As violações ao Direito Humano à Alimentação Adequada e a situação de insegurança alimentar da população brasileira atingiram índices alarmantes, sendo a presença da FOME uma violação gravíssima de Direitos Humanos.
Os casos submetidos à apreciação do Sistema Judiciário ainda são muito poucos diante do escândalo da fome. Esta situação pode e deve ser mudada. Encaminhar os casos de violação ao Sistema Judiciário é fundamental para a sobrevivência do próprio direito enquanto tal.
Frente à violação do Direito a Estar Livre da Fome e do Direito Humano à Alimentação Adequada, o Sistema Judiciário deve ser acionado. Quando há fome, duas situações são observadas, a política pública é inexistente ou falhou.
Por esta razão, o objetivo principal desta cartilha é mostrar a sociedade civil o caminho para buscar seu direito perante o Sistema Judiciário, informando como reconhecer o ciclo que envolve as violações e onde denunciar, possibilitando o exercício do controle social e a busca das reparações que se façam necessárias.
Esta cartilha proporciona uma aproximação dos leitores com conceitos que possibilitam a compreensão das violações, formas de exigibilidade do direito, explicações sobre o funcionamento das instituições (e suas responsabilidades), como formular representações perante o Sistema Judiciário, sendo também um elemento de capacitação e treinamento para o exercício do controle social sobre este Sistema.
O lançamento da cartilha acontece no dia 6 de setembro às 19h no Sindicato dos Aeroviários em Porto Alegre com a presença de Regina Tchelly, chef de cozinha, empreendedora social e fundadora do projeto Favela Orgânica.
O Cerrado concentra, sozinho, 5% da biodiversidade do planeta, segundo a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. O bioma, considerado o berço das águas, é a savana mais antiga do mundo e sua preservação contribui para evitar os efeitos das mudanças climáticas, melhorar a produção de alimentos – com comida de verdade – e manter a qualidade da água e sua distribuição.
Quem mantém esse universo ecológico de pé e vivo são as mulheres e os povos e comunidades tradicionais. Somente o território do Quilombo Kalunga, noroeste do Estado de Goiás, onde existe a presença marcante dos saberes de mulheres Kalunga, preserva cerca de 83% das áreas de Cerrado nativo, de acordo com a análise do MapBiomas.
“As mulheres são responsáveis pela manutenção do Cerrado vivo, pelo manejo das sementes, pela produção de alimentos, pela reprodução dos modos de vida e das práticas culturais e agroecológicas”, conta Franciléia Paula, quilombola, mestra em Saúde Pública pela Fiocruz e organizadora do livro Racismo e sistemas agroalimentares.
São elas, dentro dos sistemas agroalimentares, as guardiãs da biodiversidade, através dos saberes das sementes crioulas – sementes passadas de geração a geração -, do tratamento das frutas e plantas para alimentação. As mulheres enfrentam as monoculturas e seus impactos para garantir a soberania alimentar, a autonomia de escolher o que comer e como plantar o alimento.
“A terra é uma figura feminina. Então, a importância desse movimento também é de acolher, o que as mulheres têm feito no sentido de proteção dessa biodiversidade como um todo. Que inclui a gente, as comunidades e os povos”, avalia Franciléia Paula.
Franciléia Paula, quilombola, mestra em Saúde Pública pela Fiocruz e organizadora do livro Racismo e sistemas agroalimentares
Insegurança alimentar x comida saudável
No Brasil, 125 milhões de brasileiras e brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar: isto é, não têm nenhum acesso ou não têm acesso pleno, suficiente e permanente a alimentos, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).
A violação ao direito humano à alimentação resulta da violação de diversos outros fatores, como o direito à moradia, acesso a saneamento básico e água tratada. Isso afeta, especialmente, as mulheres negras, que são a maioria das chefes de família.
Para Veruska Prado, territorializar o debate sobre a alimentação é fundamental para superar as desigualdades, específicas em cada bioma, a partir da configuração ecológica e da necessidade nutricional de seus povos.
O estudo mostra que 51% dos domicílios nos quais mulheres negras são a pessoa de referência apresentam dificuldade para aquisição de alimentos, enquanto o mesmo acontece com 23% dos domicílios chefiados por homens brancos.
Segundo Veruska Prado, os dados reforçam que, quando há insuficiência de alimentos em casa, são as mulheres que comem menos para garantir a alimentação das crianças.
“A alimentação é uma janela para a gente olhar para o conjunto de iniquidades, que são as desigualdades persistentes e injustas produzidas pela sociedade, por decisões ou por negligência política”
Veruska Prado
Para Veruska, além da sobrecarga e da preocupação em sustentar a família e a comunidade, as mulheres, enquanto promotoras da saúde e do bem viver nos territórios, muitas vezes, têm maior dimensão do que acontece com a terra e dos efeitos das mudanças climáticas na vida das pessoas. Falar de insegurança alimentar e combate à fome é também falar sobre saúde física e mental dessas mulheres.
No Cerrado, comida saudável ou comer bem significa fortalecer a relação entre o consumo do alimento e o modo de vida, de acordo com Veruska. O contrário disso é a insalubridade alimentar, nociva à saúde.
A alimentação precisa ser harmoniosa do ponto de vista cultural e sustentável socialmente, com um sistema de produção que também respeite a igualdade na geração de renda para as mulheres e que elas não somente trabalhem nessa produção.
“A luta pela terra e pelo território é uma luta pelos saberes e pelos sabores”, lembra Maria Emília Pacheco, assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).
Ela destaca que o papel das mulheres na alimentação é histórico: antes das plantas irem para os roçados e para as feiras, são experimentadas nos territórios.
“Se alimentar com os frutos do Cerrado é se alimentar da nossa história, pois são frutos que já estavam aqui muito antes do Brasil ser Brasil”.
Maria Emília Pacheco
A inovação das tradições é inerente às mulheres que pegam, por exemplo, o pequi e fazem uma farinha. Essa sabedoria a favor da diversidade de “saborania”, termo cunhado pela deputada Célia Xacriába sobre a pluralidade de sabores que o Cerrado oferece, expressa conhecimentos ancestrais do poder de transformação.
Cajuzinho do Cerrado, mangaba, cagaita, baru, babaçu e jatobá são alimentos que Maria Madalena trabalha com maestria. Conhecida como Madá, ela é técnica em agropecuária, extrativista de frutos do Cerrado e moradora de Brasília (DF).
Madá estuda e cria pratos com os frutos que alimentam e nutrem as pessoas. Ela tenta aproveitar tudo de um fruto ou de uma castanha, das raízes às folhas.
O processo de quebrar o coco de Baru, tirar o mesocarpo – uma massa doce que tem sobre o fruto – higienizar, torrar, descascar e levar para as padarias colocarem no pão – é familiar para a guardiã do Cerrado. Aos poucos, ela vai inovando o paladar das pessoas da cidade: também faz farinha de Jatobá e mostra como aproveitar as diversas possibilidades dos frutos.
Madá segurando a castanha do Baru e a farinha de jatobá
“Comecei a mostrar às pessoas que elas não dão valor aos frutos de nossa região. Eu me tornei uma guardiã do Cerrado não por curiosidade, mas por necessidade. Para tratar não só de mim, mas sim da comunidade”.
Madá
Enfrentar a insegurança alimentar no Brasil, em seus diferentes níveis, é movimentar os desejos para alimentos que promovam saúde ao mesmo tempo que se luta contra as mega indústrias de “alimentos”, supridas pela agropecuária e sua máquina publicitária. Voltar à construção do gosto e do acesso digno ao alimento de verdade só ocorre junto aos saberes culturais do ato de cozinhar e de poder escolher o que comer.
“É valorizar os saberes e modos de cozinhar que existem com as nossas avós, com as nossas mães, com as mais velhas e com os mais velhos”, define Veruska Prado.
Com o esvaziamento e o processo de expulsão do campo, os homens saem de suas casas e vão para longe, muitas vezes em busca de trabalho. Já as mulheres assumem o protagonismo em relação ao alimento em suas casas, conta Veruska.
Elas passam mais tempo na terra, junto à comunidade e à família, o que faz com que precisem ainda mais de um território saudável, sem violência, para viver com dignidade e gerar alimento.
Franciléia Paula considera que a comida é uma forma de materialização de afeto, história e memória.
“As mulheres estão diretamente ligadas ao sistema de produção de alimento nos seus territórios, nos quintais produtivos, na manutenção de culturas alimentares e na proteção dos bens comuns, como a água e as florestas”
Segundo o levantamento anual dos dados do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em 2022, mulheres tiveram 69% de participação na entrega de produtos da agricultura familiar.
Agronegócio ameaça o Cerrado
O Cerrado está presente em todas as regiões do Brasil, em pelo menos 15 Estados: Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. Em menor medida, também é possível encontrar o bioma em Amapá, Roraima e Amazonas.
Franciléia lembra que o bioma, que acolhe 25 milhões de pessoas, ainda não aparece devidamente nos debates e leis sobre políticas de proteção ambiental, o que contribui para que seja um dos mais afetados do mundo.
“O Cerrado é colocado propositalmente como um lugar improdutivo, de pobreza, de miséria, que não tem gente, para justificar um projeto de desenvolvimento ao agronegócio”.
Franciléia Paula
Com 198,5 milhões de hectares, o Cerrado ocupa 23% do território nacional, mas sua extensão chega até 36% do país se consideradas suas áreas de transição, de acordo com dados da FASE. No entanto, o bioma representa apenas 8% das Unidades de Conservação.
Na Constituição de 1988, o parágrafo 4º do artigo 225 ignora a existência do Cerrado como patrimônio natural. Por isso, desde 2010, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 504/10, movida pelos movimentos sociais pela terra e organizações em defesa do bioma, lutam para que ele também se torne patrimônio do Brasil, assim como Amazônia, a Mata Atlântica e o Pantanal mato-grossense.
Nos últimos 38 anos, o Cerrado perdeu 25% de vegetação nativa, em termos proporcionais de área. Em 2022, 50% do Cerrado foi ocupado por atividades agropecuárias. Em 1985, a área de vegetação nativa tomada pela agropecuária era de 34%, segundo análise do MapBiomas.
Delimitada para fins de planejamento governamental, a região conhecida como Matopiba é o principal eixo de devastação do Cerrado. Nomeada pela Embrapa como “a grande fronteira agrícola da atualidade”, a área abrange Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e é destinada à expansão do agronegócio, da pecuária e do hidronegócio.
Conforme veredito final do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em sua 49ª sessão, em defesa dos territórios do Cerrado (2019-2022), só a região do Matopiba perdeu mais vegetação nativa nos últimos 20 anos do que nos 500 anos que se passaram entre a invasão colonial e o ano 2000.
Na região, também está o chamado “arco do desmatamento da Amazônia”, zona de transição Cerrado-Amazônia, onde os conflitos no campo são mais intensos. “Ao se destruir o Cerrado, não se está apenas destruindo a savana mais biodiversa do planeta, mas se estabelecendo o principal atalho para o avanço sobre a Floresta Amazônica”, ressalta o veredito do TPP.
“Grande parte da soja que é produzida no Brasil não fica no país. Grande parte daque fica entra na cadeia de alimentos ultraprocessados ou alimentos com processamento elevado ou produtos formados a partir de um conjunto de ingredientes”, diz Veruska Prado.
“E a gente vê que o compromisso deles [agronegócio] não necessariamente está em alimentar as pessoas. Por outro lado, a gente observa que as agricultoras e os agricultores familiares, que produzem os alimentos que são cotidianamente consumidos, também visam lucro sobre a sua produção, mas têm um compromisso de manter uma variedade com relação ao que é produzido. É um compromisso para além do dinheiro”, analisa Veruska.
Diferente de outros países, a produção de alimentos não é um problema no Brasil, que já produz quantidade suficiente para combater a fome, enfatiza a coordenadora do estudo da FIAN Brasil. “É importante, que agora, em um contexto político favorável, toda essa produção de alimento que existe no país realmente seja destinada a superar a fome e a má nutrição”, completa.
Cerca de 62% do Cerrado nativo do país está em propriedades privadas, aponta levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Dados de satélite analisados pelo MapBiomas mostram que, de 1985 a 2022, 85% do desmatamento do Cerrado ocorreu em terras privadas.
Mesmo assim, o próprio Código Florestal estabelece que os imóveis rurais localizados na Amazônia Legal devem ter reserva de 80% da propriedade nas áreas de florestas; já no Cerrado, somente 35% devem ser preservados.
Para Franciléia Paula, que vive no Cerrado de Mato Grosso, um dos locais mais devastados pelo agronegócio, é urgente colocar o bioma na centralidade do debate atual sobre mudanças climáticas, comida de verdade e vida digna às mulheres dessa região.
“O Cerrado, de forma geral, é um grande “observatório” de desigualdades no Brasil. O projeto político, agrícola, do agronegócio, dos grandes empreendimentos, incide muito no Cerrado”
Franciléia Paula
A forma predatória da terra e a retirada do bioma do cenário nacional e internacional como parte do debate ambientalista, afeta, sobretudo as mulheres do Cerrado e seus modos de vida. Isso inviabiliza não só a existência da biodiversidade como também a possibilidade de uma fartura de alimentos, frente a monotonia do agronegócio.
“Em contexto de omissão do Estado brasileiro, diante de tudo isso, você vai ver que quem está lá no território, permanentemente, sofrendo violações de diversas formas, cotidianamente, são as mulheres”, aponta Franciléia Paula. “Se a gente tem Cerrado ainda é porque tem gente que lutou e que permanece nesse enfrentamento direto a esse projeto capitalista, patriarcal e racista” , conclui.
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Esta reportagem é resultado do minicurso “Fome e Desigualdades no Brasil: muito além dos números” desenvolvido pelo Nós, mulheres da periferia e Gênero e Número, com o apoio e parceria da FIAN Brasil (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas)
This executive summary presents the results of the survey carried out by FIAN Brasil with Cimi and a group of researchers in 2023 which reassessed the situation of three territories visited in 2013 and included two other communities in the diagnosis.
Entre as metas do Plano Brasil sem Fome estão a contínua redução das taxas totais de pobreza e da insegurança alimentar e nutricional, especialmente a insegurança alimentar grave
Fotos: MDS
“A fome não é homogênea, não se expressa uniformemente. A fome é complexa. Podemos dizer das fomes, a fome da cidade, do campo, das águas, das florestas, a fome das crianças, das mulheres, a fome das mulheres negras, dos povos indígenas, a fome daqueles que estão nas ruas, daqueles que plantam comida, a fome daqueles que entregam comida nas casas, a fome de quem prepara a comida”.
A reflexão abre nota da presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Elisabetta Recine, sobre o Plano Brasil Sem Fome, lançado pelo governo brasileiro no último dia 31, na cidade de Teresina (PI).
Em 2014 o Brasil havia saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas, porém retornou em 2022. O mapa apresenta o número de pessoas em situação de fome e de insegurança alimentar pelo mundo e o objetivo do país é sair novamente da ferramenta por meio do plano nacional que é transversal, envolve os diversos setores e instâncias públicas e reabre a participação no governo da sociedade organizada.
“Precisamos e temos em nossas mãos todos os instrumentos para a implementação coordenada e uma governança participativa e intersetorial das soluções necessárias para superação definitiva da fome e de todas as formas de má nutrição”, pontuou Recine.
Segundo o governo, as principais estratégias do Brasil sem Fome irão incidir sobre o aumento da renda disponível das famílias para comprar alimentos; mapear e identificar pessoas em insegurança alimentar para inclusão em políticas de proteção social e acesso à alimentação; e mobilizar governos, poderes públicos e sociedade civil para integrar esforços e iniciativas de combate à fome.
Sobre o assunto, a ex-secretária geral da FIAN Brasil e atual secretária extraordinária de Combate à Pobreza e à Fome do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Valéria Burity, destaca em entrevista que “a fome e a segurança alimentar são multisetoriais. Se você quiser combater a fome, você tem que garantir o acesso à renda, à informação, à terra, garantir a produção e oferta de alimentos adequados e saudáveis e que esses alimentos tenham um preço justo”.
O Brasil Sem Fome apresenta 80 ações e programas, distribuídos em 3 eixos: Acesso à renda, redução da pobreza e promoção da cidadania; Alimentação adequada e saudável, da produção ao consumo; e Mobilização para o combate à Fome. São mais de 100 metas propostas pelos 24 ministérios que integram a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), dentre as quais, a contínua redução das taxas totais de pobreza e da insegurança alimentar e nutricional, especialmente a insegurança alimentar grave.
Esta nota técnica (NT) resulta de breve diagnóstico encomendado pela FIAN em 2021, durante a a pandemia, a pesquisadores sobre os programas de assistência emergencial à alimentação entre os Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul. O levantamento em 12 aldeias alertou para o agravamento da vulnerabilidade social e para a urgência de medidas do poder público.
A NT foi encaminhada ao Ministério Público Federal, à Justiça Federal no estado, à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao governador e à Secretaria de Direitos Humanos, Assistência Social e Trabalho do MS.
Os autores e a autora são Spensy K. Pimentel, Gustavo Aires Thiago e Gabriela Thomazinho.
Ko’anga ñande jakaru karai kuera xa avei. Umin ha’e kuera hemityn ome’en mba’asyvai ñande rehe. Heta oin hese ome’eva mba’asy.
Na preleção do professor Nilton Ferreira Lima à turma do 9º ano, palavras como “salgadinho”, “refrigerante”, “diabetes”, “hipertensão”, “cálculo renal” e “AVC” vão se entremeando ao idioma indígena. Uma passagem que conta muito da transição alimentar em curso entre os povos Guarani e Kaiowá, e que a FIAN Brasil busca conhecer melhor por meio de estudo de caso com foco no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Em sua aula, Lima expõe a entrada em cena de problemas de saúde que os moradores e moradoras da Aldeia Te’yikue não costumavam ter e sua relação com o sedentarismo e o aumento do consumo de produtos alimentícios ultraprocessados. Realidade essa, de Caarapó (MS), que se repete em comunidades de todo o país.
Crianças na escola polo Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
Crianças na escola polo Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
A escola polo Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
Mudas na unidade experimental Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
O professor Nilton Ferreira Lima Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
Aluno em aula da unidade experimental Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
Coração de bananeira Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
“Muitas pessoas buscam seu sustento com trabalho assalariado e, com o dinheiro que ganham, compram alimentos da cidade, que são alimentos contaminados, que têm muita química”, conta o professor da Escola Municipal Indígena Ñandejara. “Com essa mudança no hábito alimentar a gente vê que entra muita doença e as pessoas adoecem muito cedo.” Os ultraprocessados passam por diversas etapas de fabricação e recebem muitos aditivos para ficarem atraentes – verdadeiras fórmulas industriais. Costumam ter alto teor de açúcar, sal e gordura.
Estabelecimentos de ensino como a Ñandejara, com 1.400 estudantes, são palco central desse quadro e do seu enfrentamento. O Pnae garante, para todas e todos estudantes da rede pública, ao menos uma refeição completa – às vezes, a únicado dia. No entanto, em 2021, como parte do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade, a FIAN ouviu relatos de crianças de aldeias do Mato Grosso do Sul chegando à sala de aula em grave situação de insegurança alimentar.
Essa política constitui-se também em caminho para a promoção da saúde por meio da educação alimentar e nutricional (EAN). Representa, ainda, uma oportunidade para fortalecer a agricultura familiar local.
“O programa poderia estar comprando do pequeno produtor”, diz o cacique Jorginho Soares Martins. “Temos dificuldade de ter acesso à inscrição estadual e à DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf]. Ajudaria muito o pequeno agricultor, conforme é garantido na Lei.” A DAP está em substituição pelo Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF).
Os dados mais recentes disponibilizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), referentes a 2018, mostram que 54,25% (R$ 298 mil) dos repasses anuais da autarquia do Ministério da Educação (MEC) ao município foram usados na compra direta da agricultura familiar. Trata-se de um percentual bem acima do exigido (30%). Porém, ainda não há agricultores indígenas fornecendo alimentos às escolas, o que fere as determinações legais, que estabelecem que, nas compras diretas, deve-se dar prioridade aos assentamentos da reforma agrária e às comunidades indígenas e quilombolas.
“É uma discussão antiga na comunidade”, reforça o diretor da Escola Ñandejara, Lidio Cavanha Ramires. “Se tiver uma família produtora de arroz, de feijão, pega aqui dentro mesmo para a escola. Orgânico, sem produto químico.” Ele menciona a possibilidade de reunir a produção de agricultores/as que cultivam uma extensão pequena – 0,5 hectare de mandioca, por exemplo, para ficar numa situação comum na Te’yikue – e não teriam condição de fornecer à escola por um período maior.
Questões como essas motivaram, em nível nacional, a criação da Mesa Permanente de Diálogo Catrapovos Brasil, composta por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil, pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2021, para fomentar a adoção da alimentação tradicional em escolas indígenas e de comunidades quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e caiçaras, entre outras. Ligada à Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR), a instância discute os entraves, desafios e formas de viabilizar as compras públicas da produção desses grupos sociais. Além de garantir o cumprimento da cota da agricultura familiar, pauta-se pelo direito à alimentação escolar adequada à cultura de cada população.
A Catrapovos Brasil atua para replicar em todo o país a boa prática desenvolvida pela Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), que conseguiu inserir mais de 60 alimentos produzidos de forma tradicional no cardápio escolar.
A FIAN tem participado das reuniões da Catrapovos do Mato Grosso do Sul.
Merendeiras na cozinha da escola Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
Refeições do Pnae Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
Hora da refeição na escola polo Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
Salada, abacaxi, pizza, churrasco
Divididos em rodas, os adolescentes anotam aquilo de que gostam e não gostam, e o que gostariam que tivesse, nas refeições servidas na instituição de ensino. Nas preferências escritas em cartelas na oficina organizada pela FIAN, não são raras as respostas mencionando frutas, ou pratos de um almoço comum na maioria das cidades brasileiras. Elas misturam-se a sobremesas e opções como pizza e churrasco. O que pouco aparece são comidas tradicionais guarani e kaiowá.
Ao implementar em 2020 a Resolução 6 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a escola passou a servir pratos típicos às sextas-feiras. A resolução, que regulamentou a lei do Pnae (11.947), reforçou as diretrizes de alimentação adequada, entre elas o respeito à cultura da comunidade e a valorização dos ingredientes regionais. Ao detalhar a aplicação da lei de 2009, reduziu o uso de açúcar, estabeleceu limites para certos itens (como salsicha e demais cárneos) e excluiu outros (refrescos artificiais, biscoitos recheados etc.).
Embora em muitas regiões o apelido merenda permaneça, ao longo dos últimos anos, especialmente após a publicação da lei em 2009, a prioridade é para oferta de refeições cada vez mais completas, do ponto de vista nutricional, e de melhor qualidade, que contemplem frutas, legumes e/ou verduras.
Em Caarapó, a entrada de alimentos como a batata-doce no lugar de pão francês e afins repercutiu em grupos de WhatsApp de mães e pais de alunos, em especial de parte das famílias mais acostumadas ao cardápio urbano. A adaptação atravessou os semestres seguintes.
“É difícil de acertar o cardápio que a nutricionista da prefeitura colocou”, relata a cozinheira Jurema Marques, uma das mais antigas da instituição. “Tem as crianças que aceitam e crianças que não aceitam. Do nosso cardápio tradicional que a gente prepara uma vez na semana, não reclamam é do guisado que a gente faz com mandioca e carne. E aquele mbaipy, que é polenta com frango. Esses, eles comem tudo. A chicha [refresco natural de milho fermentado e caldo de cana] também. O que não aceitam é o locro [prato com milho e carne, originalmente de caça].” Além disso, nem sempre as verduras, frutas e carnes dão para a semana toda, assim como acontece de faltarem os ingredientes do preparo mais cultural da sexta. Muitos estudantes relatam que a quantidade servida é insuficiente.
A cozinheira Jurema Marques Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
Quem ainda soca milho e arroz?
Foi para valorizar a conexão do alimento com a religião e a cultura guarani e kaiowá que duas professoras criaram, há mais de 20 anos, o projeto Sabor da Terra. A iniciativa começou com duas professoras da Escola Loide Bonfim Andrade – uma das quatro extensões (unidades subordinadas à polo) da Ñandejara – e hoje envolve toda a comunidade escolar. Cresceu ano a ano até permear todas as matérias, de todos os anos – um projeto mobilizador, no jargão da Educação.
“Quando a gente perguntava: ‘Quem ainda ñembiso? Quem soca ainda milho, arroz?’ Respondiam: ‘Isso é coisa dos antigos… A gente tem pilão em casa, professora, mas é mais fácil ir ao mercado’”, narra uma das fundadoras, Rosileide Barbosa de Carvalho.
A professora Rosileide Barbosa de Carvalho Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
O diretor Lidio Cavanha Rodrigues Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
“O Sabor da Terra é para incentivar as famílias a plantar, e valorizar aquele tipo de semente que hoje quase não é plantada. Por exemplo, se você chegar nas casas, hoje quase não tem cará.” Valoriza-se o cultivo viável ao redor das casas, ainda que o espaço seja limitado.
O projeto trabalha desde elementos clássicos de disciplinas curriculares até o cuidado com a saúde. “Por que antigamente os homens não eram muito gordos, não tinham barriga, não tinham doença? A alimentação. Agora você vê pessoas de 13, 14, 15 anos com obesidade, problema de pressão alta, de coração”, enumera a professora. As salas mergulham nos temas desde o primeiro bimestre, e o ciclo culmina numa exposição no meio do ano em que são servidas comidas tradicionais e não indígenas.
Nessa ocasião, cada família leva o seu prato – por exemplo, pira mbichy (peixe assado), mandio mbichy (mandioca assada). Quem conseguir caçar tatu vai levar carne do animal.
“A gente ouve eles falarem: ‘Nossa, isso eu comia quando era criança… Como hoje não tem mais?’”
As atividades na Unidade Experimental Poty Reñoi (“desabrochar da flor”), chácara de 2,6 hectares (ha) vizinha à escola polo, complementam o que é realizado no Sabor da Terra. Conforme a idade, alunas e alunos lidam com sementes, adubagem, rega, trato dos animais.
“A gente começa do começo”, explica o professor Nilton Ferreira Lima. “Fala da importância de cultivar… De ter autonomia também. Em relação ao processo de produzir. Fazer a compostagem, biofertilizantes, as mudas, a época certa do plantio.”
“Dá para ver avanços”, comenta. “Hoje você sai e vê canteirinho de cheiro verde, alface…” Nicole Veron Martins, 14 anos, confirma: “Comecei a levar para minha casa e falar para os meus pais da importância de a gente ter um pouco mais de cuidado com as plantas, com o meio ambiente”.
Sob pressão
Ainda que longe dos extremos enfrentados por seus povos no estado – como o confinamento na Reserva de Dourados –, a Reserva Te’yikue (ou Reserva Indígena de Caarapó) se insere num cenário complexo. Situado a menos de 20 quilômetros do Centro da cidade, o território de 3.594 ha (cada hectare corresponde a um campo de futebol) e habitado por 1.500 famílias não conta com ônibus de linha, embora grande parte dos moradores e moradoras trabalhem em chácaras, fazendas, armazéns e usinas do agronegócio. Os capões de mata destoam dos “mares” de milho, soja e cana do caminho, mas a cobertura vegetal não se compara à de décadas atrás. “Era muito rico de natureza”, descreve o inspetor escolar Agripino Benites. “Muito perobal, muita erva-mate nativa. O mato era mais fechado. Achava ainda caça.”
Homologada há três décadas, a área é circundada por um território reivindicado como tradicional 15 vezes maior e disputado por 87 fazendeiros e chacareiros, a Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipegua 1. A demarcação do perímetro, em 2016, foi retaliada com o ataque que matou o agente de saúde Clodiodi de Souza e feriu outros indígenas, conhecido como Massacre de Caarapó. Em resposta, os Guarani e Kaiowá retomaram 11 localidades (tekoha – “lugar onde se é”) dentro da TI.
Embora se trate de área declarada como de ocupação tradicional por laudo antropológico, a condição de em litígio da TI implica mais barreiras para os indígenas – com todo tipo de dificuldade para acessar políticas públicas – que para os fazendeiros. A equipe da FIAN Brasil ouviu de um gestor da área agrícola que as retomadas “não são área de ninguém, nem da União”. No caso da Te’yikue, o entorno abriga muito mais cobertura vegetal, fauna e áreas agricultáveis, porém não escapa das limitações do limbo fundiário. Essa fronteira invisível favorece o avanço dos arrendamentos, “parcerias” em que pessoas externas à comunidade exploram terras para monocultura, quase sempre pagando valores baixos ou irrisórios.
Nota técnica encomendada pela FIAN a três pesquisadores em 2021, que abrangeu 12 comunidades, mostrou como a pandemia agravou a insegurança alimentar e nutricional. O trabalho reiterou constatação de levantamento concluído cinco anos antes, em que a insegurança alimentar apareceu em 100% dos domicílios de três localidades. Os autores assinalam a centralidade da regularização fundiária e de apoio à produção agroecológica para permitir a construção de uma vida digna e soberana.
Nos últimos quatro meses, três indígenas foram assassinados na região – um deles em Coronel Sapucaia, a cerca de 140 km dali, e dois em Amambai, a cerca de 95 km. Se nas áreas rurais há o risco de emboscadas, nas urbanas a hostilidade e a discriminação desenham um mapa não oficial.
O agricultor Simão Martins Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
O rezador Florêncio Barbosa Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
O cacique Jorginho Martins Soares Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
O professor Elemir Guarani Kaiowá Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil
“Sabemos que muitos lugares da cidade não são para nós”, comenta o pesquisador Elemir Guarani Kaiowá, que cursa doutorado em Geografia e leciona para as turmas do 6° ao 9° ano da Ñandejara.
“A miséria começou com os madeireiros, que retiraram toda a madeira de lei, e continuou nos ciclos econômicos seguintes – mate, gado, cana, soja.”
Sistemas alimentares e desigualdades
O estudo de caso (acesse os materiais produzidos) faz parte do projeto Equidade e Saúde nos Sistemas Alimentares, que a FIAN Brasil executa neste ano e no primeiro semestre de 2023 com o objetivo de contribuir para o entendimento dos impactos dos sistemas alimentares nas desigualdades (e vice-versa) no Brasil, bem como para seu enfrentamento.
A ideia é que o conhecimento produzido embase estratégias para incidir nas compras públicas (de instituições do Estado). O chamado mercado institucional movimenta um orçamento bilionário e pode dar lastro a uma série de políticas – por exemplo, adquirindo a produção agrícola de segmentos sociais mais vulnerabilizados, como indígenas, quilombolas e assentados/as.
A atuação se dará em conjunto com um grupo de entidades – ACT Promoção da Saúde, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto Desiderata e Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) – com apoio da Global Health Advocacy Incubator (GHAI). Outras parcerias serão estabelecidas ao longo do processo.
O projeto inclui um mapeamento das iniquidades nos sistemas alimentares, com um olhar específico para as dimensões de raça, gênero e classe social. Os dois estudos de caso – além de Caarapó, a equipe fez trabalho de campo em Belém do Solimões (AM) – aprofundarão a compreensão dos dilemas, soluções e barreiras enfrentadas pelas comunidades. A equipe participou também da elaboração de documentos políticos coletivos buscando a adesão de candidatos e candidatas à plataforma da comida de verdade, baseada na agricultura familiar, na agroecologia, no comércio justo e nos alimentos frescos. Outra frente tem sido a incidência no Congresso Nacional. Também serão produzidos variados conteúdos de comunicação.
Continuaremos a dedicar atenção especial ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que em 2021 foi o foco do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade. “Poder realizar ações de exigibilidade para fortalecimento do Pnae, especialmente das compras públicas da agricultura familiar no ambiente escolar, em um contexto de retrocesso e aumento da fome, parece-nos fundamental e urgente”, comenta a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.
“A intenção é aprofundar as análises relacionadas à alimentação escolar, sobretudo à alimentação escolar indígena, considerando que essa segue como uma política central na garantia do Dhana”, diz a coordenadora do projeto, Gabriele Carvalho. “Pretendemos ajudar a construir caminhos para que essa população possa, de fato, não só comercializar o que é produzido localmente, mas inserir esses alimentos no cardápio escolar. A soberania e segurança alimentar e nutricional passa necessariamente pelo respeito à cultura e aos hábitos alimentares locais.”
A FIAN Brasil participou de audiência no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 885, que trata do combate à fome e à insegurança alimentar em geral.
A reunião, na terça-feira (26), foi com o ministro Dias Toffoli, relator da ação.
Representaram a FIAN a diretora de Articulação, Míriam Balestro, e o assessor de Direitos Humanos Adelar Cupsinski. Participaram, ainda, Sílvia Souza, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autora da ação; Rodrigo Azambuja, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro; Paulo Freire, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); Leonardo Ribas, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN); e Daniel Souza, da Ação da Cidadania.
“Expus que, dentre todos os direitos integrantes do Sistema Internacional dos Direitos Humanos, estar livre da fome era o único gravado literalmente como fundamental, dada a urgência que a fome impõe”, relata Balestro, integrante da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) e promotora de Justiça aposentada. Ela acrescenta que o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc, de 1966, ao qual o Brasil aderiu) traz obrigações aos três poderes de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) em relação ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). “Quando o Poder Judiciário atua na ausência ou na ineficiência da política pública, está cumprindo o seu dever de garantia do Dhana. Não há que se falar em violação da tripartição dos poderes nessas circunstâncias.”
Para a diretora, sem a alimentação adequada não se pode falar na realização dos demais direitos. “No caso da fome há uma clara violação do pacto internacional por parte do Estado brasileiro”, afirma.
Segundo a representante da FIAN, foi argumentado ainda que o desmonte das políticas públicas de segurança alimentar representa um retrocesso de um direito social, o que é vedado pelo Sistema Internacional dos Direitos Humanos, que somente se admite a situação depois de o Estado demonstrar que envidou todos os esforços para evitar tais casos, pedindo, se necessário, cooperação internacional.
“Ao final foi feito um apelo ao ministro para que lhe viessem à mente os milhares de homens, mulheres, crianças, indígenas, população das vilas, as pessoas nas frentes dos mercados e nas ruas que estão a clamar por alimentos. Que levasse em consideração a sensibilidade e a empatia, dentro da melhor técnica jurídica.”
Orçamento inviabilizando direitos
“O ministro mostrou sensibilidade com a questão da fome, além de demonstrar conhecer o problema”, avalia Adelar Cupsinski. “Disse que a sociedade deveria se mobilizar mais sobre o tema e, embora as políticas públicas sejam de responsabilidade do Executivo, o STF não pode deixar de apreciar a demanda considerando a gravidade do tema.”
O assessor aponta a responsabilidade das restrições orçamentárias relativas às políticas públicas no governo Temer e os retrocessos nas políticas do governo Bolsonaro pelo quadro de vulnerabilidade social e a volta da fome no Brasil.
“Os direitos à terra e ao território destinados aos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares estão assegurados na Constituição Federal de 1988”, lembra. “Nas últimas três décadas, os governos democráticos inseriram na agenda a implementação da reforma agrária e a demarcação de terras para esses grupos. Concomitantemente, uma malha de outras políticas públicas foi implementada, no campo e na cidade, visando distribuir renda e combater a fome.” Ele conclui que esse contexto beneficiou milhões de brasileiros, resultando em melhorias na qualidade de vida e a superação da fome em 2014.
“Para mim, que fui uma criança em situação de rua, com um pai preso pela ditadura, vítima da insegurança alimentar e hoje advogado, foi a realização de um sonho defender este direito na Suprema Corte do país”, conta o integrante do FBSSAN Leonardo Ribas. “O ministro Toffoli afirmou que levará a questão para o plenário. Ou seja, vai refutar o pedido de arquivamento feito pelo Aras [procurador-geral da República] e irá colocar para os demais ministros do STF a questão. Estou muito esperançoso e creio que dará tudo certo.”
Sobre a ação
Protocolada em 10 de dezembro de 2021, a ADPF 885 destaca que o enfraquecimento dos mecanismos de monitoramento da fome no país se soma ao desmonte da política de segurança alimentar.
O documento, produzido pela OAB a partir de provocação da Ação da Cidadania, sublinha o agravamento das condições econômicas, sociais e sanitárias enfrentadas ao menos desde 2014, pontuando que a explosão do número de casos e mortes pela Covid-19 chegou a colocar o país no epicentro da pandemia mundial. Ao examinar as estatísticas, constata a cor e o rosto da fome no Brasil, com os índices mais agudos nos domicílios chefiados por mulheres pretas ou pardas e de baixa escolaridade, bem como a concentração no Norte e no Nordeste.
Como contribuições da atual gestão federal para o cenário de miséria, a OAB destaca a má condução do Programa Bolsa Família e o corte severo em programas como o de cisternas para convivência com a seca.
Entre outras medidas, a OAB pede que o STF determine a retomada e a ampliação do auxílio emergencial no valor de R$ 600; o retorno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); destinação de R$ 1 bilhão para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); e recomposição dos estoques públicos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), com ações de controle de preços para evitar a inflação descompensada.
Leia aqui conversas que partem da alimentação escolar para os grandes desafios relacionados a soberania e segurança alimentar e nutricional – e à defesa da democracia.
A publicação, de periodicidade bienal, aborda a situação do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas no país. Esta edição – que compreende dois anos do governo Bolsonaro – analisa os impactos da Covid-19 e das ações e omissões do poder público diante da crise sanitária, econômica e social.
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“Em 2017 elaboramos a primeira edição porque, ante o contexto de acelerado desmonte de direitos e de crise democrática, achamos fundamental registrar os avanços, as lacunas e os retrocessos que impactavam o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas”, explica a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity. “A segunda foi elaborada em 2019, destacando como neoliberalismo e autoritarismos estavam contribuindo para violações de direitos no Brasil. Em 2021, apontamos como a chegada da Covid-19 tornou ainda mais dramática uma situação geral de ataque à vida e à dignidade humana.”
Ela avalia que o cenário tende a se agravar com medidas como a extinção do Programa Bolsa Família para dar lugar a um programa (o Auxílio Brasil) ainda cheio de incertezas e sem garantia de orçamento. “Hoje, mais da metade da população sofre algum nível de insegurança alimentar e nutricional e tudo de que precisamos para a construção de sistemas alimentares soberanos e regenerativos – terra, água, proteção ambiental, política de estoques e preços, apoio à agricultura familiar – está sendo negado.”
“O mesmo presidente que em 2019 negou a fome no Brasil foi o que tratou a maior pandemia do século como uma gripezinha, e mais uma vez se esquivou de suas obrigações enquanto representante do Estado”, observa a assessora de Direitos Humanos da FIAN Nayara Côrtes. “O mesmo governo que desmontou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em seus primeiros dias no poder criou um falso dilema entre a fome e a Covid-19 e se recusou a tomar providências para tentar conter o previsível avanço dessa situação desumana que é não ter acesso a comida suficiente.”
Ela acrescenta que quem primeiro sentiu as consequências dessas decisões foram os grupos que têm seus direitos negados historicamente: a população negra, as mulheres, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais (como quilombolas e caiçaras) e os grupos empobrecidos do campo e das cidades.
Sistematizar para resistir – e reconstruir
A partir da perspectiva de que é preciso sistematizar para resistir – e reconstruir –, o Informe Dhana 2021 detalha o esvaziamento orçamentário e institucional das políticas que permitiriam conter parcialmente o impacto da calamidade e pavimentar o caminho para uma recuperação com justiça social. Também mostra a relação desse quadro com as opções macroeconômicas dos últimos anos e com a ditadura da austeridade fiscal – marcada a ferro e fogo pelo Teto dos Gastos Sociais, a Emenda 95.
Os dados e gráficos compilados pela FIAN “desenham” a ação de um Executivo que fala grosso com os vulneráveis, fino com os poderosos e de igual para igual com os aproveitadores, criando todo tipo de facilidade para grupos que vão de grileiros a grandes redes de supermercados, passando por mineradores e fabricantes de agrotóxicos e pela indústria de refrigerantes e outras bebidas açucaradas. E que faz isso de braços dados com o grupo dominante no Legislativo – o Centrão – e frequentemente respaldado pelo Judiciário, em especial nas instâncias inferiores.
O material situa a realidade brasileira, ainda, nas tendências internacionais de maior presença das corporações nos sistemas alimentares, que gera mais desigualdade e vai emplacando falsas soluções para a fome.
O conceito de direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) vai além do suprimento das exigências mínimas nutricionais dos indivíduos, propondo garantir os aspectos da acessibilidade física e econômica, da disponibilidade, da adequação e da sustentabilidade (De Schutter, 2014).
Essa conceituação vem sendo construída ao longo da história, sobretudo nos séculos 20 e 21. No âmbito internacional, o Dhana foi inicialmente previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 25), em 1948, estando também presente no artigo 11 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), de 1966, e no Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 12), de 1988.
No Brasil, esse direito ganha contornos mais definidos a partir de sua incorporação, em 2010, ao artigo 6º da Constituição Federal (CF), de 1988. Em 1999, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas elaborou o Comentário Geral 12. O documento vem contribuindo para as iniciativas subsequentes sobre o tema, por trazer as principais diretrizes do Dhana, sinalizando que tal direito só se realiza “quando todo homem, mulher e criança, sozinho ou em comunidade com outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, a uma alimentação adequada ou aos meios necessários para sua obtenção” (ONU, 1999, p. 2), estando, dessa forma, livres da fome.
A publicação, de periodicidade bienal, aborda a situação do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas no país. O Informe Dhana 2021 – pandemia, desigualdade e fome analisa os impactos da Covid-19 e das ações e omissões do poder público diante da crise sanitária, econômica e social. O período corresponde a dois anos (o segundo e o terceiro) do governo Bolsonaro.
A partir da perspectiva de que é preciso sistematizar para resistir – e reconstruir –, o Informe Dhana 2021 detalha o esvaziamento orçamentário e institucional das políticas que permitiriam conter parcialmente o impacto da calamidade e pavimentar o caminho para uma recuperação com justiça social. Também mostra a relação desse quadro com as opções macroeconômicas dos últimos anos e com a ditadura da austeridade fiscal – marcada a ferro e fogo pelo Teto dos Gastos Sociais, a Emenda 95. Saiba mais.
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O informe teve edições em 2017 e 2019. A de 2021 é uma parceria da FIAN Brasil com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).
Organizações, movimentos sociais e coletivos que integram a Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional entregaram no Supremo Tribunal Federal (STF) a sentença proferida pelo Tribunal Popular da Fome que culpabiliza o governo brasileiro quanto ao aumento da fome no país e determina que indenize coletivamente o povo pelo dano moral produzido.
Foram protocoladas petições para a ministra Rosa Weber e o ministro Dias Toffoli para que a sentença seja anexada aos processos das arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) 831 e 885, que exigem medidas de enfrentamento do quadro com urgência. A entrega ocorreu em ato na sexta-feira (10), Dia Internacional dos Direitos Humanos.
“Essa incidência é uma oportunidade de contribuir para um julgamento pelo STF dessas ações de forma efetiva e, com isso, conter os retrocessos que foram identificados nas apelações ao júri do Tribunal Popular da Fome”, comenta a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.
Leia mais sobre o ato no STF, com participação da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Redessan), entre outras organizações.
Violações por ação e omissão
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) mostrou que 19 milhões de brasileiras e brasileiros passaram fome e mais da metade dos domicílios no país enfrentou algum grau de insegurança alimentar nos últimos meses de 2020.
Para o júri do Tribunal Popular da Fome, o governo federal violou, por ação e omissão, o direito humano à alimentação e a nutrição adequadas e o direito emergencial a estar livre da fome, assentados no ordenamento jurídico nacional e internacional.
Depois de escutar acusação, defesa e testemunhas, analisar as provas e debater muito (assista), juradas e jurados consideraram comprovado que o corpo de autoridades governamentais não respeitou, não protegeu, não promoveu e não garantiu esses direitos, causando sofrimento físico e psíquico ao povo.
O Tribunal da Fome foi organizado pela Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
Saiba como foi o julgamento e conheça a sentença de condenação e as reparações determinadas:
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é um tipo de ação que visa evitar ou reparar lesão a um preceito fundamental causada por um ato ou uma omissão do poder público. Esses preceitos são os direitos e garantias que representam a base da Constituição Federal, bem como os fundamentos e principais objetivos da República. Ambas as ADPFs em análise no Supremo incluem pedido de liminar (decisão em caráter de urgência, para garantir ou antecipar um direito que tem perigo de ser perdido, antes da sentença de mérito).
A ADPF 831 busca o afastamento do limite de 20 anos imposto ao Orçamento pela Emenda Constitucional (EC) 95/2016, conhecida como Teto dos Gastos. A ação, que tem como relatora a ministra Rosa Weber – responsável por outros casos envolvendo o tema –, também pede um programa emergencial de atendimento à população vulnerável, com a inclusão automática de pessoas em situação de pobreza e de extrema pobreza no Bolsa Família e aumento do valor do benefício.
Outro pedido é que as esferas federal, estadual e municipal de governo garantam um kit alimentação aos e às estudantes sem aulas presenciais em decorrência da pandemia. Apresentada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), a manifestação questiona, ainda, a redução do auxílio emergencial por meio da EC 109/2021.
Acompanhe aqui o andamento do processo, que recebeu informações prévias da Presidência da República, do Senado, da Câmara dos Deputados e dos ministérios da Cidadania, da Economia e da Educação.
Desmonte e falta de transparência
Protocolada no dia do Tribunal da Fome, a ADPF 885 destaca que o enfraquecimento dos mecanismos de monitoramento da fome no país se soma ao desmonte da política de segurança alimentar.
O documento, produzido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a partir de provocação da Ação da Cidadania, sublinha o agravamento das condições econômicas, sociais e sanitárias enfrentadas ao menos desde 2014, pontuando que a explosão do número de casos e mortes pela Covid-19 chegou a colocar o país no epicentro da pandemia mundial. Ao examinar as estatísticas, constata a cor e o rosto da fome no Brasil, com os índices mais agudos nos domicílios chefiados por mulheres pretas ou pardas e de baixa escolaridade, bem como a concentração no Norte e no Nordeste.
Como contribuições da atual gestão federal para o cenário de miséria, a OAB destaca a má condução do Programa Bolsa Família e o corte severo em programas como o de cisternas para convivência com a seca.
Entre outras medidas, a OAB pede que o STF determine a retomada e a ampliação do auxílio emergencial no valor de R$ 600; o retorno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); destinação de R$ 1 bilhão para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); e recomposição dos estoques públicos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), com ações de controle de preços para evitar a inflação descompensada.
Várias das entidades e movimentos envolvidos no Tribunal da Fome pediram ao STF o reconhecimento como amicus curiae (“amigo da corte” ou “amigo do tribunal”, em latim) nas ações em torno do tema. A expressão designa uma instituição ou pessoa que, por seus conhecimentos num assunto específico, é ouvida no intuito de embasar decisões justas em casos judiciais complexos e de repercussão social da controvérsia, ou seja, que tendem a extrapolar o processo e formar precedente para outros julgamentos.
Estar livre da fome e comer bem é um direito de todas as pessoas, mas, no Brasil, a população negra ainda enfrenta o racismo estrutural como causa de violações ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana).
Hoje, praticamente metade da população brasileira (112 milhões de pessoas) convive com a insegurança alimentar. Entre domicílios em que a pessoa responsável é negra, essa parcela é ainda maior: 67,8% entre pessoas pardas e 66,8% entre pretas, chegando a 73,8% quando a responsável é mulher.
No nosso país, as pessoas mais pobres são negras e as pessoas mais afetadas pelo desemprego são mulheres negras, como observamos no Informe Dhana 2021: pandemia, desigualdade e fome:
O desemprego, que já vinha subindo desde 2015, chegou a 14,7% no 1º trimestre de 2021 e atingiu o recorde de 14,8 milhões de brasileiros. É a maior taxa e o maior contingente de desocupados já registrado pela série histórica do IBGE, iniciada em 2012. […] Vale destacar que, com relação à taxa de desemprego, entre as mulheres negras, o crescimento foi de 17,3% para 21,4% entre o primeiro trimestre de 2020 e o de 2021. Enquanto entre homens brancos a taxa cresceu menos, de 8,4% para 10%, o que mostra que o desemprego e seus efeitos são maiores entre as mulheres e a população negra.
Mesmo assim, a ação governamental vai na direção oposta à solução. Políticas públicas essenciais para a garantia da alimentação e da renda dessa população seguem sendo desmontadas, como o Bolsa Família, substituído por um programa sem estrutura definida e sem sustentabilidade orçamentária. As demais políticas federais que geravam alimento e renda foram extintas ou completamente desidratadas.
Enquanto isso, nas periferias das cidades, onde a maioria da população é negra, a escolha do alimento não é uma opção. Produtos ultraprocessados, que não alimentam de verdade, são alternativas incontornáveis quando a inflação de alimentos dispara. No campo, o desmatamento e a grilagem de terras em territórios tradicionais violam o acesso aos alimentos. A vegetação nativa e a roça do pequeno agricultor foram destruídas para plantação de grandes monoculturas e para a transformação do alimento em commodity. Essa desigualdade também está expressa na estrutura fundiária brasileira:
Segundo os dados do IBGE, cerca de 47,9% dos estabelecimentos agropecuários tinham produtores autodeclarados brancos, proporção maior do que a dos estabelecimentos com produtores autodeclarados pardos (42,6%), pretos (7,8%), indígenas (0,8%) e amarelos (0,6%). Nos estabelecimentos com mais de 500 ha, 72,2% dos produtores proprietários são brancos, 23,9% são pardos, 2,5% são pretos, 0,4% são indígenas e 0,06% são amarelos. Ou seja, quanto maior a área dos estabelecimentos, maior a predominância dos produtores autodeclarados brancos.
A pandemia de Covid-19 também pesa mais forte sobre a população negra, que conta com menos saneamento básico nas periferias, que foi a parcela que mais necessitou do auxílio emergencial e a quem, junto com os povos indígenas, foi inicialmente negada a garantia dos direitos à saúde, à alimentação e à água nos vetos presidenciais ao projeto de lei 1.142/2021 (posteriormente derrubados parcialmente pelo Congresso). Mesmo frente a essas adversidades, brotou a solidariedade:
A volta da fome e o contexto de crise sanitária reativaram uma enorme rede de solidariedade e repercutiram nas doações filantrópicas durante a pandemia. A Ação da Cidadania, por exemplo, fundada nos anos 1990 por Herbert de Souza, o Betinho, distribuiu 8 mil toneladas de alimentos durante a pandemia . Já a iniciativa Se tem gente com fome, dá de comer! , organizada pela Coalizão Negra por Direitos e pela Anistia Internacional, além de outras organizações da sociedade civil, já arrecadou mais de 18 milhões de reais.
Por isso, no Dia da Consciência Negra, afirmamos que é preciso compreender de que maneira o sistema alimentar e o sistema econômico contribuem para a manutenção das iniquidades, para assim construir alternativas fundamentadas na justiça social, no respeito às diferenças e na garantia de direitos humanos. Desconstruir o racismo estrutural nos sistemas alimentares é um passo fundamental para, de fato, alimentar a vida.
A FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua acabam de lançar o podcastO Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Em dez episódios, o programa destrincha o livro lançado pelas duas organizações em abril. Está disponível nas plataformas Spotify, Anchor e YouTube.
Participam da primeira gravação três dos organizadores/as do livro: Valéria Burity, José Geraldo de Sousa Junior e Antonio Escrivão Filho (a quarta é Roberta Amanajás Monteiro), além do autor do prefácio, Carlos Marés. As entrevistas apresentam brevemente os temas, interlocutores/as e entrevistados/as dos nove episódios seguintes, apontando também reflexões que serão desenvolvidas ao longo da série.
“O podcast reúne de uma forma lúdica, artística e didática o debate sobre os grandes temas que impactam a relação entre o direito à alimentação e o sistema de justiça no Brasil e no ambiente internacional”, descreve Escrivão Filho. “Tem como ponto de partir as falas de especialistas de diversos campos, como a militância em movimentos sociais, a advocacia popular, o ativismo em direitos humanos e a academia.”
São abordadas questões como: o que o direito a se alimentar e se nutrir adequadamente tem a ver com as retomadas indígenas, a educação quilombola, a agroecologia e a luta sem-terra; como é tratado na nossa Constituição e nos pactos internacionais dos quais o Brasil faz parte; e como tem sido aplicado na prática.
“Os enunciados expressam a forma como movimentos sociais compreendem o direito e como as normas podem ser aplicadas para a garantia efetiva do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas”, comenta Burity. “É forma de incidirmos sobre o Judiciário e agirmos pela democratização do acesso à justiça.”
O podcast tem roteiro, direção e montagem de Marco Escrivão, com locução de João Victor Coura e Priscila Schmidt. Coura também assina a trilha original, o desenho de som e mixagem, e divide as gravações com Alexandre Scarpelli. O programa é produzido por Kaburé Filmes e Estúdio Pongá.
Conceituação e teses jurídicas
Resultado de intensa agenda de discussão, o livro de 196 páginas é uma obra coletiva voltada para a proteção e efetivação desse direito individual e social, conhecido pela sigla Dhana, indispensável à dignidade humana e à própria vida.
A publicação divide-se em duas partes. A primeira apresenta os principais conceitos envolvidos e os contextualiza no Brasil e no mundo, com abordagens sobre o Dhana e o sistema de justiça, ao passo que a segunda traz os enunciados, teses jurídicas utilizadas na defesa e promoção desse direito. Cada um corresponde a um capítulo e aborda um assunto específico.
Com base em pesquisas, relatórios oficiais e da sociedade civil e reportagens recentes, o informe mostra como a crise sanitária e as decisões tomadas no seu enfrentamento ampliaram o desemprego, inflacionaram a comida, agravaram as vulnerabilidades históricas e impulsionaram a fome. A estabilidade e a regularidade na oferta de alimentos saudáveis não estão garantidas, comprometendo a garantia universal daquele direito, conhecido pela sigla Dhana, e sua sustentabilidade.
Inquérito nacional da rede Penssan aponta que, no fim de 2020, o país contava com 116,8 milhões de pessoas com algum nível de insegurança alimentar, entre os quais 19 milhões em insegurança alimentar grave, o que significa que, no intervalo de dois anos, 9 milhões de pessoas foram empurradas para a fome. Um semestre depois, os números certamente são ainda piores, como tem detectado a ONU em âmbito global.
A publicação digital de 73 páginas aborda o contexto e os novos desafios dos pontos de vista da produção de alimentos, das políticas públicas e da promoção desse direito pela sociedade civil e pelo poder público, analisando ainda as violações das obrigações do Estado.
São tratados os impactos sobre as populações indígena e quilombola, as mulheres e as pessoas em situação de rua; a falta de acesso regular à água; o inflacionamento dos alimentos, a concentração de mercado e a quebra na compra da agricultura familiar; o aumento do desemprego e dos trabalhos informais. Capítulos examinam, ainda, a situação de problemas ambientais como o uso de agrotóxicos e a grilagem.
Agravamento de cenário já precário
O informe lembra que o novo coronavírus agravou um cenário em que o direito à alimentação e à nutrição adequadas já se encontrava fragilizado, em função de fatores como o desmonte das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional (SAN), a limitação de verbas imposta pela Emenda Constitucional 95 e a aprovação das reformas previdenciária e trabalhista.
É mencionado estudo da ONG Conectas e do instituto Cepedisa que, em 3.049 normas editadas pelo governo federal ao longo da pandemia, constatou uma estratégia institucional de propagação do vírus sob a liderança da Presidência da República.
“O Estado brasileiro está descumprindo, de forma crescente, as três dimensões de sua responsabilidade – respeitar, proteger e satisfazer – em relação aos direitos humanos, entre eles o Dhana”, explica a assessora da FIAN Nayara Côrtes, autora do capítulo que traz esse recorte. “Em muitos casos, o Executivo e o Legislativo apoiam e incentivam violações, com anuência do Judiciário.” Leia mais em reportagem do portal jornalístico O Joio e o Trigo.
Em outubro a FIAN lançará uma nova edição do Informe Dhana, publicação bienal que detalha o estado e a evolução da SAN no país.
A FIAN Brasil pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para ingressar como amicus curiae na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 831, que visa obrigar o governo federal a investir em medidas de combate à fome no contexto da pandemia de Covid-19.
Com pedido de medida liminar, a ADPF 831 busca o afastamento do limite de 20 anos imposto ao Orçamento pela Emenda Constitucional (EC) 95/2016, conhecida como Teto dos Gastos. A ação também pede um programa emergencial de atendimento à população vulnerável, com a inclusão automática de pessoas em situação de pobreza e de extrema pobreza no Bolsa Família e aumento do valor do benefício.
Outro pedido é que as esferas federal, estadual e municipal de governo garantam um kit alimentação aos e às estudantes sem aulas presenciais em decorrência da pandemia. Apresentada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), a manifestação questiona, ainda, a redução do auxílio emergencial por meio da EC 109/2021.
ADPF é um tipo de ação que visa evitar ou reparar lesão a um preceito fundamental causada por um ato ou uma omissão do poder público. Esses preceitos são os direitos e garantias que representam a base da Constituição, bem como os fundamentos e principais objetivos da República. Amicus curiae (“amigo da corte” ou “amigo do tribunal”, em latim) designa uma instituição ou pessoa que, por seus conhecimentos num assunto específico, é ouvida no intuito de embasar decisões justas em casos judiciais complexos e de repercussão social da controvérsia, ou seja, que tendem a extrapolar o processo e formar precedente para outros julgamentos.
Foi designada como relatora a ministra Rosa Weber, responsável por outros casos envolvendo o tema. Ela já requisitou informações prévias ao presidente Jair Bolsonaro, ao Senado, à Câmara dos Deputados e aos ministros da Cidadania, da Economia e da Educação. É possível acompanhar o andamento do processo aqui.
Conhecimento técnico e legitimidade
Na sua petição, protocolada na sexta-feira (14), a FIAN Brasil destaca sua capacidade de fornecer subsídios para o julgamento em função de seu acúmulo e sua representatividade na temática, a partir do viés dos direitos humanos fundamentais.
O pedido lembra a atuação há 20 anos em todas as regiões do país, com o papel central de assessorar agricultoras e agricultores familiares, movimentos sociais, povos e comunidades tradicionais, povos indígenas e outros grupos, como consumidores, com o objetivo de fortalecer as lutas sociais em prol da efetivação dos direitos humanos, em especial do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). A entidade ressalta que sua missão é contribuir para a realização de tal direito considerando todas as etapas e dimensões do processo alimentar e levando em conta as causas que geram obstáculos a essa garantia.
“A FIAN Brasil vem acompanhando o desmonte gradativo, promovido pelo governo federal, das políticas públicas e a falta de repasse de recursos públicos para a geração de renda e o combate à fome da população brasileira”, pontua o documento. “São políticas públicas comprovadamente eficientes, que foram sendo consolidadas no decorrer das últimas décadas, com resultados expressivos para a população brasileira e que neste momento de pandemia, deixaram de ser prioridades em decorrência de escolhas políticas.”
A organização lista como exemplos o Programa Cisternas, de segurança hídrica no Semiárido; o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de compras públicas de produtos da agricultura familiar e fornecimento a pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional; e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que atende os 41 milhões de estudantes da rede pública.
Publicação comemorativa em linguagem simples. Celebra as duas décadas de existência completadas em 2020 e traz o histórico e o conceito do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Também conta um pouco da trajetória da entidade.
Informe sobre os impactos da pandemia do novo coronavírus na segurança alimentar das populações de todos os continentes. Acesse aqui, em PDF.
Originalmente publicado em inglês com o título Monitoring Report on the Right to Food and Nutrition during covid-19 – june 2020, foi traduzido pela FIAN Brasil com apoio de Flavio Valente.
Comer de maneira adequada é um direito ou um privilégio? Por que comemos o que comemos e da forma como comemos? Quais elementos, instituições e atores sociais definem ou influenciam a forma como comemos? Quais os impactos desse modelo?
Estas provocações fazem parte do conteúdo do primeiro módulo do Curso Básico de Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (Dhana), que a FIAN Brasil – Organização Pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas lança nesta quarta-feira (3).
Clique na imagem para acessar o módulo I!
Online e gratuito,
o curso trata o assunto a partir da perspectiva dos direitos humanos (DH). “O
direito à alimentação parece tão óbvio que, por vezes, acaba sendo
invisibilizado. Isso faz com que sua violação seja naturalizada, e sua
realização, percebida como caridade, benevolência”, explica a assessora de
Direitos Humanos da FIAN Brasil Nayara Côrtes. Ela acrescenta que conhecer a
história de luta por direitos humanos, os pactos, legislações internacionais e
nacionais firmados, e os instrumentos para exigir seu cumprimento, oferece
outra perspectiva. “Direito não se pede, exige-se, e isso faz muita diferença.
O curso tem como objetivo mostrar várias perspectivas desse direito tão
fundamental e tão amplo que é o direito a se alimentar de maneira adequada e
saudável, e ter uma vida digna.”
“Afirmar alimentação como direito, em um momento como este
que vivemos agora, em que ficam evidentes os impactos do neoliberalismo na vida
das pessoas, é de grande importância”, analisa a secretária-geral da FIAN
Brasil, Valéria Burity. Ela lembra que o modelo neoliberal como racionalidade
está presente não só no mercado ou no Estado, mas também na sociedade, e que uma
parcela da população que sofre violações de direitos acaba reforçando pautas
opressoras por causa desse pensamento dominante.
“Esperamos com o curso contribuir para a politização de
temas como alimentação e nutrição, para criação de uma cultura de direitos e
para o fortalecimento dos seus sujeitos. É mais uma ferramenta para as lutas
sociais por soberania alimentar”, conclui.
Os módulos seguintes aprofundarão a temática do Dhana pelos recortes do abastecimento, da exigibilidade e da economia.
A iniciativa tem apoio de Pão Para o Mundo (PPM – Brot für die Welt) e Misereor.
Publicado originalmente no site de Le Monde Diplomatique Brasil, em 22 de maio
Frustram nossa esperança equilibrista, mas estão longe de ser surpresa, os vetos do presidente Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei 873/2020, que foi aprovado pelo Congresso Nacional e incorporava entre os beneficiários do chamado auxílio emergencial diversas categorias ausentes na lei original (13.982). Entre elas, foram vetados os agricultores familiares não inscritos no Cadastro Único, mesmo que se enquadrem nos requisitos, bem como assentados de reforma agrária, extrativistas e pescadores artesanais.
Diante da pandemia do novo
coronavírus, a grande maioria dos países atingidos adotou o isolamento
social, junto com a testagem mais ampla possível, para o enfrentamento
do problema num contexto de inexistência de vacinas e remédios capazes
de deterem a expansão explosiva do contágio e das mortes. Essa
estratégia exige a coordenação do poder central de cada país, sempre
buscando a melhor articulação com os outros níveis de poder. Alguns
chefes de Estado relutaram em aceitar que se tratava do único caminho.
Premidos pela tragédia que lhes batia à porta, reviram sua posição,
alguns tardiamente.
Sobraram pouquíssimas exceções. Entre
elas, o capitão reformado – um negacionista do clima, da ciência em
geral e da liturgia republicana e democrática, que também negava a
existência da fome até ver nela uma arma potencial a mais.
Em razão de lutas históricas, contamos com o Sistema Único de Saúde. Um sistema estruturado, apesar das seguidas perdas orçamentárias que sofreu nos últimos anos. Para sorte também do Brasil, o Congresso Nacional, pressionado por uma sociedade mobilizada, aprovou providências para tentar evitar que o país seja dizimado pela Covid-19 e pela irresponsabilidade do governo federal. Entre estas, o estabelecimento de uma renda básica para aqueles mais vulnerabilizados pelos efeitos das medidas indispensáveis de prevenção.
É importante trazer a verdade dos
fatos. Ao contrário do que apregoam, o Planalto e seu fiador
ultraneoliberal Paulo Guedes não foram os autores e nem facilitaram a
adoção da renda básica, que eles preferiram chamar de auxílio
emergencial, tentando cortar pela raiz qualquer reivindicação futura de
prolongamento de vigência desse instrumento. Com muita demora,
encaminharam ao Legislativo um anteprojeto que estipulava uma ajuda de
míseros R$ 200 e, uma vez que esse foi aprovado em valor e condições
melhores, vêm retardando e dificultando de todas as formas sua
implementação.
O presidente sem partido – mas sabemos bem qual é o seu “partido” –, obcecado pela ideia de pôr fim ao isolamento social, pratica toda sorte de chantagens contra estados e municípios que procuram viabilizar essa medida, bem como busca criar dificuldades para que a população possa cumpri-la, tendo como alvo preferencial os mais pobres. Enquanto usa a sombra terrível (e real) da insegurança alimentar na sua guerra declarada contra os governadores e governadoras mais cautelosos, na prática age como o verdadeiro Capitão Fome.
Francisco Menezes, economista, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)
Valéria Burity, advogada, é secretária-geral da FIAN Brasil
Foto: O presidente Jair Bolsonaro observa manifestação de apoiadores da rampa do Palácio do Planalto (Marcello Casal Jr./Agência Brasil)
Elisabetta Recine, Maria Emília Pacheco, Mariana Santarelli, Vanessa Schottz e Valéria Burity
Originalmente publicado na Folha de S.Paulo, em 11 de maio
A pandemia provocada pelo novo coronavírus afeta de forma drástica nossa vida, porém mais ainda a dos que historicamente têm seus direitos violados. A Covid-19 espalha-se num território comandado por um presidente que pouco tempo atrás negou a existência da fome. Que extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em seu primeiro dia à frente da nação e vem desmantelando as políticas que tiraram o Brasil do mapa da fome. A insistência na falsa dicotomia entre vida e economia faz com que as respostas sejam lentas, confusas e muito aquém das necessidades dos que vivem na iminência da fome e que têm na produção familiar de alimentos o seu sustento.
O distanciamento social afeta o sistema alimentar, da produção ao consumo, e em particular seus elos mais frágeis. Numa das pontas está grande parte da população, em sua maioria negra, que se esforça para permanecer em casa sem saber se terá comida na mesa. Na outra, camponesas e camponeses, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, com uma significativa participação de organizações das mulheres, que produzem alimentos frescos e saudáveis e que estão com sua comercialização ameaçada pela interrupção de feiras livres e compras governamentais. Parte da solução pode estar na amarração dessas pontas, o que passa pela ampliação e adaptação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e pelo aumento de recursos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Leia o artigo inteiro na Folha. Ali também é possível acessar reportagens que contextualizam e desdobram o assunto.
Elisabetta Recine Nutricionista, é ex-presidenta do Consea
Maria Emília Pacheco
Antropóloga, é ex-presidenta do Consea
Mariana Santarelli
Socióloga, é relatora da Plataforma Dhesca
Vanessa Schottz Nutricionista, é integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar (FBSSAN)
Valéria Burity Advogada, é secretária-geral da FIAN Brasil
Foto: A desempregada Rosangela da Silva, 36, com seu filho Artur, 3, no Jardim Papai Noel, bairro no extremo sul de São Paulo (SP). (Lalo de Almeida/Folhapress)
Num contexto de desigualdade estrutural e discriminação, a emergência sanitária desencadeada pelo novo coronavírus está levando o mundo a uma crise alimentar. O alerta é de relatório preliminar da FIAN Internacional do impacto da Covid-19 e das medidas tomadas pelos governos de todo o mundo para conter a pandemia sobre a garantia e a realização do direito humano à alimentação e à nutrição (Dhana).
Segundo o documento, na última semana de março e na primeira de abril, a pandemia e as medidas tomadas pelos Estados e outras instituições para combatê-lo estão tendo graves consequências para as pessoas e as comunidades em sua luta por produzir e acessar alimentos suficientes e nutritivos.
A publicação elenca as causas e
os fatores que agravam os impactos da pandemia, ligados a várias causas
estruturais de fome e de desnutrição; examina os impactos no Dhana nas
primeiras semanas de Covid-19; propõe maneiras de proteger esse direito humano no
período; e apresenta recomendações nos níveis nacional e internacional.
A FIAN Internacional registra que continuará monitorando a situação em conjunto com os membros da Rede Global pelo Direito à Alimentação e Nutrição (GNRTFN) e pede que as organizações envolvidas com o tema compartilhem informações.
O relatório preliminar foi originalmente publicado em inglês e traduzido por Flavio Valente, com revisão da FIAN Brasil.
Impacto da Covid-19 na Realização do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas – relatório preliminar de monitoramento. FIAN Internacional, abril de 2020. Tradução: Flavio Valente. Revisão da tradução: FIAN Brasil. Clique aqui para acessar o relatório.
O aumento da pobreza e a volta da fome foram os principais temas discutidos pela Comissão de Segurança Alimentar da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) nesta segunda- feira (14/10).
De acordo com o Informe Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA) 2019: autoritarismo, negação de direitos e fome, o número de pessoas que enfrentam a fome aumentou, elaborado pela FIAN Brasil em parceria com FBSSAN – Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar. O lançamento do Informe acontece no dia 5 de novembro, na Câmara dos Deputados, em Brasília.
No Brasil, após anos de taxas decrescentes, a proporção de cidadãos que vivem em extrema pobreza (renda inferior a R$140 por mês) subiu de 6,6%, em 2016; para 7,4%, em 2017. Só no Estado do Rio cerca de 480 mil pessoas vivem nesta situação. Em números absolutos, esse contingente aumentou de 13,5 milhões, em 2016, para 15,2 milhões de pessoas, em 2017, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A presidente da Comissão, deputada Lucinha (PSDB), destacou o alarmante aumento da pobreza e apontou a importância de discutir sobre os recursos destinados ao setor da agricultura familiar . “A falta do alimento que chega à mesa do trabalhador e o aumento da pobreza são aspectos preocupantes no Estado. Tivemos uma diminuição grande dos recursos financeiros destinados ao incentivo da agricultura familiar e dentro das possibilidades da Alerj, nós debatemos a melhor forma de atuar no orçamento do Estado”, explicou a parlamentar.
Durante a audiência pública, membros do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA-RIO) foram ouvidos. Mariana Santarelli, representante do FBSSAN na Audiência Pública e que também participou da elaboração do Informe DHANA 2019, argumentou sobre o atual contexto estadual que, somado à austeridade fiscal gera graves impactos na sociedade. “Sofremos com o aumento da fome e da extrema pobreza, onde o Estado perde sua capacidade de garantir o direito humano à alimentação e proteção social às famílias. Com isso, corremos o sério risco de voltar ao mapa da fome”, declarou.
Foto: Thiago Lontra
A superintendente de segurança alimentar e nutricional da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSDH), Luiza Trabuco, destacou o cenário desafiador no qual o estado do Rio se encontra. “Por um lado temos o aumento da fome, da pobreza e da dificuldade do acesso à alimentação, e por outro temos um enfraquecimento dos instrumentos públicos para o enfrentamento desses problemas. É preciso pensar nas estratégias para evitar a redução dos orçamentos dos programas de segurança alimentar em nível federal. No governo do Estado tentamos ir na contramão disso, o Governo convocou uma Conferência Estadual de Segurança Alimentar, prevista para os dias 4, 5 e 6 de dezembro”, explicou.
Taís Lopes também é membro do CONSEA-RIO e professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro da UFRJ. A docente ressaltou a vulnerabilidade social em que o Estado do Rio se encontra. “Nós temos uma situação de insegurança alimentar crescente no Rio de Janeiro, estamos presenciando o aumento expressivo do número de pessoas em situação de rua. Nos deparamos com crianças sendo internadas por causa de desnutrição em estado grave, cenário que não víamos há tempos. Então, toda essa imobilidade dos gestores para geração de emprego e renda, investimento na educação, saúde e a garantia de direitos, além da ausência da garantia da participação popular nas políticas públicas tem feito com que a população esteja totalmente vulnerável”, concluiu.
Com informações daALERJ Crédito foto: Tiago Lontra/Alerj
Por Valéria Burity, secretária geral da FIAN Brasil e Nayara Côrtes, assessora de Direitos Humanos da FIAN Brasil
Em entrevista a jornalistas, na manhã desta sexta-feira, 19 de julho, Jair Bolsonaro declarou que: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. O presidente continuou dizendo que “não se vê gente com o físico esquelético como em outros países”. Um pouco mais tarde, voltou atrás e declarou que “não se sabe o porquê, uma pequena parte passa fome”.
A fala de Bolsonaro é semelhante à da ministra da Agricultura, Abastecimento e Pecuária, Tereza Cristina, que, em abril deste ano, disse que brasileiros não passam fome porque têm mangas nas cidades.
As declarações de duas autoridades responsáveis por assegurar
condições para a garantia do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição
Adequadas no país demonstram, além de profundo desconhecimento da realidade
brasileira e nenhuma sensibilidade sobre uma de suas mazelas, a posição do governo sobre este direito
humano fundamental, do qual depende a vida.
Fome não é uma coisa que se mede apenas por um corpo muito magro, isso é, antes de tudo, cruel.
A insegurança alimentar pode ser leve, moderada e grave, de acordo com a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar e Nutricional (EBIA). O estado de insegurança alimentar leve é configurado quando há preocupação quanto a falta de alimentos num futuro próximo e onde há um comprometimento com a qualidade da comida disponível. A moderada implica restrição quantitativa dos alimentos. E a insegurança alimentar grave é constatada quando os adultos e as crianças de uma família sofrem privação de alimentos, podendo passar fome.
Ignorar o histórico de sofrimento que levam as pessoas a passar fome, em maior ou menor proporção, é ignorar o próprio povo. E Sim, nós sabemos porque há fome.
Pobreza e fome são fenômenos
correlatos, milhões de pessoas no mundo não acessam alimentos adequados, e,
portanto, passam fome, porque não têm os recursos necessários seja para
produzir, seja para consumir alimentos de maneira adequada.
De acordo com estudo feito pela FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, “O Estado de Segurança Alimentar e Nutricional do Mundo (SOFI)”, de 2019, divulgado essa semana, em Nova York, o número de pessoas que enfrentam a fome aumentou novamente, e agora está em torno de 821 milhões de pessoas. Com a inclusão do indicador FIES (Food Insecurity Experience Scale) e uma avaliação da insegurança alimentar moderada, temos números mais completos que mostram que cerca de 2 bilhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar, a nível global.
A fome também cresce no Brasil. Francisco Menezes, economista que milita na área de soberania e segurança alimentar e nutricional, afirma que depois de uma notável redução da pobreza no país, que perdurou até 2014, constata-se outra vez seu crescimento. De acordo com dados disponibilizados no final de 2018 pela Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, a proporção de pessoas pobres no Brasil aumentou de 52,8 milhões para 54,8 milhões de pessoas e o número de pessoas em extrema pobreza, passou de 13,5 milhões para 15,2 milhões de pessoas, somente em um ano.
Esta situação se manifesta de
forma diferente nas regiões do país. A fome e a insegurança alimentar sempre afetaram
de maneira mais contundente alguns grupos, como população negra, povos
indígenas, povos e comunidades tradicionais, mulheres, dentre outros.
Mas o direito à alimentação não se limita ao direito de não passar fome e só se realiza quando existe um processo alimentar, uma forma de produzir e consumir alimentos, que gere saúde e vida, para a nossa e para as futuras gerações. O que também sofre gravíssimos ataques no Brasil.
A política de segurança alimentar e nutricional, que serviu de modelo para outros países no mundo, tem sofrido cortes orçamentários e profundas alterações em seu desenho institucional. O ritmo de liberação de agrotóxicos em 2019 foi o maior registrado na história brasileira, assim como estão sendo extintos os canais que existiam para que se pudesse participar e exigir direitos, a exemplo do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e outros tantos.
No Brasil falta trabalho para milhões de brasileiros e brasileiras, cada vez mais aviltados em seus direitos, falta terra e território para outros tantos… no Brasil há fome de comida, há fome de direitos e há fome de democracia.
Ignorando a realidade do país que governa e o agravamento das condições de vida das pessoas mais pobres nos últimos anos, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou nesta sexta-feira (19), numa entrevista a correspondentes estrangeiros, que não existe fome no Brasil.
Dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), com base em informações fornecidas pelo próprio governo, mostram que a fome atinge pelo menos 5,2 milhões de brasileiros, vítima da desnutrição e da insegurança alimentar. Mas Bolsonaro, baseado “no que a gente vê por aí”, diz que isso não é verdade.
“Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem, aí eu concordo. Agora, passar fome não. Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas com um físico esquelético como a gente vê em alguns outros países aí pelo mundo”, disse ele.
Bolsonaro foi além, criticando a política de distribuição de riquezas em governos anteriores, afirmando que não resolveram o problema da miséria. “Adotou-se no Brasil, dos governos Fernando Henrique para cá, que distribuição de riquezas é criar bolsas. É o país das bolsas”, debochou Bolsonaro.
De novo, os dados desmentem o presidente. A mesma FAO mostra que em 1999 havia 20,9 milhões de brasileiros desnutridos, total que foi reduzido a 12,6 milhões e 2004 e para 7,4 milhões em 2007, chegando em 2008 aos 5 milhões atuais.
Bolsonaro também apresentou uma informação incorreta aos jornalistas ao falar do desempenho do país na educação.
“A educação aqui no Brasil, nos últimos 30 anos, nunca esteve tão ruim”, disse. “As provas do Pisa bem demonstram isso daí. Esses políticos que criticam a questão da fome no Brasil, no meu entender, tem que se preocupar em estudar um pouco mais as consequências disso daí”.
Os dados do Pisa, disponíveis no site do governo, apontam que a série histórica teve início apenas no ano 2000 e que evoluíram em todas as disciplinas ao longo da década, com uma oscilação em Matemática na edição de 2015, que avaliou um número maior de alunos na comparação com as edições anteriores.
“O Brasil melhorou o desempenho considerando a média das três áreas e, quando comparado com 2003, foi o país que mais cresceu em Matemática”, diz o site do Inep.
A América do Sul abriga a maior parte dos subnutridos devido á deterioração da segurança alimentar na Venezuela, conforme o novo relatório da ONU
A fome está aumentando na América Latina e no Caribe: em 2018 afetou 42,5 milhões de pessoas, 6,5% da população regional, diz o novo relatório conjunto das Nações Unidas, O Estado da Segurança alimentar e Nutricional no Mundo em 2019, (SOFI, por sua sigla em inglês)
De acordo com o relatório, nos últimos cinco anos (2014-2018), a subnutrição vem aumentando no mundo todo, principalmente debido aos incrementos na África e – em menor medida – na América Latina.
Na América Latina e no Caribe, as taxas de subnutrição vêm aumentando nos últimos anos, principalmente como consequência da situação na América, onde a porcentagem de pessoas com fome aumentou de 4,65% em 2013, para 5,5%, em 2018.
A América do Sul concentra a maioria (55%) das pessoas que sofrem de subnutrição na região, e o aumento observado nos últimos anos se deve á deterioração da segurança alimentar na República Bolivariana da Venezuela, onde a prevalência da subnutrição aumentou quase 4 vezes, desde 6,4%, entre 2012-2014, até 21,2% no período de 2016-2018.
A elevação significativa da insegurança alimentar nos últimos anos coincide com o período de recessão do país, uma vez que a inflação alcançou quase os 10 milhões percentuais e o crescimento do PIB real piorou, indo dos 3,9% negativos, em 2014, para 25% negativos aproximadamente, em 2018.
Em contraste, a porcentagem de subnutridos na América Central (6,1%) e no Caribe (18,4) têm diminuído desde 2013, apesar de ainda apresentarem números superiores aos da América do Sul (5,5%).
“Durante os primeiros 15 anos deste século, a América Latina e o Caribe cortaram a subnutrição pela metade. Mas, desde 2014, a fome vêm aumentando”, disse o Representante Regional da FAO, Julio Berdegué.
“Temos que resgatar, em média, mais de 3,5 milhões de pessoas da fome, todos os anos, a partir de agora até 2030, se quisermos alcançar a meta de fome zero do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2”, acrescentou.
Desaceleração econômica, aumento da pobreza e desigualdade
O aumento da fome está intimamente associado à desaceleração econômica geral da região. As quedas nos preços das commodities desde 2011 levaram a uma deterioração das finanças públicas para muitos países dependentes das exportações de commodities na América Latina e no Caribe.
A taxa de desemprego urbano atingiu 8,9% em 2016, representando um aumento de 1,6 pontos percentuais em relação a 2015. O declínio do PIB e o aumento do desemprego resultaram em menores rendimentos para as famílias. Após vários anos de reduções acentuadas na pobreza, o número de pessoas pobres subiu de 166 milhões para 175 milhões entre 2013 e 2015, aumentando de 28,1% para 29,2% da população.
Uma nova medida para a insegurança alimentar:
O relatório SOFI deste ano inclui uma nova maneira de medir o avanço em direção ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2.1: a prevalência de insegurança alimentar moderada ou grave com base na Escala de Experiência de Insegurança Alimentar (FIES).
Embora a prevalência de desnutrição (fome) seja o indicador tradicional da FAO usado para monitorar a fome, a escala FIES se baseia em dados obtidos por meio de pesquisas diretas com pessoas sobre segurança alimentar e acesso a alimentos.
De acordo com o FIES, 9% da população latino-americana (apenas América do Sul e Central, já que não há dados disponíveis para o Caribe) encontravam-se em grave insegurança alimentar em 2018, enquanto 21,9% sofriam com insegurança alimentar moderada. A taxa de insegurança alimentar grave atingiu 10,6% para a América Central e 8,3% para a América do Sul. A insegurança alimentar moderada afetou 20,9% dos centro-americanos em 2018 e 22,3% dos sul-americanos.
Desnutrição crônica, aguda, sobrepeso e obesidad
Atualmente, segundo o relatório SOFI, 4 milhões de crianças menores de 5 años sofrem de sobrepeso (7,5% do total), 700 000 sofrem desnutrição aguda (1,3%) e 4,8 milhões sofrem atraso no crescimento ou desnutrição crônica (9%).
Para os adultos a situação é ainda mais grave em termos de obesidade e sobrepeso. “Hoje, para cada pessoa que passa fome, mais de seis pessoas sofrem de sobrepeso”, disse Berdegué, convocando os países a realizar um grande esforço regional contra todas as formas de má nutrição.
Alimentos encarecidos garantem lucro de fundos de investimentos internacionais e populações ficam sem itens essenciais
A fome no mundo aumentou pelo terceiro ano consecutivo. Em 2017, 821 milhões de pessoas não ingeriram a quantidade de calorias mínimas indicadas para atividades diárias. As informações foram apresentadas pelorelatório “A segurança alimentar e a nutrição no mundo”, da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado no início do mês.
Entre os fatores responsáveis pelo aprofundamento dessa mazela social, estão crises econômicas, conflitos armados e eventos climáticos como intensos períodos de secas, que impedem colheitas de produtos que estão na base da cadeia alimentar.
O Atlas do Agronegócio 2018, organizado pelas fundações alemãs Heinrich Böll e Rosa Luxemburgo, apresenta ainda outro elemento: a especulação financeira nas bolsas de valores aumenta o preço das commodities agrícolas, mercadorias produzidas em larga escala, como por exemplo, o trigo, milho, cacau, café e açúcar, entre outros.
As negociações das commodities são feitas por meio dos chamados contratos futuros, transações padronizadas entre produtores e fundos de investimentos para controlar os riscos que envolvem a produção. No caso das commodities agrícolas, não se pode prever se o preço será alto devido à escassez de produtos ou se será baixo devido à abundância, fatores determinados por elementos externos como o clima.
Dessa forma, tanto o produtor quanto o comprador acordam um preço para a produção em uma determinada data futura e assim eliminam os riscos de uma possível oscilação na produção.
Como funciona a especulação?
Após o fechamento dos contratos futuros, também conhecidos como derivativos, se inicia o processo de especulação financeira por parte do comprador. Este adquire o ativo com a intenção de revendê-lo nas Bolsas de Valores, ou seja, realizar uma venda futura com lucro ainda maior, sob condições de incerteza.
“Toda essa crise de aumento dos preços está muito ligada à amplificação das negociações especulativas desses contratos. Quando se fecha uma coisa em um determinado momento, é um preço. Quando acontece [na etapa final da produção], é outro. Nesse meio tempo, há a especulação para comprar e vender por mais ou por menos. No caso, quem está querendo vender, evidentemente, quer vender na alta”, explica Marcus Oliveira, economista e ativista ambiental.
“Muita gente que atua nesse mercado não está interessado no produto. Não quer o café, por exemplo. Quer saber quanto será a safra e o volume para poder comprar isso e valorizar o papel que está comprando. Não é o café em si, complementa o especialista.
Ao passo que os especuladores continuam a fazer apostas intensas, as commodities agrícolas se valorizam e o preço mundial dos alimentos é inflado. Por exemplo: se o preço da commodity milho aumenta, os preços da pipoca ou da pamonha, também passarão por uma elevação.
Na opinião de Oliveira, a especulação sobre as commodities agrícolas afeta diretamente o combate à fome. “O alimento é mais sério porque há um impacto no preço do alimento. Isso interfere na chegada do alimento ao prato de quem necessita”, ressalta.
“Ninguém deveria passar fome porque não faltam alimentos, se tem um excesso. Mas porque, então, uma em cada oito pessoas passam fome? Porque se tem um processo de distribuição errada, em primeiro lugar, uma disfuncionalidade, e em segundo porque o aumento dos preços também interfere e impede a pessoa mais simples de ter acesso ao consumo.”
Exemplo real
Em 2010, o fundo de investimentos inglês Armajaro Trading, comprou uma quantidade maciça de cacau e provocou um aumento recorde dos preços. Foram 240 mil toneladas, quantidade equivalente a 7% da produção mundial de cacau e 15% dos estoques globais. Matéria-prima suficiente para 5,3 bilhões de barras de chocolate.
Com forte poder de influência no mercado do cacau, a Armajaro pôde vender o produto a um preço maior. A partir do primeiro contrato de futuro sobre o preço, outros traders (negociadores) passaram a especular sobre o derivativo, o “papel criado”. A partir dessa primeira negociação, novos contratos foram gerados. Neste caso, os preços das sementes subiram ao maior valor desde 1977 na Europa, impactando também o preço dos chocolates no mercado.
Marcus Oliveira comenta ainda que nessa dinâmica de especulação das commodities agrícolas, o pequeno agricultor é muito prejudicado, já que o lucro é exclusivo dos especuladores. “O produtor é refém do mercado. Quem faz a gestão do mercado, determina preços. Quem está produzindo, com muita dificuldade, acaba refém disso, dos grandes conglomerados e dos lobbies”, reforça o economista.
“Quando se utiliza [a alimentação] como mercadoria, para especular, não se preocupa em utilizar esses alimentos para o consumo dos mais necessitados”. (Foto: FDV via Wikimedia Commons)
Flexibilização gera concentração
O Atlas do Agronegócio 2018 destaca que regras que anteriormente restringiam as especulações financeiras excessivas sobre os produtos agrícolas foram flexibilizadas desde o início da década de 1990, pela Comissão de Negociação de Mercadorias de Futuro dos Estados Unidos. Como resultado desse processo, as potências financeiras passaram a moldar crescentemente o sistema alimentar global.
A crise financeira global de 2008 incentivou o crescimento do investimento em matérias primas agrícolas. Entre 2006 e início de 2011, de acordo com o Atlas, o total de ativos dos especuladores financeiros nos mercados de commodities agrícolas quase dobrou de US$ 65 bilhões para US$ 126 bilhões.
O estudo traz ainda outro dado: no mercado de futuro de trigo dos Estados Unidos, por exemplo, os especuladores financeiros representavam 12% do comércio em meados da década de 1990, mas, em 2011, a participação era de 61%. Estima-se que, atualmente, a participação esteja em torno de 70%.
Os fundos de investimentos controlam bilhões de dólares de ativos agrícolas. Apenas o DB Agriculture Fund, lançado pelo Deutsche Bank, administra mais de US$ 700 milhões em ativos que incluem milho, soja, trigo, café e açúcar.
A BlackRock, uma das maiores empresas de investimento do mundo, que possui ações da Bayer-Monsanto e da Syngenta, empresas transnacionais que dominam as vendas de agrotóxicos e pesticidas no mundo, assim como a comercialização de sementes, estabeleceu em 2007 um Fundo de Índice de Agricultura que investe em ativos como futuros de commodities e terras agrícolas. O fundo vale mais de US$230 milhões.
Outras corporações, como a Cargill, Bunge e ADM, também possuem lucros bilionários.
“Quando se utiliza [a alimentação] como mercadoria, para especular, para ter um maior lucro, não se preocupa em utilizar esses alimentos para o consumo dos mais necessitados, que são os que tem menos força nesse processo, não possuem dinheiro para comprar”, enfatiza Balaban.
Ele acrescenta que o crescimento de pessoas em situação de insegurança alimentar nutricional no mundo é extremamente alarmante e afasta o mundo da meta de acabar com a fome até 2030.
Além da seca e das alterações climáticas que influenciam na produção alimentar, a ONU cita os conflitos armados como decisivos no aumento exponencial da fome.
“Só o Programa Mundial de Alimentos tem cinco casos máximos que chamamos de L3, nível três, em que temos que entregar e fazer com que cheguem os alimentos nas regiões. O Iêmen é muito preocupante, a Síria, o Iraque, o Sudão do Sul, o Afeganistão. São regiões onde os conflitos persistem e nesse cenário, as pessoas não têm capacidade de produzir e fica muito mais difícil o acesso dessas populações aos alimentos”, afirma o coordenador do PMA.
Balaban também comenta o caso brasileiro. “O Brasil chegou a menos de 3 milhões de pessoas [com fome] e agora já está em 5 milhões em pessoas com insegurança alimentar. O aumento acontece devido a crise econômica que o país vem enfrentando, e a diminuição, principalmente, de alguns investimentos necessários para os pequenos agricultores familiares, os mais atingidos, e principalmente de políticas sociais.”
Desperdício e distribuição
Outra questão trabalhada pela FAO, braço da ONU para a alimentação e a agricultura, e pelo PMA, é tornar evidente que não falta produção de comida no mundo para todos os seus habitantes, mas o grande desperdício de comida, além dos fatores citados, dificulta sua distribuição.
O especialista é enfático ao opinar que, caso fosse prioridade dos países, o problema da fome seria resolvido mas a falta de interesse político impede que isso aconteça.
“Será que somos incapazes de acabar com a fome no mundo ou há uma falta de interesse político em atingir essa meta?”, questiona Balaban. “O mundo gasta anualmente 1 trilhão e 500 bilhões de dólares com gastos militares. Os recursos que vão para políticas sociais, para acabar com a fome, não chegam a 2% disso.”
Depois de 26 dias de ato, grevistas conclamam povo a seguir mobilizado, construindo a resistência democrática a partir das ruas
Desde 31 de julho os ativistas Jaime Amorim, Zonália Santos, Rafaela Alves, Frei Sérgio Görgen, Gegê Gonzaga, Vilmar Pacífico e Leonardo Soares estão em Brasília, sem receber nenhum tipo de alimentação, evocando o instrumento de luta e resistência popular da greve de fome para mobilizar o povo, despertar o debate político, forçar o debate com o poder judiciário em sua mais alta instância e reafirmar que em uma Estado Democrático a vontade do povo deve sempre ser respeitada. Ao decidir pela interrupção da greve, os sete acolheram o chamado de suas organizações para retornar às bases e fomentar com o potencial simbólico do ato praticado a luta popular.
O ato que encerra a greve de fome não representa um final nesta jornada, ao contrário, é uma nova etapa que começa, sintetiza Jairo Amorim, que se pronunciou em nome do grupo. Alojados no Centro Cultural de Brasília (CCB), os grevistas receberam de suas organizações e também das instituições e grupos que os apoiaram desde o primeiro dia ou que somaram-se ao ato ao longo da jornada, uma celebração que reflete a gratidão pelo exemplo e reafirma o compromisso popular de multiplicar a mensagem e o desafio que foram apontados ao longo de toda a greve.
Ao longo dos 26 nós conseguimos fazer um grande debate com a sociedade brasileira, denunciar a volta da fome, mostrar para o mundo as consequências do golpe, o aumento da violência, o abandono dos mais pobres por parte do estado e o papel que o poder judiciário exerceu para que isso acontecesse -, declarou Amorim. “O judiciário cumpriu um papel decisivo a favor do golpe e contra o povo, mostramos para todos esses cenários em que se conduziu a judicialização da política e a politização do poder judiciário, o que é incompatível com uma sociedade democrática -, acrescentou. Para os sete ativistas tão importante quanto dialogar com os Ministros do Supremo, foi conquistar a solidariedade ativa da população, que ampliou através de suas redes pessoais as mensagens dos grevistas que repercutiram quase que exclusivamente pelos canais de mídias progressistas, sendo propositalmente bloqueados pelos principais canais de comunicação da mídia burguesa.
– Ao sair da greve temos consciência de que cumprimos um papel importante, ajudamos a mobilizar e organizar o povo, colocamos em pauta novas perspectivas para esse país, evocamos a ideia de um Brasil-Nação para todos os brasileiros -, afirma Amorim. “Nós saímos da greve para um outro patamar da luta, seguiremos lutando pela liberdade de Lula, mas olhamos para a frente vislumbrando o Congresso do Povo e a consolidação da Frente Brasil Popular como um instrumento de desenvolvimento político e social para toda nossa gente, abrigando a nova militância que surgiu da resistência ao golpe e vem crescendo cada vez mais, uma militância sem vícios, que está disposta a ajudar a construir uma nova história possível e necessária.