Participação em GT de transição combina propostas emergenciais e estruturantes

A secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, e a assessora de Políticas Públicas, Mariana Santarelli, participaram da plenária do Grupo de Técnico (GT) de Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo de transição. Em suas falas, destacaram propostas emergenciais e estruturantes.

Burity trouxe elementos do contexto, como a escalada da fome, o aumento do consumo de produtos ultraprocessados – associado ao crescimento de doenças não transmissíveis –, a inflação dos alimentos e o colapso ambiental. “O caráter intersetorial da política de SAN [segurança alimentar e nutricional] deve nortear as estrutura de governança de modo que busque dar conta de todas as pontas dos sistemas alimentares, com todos os seus sujeitos”, comenta. “Destaquei ainda a importância de a Caisan [Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional] ter uma efetiva capacidade de convocação dos diversos ministérios e  dialogar com o Legislativo e o Judiciário.”

Outro assunto abordado pela secretária-geral são as proposições legislativas no Congresso Nacional que representam esperança ou ameaça para o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). “É  importante que os órgãos de controle não criminalizem os programas de agricultura familiar e segurança hídrica, como o das cisternas.”

Santarelli, por sua vez, defendeu a reativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) no primeiro dia de governo, com a composição de quando teve seu funcionamento interrompido pelo presidente Jair Bolsonaro. “A ideia seria atualizar essa representação adiante, de forma a garantir uma abordagem enfaticamente antirracista e incorporar atores do campo que surgiram nos últimos anos”, explica a assessora, que participou como integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

A FIAN apoia a proposta de criação da Secretaria Especial de Segurança Alimentar e Nutricional e Enfrentamento da Fome, ligada à Presidência da República e abrigando a Caisan e o Consea. “Também seria interessante, na recomposição do que será o futuro Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social e Combate à Fome, criar uma secretaria voltada ao acesso à alimentação, com foco em programas como os de cisternas e equipamentos de alimentação e nutrição”, pontua Santarelli. Ela propôs o fortalecimento de uma rede de cozinhas solidárias, que criam os caminhos entre o que é produzido pela agricultura familiar e as pessoas que passam fome na cidade, e lembrou a proposta que vem sendo defendida pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) de reajuste do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Entre os e as integrantes do GT estão o ex-presidente do Consea Renato Maluf, a culinarista Bela Gil, a senadora Simone Tebet e as ex-ministras Tereza Campello e Márcia Lopes. O grupo tem nova plenária marcada para quinta-feira (15).

Em aldeia do MS, alimentação escolar expõe desafios enfrentados pelos Guarani e Kaiowá

Ko’anga ñande jakaru karai kuera xa avei. Umin ha’e kuera hemityn ome’en mba’asyvai ñande rehe. Heta oin hese ome’eva mba’asy.

Na preleção do professor Nilton Ferreira Lima à turma do 9º ano, palavras como “salgadinho”, “refrigerante”, “diabetes”, “hipertensão”, “cálculo renal” e “AVC” vão se entremeando ao idioma indígena. Uma passagem que conta muito da transição alimentar em curso entre os povos Guarani e Kaiowá, e que a FIAN Brasil busca conhecer melhor por meio de estudo de caso com foco no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Em sua aula, Lima expõe a entrada em cena de problemas de saúde que os moradores e moradoras da Aldeia Te’yikue não costumavam ter e sua relação com o sedentarismo e o aumento do consumo de produtos alimentícios ultraprocessados. Realidade essa, de Caarapó (MS), que se repete em comunidades de todo o país.

“Muitas pessoas buscam seu sustento com trabalho assalariado e, com o dinheiro que ganham, compram alimentos da cidade, que são alimentos contaminados, que têm muita química”, conta o professor da Escola Municipal Indígena Ñandejara. “Com essa mudança no hábito alimentar a gente vê que entra muita doença e as pessoas adoecem muito cedo.” Os ultraprocessados passam por diversas etapas de fabricação e recebem muitos aditivos para ficarem atraentes – verdadeiras fórmulas industriais. Costumam ter alto teor de açúcar, sal e gordura.

Estabelecimentos de ensino como a Ñandejara, com 1.400 estudantes, são palco central desse quadro e do seu enfrentamento. O Pnae garante, para todas e todos estudantes da rede pública, ao menos uma refeição completa – às vezes, a única do dia. No entanto, em 2021, como parte do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade, a FIAN ouviu relatos de crianças de aldeias do Mato Grosso do Sul chegando à sala de aula em grave situação de insegurança alimentar. 

Essa política constitui-se também em caminho para a promoção da saúde por meio da educação alimentar e nutricional (EAN). Representa, ainda, uma oportunidade para fortalecer a agricultura familiar local.  

“O programa poderia estar comprando do pequeno produtor”, diz o cacique Jorginho  Soares Martins. “Temos dificuldade de ter acesso à inscrição estadual e à DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf]. Ajudaria muito o pequeno agricultor, conforme é garantido na Lei.” A DAP está em substituição pelo Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF).

Os dados mais recentes disponibilizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), referentes a 2018, mostram que 54,25% (R$ 298 mil) dos repasses anuais da autarquia do Ministério da Educação (MEC) ao município foram usados na compra direta da agricultura familiar. Trata-se de um percentual bem acima do exigido (30%). Porém, ainda não há agricultores indígenas fornecendo alimentos às escolas, o que fere as determinações legais, que estabelecem que, nas compras diretas, deve-se dar prioridade aos assentamentos da reforma agrária e às comunidades indígenas e quilombolas.

“É uma discussão antiga na comunidade”, reforça o diretor da Escola Ñandejara, Lidio Cavanha Ramires. “Se tiver uma família produtora de arroz, de feijão, pega aqui dentro mesmo para a escola. Orgânico, sem produto químico.” Ele menciona a possibilidade de reunir a produção de agricultores/as que cultivam uma extensão pequena – 0,5 hectare de mandioca, por exemplo, para ficar numa situação comum na Te’yikue – e não teriam condição de fornecer à escola por um período maior.

Questões como essas motivaram, em nível nacional, a criação da Mesa Permanente de Diálogo Catrapovos Brasil, composta por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil, pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2021, para fomentar a adoção da alimentação tradicional em escolas indígenas e de comunidades quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e caiçaras, entre outras. Ligada à Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR), a instância discute os entraves, desafios e formas de viabilizar as compras públicas da produção desses grupos sociais. Além de garantir o cumprimento da cota da agricultura familiar, pauta-se pelo direito à alimentação escolar adequada à cultura de cada população.

A Catrapovos Brasil atua para replicar em todo o país a boa prática desenvolvida pela Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), que conseguiu inserir mais de 60 alimentos produzidos de forma tradicional no cardápio escolar.

A FIAN tem participado das reuniões da Catrapovos do Mato Grosso do Sul.

Salada, abacaxi, pizza, churrasco

Divididos em rodas, os adolescentes anotam aquilo de que gostam e não gostam, e o que gostariam que tivesse, nas refeições servidas na instituição de ensino. Nas preferências escritas em cartelas na oficina organizada pela FIAN, não são raras as respostas mencionando frutas, ou pratos de um almoço comum na maioria das cidades brasileiras. Elas misturam-se a sobremesas e opções como pizza e churrasco. O que pouco aparece são comidas tradicionais guarani e kaiowá.

Ao implementar em 2020 a Resolução 6 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a escola passou a servir pratos típicos às sextas-feiras. A resolução, que regulamentou a lei do Pnae (11.947), reforçou as diretrizes de alimentação adequada, entre elas o respeito à cultura da comunidade e a valorização dos ingredientes regionais. Ao detalhar a aplicação da lei de 2009, reduziu o uso de açúcar, estabeleceu limites para certos itens (como salsicha e demais cárneos) e excluiu outros (refrescos artificiais, biscoitos recheados etc.).

Embora em muitas regiões o apelido merenda permaneça, ao longo dos últimos anos, especialmente após a publicação da lei em 2009, a prioridade é para oferta de refeições cada vez mais completas, do ponto de vista nutricional, e de melhor qualidade, que contemplem frutas, legumes e/ou verduras.  

 Em Caarapó, a entrada de alimentos como a batata-doce no lugar de pão francês e afins repercutiu em grupos de WhatsApp de mães e pais de alunos, em especial de parte das famílias mais acostumadas ao cardápio urbano. A adaptação atravessou os semestres seguintes.

“É difícil de acertar o cardápio que a nutricionista da prefeitura colocou”, relata a cozinheira Jurema Marques, uma das mais antigas da instituição. “Tem as crianças que aceitam e crianças que não aceitam. Do nosso cardápio tradicional que a gente prepara uma vez na semana, não reclamam é do guisado que a gente faz com mandioca e carne. E aquele mbaipy, que é polenta com frango. Esses, eles comem tudo. A chicha [refresco natural de milho fermentado e caldo de cana] também. O que não aceitam é o locro [prato com milho e carne, originalmente de caça].” Além disso, nem sempre as verduras, frutas e carnes dão para a semana toda, assim como acontece de faltarem os ingredientes do preparo mais cultural da sexta. Muitos estudantes relatam que a quantidade servida é insuficiente.

Quem ainda soca milho e arroz?

Foi para valorizar a conexão do alimento com a religião e a cultura guarani e kaiowá que duas professoras criaram, há mais de 20 anos, o projeto Sabor da Terra. A iniciativa começou com duas professoras da Escola Loide Bonfim Andrade – uma das quatro extensões (unidades subordinadas à polo) da Ñandejara – e hoje envolve toda a comunidade escolar. Cresceu ano a ano até permear todas as matérias, de todos os anos – um projeto mobilizador, no jargão da Educação.  

“Quando a gente perguntava: ‘Quem ainda ñembiso? Quem soca ainda milho, arroz?’ Respondiam: ‘Isso é coisa dos antigos… A gente tem pilão em casa, professora, mas é mais fácil ir ao mercado’”, narra uma das fundadoras, Rosileide Barbosa de Carvalho. 

“O Sabor da Terra é para incentivar as famílias a plantar, e valorizar aquele tipo de semente que hoje quase não é plantada. Por exemplo, se você chegar nas casas, hoje quase não tem cará.” Valoriza-se o cultivo viável ao redor das casas, ainda que o espaço seja limitado.

O projeto trabalha desde elementos clássicos de disciplinas curriculares até o cuidado com a saúde. “Por que antigamente os homens não eram muito gordos, não tinham barriga, não tinham doença? A alimentação. Agora você vê pessoas de 13, 14, 15 anos com obesidade, problema de pressão alta, de coração”, enumera a professora. As salas mergulham nos temas desde o primeiro bimestre, e o ciclo culmina numa exposição no meio do ano em que são servidas comidas tradicionais e não indígenas.

Nessa ocasião, cada família leva o seu prato – por exemplo, pira mbichy (peixe assado), mandio mbichy (mandioca assada). Quem conseguir caçar tatu vai levar carne do animal.

“A gente ouve eles falarem: ‘Nossa, isso eu comia quando era criança… Como hoje não tem mais?’”

As atividades na Unidade Experimental Poty Reñoi (“desabrochar da flor”), chácara de 2,6 hectares (ha) vizinha à escola polo, complementam o que é realizado no Sabor da Terra. Conforme a idade, alunas e alunos lidam com sementes, adubagem, rega, trato dos animais.

“A gente começa do começo”, explica o professor Nilton Ferreira Lima. “Fala da importância de cultivar… De ter autonomia também. Em relação ao processo de produzir. Fazer a compostagem, biofertilizantes, as mudas, a época certa do plantio.”

“Dá para ver avanços”, comenta. “Hoje você sai e vê canteirinho de cheiro verde, alface…” Nicole Veron Martins, 14 anos, confirma: “Comecei a levar para minha casa e falar para os meus pais da importância de a gente ter um pouco mais de cuidado com as plantas, com o meio ambiente”.

Sob pressão

Ainda que longe dos extremos enfrentados por seus povos no estado – como o confinamento na Reserva de Dourados –, a Reserva Te’yikue (ou Reserva Indígena de Caarapó) se insere num cenário complexo. Situado a menos de 20 quilômetros do Centro da cidade, o território de 3.594 ha (cada hectare corresponde a um campo de futebol) e habitado por 1.500 famílias não conta com ônibus de linha, embora grande parte dos moradores e moradoras trabalhem em chácaras, fazendas, armazéns e usinas do agronegócio. Os capões de mata destoam dos “mares” de milho, soja e cana do caminho, mas a cobertura vegetal não se compara à de décadas atrás. “Era muito rico de natureza”, descreve o inspetor escolar Agripino Benites. “Muito perobal, muita erva-mate nativa. O mato era mais fechado. Achava ainda caça.”

Homologada há três décadas, a área é circundada por um território reivindicado como tradicional 15 vezes maior e disputado por 87 fazendeiros e chacareiros, a Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipegua 1. A demarcação do perímetro, em 2016, foi retaliada com o ataque que matou o agente de saúde Clodiodi de Souza e feriu outros indígenas, conhecido como Massacre de Caarapó. Em resposta, os Guarani e Kaiowá retomaram 11 localidades (tekoha – “lugar onde se é”) dentro da TI.

Embora se trate de área declarada como de ocupação tradicional por laudo antropológico, a condição de em litígio da TI implica mais barreiras para os indígenas – com todo tipo de dificuldade para acessar políticas públicas – que para os fazendeiros.  A equipe da FIAN Brasil ouviu de um gestor da área agrícola que as retomadas “não são área de ninguém, nem da União”. No caso da Te’yikue, o entorno abriga muito mais cobertura vegetal, fauna e áreas agricultáveis, porém não escapa das limitações do limbo fundiário. Essa fronteira invisível favorece o avanço dos arrendamentos, “parcerias” em que pessoas externas à comunidade exploram terras para monocultura, quase sempre pagando valores baixos ou irrisórios.

Nota técnica encomendada pela FIAN a três pesquisadores em 2021, que abrangeu 12 comunidades, mostrou como a pandemia agravou a insegurança alimentar e nutricional. O trabalho reiterou constatação de levantamento concluído cinco anos antes, em que a insegurança alimentar apareceu em 100% dos domicílios de três localidades. Os autores assinalam a centralidade da regularização fundiária e de apoio à produção agroecológica para permitir a construção de uma vida digna e soberana.

Nos últimos quatro meses, três indígenas foram assassinados na região – um deles em Coronel Sapucaia, a cerca de 140 km dali, e dois em Amambai, a cerca de 95 km. Se nas áreas rurais há o risco de emboscadas, nas urbanas a hostilidade e a discriminação desenham um mapa não oficial.

“Sabemos que muitos lugares da cidade não são para nós”, comenta o pesquisador Elemir Guarani Kaiowá, que cursa doutorado em Geografia e leciona para as turmas do 6° ao 9° ano da Ñandejara.

“A miséria começou com os madeireiros, que retiraram toda a madeira de lei, e continuou nos ciclos econômicos seguintes – mate, gado, cana, soja.”

Sistemas alimentares e desigualdades

O estudo de caso (acesse os materiais produzidos) faz parte do projeto Equidade e Saúde nos Sistemas Alimentares, que a FIAN Brasil executa neste ano e no primeiro semestre de 2023 com o objetivo de contribuir para o entendimento dos impactos dos sistemas alimentares nas desigualdades (e vice-versa) no Brasil, bem como para seu enfrentamento.

A ideia é que o conhecimento produzido embase estratégias para incidir nas compras públicas (de instituições do Estado). O chamado mercado institucional movimenta um orçamento bilionário e pode dar lastro a uma série de políticas – por exemplo, adquirindo a produção agrícola de segmentos sociais mais vulnerabilizados, como indígenas, quilombolas e assentados/as.

A atuação se dará em conjunto com um grupo de entidades – ACT Promoção da Saúde, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto Desiderata e Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) – com apoio da Global Health Advocacy Incubator (GHAI). Outras parcerias serão estabelecidas ao longo do processo.

O projeto inclui um mapeamento das iniquidades nos sistemas alimentares, com um olhar específico para as dimensões de raça, gênero e classe social. Os dois estudos de caso – além de Caarapó, a equipe fez trabalho de campo em Belém do Solimões (AM) – aprofundarão a compreensão dos dilemas, soluções e barreiras enfrentadas pelas comunidades. A equipe participou também da elaboração de documentos políticos coletivos buscando a adesão de candidatos e candidatas à plataforma da comida de verdade, baseada na agricultura familiar, na agroecologia, no comércio justo e nos alimentos frescos. Outra frente tem sido a incidência no Congresso Nacional. Também serão produzidos variados conteúdos de comunicação.

Continuaremos a dedicar atenção especial ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que em 2021 foi o foco do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade. “Poder realizar ações de exigibilidade para fortalecimento do Pnae, especialmente das compras públicas da agricultura familiar no ambiente escolar, em um contexto de retrocesso e aumento da fome, parece-nos fundamental e urgente”, comenta a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.

“A intenção é aprofundar as análises relacionadas à alimentação escolar, sobretudo à alimentação escolar indígena, considerando que essa segue como uma política central na garantia do Dhana”, diz a coordenadora do projeto, Gabriele Carvalho. “Pretendemos ajudar a construir caminhos para que essa população possa, de fato, não só comercializar o que é produzido localmente, mas inserir esses alimentos no cardápio escolar. A soberania e segurança alimentar e nutricional passa necessariamente pelo respeito à cultura e aos hábitos alimentares locais.”

Entidades lançam campanha para derrubar veto de Bolsonaro contra alimentação escolar

Integrantes e parceiras do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) pedem que Congresso reveja canetada do presidente que cancelou reajuste de 34% para o Pnae, primeiro desde 2017

“Derruba veto, reajusta Pnae”. Esse é o mote da campanha lançada na terça-feira (6) pela sociedade civil para que o Congresso Nacional aprecie – e rejeite – a medida do presidente Jair Bolsonaro (PL) que cancelou a primeira recomposição do orçamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Os 34% representam a inflação acumulada desde 2017.

A mobilização organizada pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) pede que o presidente do Senado (e do Congresso), Rodrigo Pacheco (PSD), convoque a sessão que pode restabelecer o texto aprovado pelos próprios deputados/as e senadores/as na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

“O Parlamento mostrou sensibilidade diante dessa que é a principal política de segurança alimentar e nutricional para crianças e adolescentes, e agora as lideranças precisam acionar suas bancadas de novo para que a votação de agosto não se torne página virada”, diz a consultora técnica do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Giorgia Russo. “Dezenas de organizações estão com a gente para reivindicar isso. É importante a comunidade escolar como um todo – estudantes, familiares, educadoras e educadores, merendeiras e merendeiros – se mobilizar, além de assinar a petição que está aberta.”

A nutricionista lembra que, para grande parte dos estudantes da educação básica pública, o programa garante o prato mais adequado e saudável do dia, e que, com a inflação defasando os valores per capita repassados pelo governo federal – que já eram insuficientes –, muitas escolas podem tirar ou reduzir do cardápio os alimentos in natura ou minimamente processados, recomendados como base da alimentação saudável pelo Guia Alimentar para a População Brasileira.

Ao justificar seu veto, o presidente argumentou que destinar mais recursos ao Pnae poderia drenar verbas de outros programas e estourar o “teto de gastos” do Poder Executivo previsto pela Emenda Constitucional 95. Ele repetiu essa negligência com os pratos de 40 milhões de estudantes ao enviar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) em 31 de agosto, com um valor para o Pnae inferior a R$ 4 bilhões (R$ 3.961.907.292,00), praticamente o mesmo de 2022 e da LDO depois do corte. 

“Esse argumento da ‘rigidez orçamentária’ e da ‘contrariedade ao interesse público’ não para em pé”, comenta o analista de Políticas da ActionAid, Francisco Menezes. “O equilíbrio fiscal não deve ser feito à custa das pessoas mais vulneráveis, e é isso que temos visto acontecer nos últimos anos”, aponta Menezes, que presidiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

O economista ressalta que o contexto da fome só se agrava: “O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil [VigiSAN] mostra que, de 2020 para 2022, a insegurança alimentar grave em domicílios com crianças menores de 10 anos praticamente dobrou, subindo de 9,4% para 18,1%.”

Sobre o observatório

Fundado em fevereiro de 2021, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) resulta de uma ação conjunta entre organizações da sociedade civil e movimentos sociais para monitorar e mobilizar a sociedade sobre a importância do Pnae. Sua secretaria executiva é hoje formada pela FIAN Brasil e pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

O comitê consultivo reúne 16 entidades. Ao lado da ActionAid e do Idec, é composto por: ACT Promoção da Saúde, Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Comissão de Presidentes de Conseas Estaduais (CPCE), Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Fase – Solidariedade e Educação, Federação Nacional dos Estudantes do Ensino Técnico (Fenet), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), Rede de Mulheres Negras para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Redessan) e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme).

FIAN Brasil

Pela segunda vez, Bolsonaro negligencia alimentação escolar no orçamento federal

Em contexto de inflação e agravamento da fome, programa fica sem reajuste pelo quinto ano consecutivo; proposta será analisada pelo Congresso, enquanto sociedade civil pressiona por mais recursos

O governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) deixou de prever reajuste ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) ao apresentar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para o Congresso Nacional na quarta-feira (31). A versão enviada ao Legislativo mantém o represamento das verbas destinadas ao Pnae, que não são corrigidas desde 2017. O valor indicado no projeto é inferior a R$ 4 bilhões (R$ 3.961.907.292,00) e muito semelhante ao de 2022. O PLOA ainda será analisado pelos deputados/as e senadores/as. Além disso, organizações da sociedade civil pressionam para que haja mais recursos para o programa.

Essa é a segunda vez que Bolsonaro, em menos de um mês, nega-se a atualizar os recursos destinados para a alimentação escolar. Em uma deliberação anterior, ele vetou em 12 de agosto o reajuste aprovado pelos congressistas no projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023 – uma recomposição de 34% que cobria a defasagem dos últimos cinco anos. Ao justificar, na ocasião, o presidente argumentou que destinar mais recursos à alimentação escolar poderia drenar verbas de outros programas e estourar o “teto de gastos” do Poder Executivo previsto pela Emenda Constitucional nº 95[1]. Dezenas de organizações estão mobilizadas pela derrubada do veto, que depende de apreciação convocada pelo presidente do Congresso Nacional (e do Senado), Rodrigo Pacheco (PSD).

As decisões de Bolsonaro atingem em cheio uma das principais políticas públicas voltadas a garantir o direito humano à alimentação e nutrição adequadas, em um contexto no qual 33,1 milhões de pessoas passam fome diariamente no país, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil[2].

A alimentação escolar adequada é fundamental para um expressivo número de famílias brasileiras nessa situação. Para boa parte delas, as refeições na escola são a principal fonte de comida saudável de seus filhos. Estima-se que quase 40 milhões de estudantes são atendidos atualmente pelo Pnae[3] e que a insegurança alimentar grave, quando não se sabe o que haverá para comer de um dia para o outro, saltou de 9,4% das crianças de até 10 anos de idade em 2020 para 18,1% em 2022[4].

Além disso, a garantia da alimentação e nutrição adequadas está associada ao desenvolvimento cognitivo e permanência na escola para milhões de estudantes.

“Ao conjugar segurança alimentar, acesso à educação, desenvolvimento local e garantia de desenvolvimento biopsicossocial para as próximas gerações, a alimentação escolar é um exemplo de política pública que traz em seu desenho a própria definição de interesse público”, afirma a assessora de Segurança Alimentar do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Gabriele Carvalho, que coordena o projeto Equidade e Saúde nos Sistemas Alimentares, iniciativa da FIAN Brasil com foco nas compras públicas.

O ÓAÊ é uma articulação de organizações da sociedade civil para fiscalizar o cumprimento do Pnae e tem como secretaria executiva a FIAN Brasil e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

Alimentação saudável

Ao mesmo tempo que protege da fome crianças de adolescentes de famílias mais socialmente vulneráveis, o Pnae é uma importante fonte de renda para a agricultura familiar. A lei que estabelece o programa[5] prevê que 30% do valor repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) deve ser utilizado para a compra direta dessa modalidade de produção rural.

A agricultura familiar é a principal responsável pela produção de boa parte dos principais alimentos in natura consumidos pela população brasileira. Responde por 80% do valor da mandioca produzida, 42% do feijão e algumas frutas, como 69% do abacaxi, de acordo com informações do último Censo Agro realizado pelo IBGE[6].

“O fornecimento de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar garante renda para diversas famílias de agricultoras e agricultores em todo o país. É uma ferramenta essencial para a garantia do direito à alimentação, sobretudo da alimentação saudável, indissociável à garantia de outros direitos, como o próprio direito à educação”, acrescenta Carvalho.

Por que corrigir

O reajuste vetado por Bolsonaro é cerca de 15 vezes inferior ao que foi sancionado para a execução de emendas de relator, também conhecidas como “RP9” ou “orçamento secreto”. Ou mais de 30 vezes inferior ao impacto orçamentário da PEC 1/22, que determina um conjunto de benefícios temporários, ao longo de 2022, e são entendidos pelo governo como necessários em um estado de emergência.

“Se existiu no passado recente a possibilidade de crédito extraordinário para viabilizar o atendimento a situações emergenciais, consideramos pertinente trazer também esta possibilidade para a alimentação escolar – que não é uma inimiga do orçamento público, muito pelo contrário: é um instrumento poderoso de combate a emergências”, afirma o assessor de Advocacy da FIAN Brasil, Pedro Vasconcelos.

“Os e as parlamentares demonstraram sensibilidade para o tema, tanto que o reajuste fez parte de um acordo entre diversos partidos. Acreditamos que vão ouvir a sociedade e derrubar esse veto, evitando que essa vitória do direito à alimentação seja cancelada por uma canetada”, conclui.

Veto comprova que Bolsonaro é inimigo da alimentação escolar, afirma observatório

ÓAÊ critica veto à LDO que barrou reajuste de 34% e pede que Congresso derrube decisão

O Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) publicou manifestação em que lamenta profundamente o veto do presidente da República, Jair Bolsonaro, ao reajuste de 34% aprovado pelo Congresso Nacional para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). A entidade pede que os e as parlamentares derrubem essa decisão – a análise dos vetos presidenciais é uma prerrogativa do Poder Legislativo.

Em seu artigo 25, parágrafo 3°, o projeto para a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), na redação votada pelos deputados/as e senadores/as, reajusta os valores per capita do Pnae pela inflação (IPCA) acumulada desde a última atualização (2017).

“A aprovação desse artigo pelo Congresso Nacional foi resultado de forte pressão da sociedade civil, e do compromisso de parlamentares de diferentes partidos, mobilizados em função da perda do poder de compra do Pnae, diante da crescente inflação dos alimentos”, ressalta o documento.

O texto acrescenta que, num cenário em que 33 milhões de brasileiros/as passam fome, a medida demonstra a total falta de compromisso desse governo com estudantes e famílias em todo o país. “A insegurança alimentar grave (fome), em domicílios com crianças menores de 10 anos, subiu de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. A essas crianças, que têm na alimentação escolar uma das mais importantes refeições do dia, está sendo negado o direito à alimentação.”

Saiba mais em nota técnica elaborada com a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).

Para saber o quanto seu estado ou município deixará de receber caso o veto de Bolsonaro não seja derrubado, multiplique por 0,34 o valor transferido, em 2022, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Escola (FNDE).

Essa informação você encontra aqui: https://www.fnde.gov.br/sigefweb/index.php/liberacoes

Sobre o observatório

Fundado em fevereiro de 2021, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) resulta de uma ação conjunta entre organizações da sociedade civil e movimentos sociais para monitorar e mobilizar a sociedade sobre a importância do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Sua secretaria executiva é hoje formada pela FIAN Brasil e pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

O comitê consultivo reúne 12 entidades: ActionAid, Aliança por uma Alimentação Adequada e Saudável, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Comissão de Presidentes de Conseas Estaduais (CPCE), Federação Nacional dos Estudantes do Ensino Técnico (Fenet), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), Rede de Mulheres Negras para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme).

Alimentação escolar: 22 entidades assinam carta contendo propostas às candidatas e candidatos

Mais de 40 milhões de alunas e alunos da educação básica pública, em todos os municípios do país, têm acesso a pelo menos um prato de refeição por dia, que deve seguir as diretrizes de uma alimentação adequada e saudável. Para muitos desses estudantes a refeição feita na escola é a única ou a mais importante do dia.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é a principal política pública para a garantia dessas refeições, especialmente para crianças e adolescentes. Porém, além do expressivo aumento da fome no Brasil e da gravidade da situação alimentar das famílias, o valor do repasse de recursos para a alimentação escolar é insuficiente e não garante a proteção do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana).

Atualmente, 33 milhões de pessoas passam fome no país, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado nesta quarta-feira (8) pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Os dados mostram que a insegurança alimentar grave em domicílios com crianças menores de 10 anos subiu de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022; e a fome está presente em 22,3% dos domicílios que tiveram acesso ao Pnae.

Diante desse contexto, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) apresenta nesta quinta-feira (9) carta destinada a eleitoras/es e candidatas/os nos âmbitos federal e estadual, contendo propostas que podem ser implantadas para garantir o direito de toda e todo estudante a se alimentar adequadamente.

A assessora de políticas públicas da FIAN Brasil e coordenadora do ÓAÊ, Mariana Santarelli, explica que a carta foi elaborada com a participação de representantes das organizações e movimentos que compõem o comitê consultivo do observatório. Tem como base “posições que vem sendo amadurecidas a partir do acompanhamento e monitoramento da implementação do Pnae, de estudos realizados pelo ÓAÊ em 2021 que buscaram escutar a opinião de estudantes e agricultores que fornecem alimentos ao Pnae e de estudos técnicos”.

Santarelli comenta parceria com a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), a partir da qual foi desenvolvida a proposta de ampliar o valor per capita destinado ao Pnae para recompor as expressivas perdas inflacionárias acumuladas entre 2010 e 2021, ajustando-o às necessidades das/dos estudantes para a oferta universal de alimentação de qualidade, em que reivindica reajuste de R$ 3,9 bi para R$ 7,8 bi.

A carta também traz como propostas: a compra de mais alimentos provenientes da agricultura familiar, priorizando a produção dos assentados da reforma agrária, povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, buscando, por exemplo, superar o mínimo de 30% estabelecido em lei das metas estaduais de aquisição de produtos da agricultura familiar, além de assegurar a inclusão de grupos informais e pequenas associações nos processos de compra;

A restrição da oferta de produtos alimentícios ultraprocessados e a ampliação da oferta de alimentos saudáveis, pautados na cultura alimentar do território, na sazonalidade e diversificação, preferencialmente adquiridos da agricultura familiar local e produzidos de forma agroecológica;

E o fortalecimento da gestão pública e da participação social, fundamentais para o cumprimento das diretrizes do Pnae, em detrimento à terceirização de serviços fundamentais como a compra e o preparo dos alimentos, além da importância de reconhecer a participação popular na formulação e controle social desta política.

“Esperamos que nossos futuros governantes, presidente, governadores e legisladores, se sensibilizem com o aumento da fome, e percebam que a melhor estratégia que podem adotar para enfrentá-la é investir recursos e esforços pela melhoria da alimentação escolar, que chega a boa parte das crianças e adolescentes do país por meio das escolas públicas”, finaliza Santarelli.

Jornal Folha de S.Paulo repercute a Carta do ÓAÊ. Leia a matéria: Governo federal ignora inflação e repassa menos de R$ 1 para alimentação de aluno

Mobilização

A secretaria executiva do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) é coordenada pela FIAN Brasil junto com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). Conta com um comitê consultivo, formado pela ActionAid, Aliança por uma Alimentação Adequada e Saudável, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Comissão de Presidentes de Conseas Estaduais (CPCE), Federação Nacional dos Estudantes do Ensino Técnico (Fenet), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), Rede de Mulheres Negras para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME).

Além dessas 14 organizações, a carta é assinada pela ACT Promoção da Saúde, Associação Brasileira de Nutrição (Asbran), Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e União Nacional das Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes).

Leia a carta na íntegra aqui.

FIAN Brasil, com o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)

Entrevistas: o Pnae, o Brasil e o mundo

Leia aqui conversas que partem da alimentação escolar para os grandes desafios relacionados a soberania e segurança alimentar e nutricional – e à defesa da democracia.

Elas também podem ser conferidas (algumas, em versão resumida) no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.

Entrevista | TEREZA CAMPELLO: “O desmonte das políticas é difícil de medir, mas parte da resistência virá das pessoas que elas envolveram”

Publicada, em versão resumida, no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

Para a economista Tereza Campello, a perda com a quebra nos circuitos curtos (locais ou microrregionais) de fornecimento e com a interrupção de diálogos setoriais e federativos em políticas como o Pnae é intangível, ou seja, não dá sequer para estimar. No entanto, ela usa o mesmo adjetivo para descrever a transformação das pessoas envolvidas pela construção conjunta – e diz que o enraizamento dessas experiências pode vir do agricultor, da merendeira, da diretora escolar que participaram de tais processos. 

Campello afirma que a integração exige caminhos mais longos, mas traz resultados melhores e mais duradouros. Como ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Dilma, ela esteve à frente do Plano Brasil Sem Miséria, que reuniu programas voltados a famílias com renda per capita de até R$ 70, de documentação a cozinhas comunitárias e bancos de alimentos.

Ela aponta a alimentação escolar com prioridade para a agricultura familiar como exemplo perfeito da transversalidade, com potencial para contribuir no enfrentamento tanto da escalada da insegurança alimentar e da obesidade quanto das mudanças climáticas.

Escolhida a professora titular da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Universidade de São Paulo (USP) em seu ano de lançamento, Campello cita a volta ao Mapa da Fome e as pessoas em postos de saúde por falta de comida como um retorno à realidade decifrada e denunciada pelo brasileiro, três vezes indicado ao Prêmio Nobel.

FIAN: Nas últimas décadas, as políticas de combate à fome e à miséria foram sendo integradas a outras políticas de desenvolvimento social, não é? Um exemplo está no Brasil Sem Miséria. Eu queria que a senhora explicasse como essas políticas interagem, dependem umas das outras, e como está essa engrenagem hoje.

Tereza Campello: Esse debate da integração é interessante porque virou uma onda, não só no Brasil, mas em tudo quanto é lugar, essa discussão de como integrar políticas públicas, políticas públicas integradas. Então isso tem um apelo enorme e a palavra é uma palavra muito positiva. Parece óbvio, “Vamos integrar políticas”. É óbvio mesmo porque na verdade o ser humano é integrado, quem é encaixotado ou quem é fragmentado é o Estado, não é? O cidadão tem necessidades múltiplas e é um ser uno. O Estado que diz “Tem aqui a caixinha da Saúde, a caixinha da Educação”, e separa as caixinhas por questões de funcionalidade, e muitas vezes faz isso de forma equivocada.

É praticamente natural você falar “Tem que integrar política”, só que fazer isso é um desafio gigantesco, eu diria que está na fronteira do conhecimento e das políticas públicas no mundo, e o Brasil de fato se diferenciou conseguindo avançar bastante nesse sentido. Então muito dos nossos programas que são conhecidos tem sucesso tem na essência da sua eficiência exatamente ter avançado no sentido da integração de política pública.

Agora, a integração não se faz nem por lei, nem por decreto, nem por comando, nem por ordem, não tem como fazer isso se não for uma determinação, um processo de construção coletiva e que aconteça por anos e anos a fio. Você decide integrar hoje e a integração só vai se fazer efetiva daqui a dez, 15 ou 20 anos, então é um processo, não é uma decisão política. Logicamente necessita dessa decisão, mas ele tem um processo continuado, ele tem de certa forma por traz dele tem dois grandes princípios, um é esse que o cidadão é integral, é a grande sacada, as políticas tem que se organizar para chegar nesse cidadão e quem é pobre de renda provavelmente é pobre de renda, é pobre de água, é pobre de saneamento, é pobre de educação, é pobre de saúde. Então você tem que garantir as proteções múltiplas, no caso da pobreza isso é mais evidente, mas em todos os outros casos deveria ser assim também, mesmo das políticas que não são de combate à pobreza e a fome, mas nessas muito mais porque o ser humano é muito mais vulnerável.

Mas o segundo grande princípio que eu acho que é uma questão estratégica para a gente poder continuar a conversa é o seguinte, diferentes olhares na mesa constroem políticas melhores, não é? Mas isso não é fácil, você falar “Vamos integrar e coisa e tal”, vai sentar todo mundo na mesa e vai ser superbacana? Não vai, vai ser superdifícil. Você senta na mesa, quem é da área de saúde tem um conjunto de metas, o povo acha que o difícil é porque tem as corporações, a coisa coorporativa e não é, as pessoas têm formações diferentes, têm metas a cumprir diferenciadas como servidores públicos inclusive serão cobradas pelas suas metas e não pelas metas dos outros. Então tem todo um processo de aprendizagem também do que é esse outro olhar, então o caminho é mais demorado, mais difícil você ofertar o Pnae por exemplo, é muito mais difícil você organizar a escola, a escola ir atrás do agricultor familiar, olhar o seu relatório, tentar pensar quais são os alimentos adequados, isso é muito mais difícil do que fazer uma licitação e comprar um monte de merenda e distribuir aquela merenda já industrializada, já pronta, é fácil, não precisa de merendeira, não precisa de cozinha, não precisa ir atrás do agricultor. Então seria muito mais rápido e fácil, mas muito menos efetivo nos resultados. O caminho para que você construa isso é um caminho longo, portanto ele tem que ser cuidado, ele tem que ser adubado permanentemente, ele tem que ser lembrado permanentemente, ele tem que ser valorizado permanentemente. Essa é uma política muito mais efetiva, com resultados muito mais estruturais e de longo prazo, mas difícil. Não adianta que achar que com grito, com decreto, com constituições, é um processo permanente e tem que acontecer em todos os níveis, tem que ser lembrado e valorizado, portanto é um processo muito complexo.

Então o Pnae, vou pegar o Pnae, é um exemplo talvez o melhor de todos, porque você chegar na criança talvez seja a forma mais eficiente de transformar alimentação e esse é o público mais vulnerável. Então você está chegando no público mais vulnerável que é a criança, chegando no público que mais teria capacidade de transformar a família e o cidadão, a gente tem vários exemplos de que capturar essa criança para uma boa ideia, ela acaba sendo um vetor de transformação da família, com a história do cinto de segurança, a história do tabagismo, a questão de como separar lixo, todas elas quando você conquista a criança você consegue efeitos muito duradouros na sociedade. Então a criança, se você ganha para essa ideia da comida de verdade é um feito, você não faz isso com aula, a melhor forma de fazer isso é ela comendo a coisa certa no ambiente certo, que é o ambiente escolar.

A educação e a escola é regulada pelo Estado, é diferente de outros ambientes, esse ambiente é um ambiente de concessão pública, mesmo quando a escola é privada ela é uma concessão pública. O Estado tem uma capacidade de intervir no ambiente escolar como em poucos outros lugares. Ele tem condições de intervir, de regular. Segundo, a criança passa a maior parte do dia dela na escola. Mesmo que esteja só um turno, ela está na escola quatro horas por dia, então, se naquele momento você conseguir proteger essa criança garantindo que ela tenha uma alimentação adequada, você está chegando no público mais estratégico, no momento mais estratégico da vida, onde você garante que os efeitos dessa aprendizagem sejam duradouros. Essa criança vai carregar isso por toda vida tendo comido direito. Essa lembrança, essa memória, esse aprendizado vai se estender e você, quando você fala “Bom, vamos garantir comida de verdade para essa criança em um ambiente que eu tenho regulação, em um ambiente onde essa criança passa um período enorme do tempo, onde garantindo alimentação eu garanto inclusive educação melhor” – porque as crianças chegavam na escola um tempo atrás e não conseguiam, o que voltou a acontecer, a menina desmaiar em sala de aula…

A criança chega muitas vezes – imaginando uma família que está passando fome  –, ela come na escola, digamos que ela almoce na escola e vá para casa, talvez seja a última refeição dela no dia, ela só vai comer de novo quando ela voltar na escola no outro dia, ou seja, essa criança chega na escola completamente desassistida do ponto de vista do direito dela a alimentação. Se ela comer de novo quando ela chegar na escola, é a única forma dela poder aprender alguma coisa, senão ela não vai conseguir nem chegar na escola e cumprir o direito dela, o segundo direito dela, que é o direito à educação. Então quando você se dá conta de que garantir comida de verdade em um ambiente escolar é talvez a ação mais fácil para o Estado executar, ele tem o poder de regulação enorme, talvez seja o mais eficiente porque ele chega em um público mais vulnerável que é a criança, e a criança pobre, e ele com isso garante um conjunto de outros direitos, não é? Inclusive o próprio direito à educação.

Então essa integração da educação com alimentação, e que acaba sendo com saúde e nutrição, é um casamento excelente, excepcional, mas não é fácil, não é fácil. Como eu disse, é muito mais fácil você fazer uma licitação e comprar, para ter comida de verdade na escola tem um conjunto de coisas que tem que acontecer, a escola tem que ter dinheiro, a escola tem que ter uma merendeira, a escola tem que ter comprado comida não pronta, então tem que ter comprado comida de verdade e não comida industrializada ou não comida ultraprocessada, ela tem que ter uma cozinha, ela tem que ter uma orientação nutricional, então você tem um conjunto de pré-requisitos para que isso aconteça, para que essa ideia linda chegue na mesa da criança, seja na hora do lanche dela, ela ter uma fruta por exemplo, a fruta tem que ter sido comprada, tem que ter sido lavada, higienizada, então tem todo um processo que acontece antes.

FIAN: O atual governo tinha aquele programa de governo que era um arremendo de Power Point e fazia parte, não deixava de ser estratégico esse nível baixo de proposição e a história do discurso de “menos Brasília e mais Brasil”. No fim das contas, em relação ao enfrentamento da pandemia deixou os estados e municípios à própria sorte e muitas vezes sabotando aquilo que as soluções mais coletivas.

Campello: No território mesmo, não é?

FIAN: No território. O governo federal se esforçou pouquíssimo para resolver, você não teve um programa por exemplo de equipar as cozinhas das escolas ou depois da pandemia, esforço nenhum de viabilizar. O Congresso chegou a algumas soluções, a sociedade civil, de garantir uma logística melhor nesse momento de calamidade, de exceção. No fim das contas, por exemplo, houve muito pouco apoio à agricultura familiar. Há coisa de uma ou duas semanas o governo celebrou essa coisa do aumento do valor permitido para a venda ao Pnae individual ou por cooperativas, só que não aumentou o orçamento do programa, no fim das contas é o mesmo dinheiro, ou menos, e vai ser repartido por menos produtores.

Campello: Deixa eu só retomar uma coisa para eu explicar e chegar nesse ponto da pandemia. Por que são anos? O Pnae, que existe desde a década de 50, ele na verdade ganhou essa dimensão de comprar da agricultura familiar só em 2009. Quando você olha o processo de construção, o que é o Pnae com essa vertente da agricultura familiar? Trinta por cento dos recursos federais destinados à compra ao Pnae têm que ser compras locais, de preferência da agricultura familiar, de preferência produtos frescos ou pouco processados, minimamente processados etc., seguindo aí o Guia alimentar da população brasileira e toda uma valorização. Agora não basta você fazer essa lei ou esse decreto, por quê? Porque a escola não está preparada para fazer isso, então você tinha uma parte da escola do Brasil que tinha cozinha, mas não compravam na agricultura familiar, você tem que ter todo um processo de construção e de montagem dos circuitos, os circuitos curtos, não é? Identificar o agricultor – no primeiro momento inclusive a própria escola entendia que aquilo era uma sobrecarga, quer dizer: a minha tarefa é educar, a minha tarefa não é comprar da agricultura familiar, isso vai me gerar um outro trabalho, vai me gerar uma outra dificuldade, vai me desviar da minha função.

Então tem toda uma questão que exigia uma transformação no conteúdo do trabalho cotidiano da escola, e isso demora um tempo para ser feito. Então identificar a rede de agricultores que poderia fazer esse fornecimento de forma regular, eu não posso comprar de um agricultor hoje e mês que vem não ter o mesmo produto, eu coloco em risco a alimentação da criança. Então eu tenho que ter para garantir a merenda funcionando, a alimentação escolar regular, eu tenho que ter regularidade de fornecimento, então eu tenho que ter tomate, tem todo um planejamento que é muito mais difícil você comprar da agricultura familiar do que você comprar de uma megarrede de fornecedor. A vantagem de comprar da agricultura familiar é que você tem muitas vantagens, a chance de esse produto chegar fresco na cozinha da sua escola é muito maior, você reduz emissões de carbono, você reduz desperdícios no transporte, isso tudo não é ganho para a escola, é ganho para a sociedade, a escola está fazendo isso, ela está gerando benefícios que não têm nada a ver com a alimentação escolar, reduzir a emissão de carbono, não tem nada a ver com alimentação escolar, reduzir desperdício não tem nada a ver com alimentação escolar, no entanto o programa como um todo está integrando esse conjunto de efeitos colaterais positivos. Mas ela tem que escolher esses agricultores, criar regularidade, o agricultor se comprometer, ter contratos que deem essa regularidade.

É um conjunto de mecanismos que só o tempo permite que sejam processados, as pessoas não conseguem entender isso, a dificuldade. Imagina isso em um pequeno município, tem toda uma dificuldade da regularidade, mas tem mais a facilidade territorial, agora imagina isso em uma cidade média, uma escola ter que ir atrás do agricultor familiar, se é orgânico ou se não é. Então tem toda uma complexidade nessa construção que só o tempo permite que seja operada, e só insistência, fiscalização, ir atrás, exigir. Então essa montagem de circuitos foi muito demorada e é um montagem também cultural, a merendeira se dar conta de que ela comprar… É diferente você fazer uma comida em casa de você fazer uma comida para 300 crianças, você tem que comprar peixe, eu não tenho refrigerador para guardar esse peixe de forme adequada, tem toda uma modificação que foi feita ao longo desses dez anos de Pnae, de 2009 até agora em 2020 na pandemia, que permitiu uma evolução muitas vezes marginal, pequena. Eu comecei a fazer peixe quando eu adquiri o refrigerador, eu demorei cinco anos para comprar um refrigerador, então tudo isso veio se transformando para dar conta não só da comida de verdade, mas de respeitar a cultura, por exemplo, a criança e o jovem comer na escola no Norte açaí, castanha-do-Brasil, peixe. Do mesmo jeito que no Rio Grande do Sul poder comer morango na época do morango, então tudo isso começou a acontecer, comer coisas da temporada, aprender a comer coisa que ela nunca teria comido e continuar comendo coisas que ela sempre comeu em casa, então respeitando essa questão cultural.

Quando veio a pandemia o governo federal deixou ao deus-dará, não cumpriu o seu papel de coordenador, de orquestrar essas milhares e milhares de escolas no Brasil, 5.570 municípios com milhares de escolas. Quem tinha que ter orquestrado isso? O governo federal, não dando ordem, “tem que ser assim ou tem que ser assado”, mas chamando os municípios para tentar entender essas diferentes realidades. Porque tem muita gente que dizia assim, logo que começou dizia assim, “Tem que obrigar a comprar da agricultura familiar e distribuir na escola”. Tem lugar onde não é a melhor opção, tem lugar, por exemplo, pegar as escolas ali no Plano Piloto de Brasília, as mães moram na periferia, a criança vai para a escola junto com a mãe quando a mãe ia trabalhar, então a escola da não é na cidade em que ela mora. A escola é no Plano Piloto e ela mora em Taguatinga, ela mora no Cruzeiro, e vinha com a mãe quando a mãe ia trabalhar. A mãe não estava mais indo trabalhar, obrigar a mãe a ir na escola buscar a comida significaria colocar a mãe no auge da pandemia em um transporte público provavelmente para se infectar. Então talvez em Brasília ou em outra cidade não fosse o adequado, ou numa das escolas em Brasília não fosse adequado, então o governo federal não pode sair obrigando a fazer isso ou fazer aquilo sem ouvir as realidades.

Em Melgaço [no Arquipélago do Marajó, Pará] como é? Aqui em Heliópolis [maior favela de São Paulo], como é? Então, assim, pensar essas diferenças alternativas para não interromper totalmente os circuitos, mas ao mesmo tempo respeitar o direito da criança e respeitar a realidade da família. Não era uma equação simples, eu tenho que tentar proteger essa família para que ela se movimente o mínimo possível para não ser contaminada, eu tenho que ouvir essa escola porque tem escola e eu tenho que evitar perder os circuitos da agricultura familiar, então você tem toda uma equação que tinha que ser olhada.

O governo federal simplesmente não fez isso, foi fazer isso três meses depois, mais uma vez sem ouvir os municípios, baixou uma regra e as coisas já estavam feitas porque onde tinha interrompido o circuito da agricultura familiar não tinha com refazer, tinha escola que construiu uma solução boa, teve escola que construiu uma péssima solução, teve escola que o prefeito se aproveitou da situação para tentar fazer, teve de tudo, por quê? Porque quem tinha que estar regulando, organizando, pensando e fazendo isso coletivamente não fez, então o governo federal cumpriu um péssimo papel e quando tentou intervir interveio da pior forma possível. Esse é um ponto. A pandemia, por isso que eu estou comentando agora, pela delicadeza que é o Pnae, o Pnae são milhares de diferentes operações acontecendo ao longo do dia, são milhares de microcircuitos acontecendo ao longo do dia, é uma operação muito refinada, muito qualificada, ela não é uma coisa simples de ser feita e ao mesmo tempo é uma ideia simples que é: a escola é quem melhor sabe, conhece esses alunos, e a escola que melhor pode identificar. Então a ideia é uma ideia simples, mas ela exige toda uma operação complexa que tem que ser respeitada, que tem que ser construída.

A pandemia interrompeu esses circuitos, o governo não se preocupou em recompô-los, em garantir que, agora que as escolas voltaram a funcionar, como isso deveria ser feito. E na minha avaliação e está tirando vantagem disso. Por quê? Como esses circuitos foram interrompidos e como não existe ninguém mais cuidando, olhando, fiscalizando, identificando problemas, tentando cobrar os municípios, vai ser muito fácil ele impor um outro modelo daqui a um tempo. É um modelo que não favorece a escola, não favorece a cultura escolar, não favorece a alimentação da criança, não ajuda a crescer, não ajuda a aprender, não ajuda a nada e favorece única e exclusivamente quem? Os grandes.

Aí eu chamo atenção especial que não é o agronegócio que é beneficiado, hoje é muito difícil a gente separar o agronegócio da grande indústria, quem opera diretamente no Parlamento, inclusive atuando de forma subterrânea para destruir o Pnae de certa forma, é uma parcela da bancada do agronegócio, mas está defendendo o interesse da grande indústria. Que o agronegócio não vende para a escola, você não vende soja, você não vende o milho diretamente da fazenda, você vende o composto que, sei lá, as latas e latas daqueles, nem sei como chama esse negócio que é processado, que não é leite, parece leite, mistura com água, a coisa mais fácil do mundo, você compra uma lata enorme daquele pó, mistura com agua e dá para as crianças um pó colorido cheio de açúcar com corante e tal. Superfácil, quem vai ganhar com isso? Somente a grande indústria, porque a criança perde, a escola perde, a cultura perde, a agricultura familiar perde, todo mundo perde.

FIAN: Quando a senhora fala de uma construção que é mais rica na medida em que ela é mais complexa, mais demorada, porque tem vários conhecimentos, vários pontos de vista, vários interesses e também na necessidade de coordenar essas reações mais emergenciais, mais diante de situações graves ou até extremas… Nesses dois sentidos faz muita falta uma instância como o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], não é?

Campello: Com certeza, o Consea e as câmeras intersetoriais. Porque o Consea é esse olhar da sociedade civil tensionando o Estado, dizendo “Olha, o Pnae está piorando, a agricultura familiar isso e aquilo” – isso o Consea e os Conseas, porque tem o Consea federal que era orquestrado com os Consea estaduais e muitos municípios e tudo mais –, mas a intersetorialidade era garantida também pelo Sisan, o Consea era a cabeça do Sisan. O Sisan, Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, é o sistema que organizava o governo federal, estados e municípios, e ele organizava também a integração nos mesmos níveis.

Então, por exemplo, tinha a Caisan [Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional], que também não funciona mais, que tinha 18 ministérios, então tinha lá o MDS [Ministério do Desenvolvimento Social, extinto] dizendo “Gente, olha só, não está funcionando, o MEC [Ministério da Educação] não está garantindo tal coisa, o dinheiro está indo e tem poucas escolas, caiu a compra da agricultura familiar”, aí tinha o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário, extinto] dizendo “Olha, tem tal coisa, quem sabe a gente mudai isso, muda aquilo”, discutindo as regras, não é? Você comentava essa regra do aumento do valor por agricultor para a venda, aparentemente parece uma coisa interessante, “Ah, o agricultor vai poder vender mais”, tem que discutir isso, não só porque não aumentou o valor da merenda, mas por quê? Então pode ser que tenha menos agricultor vendendo? E se aumentar a faixa? Será que não vai pegar os médios?

Eu fico me perguntando se ao invés do pequenininho vender para o Pnae, se eles não estão de olho que o médio venda. Isso a gente vai ter que ir atrás. Se eles não estão aumentando a faixa para não pegar o mais pobre, para pegar o médio, que é um setor hoje muito mais fácil de ser capturado por esse discurso do agronegócio do que o pequenininho, do que o camponês, o agricultor familiar tradicional. Será se eles não estão aí no caminho de excluir os pequenos e incluir os médios produtores? Isso nós vamos ficar de olho, agora que não tem ninguém fiscalizando não tem.

Então, assim, quando você senta na mesa e propõe uma coisa dessa vai ter gente dizendo: “Mas será que isso vai render mesmo”? Porque pode ser, não estou partindo do princípio que é uma má ideia, quando você tem uma câmara multidimensional intersetorial com todo mundo sentado na mesa, alguém vem com uma ideia e essa ideia é debatida, discutida, os pontos a favor, os pontos contra vêm para a mesa e você tem um debate rico que permite que você construa a melhor solução e que você identifique quais são os problemas. “Não, eu acho que você precisa mesmo aumentar, mas a gente tem que inventar que com isso o pequeno seja excluído, então como fazer isso?” Às vezes você precisa de duas medidas ao mesmo tempo, entendeu?

É isso quando você está em um espaço como era a Caisan, você tem esses diferentes olhares, “Se fizer isso vai acabar favorecer tal setor, não é isso que a gente quer, mas ao mesmo tempo tem que fazer”. Então quais são as medidas justas para que você vá construindo a melhor regra? Eles não perguntaram para os municípios, eles não perguntaram para as merendeiras, eles não estão nem aí para o que o Consea pensa, então eles têm lá uma ideia que pode até ser uma ideia bem-intencionada, coisa que nesse governo é muito difícil você imaginar, mas digamos que seja e na prática vai gerar mais concentração, vai gerar mais exclusão de agricultor familiar, vai desmontar mais ainda o programa, por quê? Porque eles não escutam ninguém, porque eles não escutam os municípios, porque eles não escutam a rede de assistência social, porque eles não escutam a agricultura familiar, então é impossível você fazer um programa bem feito com esse nível de complexidade sem escutar os atores que estão operando lá na ponta, a chance de fazer uma coisa errada é gigantesca e eles não estão nem aí para fazer a coisa certa, não é?

 Então quanto mais diz isso, que eu acho que está no fim do túnel, eles não estão nem aí com essa delicadeza, com essa construção coletiva, por essa integração no sistema, a gente está construindo um sistema, o que é o sistema? É como o SUS [Sistema Único de Saúde], o Sisan seria como o SUS, tem o governo federal, tem os estados, tem os municípios, cada um tem uma atribuição nesse processo, não é todo mundo que faz as mesmas coisas, não é cada um por si e Deus por todos, você tem toda uma integração e orquestração no processo, isto foi destruído, nunca mais o sistema sentou junto, nunca mais os órgãos dos demais entes federados foram ouvidos. Esta destruição é a verdadeira destruição da integração, porque a integração não é somente entre diferentes áreas, também é entre diferentes níveis, e aí você não escuta a merendeira, você não sabe quais os problemas delas.

É isso, essa construção que não foi uma construção simples, a coisa mais fácil é a merendeira receber uma coisa pronta, misturar com agua e distribuir para as crianças, isso é mais fácil, dá menos trabalho do que cortar cebola, do que cozinhar para 300 crianças, dá muito menos trabalho, agora, é muito pior. Em todos os sentidos, do ponto de vista cultural, do ponto de vista ambiental, do ponto de vista da educação para o futuro, do ponto de vista de fortalecer a renda no campo, no ponto de vista de dinamizar a economia local, tudo isso.

FIAN: O que a alimentação escolar tem a ver com o que vem sendo chamado de sindemia global, conceito que a senhora abordou em sua aula magna na Cátedra Josué de Castro?

Campello: Só lembrando aqui os nossos leitores, na verdade a gente já vivia uma pandemia – três pandemias: a pandemia da obesidade, a pandemia da fome e uma pandemia da emergência climática, que vai impactar a fome e todas as outras questões. Então a gente já vivia essas três pandemias juntas, que é o que a gente chamava de sindemia global, a articulação entre essas três pandemias que têm tudo a ver.

FIAN: E que ainda se cruzam com o colapso anunciado da biodiversidade, não é?

Campello: Exatamente, essas três pandemias se retroalimentam com impactos generalizados. Então o impacto das mudanças climáticas acaba impactando perda de diversidade, que piora e gera outros problemas como é o próprio coronavírus. As últimas grandes pandemias, as últimas grandes viroses no mundo foram originadas exatamente da devastação sobre ambientes protegidos como as florestas, não é?

Então o ebola, várias outras doenças que ganharam uma dimensão, ganharam amplitude, território, ameaçaram a humanidade, como é o caso do coronavírus da Covid-19, eles têm muito a ver com o impacto de sistemas alimentares devastando florestas.

Então quando essas três pandemias se somam na sindemia global, os efeitos são vários e isso se soma essa tragédia que foi a Covid-19 que acelerou a sindemia. Por quê? As pessoas passaram – é uma tragédia o que está acontecendo, a gente vai ver, eu vi a apresentação umas duas semanas atrás de um colega, Paulo Castro. Ele faz o estudo mostrando que estava previsto que os alimentos, com esse aumento dos preços gerados por toda essa crise, o aumento de preços de produtos pouco processados e produtos naturais – que são os mais impactados pelo aumento de preços que nós estamos vivendo –, provavelmente a gente vai ter os produtos ultraprocessados mais baratos, que isso ia acontecer em um horizonte de dez anos e já está acontecendo agora.

Então assim, o resultado dessa tragédia toda é que as pessoas ainda estão se alimentando pior, não só estão mais pobres, estão com mais fome, e quando buscam produtos estão prioritariamente tendo acesso a produtos ultraprocessados. Então a gente vai ter como uma saída da pandemia da Covid, que está sendo muito mais demorado do que qualquer um de nós imaginávamos, uma ampliação da sindemia ao contrário do que a gente achava, não é?

 Aumentou a fome, aumentou a obesidade, aumentaram os impactos, como, no caso do Brasil, o colapso sobre a natureza, então aumentaram as queimadas, aumentou a devastação da Amazônia, de outros biomas do Brasil e o que a merenda escolar tem a ver com isso? Tudo, a merenda escolar talvez seja um microcosmos mostrando para o mundo que é possível enfrentar essas três pandemias simultaneamente com uma alimentação escolar, com compras públicas feitas de forma correta, não é? Porque é um alimento de qualidade. Então a educação, a criança está protegida pelo menos uma parte do dia, então impacto sobre a fome, no caso do Brasil são 43 milhões de crianças.

É difícil imaginar qualquer outra política mais eficiente do que essa no acesso à alimentação e no direito à alimentação, com comida de verdade, ou seja, comida que respeita não só a quantidade, a qualidade, a variedade, a questão cultural como estabelece a legislação Brasileira. Faz isso fortalecendo os circuitos curtos, comprando da agricultura familiar, gerando renda no campo, dinamizando a economia local e regional, reduzindo as emissões de carbono, reduzindo desperdício, porque quando a comida viaja, a maior perda de produtos na agricultura acontece no transporte – a comida já chega estragada naquele lugar. Então quando a gente viaja menos com a comida não só emite menos carbono, como perde menos, estraga menos o produto.

O Pnae é um microcosmo que pode ser macro, imagina: 5.570 municípios, milhares de escolas, 43 milhões de crianças, então o impacto que isso tem é enorme, só que está sendo um impacto escola a escola e local a local. Acho que é um exemplo perfeito, educativo para o gestor entender como uma política integrada, bem pensada, bem articulada tem impactos gerais. Não só ela é integrada como os seus impactos são integrais. Ela não só impacta a criança a aprender e comer melhor, protege essa criança não só do risco de estar com fome, mas ter sobrepeso e obesidade, diabete, hipertensão e assim por diante.

FIAN:  A gente vê como importante nesse quadro a noção da captura corporativa. A humanidade está em crises que exigem uma intervenção muito rápida e não tem como ser de cima para baixo simplesmente. Como conseguir operar essa transformação, por exemplo, colocar a agroecologia no centro da agenda com a oposição das grandes empresas?

Campello: A questão da captura corporativa é que acontece inclusive nesse nível micro. Por que as escolas distribuíam esse pó para misturar com água? Porque eles iam lá e falavam: “Muito mais fácil você fazer isso, é muito mais nutritivo etc. do que você fazer. Em vez de vocês fazerem por exemplo uma canjica na escola, distribuir esse flan aqui que é muito mais fácil”.

FIAN: “E que é enriquecido…”

Campello: “E que é enriquecido por vitaminas e não sei o quê.” Ai, bom, dá muito menos trabalho. Então tem essa coisa corporativa até lá na beirada, a escola vai lá e dá um brinde para a diretora, tudo isso continua acontecendo e portanto o processo de resistência é um processo que você tem que convencer a merendeira que o que ela está fazendo foi salvar essa criança, ela tem que entender que dar o flan para a criança ou dar não sei o quê é ruim para essa criança, ela tem que aprender a comer canjica, ela tem que gostar de canjica, de arroz doce, dá muito mais trabalho fazer arroz doce do que distribuir e não sei o quê.

Arroz doce faz parte da nossa cultura e tal, não estou nem falando do arroz e do feijão, peguei algumas coisas porque fica parecendo que sobremesa é ruim, e não é, criança gosta de comer uma sobremesa, agora tem que comer um arroz doce, tem que comer uma canjica, tem que comer um pé de moleque. Ai, para as nutricionistas não me matarem: além do arroz, do feijão, da verdura.

É muito mais fácil você dar um suco açucarado do que espremer a laranja, então tudo isso tem essa corporação micro, mas tem a grande briga, quem mais resistiu às compras públicas quando a gente tentou implantar foi a grande indústria. Por quê? Porque era ela que ia perder violentamente, imagina um mercado de 43 milhões de crianças, é um mercado da Argentina, é como se elas perdessem uma Argentina que estava no bolso delas. Tinha uma Argentina no bolso vendendo bolacha, biscoito, suco açucarado, porcariíto, tudo isso, e eles perderam. Uma parcela desse mercado, nem é todo o mercado, mas perderam uma parte grande desse mercado.

Aí eu falei daquela história do agro porque indiretamente é o agro que atua muito fortemente, e quando você olha as emendas que estão sendo feitas para mudar o Pnae são da bancada do agronegócio, mas na verdade o grande interessado e o grande diretamente prejudicado com isso é quem? O multimilionário, a grande indústria de alimentos mundial que hoje não é mais uma indústria nacional, ela é mundial, ela financia uma parte gigantesca dos parlamentares. Não só a indústria de refrigerante.

FIAN: A senhora falou um pouco no dia a dia, o convencimento dos profissionais na ponta, mas também em relação a esse enfrentamento, sabendo da força que esses setores têm na balança comercial e da força que eles têm, do tanto que eles estão enraizados no Parlamento, como estão representados no governo, então tem toda essa urgência tem essas forças operando de um jeito cada vez mais. Agora entrando muito forte no conteúdo escolar, elegeram como uma prioridade, “Vamos contar do nosso jeito aqui”.

Campello: Exatamente. Aí eu vou pegar para fechar um outro lado da história porque assim, isso que a gente começou falando que pelo que eu entendo é o centro da minha ideia, já que vão ser várias entrevistas a minha está cuidando da integração. A integração talvez seja a parte mais difícil, intangível de ser medida no desmonte, eu consigo medir quanto eu diminuí a agricultura familiar por exemplo, ou pelo menos eu consigo dizer “Eu nem estou mais medindo”, eu consigo avaliar essa perda nessa fiscalização. Eu consigo medir um conjunto de questões envolvendo gasto público, mas eu não consigo medir o desmonte da integração, isso é intangível.

Do mesmo jeito que eu demorei dez anos para construir, está sendo desmontado e não tem como medir porque isso é um valor intangível, da merendeira, da diretora da escola, município a município, e isso está acontecendo de forma pulverizada no Brasil, então esse desmonte intangível é o mais dramático porque em alguns outros, aumentar o valor, o nosso presidente volta a aumentar o valor, volta a ter essa orientação, agora esses circuitos curtos, o agricultor que se perdeu, o agricultor que vendia para a escola e que teve esse circuito interrompido provavelmente faliu, não é? Para reconstruir esse circuito talvez nem seja mais com ele, talvez seja um outro circuito.

FIAN: Alguém comprou a terra dele.

Campello: Alguém comprou a terra dele, ele foi para a cidade, então tem todo um desmonte que a gente não consegue medir, até porque quem deveria estar fazendo isso, que é o governo federal, não só não tem essa preocupação como tem a preocupação de esconder o que está acontecendo. Mas tem o intangível disso que é o processo de construção que aconteceu com cada gestor, a capacitação que nós demos para as merendeiras, a capacitação que nós demos para os professores, a capacitação que nós demos para os nutricionistas, a capacitação que se foi feita conjuntamente com eles. Todo esse blablablá dos Conseas municipais chamando, indo atrás, fazendo palestra, fazendo curso, a situação do filme, tudo isso parou, foi interrompido, é difícil de ser medido porque é intangível.

Agora, também talvez seja a nossa principal força de resistência, porque você capturou uma diretora de escola para a ideia da comida de verdade, quando alguém chegar e disser “Olha, isso aqui é muito mais fácil”, ela vai falar “Não, mas isso não é apropriado para a nossa criança”. Essa diretora de escola – que na verdade quando ela estudou ela aprendeu educação, ela não aprendeu merenda escolar, com esse processo de construção coletiva, sentando na mesa, discutindo com nutricionista –, ela fala “Não, esse modelo que vocês estão me vendendo centralizado não é legal, é muito melhor comprar do agricultor familiar porque tem a educação também do agricultor familiar”.

Esse agricultor familiar quando começa a vender para a escola é lindo o que acontece, porque ele se dá conta de que o que ele está fazendo vai transformar a vida dessa criança, então ele se dá conta de que aquele produto dele não está indo para uma prateleira, está indo para o lanchinho das crianças, ele chega na escola e ver as crianças tudo correndo, feliz, bonita, rosadinha, esse processo de educação é um processo que acaba extrapolando a escola, captura o agricultor familiar, que se sente comprometido e fala “Gente, eu estou fazendo uma coisa linda, que não só eu estou melhorando a renda da minha família, eu estou colocando comida na escola”.

Quando você vai conversar com esse povo você sente eles falando, é lindo. Isso também será um elemento de resistência porque eles também não conseguem tirar isso da professora que aprendeu a usar o quilo de feijão para fazer conta de matemática, ele não vai tirar da diretora de escola esse conhecimento que ela passou a ter que essa criança vai ficar mais protegida, vai estar protegida para diabetes, para a hipertensão, ela aprendeu um monte de coisa, esses dez anos ensinaram um monte de coisa.

Isto é um elemento, na minha avaliação, de resistência, a diretora só vai resistir, um dia ela vai se aposentar, se esse processo continua por muito tempo é logico que ele vai perder, mas hoje ele é um dos elementos de resistência, a merendeira comprometida em fazer canjica, ele é um elemento de resistência na cozinha, dizendo “Não, esse suco açucarado é uma porcaria, vamos bater aqui no liquidificador, nós temos liquidificador”. Então esse é um elemento de resistência, a integração das políticas públicas é também um elemento de resistência à destruição do Pnae e do Estado e da comida de verdade.

FIAN: Houve também as iniciativas de solidariedade que também criaram ou aumentaram redes, muitas ligadas ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e à conferência popular da área…

Campello: Essa parte é fundamental, em grande medida foi o que segurou mesmo. Não só a parcela da população carente, mas iniciativas vindas das próprias escolas de como organizar cestas, nós temos exemplos maravilhosos no Brasil todo. Agora, o tempo todo a gente tem que lembrar que essas ações de solidariedade, que não vieram das grandes corporações, vieram da própria periferia, solidariedade entre iguais, essas medidas não podem substituir o Estado, não é? É a política pública que garantirá que essas crianças possam ter acesso à comida de verdade de forma a garantir o seu direito, o direito à alimentação adequada.

FIAN: A Cátedra Josué de Castro organizou um extenso seminário sobre os 75 anos de Geografia da fome. Não é chocante ver mais de metade da população privada do que ele chamou de “o primeiro direito”?  

Campello: Setenta e cinco anos depois a gente volta a falar das mesmas coisas que o Josué falava. Segunda-feira, quando a gente teve aquele episódio dramático das pessoas indo para posto de saúde porque estavam doentes, não, estavam com fome na verdade. É a mesma história de Josué, ele conta no seu livro que quando ele começou a trabalhar ele descobriu que operários estavam doentes e a doença dos operários era fome. Em 1940, aí o povo volta a ter uma doença que chama fome, não é doença fome, fome é uma questão econômica e política.

O professor [Ladislau] Dowbor, vale muito a pena assistir à palestra dele ontem, pega a renda do Brasil e divide pelo número de pessoas, dá R$ 11 mil por mês, e fala “Bom, a gente tem R$ 11 mil por mês, não tem justificativa para as pessoas passarem fome, o Brasil produz 3 quilos de comida por dia por habitante, não tem motivo”. Quando você traduz para per capita, esses milhões e milhões caem no nosso ano.

Então 75 anos depois a gente está repetindo a mesma coisa que o Josué falou, não é? E chamando de direito e dizendo que o problema não é biológico, que o problema não é na natureza, que o problema é econômico e político e ontem o Dowbor disse: é um problema ético, moral, um país conviver com uma situação dessa podendo ter outro caminho e já tendo vivido outro caminho, não é? Porque nós mostramos que é possível sair do Mapa da Fome, estamos voltando ao Mapa da Fome, não por conta da pandemia – já tínhamos voltado antes por conta da destruição das políticas públicas. E a questão da renda, não é?

A destruição do Bolsa Família é uma tragédia, mas a gente não pode discutir só a renda. O Brasil saiu do Mapa da Fome por um conjunto de políticas, a valorização do salário mínimo, o aumento de empregos formais, o Bolsa Família, a aposentadoria rural e o aumento da aposentadoria do Brasil – que é algo que aconteceu graças ao aumento do salário mínimo –, a política de combate a preço alto e regulação de preço para produtos básicos, fortalecimento da agricultura familiar, o Pnae, o Consea, o Sisan. Então nós temos aí um pacote de políticas que nos tiraram do Mapa da Fome e uma delas que é estratégica e é básica, que é proteção de renda.

O programa que eles estão criando [Auxílio Brasil] acabou com o Bolsa Família e não o substitui porque é o oposto do Bolsa Família, ele destrói as bases que organizaram o Bolsa Família no Brasil, que são o quê? Exatamente essa questão da integração de políticas públicas, o alívio à fome e à pobreza que é articulado com educação e com saúde. Ele destrói a base da construção coletiva com municípios, ele não trabalha junto com assistência social, então trabalha via aplicativo então tudo que eles estão colocando no lugar é oposto daquilo que a gente tinha, exatamente na essência que é integração de políticas públicas.

FIAN: Um programa de renda básica – como aprovado em lei e determinado pelo STF – não deveria estar no centro do enfrentamento dos impactos da pandemia e da trilha para a recuperação nos próximos anos?

Campello: A construção rumo a uma renda básica, que todos recebam uma renda, eu acho que é uma construção, eu particularmente não defendo isso agora, por exemplo eu ou você devemos receber um valor e a pessoa pobre que está passando fome deveria receber a mesma coisa? Eu não defendo isso hoje, eu acho que nós temos um caminho ainda longo de redução de desigualdade antes de ter uma renda para todos e nesse momento eu acho que nós temos que olhar do drama da situação que é a população vulnerável, não só a que está em extrema pobreza, a que está em pobreza, mas aqueles que têm uma renda que hoje recebe e amanhã não, então tem uma parcela da população enorme que é metade dos Brasileiros.

Então em vez de dar renda para os 220 milhões, eu acho que nós temos que olhar os 100 milhões hoje que não têm renda, que têm uma renda vulnerável ou que não sabem se vão comer mês que vem, ou daqui a três meses o que vai estar acontecendo com eles. Assim, a destruição do Bolsa Família foi um passo, o Bolsa Família era um passo rumo à renda de cidadania, a destruição é um passo atrás para que a gente não tenha um programa de renda básica nunca no Brasil. Então nós retrocedemos 20 anos.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, José Graziano, Maria Emília Pacheco e Sofía Monsalve.

Entrevista | SOFÍA MONSALVE: “A alimentação escolar pode contribuir para o enfrentamento ou o agravamento das crises sistêmicas do nosso tempo”

Publicada no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

A secretária-geral da FIAN Internacional, Sofía Monsalve, resalta que o colapso ecológico e climático, as pandemias e a ascensão de forças antidemocráticas se se cruzam e afetam a todas e todos – de diferentes maneiras, mas em todos os espaços sociais. No que diz respeito ao alimento das e dos estudantes, ela lembra que muitas cantinas e refeitórios têm seu cardápio ditado por corporações globais que acostumam as crianças com doces, refrigerantes e produtos alimentícios ultraprocessados em geral, criando ou reforçando hábitos alimentares responsáveis pelo aumento das taxas de obesidade.

Uma produção, acrescenta, ligada ao desmatamento e à expansão das monoculturas de cana e palma com uso intensivo de agrotóxicos (o dendê ou óleo de palma é usado em inúmeros ultraprocessados, como biscoitos, margarina e pasta de avelã com chocolate; o plantio da palmeira ocupou enormes extensões de florestas no Sudeste Asiático e agora avança na Amazônia).

“Reconectar comunidades humanas com a natureza através da comida é uma questão essencial para nossa sobrevivência”, defende Monsalve, responsável por mais de 15 anos pelo programa de terra e recursos naturais da FIAN. A seu ver, um programa como o Pnae aborda causas estruturais de fome e desnutrição, por prover alimentos frescos e saudáveis a crianças e jovens fortalecendo a agricultura familiar camponesa e indígena, assim como a agroecologia. Ela coloca políticas nessa linha como verdadeiras soluções, em oposição à dita “agricultura de precisão”, altamente mecanizada e baseada em pulverizações aéreas.

Integrante do Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (Ipes-Food, na sigla em inglês), a entrevistada critica a abordagem da cúpula da ONU sobre o tema no ano passado e diz que o Brasil abandonou a política de segurança alimentar e nutricional baseada em direitos humanos que impactou as relações internacionais nesse campo.

FIAN Brasil: O que a alimentação escolar tem a ver com as grandes crises da nossa época e com a responsabilidade das grandes corporações nela?

Sofía Monsalve: Vivemos num tempo marcado por crises simultâneas, que se cruzam: colapso ecológico e climático; pandemias, tanto Covid-19 quanto obesidade; bem como crises políticas causadas por forças autoritárias, racistas, misóginas e antidemocráticas. Essas crises são sistêmicas e não estão localizadas em uma determinada região ou país, ou em um determinado setor social ou população.  Eles afetam a todes nós, de diferentes maneiras, mas afetam a todes nós em todos os espaços de interação social. Nesse sentido, essas múltiplas crises também afetam a alimentação escolar.

Lembremos que, durante as medidas de confinamento para conter o coronavírus, as escolas foram fechadas e milhões de crianças no mundo perderam o acesso à comida escolar. Para as mais pobres entre elas, esse alimento é vital para o seu bem-estar. Lembremos também que em muitos países as cantinas e refeitórios escolares ainda são dominados por junk food: doces, refrigerantes açucarados, batatas fritas e outros lanches são oferecidos às alunas e alunos em abundância. Essas cantinas e refeitórios são o ponto de contato diário entre corporações globais como Coca-Cola, Unilever ou PepsiCo e milhões de crianças. É ali que maus hábitos alimentares responsáveis pelo aumento das taxas de obesidade em menores são formados ou reforçados.

Indiretamente, esse tipo de cantinas e refeitórios escolares também contribui para a destruição ecológica e a emissão de gases de efeito estufa. Como? Apoiando o modelo de produção agrícola industrial favorecido por essas transnacionais e que é responsável pelo desmatamento e pela expansão das monoculturas de cana-de-açúcar e palma com uso intensivo de agrotóxicos. Estas são algumas das conexões que vejo entre a alimentação escolar e as crises que estamos passando.

FIAN: Que novos elementos as discussões no Ipes-Food trazem para sua visão sobre o tema e sobre o multilateralismo, e como o acompanhamento da Cúpula de Sistemas Alimentares a impactou?

Monsalve: As discussões no Ipes-Food têm sido muito estimulantes. É um espaço de aprendizado incrível por causa da diversidade de seus membros. Participei do desenvolvimento de uma nota informativa que discute o papel da ciência e do conhecimento na governança dos sistemas alimentares.

Foi um tema controverso no contexto da Cúpula de Sistemas Alimentares, uma vez que o grupo científico da cúpula tinha uma abordagem muito tendenciosa  da ciência: privilegiava a participação de economistas e representantes das ciências naturais, marginalizava especialistas em direitos humanos, não reconhecia o conhecimento ancestral dos povos indígenas e de outras comunidades rurais,  e não tinha uma atitude crítica e pensativa que fosse capaz de questionar os limites e a legitimidade da pesquisa e da ciência financiadas por corporações e empresas.

A acumulação capitalista contemporânea depende cada vez mais da capacidade das corporações de monopolizar o acesso ao conhecimento.  Nesse sentido, a defesa da pluralidade do conhecimento no campo alimentar, o diálogo de saberes e a governança popular e democrática dos alimentos tornam-se questões essenciais em nossa agenda. Essas são as novas perspectivas que a participação no Ipes-Food me traz.

FIAN: Como a experiência brasileira das últimas décadas em soberania e segurança alimentar e nutricional era enxergada no plano internacional e como a situação atual é vista?

Monsalve: O programa brasileiro Fome Zero foi um programa que tinha um componente de política externa e política internacional. Foi assim que o Brasil, em meio à crise alimentar de 2007-2008, assumiu um claro papel de liderança em nível internacional, defendendo políticas públicas baseadas em direitos humanos para combater a fome.

Não é exagero dizer que o Brasil foi fundamental para a reforma do Comitê de Segurança Alimentar (CFS, na sigla em inglês) das Nações Unidas em 2009: essa reforma abriu um comitê da ONU para a participação real e efetiva dos setores sociais mais afetados pela fome e pela desnutrição. Em outras palavras, ela o democratizou. Foi assim que esse comitê se tornou o epicentro dos debates para o avanço de políticas públicas baseadas em direitos humanos e no âmbito da soberania alimentar: fortaleceu o direito à terra, à água, à pesca e às florestas, bem como à agricultura familiar camponesa e à pesca artesanal e de pequena escala, desenvolveu o conceito de mercados territoriais e sua importância para o fornecimento de alimentos.

Infelizmente, o atual governo do Brasil desmontou grande parte da política alimentar baseada em direitos humanos, com sérias consequências para a população brasileira. Os números dizem isso: houve um aumento dramático de pessoas que sofrem de insegurança alimentar. As consequências dessa política também são percebidas em nível internacional porque não temos mais governos que defendam a democratização da ONU, nem os direitos humanos como a bússola fundamental que norteia as políticas públicas. Assim, também enfrentamos um desmonte do CFS e uma privatização da governança alimentar internacional no sentido de que agora as corporações e suas iniciativas desempenham um papel de liderança na definição de políticas públicas.

FIAN: O que são as “falsas soluções” que as organizações do nosso campo têm denunciado sistematicamente?

Monsalve: Deixe-me dar um exemplo de soluções falsas: todos sabemos que o uso intensivo de agrotóxicos na agricultura causa sérios danos à saúde dos trabalhadores agrícolas e comunidades rurais expostas à pulverização aérea; assim como os danos ao meio ambiente, por exemplo, pela água poluidora. Qual é a falsa solução que as corporações propõem a esses problemas? Em vez de abandonar o uso de agrotóxicos, as corporações do setor vendem a solução chamada “agricultura de precisão”, ou seja, a ideia de que robôs ou drones aplicarão as quantidades exatas de agrotóxicos que são necessários sem causar danos. 

É uma manobra de distração. Brinque com a ilusão de que a tecnologia é limpa, precisa e resolve todos os problemas. Os agrotóxicos não desaparecerão do ambiente porque são aplicadas em doses precisas. Somados, milhões de doses precisas continuam sendo um problema. A agricultura industrial é baseada na produção em larga escala. Uma grande plantação continuará a precisar de uma quantidade de agrotóxicos prejudicial à saúde humana e planetária. Sem mencionar que, para proteger a saúde dos trabalhadores agrícolas, a solução não pode ser substituí-los por robôs e deixá-los sem emprego.

FIAN: Um programa como o Pnae, que atende crianças e adolescentes, prioriza a agroecologia, fortalece a agricultura familiar, reconhece a diversidade cultural, respeita a regionalidade e a temporalidade da produção, apoia indígenas e povos e comunidades tradicionais, valoriza o conhecimento técnico e tradicional, respalda a autonomia local… não estaria bem no cruzamento daquilo de que realmente se precisa?

Monsalve: Sem dúvida, um programa como o Pnae é uma solução real no sentido de que aborda causas estruturais de fome e desnutrição. O fortalecimento da agricultura familiar camponesa e indígena, bem como da agroecologia, é essencial para garantir o acesso das crianças e jovens a alimentos frescos, saudáveis, sazonais e minimamente processados. Apoiar essa forma de produzir alimentos é fundamental tanto para resfriar o planeta e recuperar a biodiversidade quanto para fortalecer a saúde das comunidades.

Reconectar comunidades humanas com a natureza através da comida é uma questão essencial para nossa sobrevivência. O Pnae desempenha um papel muito importante nesse sentido.  A FIAN Colômbia vem desenvolvendo iniciativas muito interessantes com crianças, adolescentes e jovens para revalorizar seus territórios/ecossistemas, bem como seus laços com seus ancestrais e sua cultura. Esse exercício de aplicabilidade do direito à alimentação e à nutrição adequadas fortaleceu a capacidade dos jovens de exigir das autoridades municipais programas de escolas de alimentação firmemente ancorados em uma abordagem de direitos e soberania alimentar.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, José Graziano, Maria Emília Pacheco e Tereza Campello.

Entrevista | JOSÉ GRAZIANO: “O Pnae com compras da agricultura familiar junta tudo de bom”

Publicada no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

Como ministro extraordinário de Combate à Fome, José Graziano foi responsável, em 2003, pela implementação do Programa Fome Zero, depois englobado no Bolsa Família. Os resultados das políticas de segurança alimentar e nutricional e de cooperação internacional do Brasil o levaram ao comando da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que levou essa experiência a vários países. O entrevistado conta que o Pnae, em sua versão com compra das/os agricultores familiares, foi a iniciativa mais requisitada.

“Essa modalidade combina criança na escola, comida saudável, desenvolvimento local, participação social e programas de vizinhança”, elogia o hoje diretor-geral do Instituto Fome Zero (IFZ), uma organização civil.

Para o agrônomo, com a volta ao Mapa da Fome nosso país demonstra que se, por um lado, é possível romper esse ciclo com vontade política, por outro é fácil recair nele abandonando as medidas que funcionaram. O entrevistado também alerta para a piora no padrão alimentar brasileiro e latino-americano e para a dificuldade de mostrar às pessoas que a obesidade é um problema de saúde pública.

Graziano ressalta a importância que a política de valorização do salário mínimo teve na garantia da alimentação adequada e diz que o problema hoje não está na competição da exportação de commodities agrícolas com a produção de alimentos, e sim na falta de poder aquisitivo de grande parte da população. Ele defende que nenhum governante poderia substituir o modelo agroexportador num horizonte próximo e precisaremos dos dólares do saldo comercial do próprio setor para financiar uma transição nesse sentido.  

FIAN Brasil: Por que, dentre programas brasileiros tão replicados mundo afora, o Pnae foi aquele que mais encontrou interesse dos países?

José Graziano: Na verdade, é a versão do Pnae com compras da agricultura familiar, que garante produtos frescos e saudáveis para as crianças, além de reduzir muito o custo de transporte dos alimentos. Esse é um item muito importante em alguns países que têm um custo alto de transporte.

Tem aquilo que eu chamo tudo de bom junto: criança na escola; comida saudável; circuitos curtos de produção e consumo, o que favorece o desenvolvimento local; uma participação social dos pais, envolvidos na alimentação dos seus filhos; programas de vizinhança, já que parte da comida é comprada de pais dos alunos ou pequenos produtores no entorno da escola, como ovos, leite, frutas e verduras.

Então isso que tornou muito atraente, mas devo dizer que não é um programa fácil de implementar, porque passamos de uma situação praticamente onde temos produtores de subsistência ou com pouca presença no mercado para produtores de agricultura familiar que têm de ter uma oferta regular, e isso implica políticas públicas, a prefeitura tem de estar envolvida. Não é só dizer que vai comprar, precisa ter uma oferta e uma oferta de qualidade desses produtos para garantir esse mercado do Pnae.

FIAN: No último Sofi da sua gestão, a obesidade apareceu pela primeira vez como um problema mundial da envergadura da fome [Sofi é a sigla pela qual ficou conhecido o relatório anual O Estado da Insegurança Alimentar e da Nutrição no Mundo]. Para muitas pessoas, é uma ideia estranha, embora, estatisticamente, provavelmente tenham hoje um dos problemas ou ambos em casa ou na porta ao lado. Pode comentar esse quadro, com destaque para a situação das crianças?

Graziano: É verdade, o problema é que as pessoas ainda acreditam que a obesidade é sinônimo de comer bem, de comer muito. Não é. A obesidade é sinônimo de comer mal, de comer produtos de qualidade inferior, como, por exemplo, os ultraprocessados – você troca o consumo de carne e passa a consumir salsicha. Isso faz uma enorme diferença porque, como já dizia o [Otto von] Bismarck, chanceler da Alemanha, “se as pessoas soubessem o que tem dentro de uma salsicha, haveria uma revolução”. Nós não sabemos os aditivos e toda forma de processamento da maioria dos produtos processados e principalmente dos ultraprocessados, que são os fatores fundamentais de aumento da obesidade.

Vou contar uma história: quando eu fui ajudar a implantar o programa de combate à fome na Argentina no ano anterior à pandemia, 2019, o ministro encarregado me contava a dificuldade que ele tinha na região noroeste da Argentina, que é uma região açucareira onde se ingere muito açúcar e derivados de farinha de trigo – a pão branco, mingaus, tortas, pizzas etc. As mães se orgulhavam dos pibes [crianças] gordinhos, com claros sintomas já de obesidade e uma situação de saúde muito precária, porque você sabe que a obesidade abre a porta de uma série de comorbidades, como nós vimos agora durante a pandemia – os quadros mais graves de infecção da Covid são nas pessoas com sobrepeso ou obesas.

Os últimos dados para a América Latina são aterradores. Uma publicação que saiu semana passada da FAO regional da América Latina, com sede em Santiago, mostra que o sobrepeso em menores de 5 anos aumentou muito nos últimos anos. A média da América Latina é de 7,5% de crianças com menos de 5 anos com sobrepeso e obesidade. E isso está muito longe da meta do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável, que é reduzir o sobrepeso das crianças para 3%.

A América Latina está mais de 2 pontos percentuais acima da média mundial e devo dizer que a pandemia agravou muito esse quadro. Um indicador preciso disso são os dados da pesquisa VigiSAN e os dados do Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] que mostram que em quase 50% dos domicílios com crianças houve uma redução significativa do consumo de frutas, verduras e legumes, portanto, dos produtos frescos e saudáveis. Isso leva a um aumento do que se chama insegurança alimentar leve, aquela em que as pessoas, para poderem continuar comendo com o dinheiro que têm, têm de sacrificar qualidade – como eu disse, troca carne por salsicha, deixa de comer frutas, verduras e legumes.

Para ter uma ideia, quando a gente compara a segurança alimentar no Brasil entre 2004 e 2020 – portanto, um período longo –, vamos ver que em 2004 nós tínhamos 65% da população em situação de segurança alimentar, e essa proporção cai para 45% em 2020. Pela primeira vez, o Brasil passa a ter mais da metade da sua população em situação de insegurança alimentar, e dessa segurança alimentar, a proporção dela de insegurança alimentar grave, 10%, permanece mais ou menos estável entre 2004 e 2020, da mesma forma a insegurança alimentar moderada, em 12% em 2004, também 12% em 2020. Ou seja, há uma volta daqueles números que nós tínhamos em 2004 de insegurança alimentar grave e moderada, que são as formas mais preocupantes e é o indicador de fome usado no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 2. Mas quando a gente olha o indicador de insegurança alimentar leve, vai ver que ele saltou de 14% em 2004 para 35% em 2020, ou seja, em 2020, mais de um terço da população brasileira estava comendo mal, comendo de uma forma que substituía os produtos de maior qualidade por produtos de menor qualidade – como diz o outro, comendo miojo e Coca-Cola, refrigerantes açucarados. Esse é o caminho para a obesidade, então não será de se estranhar que nós tenhamos um aumento muito forte da obesidade durante a pandemia assim que os dados de 2021 tornarem-se disponíveis.

FIAN: O que seus interlocutores de fora do país comentam sobre os rumos da segurança alimentar e nutricional do Brasil nos últimos dois governos, em especial neste?

Graziano: Bem, é difícil explicar para eles, a maioria pergunta o que está acontecendo, meio incrédulos com as estatísticas que divulgam. Outro dia, um dos coordenadores da Cúpula Mundial da Alimentação me ligou de Bruxelas para saber se era verdade os números que estavam sendo divulgados, que apontavam que apenas 45% da população brasileira tinha segurança alimentar, ou seja, mais da metade não tinha. As pessoas custam a acreditar em tamanho retrocesso de um país que saiu do Mapa da Fome tão recentemente, em 2014. Nós estamos falando de cinco anos passados.

Na verdade, o Brasil passou a ser um exemplo didático de duas coisas. Primeiro, como é possível acabar com a fome quando se dá prioridade política a isso, o que significa ter recursos orçamentários e uma ação coordenada do governo, sociedade civil, setor privado, foi o que o Brasil fez entre 2003 e 2013 para sair do Mapa da Fome em 2014. A segunda coisa do exemplo didático do Brasil é como se pode voltar rapidamente ao Mapa da Fome se a gente desmontar o sistema de proteção social e as políticas de segurança alimentar em momentos de crise econômica. É esse o exemplo que o Brasil está mostrando para o mundo.

Queria destacar aqui um ponto importante: o que acaba com a fome não são as políticas sociais e a política de segurança alimentar, essas políticas ajudam principalmente aquela parte da população mais pobre a sair da situação de insegurança alimentar, mas o que realmente acaba com a fome é o modelo econômico de crescimento do país: inclusivo, de crescimento rápido, que faz gerar empregos de qualidade e salários razoáveis. E nesse sentido queria destacar que, na minha opinião, a política mais importante que levou o Brasil a sair do Mapa da Fome, política implementada pelos governos Lula e Dilma, foi a valorização do salário mínimo. O aumento do salário mínimo, que é um dos componentes do programa Fome Zero.

O salário mínimo serve de farol para todo o setor informal, então, por exemplo, a faxineira, aquele cara que faz bico de encanador, de pedreiro. Ele, quando vai calcular o valor do seu trabalho prestado, ele tem por referência o salário mínimo vigente. Então o salário mínimo, a valorização do salário mínimo, puxa para cima os salários pagos, mesmo nos setores informais, que é um dos grandes problemas do aumento, agravamento da concentração da renda na América Latina, em particular no Brasil. Brasil teve uma subida fortíssima do Índice de Gini [que mede a desigualdade] nos últimos anos em função da redução dos salários pagos e aumento do desemprego.

FIAN: Precisaremos novamente de um ministério extraordinário de combate à fome?

Graziano: Eu diria que, infelizmente, nós vamos precisar começar tudo de novo, porque o governo atual, além de cortar os recursos do Orçamento, os parcos recursos que ainda resistiram ao governo Temer, o governo Bolsonaro está desmontando as políticas existentes. E tem se dedicado nos últimos meses – antes, digamos, de entrar em modo eleitoral full [total}, se já não está – a maquiar alguns programas, tirar a paternidade deles. É o caso do Bolsa Família, transformado em Auxílio Brasil, mas mantido basicamente com a mesma estrutura; o PAA, Programa de Aquisição de Alimentos, que também mudou de nome, o Comida no Prato, que é um programa dos bancos de alimentos, estatizou o programa Comida no Prato: agora as doações feitas por você, por qualquer pessoa, vão aparecer contabilizadas como do governo.

Então essas maquiagens que têm sido feitas não só eliminam o controle social dos programas, tiram a participação social, como abrem espaço para manipulações eleitoreiras. O que o governo Bolsonaro está fazendo é adaptar o que sobrou dos programas existentes porque cortar, acabar não pode, porque são programas previstos em lei ou causariam uma reação popular ainda maior contra o governo. O governo está transformando os programas de segurança alimentar e nutricional em um festival de cesta básica. Isso que eu vejo que vai acontecer em 2022.

FIAN: Em falas recentes, o senhor apontou o agronegócio como agravador das desigualdades. Porém, em entrevista de 2020, defendeu a inviabilidade de rever o peso dos canais exportadores do setor – o que me pareceu ser uma proposição conjuntural, algo para o momento. Em que medida um modelo agroecológico e redistributivo pode conviver com a monocultura e seu entrelaçamento com a grande indústria de produtos alimentícios, e com o capital financeiro e seu apetite por terras?  

Graziano: Bem, essa é uma pergunta complicada, não dá para responder isso rapidamente. Eu vou dar algumas indicações e me colocar à disposição para discutir um dia. Eu acho um erro muito grande a gente pensar, qualquer governo que entre em 2023, que vai poder mudar esse modelo baseado no agronegócio exportador do dia para a noite. Não dá para fazer isso.

Você tem de, para começar, por exemplo, investir muito em pesquisa agroecológica na Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], que não vai ser fácil convencer a Embrapa a mudar da sua prioridade de pesquisa em técnicas da revolução verde [conjunto de inovações tecnológicas que aumentou substancialmente a produção agrícola], mudar isso da noite para o dia. Nós vamos precisar mudar a cabeça de pesquisadores que acham que estão fazendo o melhor de si desenvolvendo o uso das tecnologias da revolução verde, principalmente o uso de químicos e maquinário.

Também tem de se levar em consideração que o novo governo vai precisar de muitos dólares para financiar essa mudança de modelo. Nós vamos ter de usar os recursos internalizados pelo agronegócio, de exportações do agronegócio, para ir financiando gradativamente os programas sociais, os programas de segurança alimentar, a própria agricultura familiar etc. Então eu já acho que vamos fazer muito se conseguirmos fazer com que, em 2023, o agronegócio comece a pagar impostos. Por exemplo, hoje eles estão isentos dos impostos de exportações pela Lei Kandir; também são isentos os principais insumos que o agronegócio usa, como máquinas e equipamentos, como os defensivos químicos etc. Se nós botarmos esses setores a pagarem o imposto devido, já vai ser uma fonte de recurso importante para poder apoiar a produção de produtos saudáveis da agricultura familiar.

O que eu quero dizer com isso é que o problema não é exportação de commodities agrícolas no Brasil. A gente tende a ficar sob a aparência dos fatos. Nós não temos falta de produto, nós temos falta de dinheiro para comprar os produtos. Os pobres não comem bem no Brasil – ou não comem, passam fome – não é porque não tem produto para comprar. Eles não têm dinheiro para pagar os produtos. Não vamos nos iludir aí… o problema verdadeiro é baixo nível dos salários. Não é o preço dos alimentos que é caro, são salários que são muito baixos. Por que a gente não pensa em aumentar os salários? Por que pensa sempre em reduzir o valor dos produtos agrícolas?

A ideia do Ford quando ele desenvolveu o modelo fordista de produção era que seus próprios trabalhadores pudessem comprar o carro Ford T que eles iriam produzir, senão não haveria demanda suficiente para comprar os carros. Então essa ideia de pagar salários melhores é uma ideia que faz parte do sistema capitalista. Não é nenhuma ideia socialista, nenhuma ideia comunista, ter salários dignos para os trabalhadores poderem comprar os produtos que produzem. Isso deveria valer para os nossos trabalhadores rurais, trabalhadores do agronegócio, aumentar os seus salários, aumentar o nível de salários em geral do Brasil. Volto a insistir: nós estamos confundindo o verdadeiro problema. O verdadeiro problema não é falta de alimentos. O verdadeiro problema é a falta de poder aquisitivo da população brasileira.

FIAN: Como o enfrentamento à pandemia poderia ter sido diferente no que refere à segurança alimentar e nutricional?

Graziano: Bom, eu diria que em tudo o enfrentamento da pandemia poderia ter sido diferente se nós não tivéssemos um governo que desde o início negou a existência do processo, não reconheceu a pandemia como um problema grave, eu diria um dos mais graves que o mundo já enfrentou na sua história. Podia ser diferente na política de saúde, por exemplo: nós podíamos ter começado a vacinação muito antes, já que tínhamos disponibilidade aqui de vacinas do Butantan. Podíamos ter fortalecido o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional]. Em vez de extinguir o Consea, fortalecer, revitalizá-lo para que ele fosse o articulador de uma verdadeira campanha brasileira como houve na época do programa Fome Zero, de arrecadação de alimentos, de distribuição às entidades sociais.

Podíamos ter apoiado a agricultura familiar, aumentado os recursos do PAA, por exemplo, em vez de reduzir os recursos do PAA, aumentado os recursos para o programa de cisterna no Semiárido em plena seca e crise econômica – nós cortamos praticamente a zero o programa de cisternas e passamos a distribuir cisterna de plástico que só beneficia, na verdade, os produtores de plástico no Brasil. Podíamos dar mais recursos ao Pnae para evitar o que houve: o corte da merenda escolar com compra da agricultura familiar em boa parte das escolas que tiveram de fechar pela pandemia. Então, em resumo, podia ter sido tudo diferente. Há alternativas de políticas, sim, que não foram seguidas. Se há uma riqueza que o Brasil tem, é essa expertise em políticas de segurança alimentar e nutricional e em políticas sociais. Podia ter sido tudo diferente.

FIAN: No plano mundial, como está a sua esperança em relação ao que chamou de um great reset, uma retomada em bases substancialmente novas? O que seria necessário por parte dos países dos organismos da ONU?

Graziano: Eu diria que a ONU perdeu duas grandes oportunidades este ano para começar a mudar o problema e produzir alimentos saudáveis de forma sustentável. Primeira oportunidade perdida foi na Cúpula dos Sistemas Alimentares, que terminou em Nova York no dia 23 de setembro. Embora houvesse uma grande presença e um grande número de promessas, de concreto não se exibiu nada. Nenhum acordo efetivo, nem mesmo um fundo mundial de combate à fome, que era o que estava desenhado desde o início, conseguiu-se. Então, de concreto não se avançou nada, mais promessa, mais blablablá.

Alguma coisa similar aconteceu na COP26 [Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021], que foi a segunda oportunidade perdida. Infelizmente, nós vimos na COP26 mais do mesmo, nenhum apetite para mudar de fato a ideia de que nós estamos a caminho da extinção. Nem mesmo aquele anúncio do tiranossauro lá [que a ONU usou para alertar sobre o risco de extinção] surtiu efeito, e a perda da liderança do presidente [Joe] Biden nos últimos meses, os americanos estão cada vez mais preocupados com os chineses, e muito menos com o futuro do mundo. Os americanos não apoiaram, por exemplo, banir o uso do carvão entre os combustíveis fósseis. Continuamos subsidiando aqueles produtos que nos levam ao caminho da extinção.

Os dois produtos que mais recebem subsídios no mundo hoje continuam sendo os combustíveis fósseis, entre eles o petróleo e o carvão, e no campo dos alimentos o trigo, que também é um produto hoje claramente na lista dos produtos que ajudam a obesidade, essa epidemia de obesidade.

Agora, eu ainda tenho esperanças porque, como todos dizemos, a esperança é a última que morre. Nós vimos na COP26 e na Cúpula dos Sistemas Alimentares uma grande participação da sociedade civil, uma grande mobilização social de setores organizados da sociedade civil. Na COP26 nós vimos também a presença de vários governadores do Brasil para contra-arrestar a ausência do governo federal, e isso abre caminho para pensar, primeiro, na descentralização das políticas públicas, que é um passo importante, e no fortalecimento da participação social nessas políticas, tanto na sua elaboração, concepção, como também na implementação.

O problema é que, infelizmente, esse caminho é longo e demorado, e se nós continuarmos só pensando nas coisas a longo prazo, podemos estar acelerando para concretizar aquela preocupação do Lord Keynes [o economista John Maynard Keynes], quando disse que a longo prazo estaremos todos mortos. Espero que a gente consiga, a tempo, evitar o caminho da extinção.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, Maria Emília Pacheco, Sofía Monsalve e Tereza Campello.