Na primeira metade do governo Lula o combate à fome ganha novamente centralidade, e a retirada de 20 milhões de pessoas dessa situação desumana mostra o país a caminho de sair mais uma vez do Mapa da Fome com base na retomada de políticas. Por outro lado, o orçamento para programas estruturantes é insuficiente, assim como a proteção a territórios indígenas e de povos e comunidades tradicionais (PCTs). É o que mostra o Informe Dhana 2024: Esperançar e Exigir Direitos, que abarca também o último ano do governo Bolsonaro.
O relatório foi publicado pela FIAN Brasil com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).
“Se é gritante o contraste com os dois governos anteriores, caracterizados por desmontes e retrocessos, não se pode dizer que caminhamos a passos firmes para sistemas alimentares justos e sustentáveis, uma transição mais do que urgente diante da sindemia global que combina desnutrição, obesidade e mudanças climáticas”, diz a secretária-geral da FIAN Brasil, Nayara Côrtes Rocha, uma das organizadoras da publicação. “O Estado brasileiro segue empreendendo esforços e orçamento público na sustentação de um modelo de produção baseado na monocultura de commodities para exportação, que aprofunda as desigualdades, viola direitos, compromete a saúde pública e nos afasta cada vez mais da soberania alimentar e do Dhana.”
Ela assinala que, da parte do governo federal, as estruturas e as políticas voltadas à realização do direito à alimentação têm sido retomadas a todo o vapor, mas os anúncios ainda superam as ações e os planos e estratégias carecem ainda de recursos e implementação. “Especialmente no que diz respeito à redução de iniquidades e à garantia de direitos humanos aos grupos racializados e historicamente violados em seus direitos, o ritmo do avanço tem sido menor do que o esperado, assim como os resultados nos territórios e na vida dessas pessoas”, diz.
O informe chama atenção para o desnível entre o volume de recursos destinado ao auxílio-gás e o de ações estruturantes como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), as cisternas e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). O auxílio foi criado durante a pandemia de Covid-19 e tem fim previsto para 2026, o que faria a previsão do programa orçamentário de Segurança Alimentar e Nutricional (5.033) cair de R$ 4,9 bilhões para R$ 1,5 bilhão.
Diretrizes voluntárias
A edição de 2024 chega no momento em que se celebram os 20 anos das Diretrizes Voluntárias para o Direito à Alimentação, uma espécie de passo a passo pactuado entre os Estados no âmbito das Nações Unidas para a realização progressiva do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). “No Brasil, é um momento em que se pode novamente respirar e acreditar nessa possibilidade, ainda que em um contexto global e nacional de crises simultâneas, que se retroalimentam e ampliam os desafios para a sociedade, governos e economias”, destaca a outra organizadora do estudo, a assessora de Políticas Públicas Mariana Santarelli, que também integra a coordenação da FIAN Brasil. “Como obstáculos, temos, ainda, o avanço da extrema-direita; um Congresso Nacional conservador e muito alinhado ao agro e à indústria de ultraprocessados; e um novo arcabouço fiscal que pressiona os gastos sociais.”
Além de capítulos focados nas políticas, o relatório dedica uma de suas partes ao contexto econômico. Ela aborda a inflação dos alimentos nos últimos anos, motivada pela disrupção das cadeias produtivas globais. Uma situação exacerbada pela pandemia e pela guerra entre Rússia e Ucrânia, que impactaram a disponibilidade de insumos agrícolas, como fertilizantes, e criaram gargalos logísticos. A desvalorização do real diante do dólar também é lembrada como fator inflacionário.
Informe Dhana busca compreender as estratégias adotadas pelo atual governo para reduzir o preço de alimentos saudáveis, como a retomada de políticas de abastecimento e a reforma tributária.
O documento da FIAN Brasil traz, ainda, um texto sobre ameaças ao marco legal do direito humano à alimentação, em particular a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 17/2023, que propõe trocar o termo “alimentação” por “segurança alimentar” no artigo 6º– aquele que reúne os direitos fundamentais – da Constituição Federal.