais. Também não levam em conta a mistura desses componentes. E estudos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já mostraram alimentos contendo resíduos de até 11 produtos distintos.

Portanto, mesmo no caso dos agrotóxicos estudados e aprovados com base em análise caso a caso, os riscos são grandes. O que podemos esperar no caso dos genéricos? Aqui, a morte não é o pior cenário.

Enfim, recomendamos a todos: desconfiem das comemorações do governo golpista, fujam dos venenos, comprem apenas produtos orgânicos, estimulem a agroecologia e ajudem a desconstruir as campanhas de marketing criadas em favor de negócios que comprometem a vida.

 

Por Leonardo Melgarejo da Associação Brasileira de Agroecologia e Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida

Terra tradicionalmente ocupada, Direito originário e a inconstitucionalidade do Marco Temporal

Adelar Cupsinski1
Alessandra Farias Pereira2
Rafael Modesto dos Santos3
Íris Pereira Guedes4
Roberto Antônio Liebgott5

Resumo: O presente artigo tem como objetivo abordar alguns dos aspectos acerca da demarcação de terras indígenas no Brasil, em especial, o entendimento e aplicação do denominado “marco temporal” pelos tribunais, como condicionante para determinar a tradicionalidade, ou não, destas terras. Da mesma forma, serão analisados os possíveis avanços dos direitos indigenistas após a promulgação da Constituição Federal brasileira de 1988. Este estudo se justifica na medida em que se percebe que mesmo diante da existência de um arcabouço jurídico de proteção e promoção dos direitos dos indígenas (no âmbito nacional e internacional) o Estado brasileiro não tem conseguido atuar de forma significativa para alterar a realidade de muitas destas comunidades. Ao contrário, notam-se processos sistemáticos que visam o retrocesso destes direitos, nas mais diversas esferas da sociedade. Portanto, este estudo pretende demonstrar que este tipo de fenômeno pode-se apresentar também através de novas interpretações e entendimentos na aplicação do direito, acarretando em decisões judiciárias sem respaldo constitucional e violadoras de direitos e garantias fundamentais e coletivos. O método de pesquisa utilizado foi o hipotético-dedutivo, com técnicas de pesquisa documental, bibliográfica, jurisprudencial e análise de sítios eletrônicos de forma qualitativa.

Caso prefira, clique aqui para acessar o artigo em pdf.

I – Introdução

Neste artigo propomos uma análise do que vem sendo denominado, no âmbito do Poder Judiciário, de “marco temporal”. Trata-se de uma interpretação que restringe o alcance do direito à demarcação das terras indígenas, já que vincula este direito à presença física das comunidades e povos indígenas na terra ao período de 05 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal do país.

Neste sentido, o estudo tem como objetivo apresentar uma reflexão crítica a esta orientação interpretativa dos direitos constitucionais dos povos indígenas que, na prática, trazem insegurança jurídica para estas populações no Brasil. Entende-se que o limite constitucional às demarcações, expresso no estabelecimento de um marco temporal, relaciona-se ao emprego do instituto civilista da posse em contraponto ao usufruto e posse imemorial indígena.

Especialistas do Direito e da Antropologia, assim como as próprias comunidades indígenas, alertam para o perigo de retrocesso dos direitos reconhecidos, já que o uso do marco temporal como condicionante na demarcação de terras, se aplicado pelos tribunais, afrontarão o disposto nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, assim como, Tratados e Convenções Internacionais a respeito.

Portanto o presente artigo será dividido em dois capítulos de desenvolvimento textual, sendo o primeiro destinado à análise do texto constitucional, buscando aclarar ao leitor os avanços das garantias e direitos fundamentais conquistados após 1988, para então, no segundo capítulo, abordar os entendimentos e possíveis retrocessos decorrentes da aplicação do marco temporal nas decisões sobre demarcação das terras indígenas pelos tribunais brasileiros.

O método de pesquisa empregado foi o hipotético-dedutivo e o de revisão bibliográfica, portanto, parte-se da hipótese de que existem controvérsias acerca das novas interpretações e do uso do entendimento do marco temporal pelos tribunais brasileiros, para por fim, após a análise das bibliografias e material doutrinário, verificar a possibilidade de dedução de que tal entendimento não possuí base constitucional, afrontando diretamente o disposto nos artigos 231 e 232 e demais direitos e garantias fundamentais dispostos na Constituição Federal Brasileira de 1988. As técnicas de pesquisa foram a jurisprudencial, documental, bibliográfica e análise de sítios eletrônicos, com análise de dados de forma qualitativa.

II- Os Direitos Consagrados na Constituição Federal

Com a promulgação da Constituição Federal em 1988 (CF), rompe-se a perspectiva da política estatal da aculturação, que tinha como premissa a integração indígena à comunhão nacional. Com isto, passou-se a reconhecer o direito à diferença aos povos indígenas suas organizações sociais, seus usos, costumes, crenças, tradições, línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. O reconhecimento destes direitos no texto constitucional consolida garantias individuais e coletivas de todos os povos, base essencial de qualquer direito humano.

O Capítulo VIII da Constituição, intitulado “Dos Índios”, em seus artigos 231 e 232  explicitam o reconhecimento à identidade cultural própria e diferenciada dos povos indígenas, bem como, os seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Nota-se que, em que pese tais direitos não estejam dispostos no rol dos direitos e garantias fundamentais, os mesmos são compreendidos como tais, portanto, de aplicação imediata.

De acordo com o Artigo 231:

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar, e as necessárias à sua reprodução física cultural, segundo seus usos, costumes e tradições6.

O texto constitucional determina que o Estado brasileiro deve promover a demarcação das terras, reconhecendo os direitos originários e imprescritíveis dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e lagos das áreas caracterizadas como sendo de ocupação tradicional. Há, além disso, a obrigação da União em proteger, fiscalizar e fazer respeitar todos os bens, inclusive os imateriais, tais como as culturas, costumes, crenças e tradições de cada povo.

Para além das especificidades no que tange ao modo de ser de cada povo e de seus vínculos e concepções com a territorialidade, o artigo 232 consagra o entendimento de que os povos indígenas são donos de seu futuro,  assegurando-lhes a possibilidade de exercitarem a cidadania desvinculada da tutela estatal. Afirma-se que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público Federal em todos os atos do processo”.

Tal dispositivo configura-se em importante ferramenta de luta para os povos indígenas, uma vez que suas comunidades passam a ser consideradas entes com personalidade jurídica (não necessitando, para isso, obter registros e estatutos específicos), dispensando inclusive a intermediação (tutela) de órgãos indigenistas em ações ajuizadas de seu interesse ou da comunidade.

É necessário fazer referência também ao que determina o Artigo 20, XI, da Constituição. Nele fica estabelecido que as terras tradicionais indígenas são bens da União e, portanto, a propriedade não é indígena. Essa norma protege não somente a ocupação física da terra, mas também o direito à ocupação tradicional. Se extrai deste conteúdo, combinado com o artigo 231, que o uso da terra não se restringe aos aspectos econômicos e sociais, pois projetam uma expectativa futura, onde os povos tenham condições de se expressarem (social, política e economicamente) a partir das suas diferenças étnicas. E é obrigação do Estado assegurar-lhes proteção às áreas ambientais, os espaços sagrados e aqueles de caráter simbólico, tendo como referência o futuro do povo.

O direito à posse da terra é explicitado como direito originário, portanto não depende de titulação e precede os demais direitos (Art. 231, caput). Por isso que o parágrafo 6º deste artigo expressamente estabelece que os títulos que incidem sobre uma terra indígena são declarados nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos.

São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé7.

De acordo com notícia veiculada pelo Superior Tribunal de Justiça em 19 de abril de 20168, estão catalogadas atualmente aproximadamente 115 decisões colegiadas sobre processos envolvendo as demarcações de terras indígenas no órgão. Em suma, foram analisadas diretamente as decisões concedidas nos Recurso Especial (REsp) 1133648, REsp 1551033, na Medida Cautelar (MC) 25148, Mandado de Segurança (MS) 21572, MS 14987 e MS 158229 que abrangem análises do parágrafo 6º do artigo 231. Nas decisões abordadas, o entendimento é o de garantir os direitos dos povos indígenas às demarcações de terras,  posse e ao seu usufruto exclusivo. O STJ dá essa garantia sem nenhum tipo de vínculo interpretativo que tenha por objetivo limitar seu alcance e abrangência. Reforça, além disso, o entendimento de que todo e qualquer título de propriedade que incida sobre as áreas indígenas são efetivamente nulos, mesmo aqueles considerados de boa-fé. Também reconhece que é dever da União, através de seu ente indigenista, proceder aos estudos administrativos de demarcação, através das regras estabelecidas pelo Decreto número 1775 de 1996.

O STJ segue, neste caminho de reconhecimento dos direitos indígenas, afirmando que as terras habitadas por estes são inalienáveis – o que significa dizer que o seu domínio não pode ser transferido a outro – bem como indisponíveis, portanto ninguém pode dispor desse direito independentemente das finalidades ou interesses.

Consolida-se assim o conceito fundamental de que os direitos dos Povos Indígenas sobre as terras são originários, anteriores inclusive as normas estabelecidas e que estes são imprescritíveis, ou seja, não prescrevem com o passar do tempo (Art. 231, § 4º). E, neste sentido, destaca-se o fato de que os povos indígenas não podem ser removidos de suas terras em função de interesses outros – incluem-se os econômicos, políticos, ambientais – que não sejam em casos de catástrofe, epidemia e ou de interesse da soberania do país, com o referendo do Congresso Nacional, garantindo, em qualquer dos casos supracitados, o retorno imediato da população indígena a sua terra, tão logo cesse o risco (Art. 231, § 5º).

A Corte reforça o entendimento, expresso no parágrafo 2º do artigo 231, de que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam à sua posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas que não se encontram no subsolo. Vale ressaltar, no entanto, que a possibilidade de exploração dos recursos naturais só será permitida em caso de relevante interesse público da União, e esta depende de lei complementar (que ainda não foi aprovada). Em relação às ocupações de boa-fé, o mesmo artigo estabelece que a União deve indenizar as benfeitorias construídas pelos ocupantes – edificações, plantações perenes, por exemplo – mas não há previsão de indenização pela terra (pelas razões constitucionais expressas anteriormente).

No que tange a consolidação dos direitos à terra – sua posse e usufruto – as Disposições Constitucionais Transitórias (Artigo 67)10; determinam que o Estado brasileiro teria o prazo de 5 anos para a conclusão das demarcações das terras indígenas, tendo encerrado em 5 de outubro de 1993. Ainda hoje, no Brasil, existem, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário11, mais de 600 terras indígenas a serem demarcadas.

III – A Inconstitucionalidade do Marco Temporal

Como visto no capítulo anterior, o texto constitucional promove o caráter pluriétnico de sua população, dispondo sobre a proteção e manutenção das tradições culturais dos povos indígenas, a qual está intrinsecamente ligada à permanência em suas terras tradicionalmente ocupadas.

Segundo o acórdão do caso Raposa Serra do Sol (Petição n. 3.388)12, terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são aquelas:

[…] demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas, “segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade.

Significa dizer que terra indígena e posse nativa são conceitos mais amplos que permanência física em certo espaço territorial. Na perspectiva de terra tradicionalmente ocupada por esse ou aquele povo indígena, vale dizer, prevalece toda a área necessária à reprodução física e cultural do povo.

Nesse ínterim, para melhor compreender a extensão do direito originário às terras reconhecidas como de ocupação tradicional, deve-se levar em consideração as especificidades de cada povo que habita um determinado território. Estas especificidades, demonstradas pelo trabalho especializado que constituem os laudos antropológicos, delimitam os lugares de caça e pesca, por exemplo, que podem ser elementos indispensáveis para sua reprodução cultural. Se o povo depende de uma paragem sagrada, um acidente geográfico venerado ou se o seu cemitério se encontra nos limites da área reivindicada, naturalmente aquela área pertence ao território indígena, independentemente da posse.

Neste sentido, não só devem ser consideradas como terras tradicionalmente ocupadas aquelas onde residem os indígenas, como também aquelas necessárias à sua reprodução física e cultural. José Afonso da Silva explica que da Constituição Federal se consegue concluir que sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, incidem os direitos de propriedade e os direitos originários13. O Jurista argumenta que esses direitos são “direitos fundamentais dos índios”, que podem ser classificados na categoria dos “direitos fundamentais de solidariedade”, tal como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado14.

A Constituição desfaz, portanto, o nexo entre o conceito civilista – posse e propriedade – da posse indígena, cujo reconhecimento passou a ser fixado como direito originário ou congênito (nato, natural). Há, portanto, o reconhecimento não apenas da ocupação física das terras habitadas pelos indígenas, mas também da ocupação de toda uma extensão de terras necessárias ao resguardo cultural e à manutenção de práticas econômicas e religiosas de cada povo.

Apesar das garantias, há a necessidade de se assegurar, de modo prático, a aplicação desse direito, tornando-se imprescindível formalizá-lo em procedimentos demarcatórios específicos capazes de determinar qual(is) povo(s) habita(m) determinada área, quais os limites geográficos, considerando aspectos ambientais, arqueológicos, dentre outros. Estes aspectos dizem respeito ao preceito da tradicionalidade que deve ir além de circunstâncias temporais:

A tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições15.

O jurista Dalmo de Abreu Dallari (1991, p. 320) vai mais além, e vincula o direito constitucional ao que estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, pois para ele:

É possível sustentar que os objetivos inspiradores do art. 14 da Convenção nº 169 da OIT são coincidentes com os que deram origem ao art. 231 da Constituição. E os efeitos de ambos são praticamente os mesmos, pois se é verdade que pelo fato de não serem proprietários os índios brasileiros não poderão dispor das terras que tradicionalmente ocupam é igualmente certo que também a União, embora proprietária, não tem o poder de disposição16.

Analisando estes aspectos sobre a tradicionalidade, percebe-se equivocada e violadora dos preceitos constitucionais a imposição do marco temporal, apoiado na data de 05 de outubro de 1988, como data insubstituível e componente necessário para determinar ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.  Neste sentido, de acordo com o parecer de José Afonso da Silva não há previsão constitucional para tal orientação17:

Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data, se ela nada diz a esse respeito nem explícita nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário, se se ler com a devida atenção o caput do art. 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa.

Na sequência, o Supremo Tribunal Federal – STF disse o seguinte, deslocando o marco temporal, incontinenti, do complexo conteúdo do acórdão18:

É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.

Diante disso, não há que falar em aplicação do marco temporal por mais de um motivo: primeiro pela existência do esbulho e da titulação a particulares (nula e extinta, a partir da CF/88) e depois pela ininterrupta ocupação anímica, psíquica e de perdurabilidade para além do lugar de habitação, mas também aqueles necessários à preservação e física (caça, pesca, coleta) e os necessários à reprodução cultural (religião, cemitérios, perambulação, rituais). Significa dizer, sem risco de erros, que o marco temporal, constante em um curto parágrafo no acórdão da Petição 3388/RR, de forma isolada e desproporcional ao arcabouço constitucional do direito indígena, não se sustenta, seja pela incidência do §6º do art. 231 da CF/88, pela posse nativa e anímica, seja pelo esbulho praticado face os povos originários. Diante da afirmativa extraída do art. 231 da CF/88, resta evidente que se haviam títulos sobre terras indígenas, a posse da terra era, em 05 de outubro de 1988, dos não-índios, seja por força de esbulho ou existência de títulos, que passaram a ser nulos e extintos a partir de então.

Significa dizer, ainda, que diante da interpretação sistêmica do direito constitucional indígena, e não apenas de uma palavra que se isola no caput do art. 231 da CF/88 (ocupam), não há que falar em marco temporal, já que o fato de não estar na data da promulgação na posse da terra não significa perda de direito, ante a previsão do §6º do art. 231 e que, independentemente desse fator, o título é nulo e extinto e a posse é originária.

São, portanto, equivocadas as interpretações do Poder Judiciário no tocante ao marco temporal, pois a atual Constituição não limita os direitos ordinários dos povos indígenas às suas terras ao dia 05 de outubro de 198819:

O termo “marco” tem sentido preciso. Em sentido espacial, marca limite territorial. Em sentido temporal, como é o caso, marca limites históricos, ou seja, marca quando se inicia algum fato evolutivo. O documento que marcou o início do reconhecimento jurídico-formal dos direitos dos índios foi a Carta Régia de 30 de junho de 1611, promulgada por Fellipe III, que firmou o princípio de que os índios são senhores de suas terras, “sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstias ou injustiça alguma.

Acerca do instituto do renitente esbulho, o jurista observa que não é correto interpretar, à luz da Constituição Federal, que os conflitos envolvendo terras indígenas tenham um caráter tipicamente possessório na forma caracterizada pelo direito civil. Para o jurista, a ocupação indígena de suas terras não é uma mera posse, pois eles as ocupam com fundamento no indigenato. Para ele, a ocupação é fundada em direitos originários “de sorte que quando o não-índio se apossa dessas terras, ele não retira apenas a posse dos índios sobre elas, mas um conjunto de direitos que integram o conceito de indigenato”20.

O jurista alerta de modo enfático que a interpretação restritiva de esbulho renitente como controvérsia possessória judicializada é absolutamente inaceitável porque21:

A controvérsia não é tipicamente possessória […], ou seja, não é uma disputa individual em que um possuidor retira a posse do outro, pois os direitos ordinários dos índios sobre a terra, como visto no correr deste parecer, não pertence a eles como indivíduos, mas às comunidades indígenas; ademais os índios e as comunidades indígenas antes da Constituição de 1988 não tinham legitimidade processual, pois estavam sujeitas ao regime tutelar.

Ademais, sobre o renitente esbulho, há que se ressaltar, como já observou o nobre jurista, que até 1988 os povos indígenas eram tutelados pelo Estado, portanto não poderiam pleitear seus direitos autonomamente (essa função era da União, através de seus órgãos de assistência). E há que se considerar as frequentes denúncias de que os próprios órgãos de assistência foram responsáveis pelo esbulho e exploração das terras, tendo alguns servidores públicos atuado para coibir e reprimir as comunidades e lideranças indígenas. No mesmo sentido, o Relatório Figueiredo22 traz com nitidez, atrocidades praticadas contra as comunidades indígenas nos anos de 1950 a 1970.

Em síntese, para o autor é na conjugação de conceitos que se subtraem direitos fundamentais e originários dos índios em favor de usurpadores de suas terras. Há, segundo, ele vários absurdos anti-índios nessa configuração do renitente esbulho23:

O primeiro, bastante sutil, é esse modo de exprimir os termos do conceito: renitente esbulho em vez de esbulho renitente, pondo o destaque na qualificadora, para irrogar os ônus sobre a renitência, com o que impõe aos índios esbulhados a obrigação de provar os fatos. O segundo, e grave, é a utilização do conceito de esbulho num contexto que não lhe cabe, como veremos, como se se tratasse de um conflito de posse do direito civil. O terceiro é essa ideia de que o conflito, mesmo iniciado no passado, tem que persistir até o marco temporal; quer dizer, forja-se um marco temporal deslocado para o último elo da cadeia jurídico-constitucional que reconheceu os direitos indígenas, deixando ao desamparo os direitos que as constituições anteriores reconheceram, e daí se exige que os índios sustentem um conflito ao longo do tempo, inclusive na via judicial, para que os seus direitos usurpados sejam restabelecidos. O quarto é essa exigência de que o conflito se materialize, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada, como se se tratasse de uma disputa dentre dois possuidores tutelados pelo direito civil, mas os indígenas não são possuidores nesse sentido. É uma torção semântica calamitosa essa de tratar o indigenato, ou seja, os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam, como se se tratasse de posse do direito civil.

O Supremo Tribunal Federal deixa evidente que a existência do direito indígena originário de posse sobre uma determinada gleba de terra, não está vinculada à presença física da comunidade na área, nos casos em que os indígenas tenham sido expulsos das terras por força de renitente esbulho praticado por não-índios. As demais condicionantes oriundas do caso Raposa Serra do Sol, assim como o marco temporal, foram debatidas e julgadas como sendo decisão vinculada apenas àquela demarcação, portanto não se poderia vinculá-las a outros procedimentos para assim desqualificar o direito de outros povos. Se as condicionantes são generalizadoras, aniquila-se com o que é de mais precioso no direito, sua aplicabilidade.

IV – Conclusão

Diante do exposto, conclui-se que a aplicação do chamado marco temporal não recebe respaldo constitucional, ao contrário representa uma afronta em uma série de direitos e garantias fundamentais, dentre os quais o disposto nos artigos 231 e 232 (CF/88). Ressaltando, que no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, houve entendimento de que as condicionantes que dele decorreram não seriam vinculantes, ou seja, não estenderiam seus efeitos em outros processos envolvendo demarcação de terra indígena.

Da mesma forma em que a figura do renitente esbulho, e a prova de sua existência, demonstram-se no mínimo contraditórios, o que gera insegurança jurídica no caso concreto. Não há consenso doutrinário ou jurisprudencial acerca do seu conceito e requisitos. Esse argumento se fundamenta na concepção de que os conflitos não são tipicamente possessórios como prescreve o direito civil, haja vista que a ocupação das terras pelos povos indígenas não se restringe a posse conceituada no direito civil. Os povos as ocupam com base nos direitos originários, portanto, não se pode utilizar de uma interpretação restritiva acerca do renitente esbulho, como se a controvérsia judicializada fosse uma disputa possessória individual.

Ao exigir a sua comprovação, como prova da tentativa de regresso e interesse por parte da comunidade indígena em ocupar a terra tradicional, o judiciário brasileiro desqualifica e desconsidera uma série de fatos históricos importantes desde o processo de colonização. Desconsidera também, questões básicas que envolvem as diferenças culturais, como a língua, costumes e formas de organização daquelas comunidades. A própria tutela por parte de entes do poder estatal serviu como barreira para que os indígenas pudessem reivindicar seus direitos. Situação comprovadamente agravada no período ditatorial (1964-1985), pois conforme mencionado neste estudo pela menção ao Relatório Figueiredo, foram anos de terror, com políticas voltadas para o extermínio das comunidades indígenas, orquestradas inclusive pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Portanto, exigir que as comunidades comprovem o esbulho renitente, em situação de conflito pela terra e anterior ao ano de 1988, por meio de boletins de ocorrência ou processos judiciais instaurados, apresenta-se pelo menos como um entendimento esquizofrênico. Salientando que os indígenas estavam submetidos à tutela do Estado, ou seja, deles não se poderia exigir o ônus de fazerem a defesa das terras que ocupavam, uma vez que estas são de propriedades da União e cabia a ela esse dever.

Quanto ao marco temporal, assume-se a convicção do ilustre Jurista José Afonso da Silva que sustenta não ser correto interpretar a atual Constituição como se ela tivesse limitado os direitos ordinários dos povos indígenas as suas terras a ocupação em 5 de outubro de 1988. Isso, na prática, impede a demarcação das terras para aqueles povos e comunidades que só conseguiram retornar a elas depois dessa data. O Jurista afirma que o termo “marco” tem sentido preciso: em sentido espacial, marca limite territorial; em sentido temporal, como é o caso, marca limites históricos, ou seja, marca quando se inicia algum fato evolutivo.

Por fim, além de se configurar como uma interpretação distanciada do contexto histórico e social, é visivelmente inconstitucional. A consequência disto será o desamparo e ceifamento de direitos dos povos indígenas. Assim como, viola os compromissos de proteção e promoção de direitos e garantias firmados com a comunidade internacional por meio de Tratados e Convenções ratificadas pelo Brasil. Verifica-se, que se tenta impor uma interpretação jurídica desvinculada dos sujeitos de direito de hoje – os povos indígenas –, como se não houvesse relação entre o passado, o presente e futuro das 305 etnias que vivem no território brasileiro atualmente.

Notas de rodapé

  1. Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
  2. Bacharel em Direito e assessora do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
  3. Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
  4. Pesquisadora nas áreas de Direitos Humanos, Direito Internacional Público, Direitos Indigenistas, Estado, Democracia e Administração Pública e Social. Bolsista CAPES/CNPQ no Mestrado em Direito – UNIRITTER.
  5. Bacharel em Direito, formado no Curso de Filosofia e missionário do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
  6. BRASIL. Constituição Federal Brasileira de 05 de outubro de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  7. BRASIL. Constituição Federal Brasileira de 05 de outubro de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  8. STJ. “Demarcação de Terras Indígenas é Tema de 115 Decisões Colegiadas no STJ”. Disponível aqui. Acesso em 26 de setembro de 2016.
  9. Na análise do REsp 1133648, a Segunda Turma do STJ considerou que somente com a Constituição Federal de 1988 (CF/88) surgiu o conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a serem demarcadas pela União (Ministro Herman Benjamin). Para ele o artigo 231, parágrafo 6º, da CF/88 diz que a nulidade e a extinção de direitos relativos à ocupação, ao domínio e à posse privada sobre as terras indígenas não geram direito de indenização contra a União. No julgamento do REsp 1551033, a Segunda Turma do STJ consignou que a demarcação das terras indígenas é definida pelo Decreto 1.775/96, que regulamenta a Lei 6.001/73, sendo expressa em seu artigo 2º a necessidade de elaboração de estudo técnico-antropológico e de levantamento da área demarcada. Na análise do MS 14987, a Primeira Seção do STJ decidiu que a existência de propriedade, devidamente registrada, não impede que a Funai investigue e demarque terras indígenas, tradicionalmente ocupadas. A ocupação da terra pelos índios transcende ao que se entende pela mera posse da terra, no conceito do direito civil. Deve-se apurar se a área a ser demarcada guarda ligação anímica com a comunidade indígena”, lê-se no acórdão. No MS 15822 sobre a demarcação de terras da etnia Guarani Nhandéva, a Primeira Seção do STJ considerou que a demarcação processada e conduzida na instância administrativa, sem necessidade de apreciação judicial, é prática reiterada na administração pública federal, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1988. Os atos administrativos são passíveis de revisão judicial segundo o princípio da inafastabilidade. Isso não implica, todavia, que o Poder Judiciário tenha que intervir, sempre e necessariamente, como condição de validade de todo e qualquer ato administrativo, referiu o acórdão. Na decisão, o relator do caso, ministro Castro Meira, salientou ainda que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se incluem no domínio constitucional da União. As áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição aquisitiva. Mesmo que comprovada a titulação de determinada área, se essa for considerada como de ocupação indígena tradicional, os títulos existentes, mesmo que justos, são nulos, de acordo com o já citado Art. 231, § 6º, da CF/88”, disse Castro Meira. Fragmentos da notícia supracitada in STJ. “Demarcação de Terras Indígenas é Tema de 115 Decisões Colegiadas no STJ”. Disponível aqui. Acesso em 26 de setembro de 2016.
  10. SENADO FEDERAL. Art. 67 das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  11. Conselho Indigenista Missionário. Brasil – Quadro-Resumos das Terras Indígenas. Disponível aqui. Acesso em 30 de maio de 2016.
  12. BRASIL. Supremo Tribunal Federal: Plenário. Petição n. 3.388. Augusto Affonso Botelho Neto e União Federal. Relator: Min. Ayres Britto. DJE de 1º/07/2010.
  13. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  14. Sobre a categoria dos direitos humanos de solidariedade, cf. Antônio Augusto Cançado Trindade, “Derechos de Solidariedad”, em Asdrúbal Aguiar Aranguren e outros, Estudios Básicos de Derechos Humanos I, San José, CR, IIDH, 1994, pp. 63s. e José Afonso da Silva, Teoria do Conhecimento Constitucional, São Paulo, Malheiros, 2014, pp. 551s.
  15. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  16. DALLARI, Dalmo de Abreu. Reconhecimento e proteção dos direitos dos índios. Revista Informação Legislativa, Brasília, a. 28, n. 111, julho/setembro 1991.
  17. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  18. BRASIL. Supremo Tribunal Federal: Plenário. Petição n. 3.388. Augusto Affonso Botelho Neto e União Federal. Relator: Min. Ayres Britto. DJE de 1º/07/2010.
  19. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em 21 de abril de 2016.
  20. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em 21 de abril de 2016.
  21. Idem.
  22. MPF. Relatório Figueiredo. Disponível aqui. Acesso em: 25 de set. de 2016.
  23. SILVA, José Afonso da. Parecer sobre Marco Temporal e Renitente Esbulho. São Paulo, 2016. Disponível aqui. Acesso em 21 de abril de 2016.

Relatório Direitos Humanos no Brasil 2016

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