Entrevista | DEBORAH DUPRAT: “Um governo que não provê direitos é inconstitucional”

Publicada, em versão resumida, no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

O neoliberalismo não é uma possibilidade constitucional no Brasil, defende a ex-subprocuradora-geral da República Deborah Duprat. Ela ressalta que a Constituição Federal de 1988 traz a clara opção por um Estado forte, provedor de políticas públicas. Nesse sentido, aponta contribuições do Ministério Público à defesa da coletividade, mas também uma pendência exagerada da instituição para o lado penal. Com relação ao Judiciário, ela alerta para o distanciamento cada vez maior da vida real e, assim, das necessidades da população.

Homenageada por três ex-procuradores-gerais e mais de 300 procuradores e procuradoras ao se aposentar, ela voltou à advocacia, com o combate à fome como prioridade. É uma das autoras da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 831, que pede ao Supremo Tribunal Federal (STF) a determinação de medidas urgentes para combater a insegurança alimentar e nutricional. A entrevistada ressalta a importância da agricultura familiar – e do Pnae – no enfrentamento desse cenário.

Para a ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão, o desmonte da estrutura de proteção social nos últimos anos foi de tal ordem que pedirá uma resposta similar a uma justiça de transição, estratégia excepcional para julgar e superar o legado de violência em massa de períodos de ditadura ou guerra.

Duprat enfatiza a necessidade de o país recompor seu funcionalismo e as agências governamentais responsáveis pelas políticas de direitos humanos, mas diz que precisamos examinar um certo esgotamento do espírito constitucional, que vai levando a competição a deslocar a solidariedade e constitui, a seu ver, um elemento-chave na ascensão de um governo como o de Jair Bolsonaro.

FIAN Brasil: A primeira pergunta passa pela atuação da senhora no Ministério Público, que contemplou muitas pautas que nós – entidades e movimentos progressistas – consideramos fundamentais. Com o Direito Achado na Rua e a participação de outras organizações, fizemos aquele livro de enunciados jurídicos em torno do Dhana, diante de uma percepção de que é como se uma parte da Constituição estivesse sempre sendo secundarizada ou ignorada. A senhora concorda com essa leitura sobre o funcionamento do nosso sistema de justiça?

Deborah Duprat: Eu concordo, sim. Acho que a ênfase, inclusive, deve ser no próprio Judiciário, porque é interessante a gente analisar a Constituição de 1988, a partir das lutas que foram travadas desde a década de 70, para, enfim, uma emancipação da sociedade ainda vítima do projeto colonial. A Constituição de 1988 vai ser o primeiro documento constitucional, primeiro documento jurídico a reconhecer direitos para todas as pessoas. Então é interessante que uma Constituição com essa característica, que favorece muito o acesso à justiça, porque cria a Defensoria Pública, tanto da União, quanto dos estados, coloca no Ministério Público também a atribuição de zelar pelos direitos fundamentais, pelos direitos da cidadania, e pouca ou nenhuma preocupação teve com uma remodelagem, digamos assim, do Poder Judiciário.

É um Poder Judiciário que até quando estava mais próximo da Constituição… Enfim, a potência daquele movimento ainda tornava o Judiciário, vamos dizer, mais atencioso aos direitos que se inauguravam. Com o passar do tempo, com o distanciamento da potência constitucional, é um Judiciário cada vez mais pouco conhecedor, digamos, das normas da Constituição, mas não é porque não conhece o Direito. Na verdade o Judiciário não conhece o mundo, não conhece a vida real. Se é um Judiciário que não vai ao supermercado, que tem alguém abrindo a porta, tem um elevador exclusivo, tem um local, tem motorista para transportá-lo, enfim, todas essas circunstâncias tornam o Judiciário extremamente oligárquico, distante da sociedade, e se isso é fato em meio urbano, mais ainda em meio rural, em meio agrário.

FIAN: Certo. A gente vai voltar um pouco a esse ponto, mas, com relação ao Ministério Público, nós presenciamos a contribuição em algumas lutas e vitórias importantes na garantia da alimentação escolar ou da universalidade dela. Na avaliação da senhora, a atuação, em um tema como esse, é exemplar em relação ao papel do MP? E esse tipo de atuação vem sendo, vamos dizer, a média da instituição? Como corpo, ela vem cumprindo satisfatoriamente esse papel?

Duprat: A gente tem que lembrar que esse desenho do Ministério Público, que acumula ação penal pública, a pauta de direitos humanos e o controle externo da atividade policial, é uma jabuticaba brasileira, não existe em nenhum outro lugar do mundo. Geralmente o Ministério Público só tem a função de acusador na ação penal no resto do mundo. Esse desenho também é anterior à Constituição. Na década de 80, no período da redemocratização, o Ministério Público começou a assumir funções de defesa de direitos coletivos, como é o caso da questão ambiental, e logo depois na lei da ação civil pública, também em relação a consumidor – nós estamos falando de uma lei de 1985 –, a patrimônio cultural, a patrimônio paisagístico, estético, histórico, enfim, é um Ministério Público que nasce com essa conformação de ter as três atribuições.

O que eu acho que é o problema? Nós temos Ministério Público que atua na defesa de direitos da cidadania, da coletividade? Temos. Isso aí é inegável, a maior parte das ações propostas ao longo desse período pós-88, a maioria das ações foi proposta pelo Ministério Público, tanto nos estados quanto o Ministério Público Federal. Mas também é uma instituição que, com o passar do tempo, ela tem um crescimento do direito penal, ela volta à sua atribuição típica e parece que essa atribuição engole os demais campos. Se você procurar na organização do Ministério Público, a área penal é uma área superdimensionada, contra a área da cidadania, a área de direitos fundamentais. Então se você me perguntar, é uma atribuição típica do Ministério Público? É. É exercida? É. Por muitas pessoas? Não, por uma minoria, quem pode vai para a área penal. Isso é eterno? Não, eu acho que vive de ciclos, talvez a pior fase tenha passado e a gente esteja de volta ao Ministério Público atuante na área da cidadania, afinal, a pandemia veio para escancarar as nossas mazelas sociais, a mostrar que muito pouco foi feito, pós-88, para diminuir o fosso de desigualdade e injustiça social.

Então eu tenho esperança de que o Ministério Público possa, sim, desempenhar esse papel. Eu só quero fazer uma parte muito breve, eu fui examinadora, de Direito Constitucional e Filosofia do Direito, nos quatro últimos concursos do Ministério Público Federal, e eu acho que uma chave importante está exatamente no concurso para essas carreiras. Você tem capacidade de recrutar, de acordo com uma prova que leve para esses lugares, uma prova adequada, tem capacidade de recrutar pessoas muito interessantes.

FIAN: Fazendo um paralelo, como, no Itamaraty [Ministério das Relações Exteriores], você ter também um concurso que não foque excessivamente em questões de etiqueta.

Duprat: É. Olha, as minhas provas, se você procurasse na Constituição você não tinha resposta, elas envolviam violência doméstica, envolviam relações de gênero, de identidade sexual, reforma agrária, demarcação de terras indígenas, marco temporal, enfim, eram pessoas que tinham que estar antenadas com discussões muito contemporâneas e muito pouco preocupadas com aquele Direito que, enfim, é mais revestido de fórmulas e de protocolos do que de conteúdo.

FIAN: Então, para termos agentes públicos mais sensíveis às dificuldades e às vulnerabilidades da população, a chave estaria principalmente no processo seletivo e isso puxaria um pouco a formação também?

Duprat: Olha, eu acho que não só, sabe? Em relação ao Ministério Público, eu acho que alguns outros pressupostos são muito importantes. Primeiro, eu acho que demorou muito para incorporar o sistema de cotas – cotas raciais, cotas étnico-raciais –, sempre teve dificuldade com as cotas desde a inclusão de pessoas com deficiência, que foi o primeiro regime de cotas para concurso público. Isso tem que ser superado, é preciso você ter diversidade institucional se você quer ter uma instituição atenta ao diverso, ao democrático. Eu acho também, em relação ao Ministério Público, era preciso ter espaços institucionais de participação social, então isso não dependeria da vontade do membro do Ministério Público, mas seria, enfim, um imperativo institucional.

Óbvio que isso demanda uma reforma constitucional, uma emenda constitucional, e nos tempos atuais não é algo fácil e nem é algo talvez interessante, mas em momentos mais oportunos convém pensar se não é preciso redesenhar uma instituição que trabalha tão fortemente com a população, que tem obrigação de defender a cidadania, se ela não tem que ter espaços de participação social.

FIAN: Voltando à primeira resposta, para a divisão constitucional na defesa dos direitos da coletividade, na avaliação da senhora o ideal seria o MP assumir um caráter mais focado na parte penal, como na maioria dos países, e a Defensoria Pública ser fortalecida?

Duprat: Não, não. Eu acho que é muito interessante o desenho institucional. Acho que a Defensoria Pública tem que ser fortalecida, eu acho que quanto mais força institucional a gente tiver nesse campo, melhor ainda. Nós temos que lembrar que nós temos um fosso aí, de 500 anos, que precisa ser superado, eu acho que nós temos que somar forças e não ficar em um regime de exclusão. Não é o Ministério Público ou a Defensoria, é o Ministério Público e a Defensoria, enfim, a advocacia pro bono [voluntária], quem mais quiser, eu acho que é um campo em que você tem que somar, jamais diminuir.

FIAN: Está ótimo. Então, levando o foco um pouco ao governo federal, o presidente da República, em dois momentos, vetou apoios aprovados de uma forma praticamente consensual no Congresso Nacional. Projetos de lei que beneficiavam segmentos que estão ligados à segurança alimentar de todos, e que, por outro lado, muitas vezes vivem à beira da insegurança alimentar. Também em relação ao PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. Por exemplo, houve aquela carta, praticamente todos os movimentos mais ligados à segurança alimentar, dizendo: “Olha, o PAA, assim como o Pnae, está no centro da solução para tudo, amarra as duas pontas”. E ainda com relação a uma renda mínima, uma renda básica – vários países adotaram soluções desse tipo nos últimos dois anos, com diferentes formas, diferentes volumes, lógicas, mas com uma base comum. Tudo isso o governo tratou como inviável, como uma ameaça à responsabilidade fiscal, uma ameaça a outras políticas, enfim, o discurso de que a conta não fecha. E depois, agora toda essa ênfase no Auxílio Brasil e no Alimenta Brasil, procurando colocar, vamos dizer, dois novos programas, megaprogramas, no lugar do Bolsa Família e do PAA. E a omissão do governo é alvo de uma ação, a ADPF 831, da qual a senhora é uma das autoras, e também foi alvo de um tribunal popular, o Tribunal Popular da Fome, que considerou o governo culpado pelo avanço da insegurança alimentar grave. Com esses novos programas o governo se redime disso, ele deixa de merecer ser alvo de uma contestação como essa ADPF, ou como a conclusão desse tribunal simbólico?

Duprat: Eu acho que não, mas eu tenho que admitir que para o Supremo Tribunal Federal vai ser muito difícil dizer que essas são medidas que não são suficientes. Mas eu quero começar um pouquinho lá trás, eu quero lembrar que nós talvez devamos ter que fazer uma espécie de justiça de transição a respeito do retorno da fome ao Brasil, nos níveis em que ela se encontra. Cinquenta e cinco por cento dos domicílios brasileiros em algum tipo de insegurança alimentar, 9% em situação de insegurança alimentar grave na cidade, 11% no campo.

Lembrando que logo na primeira medida do governo Bolsonaro, da MP 870, em que ele reorganiza a Presidência da República, ele extingue o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], e a gente tem que lembrar que o papel que o Consea teve no enfrentamento à fome, que é reconhecido pela própria ONU, vários relatores do direito à alimentação adequada, enfim, vários relatores apontaram esse dado. O Bolsonaro extingue o Consea e não põe nada no lugar, desorganizando, portanto, a lei do Sisan [Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] – esse dispositivo o Congresso conseguiu tirar fora, mas o Bolsonaro vetou. Então ele havia, de fato, deliberado que o Consea não ia existir e não haveria nenhuma política de eficaz combate à fome.

O PAA, como você apontou, é um programa muito interessante, porque em 2020 foi lançada a declaração da ONU sobre o direito dos camponeses e das camponesas, e a Bachelet [alta comissária da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet], por ocasião dessa declaração, da publicidade dessa declaração, ela disse que camponesas e camponeses alimentam o mundo, reconhecendo que não é o agronegócio que produz alimento, na verdade quem produz alimento é a agricultura familiar, então é preciso fortalecer esses programas para vencer a fome, para vencer a insegurança alimentar.

Então, na ação é pedido que o PAA, que vem da agricultura familiar, assim como parte do Pnae também vem da agricultura familiar, eles sejam fortalecidos, porque são mecanismos importantes de geração de renda para esses segmentos, mas também, mais importante ainda, uma garantia de segurança alimentar para a população brasileira. Então esses vetos que o Bolsonaro… Esse veto mais recente, eu acho que teria que ser levado para ser noticiado no âmbito dessa ação, que procura vencer a situação de insegurança alimentar. Também quero lembrar que essa questão da renda básica é uma diretriz da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] no contexto da pandemia. Houve uma pesquisa da FAO com uma outra instituição da América Latina e do Caribe, que agora eu não estou me lembrando, me fugiu completamente, mostrando os cenários…

FIAN: Cepal?

Duprat: Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe]. Fizeram um estudo mostrando os cenários possíveis da pandemia, então desabastecimento, fome estavam no radar. E é interessante, porque esse diagnóstico recomenda exatamente o fortalecimento dos programas de agricultura familiar, alimentação escolar e mecanismos de geração de renda. Lembrando que o Brasil tem essa experiência acumulada de muitos anos, de um programa que mereceu prêmios no mundo, que é o Bolsa Família.

É óbvio que o Bolsa Família estava, sim, com os seus valores desatualizados, tanto em termos de benefício, como de faixa de renda para ingresso no programa, principalmente considerando o aumento, a carestia dos alimentos, o aumento do valor da cesta básica. Mas a substituição, sem você incorporar essa experiência de muitos anos, sem incorporar a experiência do CadÚnico [Cadastro Único], enfim, ela mais assusta do que tranquiliza, principalmente porque nós não sabemos qual vai ser a fonte de renda permanente para o financiamento desse programa. Eu não tenho acompanhado isso nos últimos dias [a entrevista foi realizada em dez./21], mas o financiamento que vinha da PEC dos Precatórios até agora é incerto. Então, enfim, não sei lhe falar, não sou uma especialista da sustentabilidade desse programa Auxílio Brasil, mas sei do receio de você desprezar um programa que foi ganhando consistência ao longo dos tempos e que um mero reajuste seria suficiente, mas certamente o Supremo Tribunal Federal não vai entrar nessa discussão, ele vai acatar, enfim, a opção que o governo fizer, porque não cabe a uma Suprema Corte ficar dizendo qual é a melhor opção, desde que venha uma opção que se comprometa a gerar essa renda mínima, certamente o Supremo vai admiti-la.

FIAN: Certo. Então, a gente – a FIAN e organizações próximas – trabalha muito com a ideia da exigibilidade, de haver condições para que os direitos possam ser reivindicados, um eixo também importante para setores do Ministério Público e para a Defensoria Pública. Isso está associado a uma cultura de direitos, de as pessoas saberem que têm direitos, que a Constituição garante. Como trabalhar essa frente em um momento em que existem articulações muito fortes – em parte, visíveis em partes ocultas – de promoção de uma ideia de que o Estado existe só para atrapalhar?

Duprat: Não escutei.

FIAN: A gente sabe que existe uma certa ideologia nesse sentido, mas existe uma articulação internacional que opera por meios os mais diversos, muito focada em promover uma desconfiança em relação ao Estado e de procurar fazer valer uma ideia de um individualismo que é muito à revelia do Estado e do coletivo, e que também coloca qualquer associação civil como algo também que vai contra essa liberdade e, muitas vezes, como se fosse parasita do Estado. Essas tendências estão sujeitas a ciclos, como a senhora frisou, mas é uma frente que tem conseguido convencer, ou converter, muita gente. Como fazer avançar uma agenda de direitos nesse contexto?

Duprat: Olha, eu não sei se é uma articulação. O fato é que a chegada… Se é uma articulação internacional, ou de que maneira há uma percepção de um sentimento difuso na sociedade, um mal-estar em relação à Constituição de 1988 e às institucionalidades. Isso foi certamente o motor da campanha eleitoral que levou Bolsonaro ao poder. A gente tem que entender que a sociedade brasileira de 2020 não é a sociedade de 1970, 1980, muita coisa mudou, uma é que, de fato, há de um lado essa cultura neoliberal, enfim, que leva a noção de empresa para toda a sociedade, cada indivíduo se realiza a partir de se configurar como uma empresa, e a relação entre empresas é de concorrência, de competição, então você acaba com aquela noção de igualdade, que é o motor da Constituição de 1988, em favor de uma noção de competição.

Com essa ideia neoliberal vem o máximo individualismo, sendo que a Constituição de 88 convoca para um exercício de solidariedade, é um projeto de sociedade em que todas as pessoas são mobilizadas para vencer essas desigualdades históricas, as discriminações de todos os tipos. Há muita reflexão também psicanalítica, porque esses governos populistas surgem em um momento de, digamos, falência geral das instituições, um sentimento de que não funciona nada. E a busca também de porquês, por que o Estado deixou de funcionar.

E um discurso que é muito recorrente é que o Estado não funcionou porque ele deu muito para determinados grupos, e aí os cotistas negros vão culpar o movimento LGBT, que vai culpar o movimento de mulheres, enfim, é uma transferência de responsabilidades que faz com que o regime de direitos seja visto como formas parasitas e não como os sujeitos de direitos, como pessoas que dependem do Estado, dependem daquele – isso volta e meia é dito  –, daquele “auxiliozinho”, e isso também é uma ideia neoliberal, que você tem que acabar com o Estado nesses espaços em que o indivíduo tem que se fazer por si próprio. Então nós temos muito prejudicado o regime de direitos, não só por conspirações ou não só por alianças, e sim por esse sentimento que atravessou a sociedade e que chega até os nossos dias. Eu converso, enfim, fui recentemente à área indígena, converso com o movimento da reforma agrária, e sei que não está fácil. Sabe? Então se nós não entendemos isso, nós não entendemos também as lutas necessárias para vencer esse período.

FIAN: Certo. Sem dúvida, tem o esgotamento, os limites, aquilo que se alcançou e que não se alcançou, mas não houve também, como em outros países, a captura desse momento propício?, enfim, mecanismos que também em outros lugares conseguiram aproveitar esses estágios, ou momentos como esse, para implementar experiências autoritárias ou levar ao extremo um projeto de espoliação, de retirada de direitos?

Duprat: Desculpa, eu não entendi. Porque o fenômeno Bolsonaro não é um fenômeno único no mundo, nós temos tido no mundo esse avanço autoritário, que se vale exatamente desses momentos de fragilidade do Estado, e o Estado se fragiliza quando ele entra na lógica neoliberal, isso vem assolando a Europa desde as décadas de 80 e 90. No entanto, o neoliberalismo não é uma possibilidade constitucional, a gente tem que pensar que quando a Constituição foi discutida o neoliberalismo já era um modelo hegemônico no mundo, já tinha sido adotado pelas duas grandes maiores economias – na ocasião, Estados Unidos e Inglaterra –, já era fórmula do FMI [Fundo Monetário Internacional], do Banco Mundial, e no entanto, a gente tem muito clara, na Constituição, essa opção por um Estado forte, um Estado provedor de direitos, um Estado provedor de políticas públicas para implementação de direitos, então, o que nós temos de muito peculiar é que, além do autoritarismo, nós temos um modelo de funcionamento de governo absolutamente inconstitucional.

FIAN: E agora, enfim, se como esperado, as forças sociais e políticas conseguirem superar esse momento que nós vivemos, e seja qual for a chapa, a frente, o que nos levar a superar esse momento… Se for bem-sucedida, o que seriam prioridades? Seria uma retomada de determinados aspectos da Constituição? O que poderia ser o prioritário, para o que muita gente tem chamado, eu acho que com razão, de uma ideia de reconstrução nacional? A senhora até usou, em outro momento, o termo “justiça de transição”, que normalmente tem a ver com contextos de restituição democrática, ou volta de uma situação de guerra, não é isso?

Duprat: Isso. Período de graves violações de direitos humanos. O que eu acho que é prioritário: recompor a burocracia [o corpo do funcionalismo] federal, que foi devastada por Bolsonaro. Bem ou mal, ela vinha crescendo desde o primeiro presidente democraticamente eleito, que foi o Collor. Há a partir de 1990 até a Emenda Constitucional 95 [também chamada Teto dos Gastos], em 2016, um crescimento na capacidade do Estado de formular políticas públicas.

E crescimento em que sentido? Primeiro, especializando o Estado, criando agências – isso vem de antes, mas depois isso é potencializado –, então você vai ter ministérios com temas específicos, vai ter agências, como Funai, Ibama, ICMBio, Fundação Palmares, todas criadas para agenciar políticas de direitos humanos. Você cria um aparato, um corpo funcional capacitado, que é recrutado mediante concurso público, a maneira como a Constituição determina que o servidor público seja recrutado, e ele é treinado para essas atribuições, porque a Constituição determina que a progressão na carreira dependa de cursos de especialização.

 E um outro elemento é a participação social, foram, enfim, desde 93, na Conferência de Viena de Direitos Humanos, tem-se presente que não é possível construir políticas de direitos humanos sem a participação dos sujeitos afetados por essas políticas, dos sujeitos implicados nessas políticas. Então esse regime de participação social também foi construído ao longo do tempo.

Nada disso existe mais, não existe a capacidade administrativa, não existe a especialização, o Bolsonaro conseguiu colocar, nas pastas, pessoas contrárias aos objetivos daquelas pastas, veja o que se passa na Fundação Cultural Palmares, que é o caso, na atualidade, para mim mais paradigmático. Uma pessoa [o presidente da fundação, Sérgio Camargo] que nega o racismo, quando o racismo é, enfim, ele tem estatuto constitucional, a Constituição determina que o racismo seja punido como crime… Enfim, isso tudo precisa ser recomposto. Eu não sei que tempo vai levar isso, a gente avalia que o tamanho do estrago do Estado seja enorme, porque a pandemia veio evidenciar isso: o quanto o SUS [Sistema Único de Saúde], enfim, que é essa nossa maravilha, mas o quanto ele estava precarizado, o quanto o Programa Nacional de Imunizações estava precarizado, tanto que se o programa estivesse operando como operou no enfrentamento da H1N1, nós já teríamos um contingente, se ele estivesse operante, se as vacinas estivessem sido adquiridas no tempo certo, nós estaríamos com a capacidade de vacinação muito mais ampla do que a que se chegou.

Enfim, eu não sei estimar o tempo, mas vai ser preciso um investimento, uma engenharia absurda. Tem servidores que procuraram se afastar dos órgãos onde estavam, porque eram perseguidos exatamente pelo conhecimento que detinham, os que puderam se aposentaram, então isso já não se recupera mais, enfim, os que ficaram vão ter que recuperar a capacidade de acreditar no Estado, de que estão, de fato, em uma função pública, guiada pelo interesse público, e que o trabalho que produzem é independente, é baseado em conhecimento científico, é baseado em evidências científicas. Enfim, é um trabalho de reconstrução enorme.

FIAN: E mesmo sendo um governo eleito, então seria comparável a situações muito fora de qualquer normalidade democrática, não é?

Duprat: Completamente. Não é casualidade que haja 150 pedidos de impeachment, não é só uma insurreição da sociedade, é um descalabro. O que mostra como as instituições são capturadas é exatamente a gente conviver com um fenômeno como o Bolsonaro sem uma resposta institucional adequada.

Confira também o que disseram José Graziano, Maria Emília Pacheco, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no telegram
Telegram

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *