Prato do Dia #1: A carne é fraca e os alimentos não são mercadorias

A Operação “Carne Fraca” da Polícia Federal traz para o debate público as práticas das grandes empresas do agronegócio, como a JBS e a BRF, no ramo da alimentação. Independente das críticas que a operação vem sofrendo, especialmente por parte do governo, os fatos já demonstram como as grandes empresas podem gerar violações de direitos em todas as etapas do processo alimentar, isto é, desde  a produção de alimentos até o seu aproveitamento, depois do seu consumo por seres humanos.

Em primeiro lugar é importante apontar a pequena capacidade do Estado em fazer frente de maneira efetiva a todas as irregularidades que acabam sendo servidas como violações de direitos no prato de cada um de nós: soja no lugar de frango, soda cáustica no leite, carne apodrecida, agrotóxicos não permitidos ou usados além do permitido, e por aí vai – o cardápio é extenso. Sem ações reguladoras efetivas, não há garantia do direito à alimentação e nutrição para a população.

A mídia acaba tratando o assunto de maneira, no mínimo, curiosa. Em agosto de 2016, foi lançado o PlanoAgro+ pelo Governo Federal, o qual conta com 69 medidas imediatas (de quase 300 previstas) de redução da fiscalização sanitária – isto é, são medidas afetas à saúde pública, adotadas por Blairo Maggi, Ministro da Agricultura, sob o pretexto de que cabe ao mercado punir quem não produz como se deve. A mesma mídia que divulgou com cara de nojo a operação policial a “Carne é Fraca”, festejou o PlanoAgro+ como uma medida de desburocratização do agronegócio, sem falar da importância das medidas de regulação da produção e consumo de alimentos para a saúde pública. Muito barulho, pouca informação.

Com relação à comercialização de alimentos, é também importante registrar que, se de um lado existe uma liberalização de regras para o agronegócio, de outro existe imposição de exigências de produção e comercialização que afetam, principalmente, a agricultura familiar e camponesa, incluindo a perseguição e criminalização de mecanismos tradicionais de intercâmbio não mediados pelas leis do mercado – a exemplo das feiras de rua e da produção artesanal de alimentos. Neste contexto, torna-se ainda mais grave a injustiça percebida na diferença de apoio dado pelo Estado Brasileiro ao agronegócio e à agricultura familiar – embora seja essa a que mais produz e alimenta a população e a que mais emprega no meio rural.

Outra reflexão importante a fazer no contexto da operação Carne Fraca é que por um lado, ainda existem parcelas da sociedade brasileira que sofrem de fome e, de outro, grande parte da população possui altos índices de sobrepeso e obesidade: segundo os dados mais recentes da FAO, por exemplo, 54,1% dos adultos brasileiros estão com sobrepeso, e 20% com obesidade. A essência dos negócios de JBS, BRF e empresas similares constitui uma causa principal dessas duas situações antagônicas: a produção e o consumo exagerados e insustentáveis de proteína animal. Sofremos a imposição de um modo agroindustrial baseado na produção de alimentos altamente processados que respondem a necessidades alimentares criadas por outras culturas e interesses e, além disso, é frágil a regulação da publicidade de alimentos, mesmo quando o alvo dessa publicidade são crianças, público que deveria ser a prioridade absoluta do Estado, quando falamos de garantia de direitos.

Do ponto de vista do setor produtivo, a produção pecuária pautada em alimentação dos animais com cereais, bem como no grande desmatamento causado pelas pastagens e para a produção de tais cereais, representa impactos para todo o mundo. Em 2006, a FAO estimou que o pastoreio ocupava uma área equivalente a 26% da superfície terrestre livre de gelo do planeta, enquanto 33% do total de terras aráveis ​​eram dedicados à produção de alimentos para animais, especialmente o milho e a soja. O estudo da FAO estimou que o setor pecuário era responsável por 18% das emissões de gases de efeito estufa medidas em equivalente de CO².

Existem ainda os conflitos agrários por trás da produção de carne. O caso dos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, é um exemplo de como a criação de gado e grãos afeta seus territórios tradicionais e suas vidas, expondo-os a casos de despejos, torturas, ataques e assassinatos de suas lideranças.

De outro lado, o alto consumo de carne em países desenvolvidos tem contribuído para doenças crônicas, incluindo obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e câncer. De modo a sintetizar a importância desta questão do consumo de proteínas animais, o ex-Relator da ONU para o direito à alimentação, Olivier de Schutter, destacou como prioridade na agenda da alimentação mundial a necessidade de se mitigar os impactos negativos da produção industrial de carne pela via do encorajamento da redução do consumo desta nas sociedades em que este consumo já atingiu níveis preocupantes.

Não será a Operação “Carne fraca” que vai colocar um fim em tudo isso. Não serão algumas operações policiais que vão redirecionar o que e como produzimos e consumimos alimentos. O que pode mudar essa realidade são leis e políticas públicas, articuladas e efetivamente participativas, que concebam alimentos como direitos e como algo fundamental para nossa vida e para nossa saúde. Para isso são necessários uma sociedade civil atenta e ativa por justiça social e ambiental, um Congresso que não seja dominado por interesses ruralistas e um governo comprometido com direitos humanos. Quando retornarmos a um verdadeiro e efetivo Estado democrático, pode ser que tenhamos comida de verdade em nosso prato.

 

Por Valéria Burity – secretária geral da FIAN Brasil e Lucas Prates – assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil

Tese “Organizações Sociais e Políticas Públicas: inserção da Fetraf-Sul nas políticas públicas de segurança alimentar e nutricional”

Disponibilizamos a Tese de Doutorado de Irio Luiz Conti, submetida e aprovada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, defendida em 28 de junho de 2016.

O objetivo geral da Tese foi compreender as mudanças ocorridas no interior de organizações sociais da agricultura familiar, como a Fetraf-Sul, em virtude de sua participação na formulação e implantação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional (SAN). A investigação se caracterizou por ser um estudo de caso e privilegiou a abordagem qualitativa, auxiliada pela quantitativa. Optou-se por duas unidades de análise, sendo uma em Brasília, Distrito Federal, e outra no município de Constantina, no Rio Grande do Sul. A tese de fundo desta pesquisa é que a definição das formas de organização e ação e das estratégias dos movimentos e organizações sociais é, em parte, estruturada em função da forma como se configuram as relações com os atores e instituições político-administrativas. Essas formas se explicam, parcialmente, por sua inserção relacional na qual as relações com o Estado são centrais. Neste sentido, a mudança de relações baseadas, centralmente, no confronto para relações baseadas, centralmente, na cooperação conflituosa oportunizou e, por vezes, demandou transformações importantes na organização e na atuação da Fetraf-Sul.

Os principais resultados da investigação são organizados em cinco conclusões. A primeira é que a análise da inserção da Fetraf-Sul nas políticas públicas levou ao resultado teórico explicitado na conformação de um novo padrão de relações entre o Estado e os movimentos e organizações sociais, sobretudo, expresso na cooperação por formulação de políticas públicas e na sua execução qualificada por parte das organizações sociais. A segunda realça que a Fetraf-Sul aproveitou as oportunidades políticas que se abriram nos vários espaços para construir políticas públicas, com base em relações de cooperação com o Estado, que se tornaram efetivas e contribuíram para melhorar a vida dos agricultores familiares. A terceira é que o sindicalismo rural e a segurança alimentar e nutricional se constituíram com trajetórias e relações estanques entre si e com o Estado. Este, em boa medida, segue adotando políticas públicas setorializadas no espaço rural e submete as organizações sociais à mesma lógica na sua execução. A quarta é que, apesar de diversas iniciativas de políticas públicas incrementadas pela Fetraf-Sul e suas organizações filiadas, especialmente pelas mulheres agricultoras familiares, a SAN não se constituiu em prioridade política em sua agenda, nem recebeu atenção acentuada por parte de suas estruturas sindicais.

Ademais, a partir de 2012 a cooperação nas políticas de SAN enfraqueceu nas duas esferas de governo e se tornou mais conflituosa, sobretudo devido às mudanças na operacionalização do PAA em âmbito federal e de governo em Constantina. A quinta evidencia que ocorreram mudanças na profissionalização de dirigentes e da equipe técnica, na passagem de processos de formação para projetos de capacitação, na moderação do discurso da Fetraf, na ampliação de suas estruturas organizativas e na criação de organizações específicas para responder às novas exigências decorrentes de sua inserção na formulação e execução de políticas públicas.

Leia a Tese completa AQUI