A nova edição do relatório anual Observatório do Direito à Alimentação e à Nutrição examina as causas, os impactos e as respostas às crises alimentar, climática e ecológica. A publicação põe em xeque soluções falsas e motivadas pelo lucro e apresenta alternativas fundamentadas no direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana), na justiça ecossocial, na agroecologia e na soberania alimentar.
Os sistemas alimentares industriais não conseguiram atender às necessidades nutricionais da população do nosso planeta. Cerca de 800 milhões de pessoas passam fome atualmente. Nossos sistemas alimentares produzem um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa (GEEs), contribuindo enormemente para a crise climática e exacerbando o acesso a alimentos e nutrição. A extinção em massa de espécies, a destruição de ecossistemas e a interrupção dos ciclos naturais que sustentam a vida na Terra afetam ainda mais o acesso aos alimentos.
O extrativismo, a mercantilização e a financeirização da natureza exacerbaram a exploração, a desapropriação e os despejos violentos. O controle cada vez maior dos recursos naturais por um pequeno número de corporações, indivíduos e estados poderosos também está alimentando a violência baseada em gênero, as formas de discriminação que se cruzam e a crescente desigualdade.
Com o título Alternativas Ecológicas Populares ao Greenwashing Corporativo, a publicação da Rede Global pelo Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN, na sigla em inglês) propõe um caminho diferente com base nas lutas de base contra a captura corporativa, a lavagem verde e as práticas neocoloniais. Ele promove o Dhana, os direitos humanos dos camponeses e de outras pessoas nas áreas rurais e a soberania alimentar para todas e todos.
A edição do observatório está dividida em quatro seções, que examinam os acontecimentos internacionais; a alimentação e a tripla crise ecológica; o colonialismo verde associado à descarbonização; e as lutas de base e suas soluções para as crises climática e alimentar.
Apesar do agravamento da crise alimentar, em 2023 houve pouca ação internacional decisiva para tratar de suas causas. Em vez disso, a captura corporativa dos fóruns internacionais, principalmente na ONU, continuou inabalável. A crise alimentar e a tríplice crise ecológica do clima, da perda de biodiversidade e da poluição estão inextricavelmente ligadas, porém as empresas e os Estados promovem soluções tecnológicas semelhantes para cada uma delas e não abordam os direitos dos pequenos produtores de alimentos.
Nos últimos anos, a descarbonização e as abordagens relacionadas ao mercado foram impostas como o principal paradigma para lidar com essas crises entrelaçadas. Mas esse neocolonialismo verde simplesmente perpetua a destruição ecológica e a mercantilização da natureza, ao mesmo tempo que aprofunda as desigualdades existentes.
Uma transformação ecossocial justa de nossos sistemas alimentares que proteja o direito de todos à alimentação e à nutrição exige justiça global e a promoção da soberania alimentar, da harmonia e do equilíbrio entre a humanidade e o meio ambiente.
A FIAN Brasil participou, neste mês, de uma conferência de políticas contra a fome organizada pelo Ministério da Agricultura e da Alimentação da Alemanha. Com o título de “Vinte anos de ação: avançando o direito humano à alimentação”, o encontro em Berlim celebrou as duas décadas das diretrizes voluntárias das Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) para a realização desse direito, fazendo um balanço dos usos e desdobramentos da publicação. A FIAN está entre as signatárias de declaração pela implementação integral do instrumento.
A secretária-geral da FIAN Brasil, Nayara Côrtes Rocha, ressaltou a importância das diretrizes. “Elas funcionaram como uma ferramenta para que os Estados criassem políticas concretas para realizar gradualmente o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas, o Dhana”, disse. “No Brasil, a sociedade civil se apropriou dessas diretrizes, no sentido de divulgá-las, o que foi muito importante na construção do nosso arcabouço legal de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional.” Ela representou a entidade no evento, realizado nos dias 4 e 5, a convite da Pão para o Mundo (PPM)
Na conferência, cerca de 200 participantes de 38 países discutiram os sucessos e desafios na concretização do Dhana. Além da FIAN, do Brasil foram convidadas a organização de Agricultura Familiar e Agroecologia, AS-PTA, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a Secretaria Extraordinária de Combate à Fome (SECF) do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). Representantes do Consea e da SECF compartilharam nas mesas experiências brasileiras vivenciadas na construção e na reconstrução dessas políticas.
O Brasil teve destaque no evento em razão de sua histórica participação social na construção das políticas públicas do campo. O Consea, que é parte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), é formado por pessoas e organizações distribuídas em todo o território nacional, representando uma grande diversidade de grupos, desde aqueles que enfrentam violações de direitos, passando por promotores do Dhana, organizações dedicadas ao estudo e realização dessas questões, dentre várias outras.
“A participação desses diversos segmentos enriquece nossa política, que, apesar de suas imperfeições e contradições, é referência internacional no campo”, afirmou Nayara Côrtes. Ela disse que essa posição foi consolidada através de práticas inovadoras que inspiram outras nações a adotar abordagens mais inclusivas e participativas na formulação de políticas públicas.
Durante a conferência, especialistas e representantes de diversos setores debateram a construção de uma agenda para garantir o direito à alimentação até o ano de 2034. “Nós refletimos profundamente sobre o que ainda está faltando, os novos desafios que surgem no caminho para garantir esse direito de forma abrangente”, relata Nayara Côrtes. Ela ressalta que, embora tenha havido avanços significativos, há ainda muito trabalho a ser feito. “A luta pelo direito humano à alimentação e à nutrição adequadas só terminará quando todas as pessoas tiverem seus direitos plenamente garantidos”, pontua.
Côrtes apontou a necessidade do diálogo contínuo entre governos e sociedade civil ao redor do mundo. Essa colaboração, segundo ela, é essencial para aprendizados mútuos e para fortalecer estratégias que possam acelerar o progresso na área da segurança alimentar globalmente.
A conferência reforçou o compromisso de diversas nações e organizações em trabalhar de forma colaborativa e intensificada para enfrentar os desafios persistentes e alcançar um futuro em que o direito à alimentação seja uma realidade universal.
Declaração divulgada pela Rede Global para o Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN, na sigla em inglês) enfatiza a necessidade de reconhecer devidamente os avanços na estrutura normativa e jurídica do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) desde a adoção das diretrizes, em 2004. A FIAN faz parte da rede e assina o documento.
O documento foi inicialmente elaborado pela FIAN Internacional e pela Pão para o Mundo (PPM) durante o Fórum Social Mundial 2024, em Katmandu, como resultado do evento paralelo “20 Anos das Diretrizes para o Direito à Alimentação: passado, presente e futuro”.
As recomendações baseiam-se na “Carta de Brasília – Sobre a governança democrática dos sistemas alimentares para a realização do direito humano à alimentação adequada”, declaração do seminário internacional realizado na capital brasileira em 10 de dezembro de 2023, por ocasião da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
DECLARAÇÃO
20 anos das Diretrizes da ONU para o Direito à Alimentação: hora da implementação integral
Por ocasião do 20º aniversário das Diretrizes Voluntárias das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, a Rede Global para o Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN, na sigla em ingês) pede sua implementação imediata e abrangente, com o devido reconhecimento e a aplicação dos avanços da estrutura normativa e jurídica sobre o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) desde que foram adotadas, em 2004.
Milhões de pessoas estão sofrendo de fome e desnutrição devido a desigualdades estruturais, violência nas sociedades e nos sistemas alimentares e apropriação desenfreada de territórios, caracterizada pela aquisição injusta e insustentável de terra, água, sementes e outros recursos naturais, bem como por regimes comerciais injustos e iníquos. Em função da violência baseada em gênero e das formas de discriminação entrelaçadas, as mulheres, as meninas e as diversidades têm sido desproporcionalmente afetadas por essa desapropriação e pelo aumento das desigualdades. Ao mesmo tempo, o extrativismo, a mercantilização e a financeirização, inclusive no contexto da agricultura industrial e da aquicultura, desencadearam a tripla crise planetária das mudanças climáticas, da perda de biodiversidade e da poluição, com impactos devastadores sobre a realização do direito à alimentação e à nutrição, tanto para as gerações atuais quanto para as futuras.
As Diretrizes do Direito à Alimentação foram adotadas pelo Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS) da ONU e pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) em 2004. Elas forneceram uma base sólida para a elaboração e o desenvolvimento de um conjunto completo de normas e políticas de direitos humanos adotadas posteriormente pela ONU, como a Recomendação Geral 34 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), as Diretrizes de Posse da FAO, as Diretrizes para a Pesca em Pequena Escala, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Camponeses e de Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (Undrop) e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (Undrip). Elas contribuíram para o avanço da narrativa dos direitos humanos e enriqueceram a estrutura jurídica normativa do Dhana, fornecendo uma orientação para a transformação dos sistemas alimentares com base nos direitos humanos.
Hoje, 29 países reconhecem explicitamente o direito à alimentação adequada em suas constituições, enquanto mais de 100 países o reconhecem implicitamente ou por meio de diretrizes, princípios ou outras disposições pertinentes. Nesse contexto, gostaríamos de destacar o papel do Nepal como pioneiro: a constituição do país garante o direito à alimentação e à soberania alimentar, e uma lei nesse sentido foi aprovada em 2018. A lei prevê mecanismos institucionais em nível nacional, provincial e local, bem como o desenvolvimento coordenado de um plano nacional de nutrição. Uma portaria para implementar a lei foi aprovada pelo governo do Nepal em março deste ano. Com esse reconhecimento legal, o Nepal concentrou seus esforços na redução da proporção da população subnutrida pela metade desde 2018 e atualmente ocupa a 69ª posição entre 125 países no Índice Global de Fome.
Isso contrasta fortemente com outros países do sul da Ásia. Em Bangladesh, por exemplo, uma lei de direito à alimentação foi elaborada pela Comissão de Leis já em 2016, mas sua aprovação ainda está pendente. Na Índia, apesar de vários desenvolvimentos positivos, como o reconhecimento do direito à alimentação como um direito fundamental pela Suprema Corte em 2001 e a promulgação de uma legislação histórica, como a Lei Nacional de Garantia de Emprego Rural de 2005 e a Lei Nacional de Segurança Alimentar de 2013, a situação da fome é grave e o país ocupa a 111ª posição no Índice Global de Fome.
Pedimos aos governos que fortaleçam seus compromissos com a realização do direito à alimentação e à nutrição e que acabem com a fome e a desnutrição, incorporando as disposições internacionais de direitos humanos à legislação, aos regulamentos, às políticas e aos programas nacionais. Isso implica a criação de mecanismos de responsabilização, garantindo a participação significativa das comunidades afetadas nos processos de tomada de decisão e estabelecendo sistemas transparentes para monitorar e corrigir casos de violações do direito à alimentação.
Pedimos aos governos de todo o mundo que cumpram suas obrigações com relação à realização do direito humano à alimentação e à nutrição, implementando as diretrizes e tomando medidas decisivas para acabar com a fome e a desnutrição. Ao fazer isso, podemos construir coletivamente um futuro em que o gozo do direito à alimentação e à nutrição seja uma realidade para todos, em que os direitos dos indivíduos e das comunidades sejam respeitados, protegidos e cumpridos e em que a comunidade global esteja unida contra as forças que perpetuam a fome e a discriminação.
A cooperação internacional entre os Estados para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais é uma obrigação de todos os Estados. Todo Estado tem a responsabilidade de contribuir ativamente para a manutenção da paz e da justiça duradouras – especialmente em nações afetadas por conflitos – e para acabar com a pobreza e a fome. Ao abordar as causas fundamentais, responsabilizar os atores responsáveis e promover a colaboração em nível local, nacional e internacional, podemos nos esforçar coletivamente em direção a um mundo em que o direito à alimentação e à nutrição seja realizado para todos. Em particular, nós, as organizações abaixo assinadas, recomendamos o seguinte a todos os Estados para a implementação das Diretrizes do Direito à Alimentação:
Colaborações estratégicas: fortalecer as convergências e estratégias conjuntas com a sociedade civil em sua diversidade, priorizando os detentores de direitos, como movimentos sociais, povos indígenas, movimentos feministas e produtores de alimentos em pequena escala.
Fortalecimento da governança com participação social em todos os níveis: criar e implementar sistemas de governança alimentar com fortes mecanismos de participação social e com uma sólida estrutura legal e institucional e condições garantidas de operação.
Defesa do interesse público diante da influência corporativa nos sistemas alimentares: desenvolver estruturas jurídicas abrangentes de responsabilidade, regulamentação e prestação de contas para as empresas, desde a produção até o consumo, bem como normas que protejam os espaços de governança da influência corporativa e do conflito de interesses.
Engajamento em processos e políticas para transformar os sistemas alimentares e fortalecer a posse da terra: promover e participar ativamente da transformação dos sistemas alimentares, respeitando as culturas alimentares locais, valorizando a agrossociobiodiversidade e os princípios da agroecologia, e priorizando os sistemas locais e territoriais, especialmente a importância da segurança da posse da terra.
Nota 1: A declaração foi iniciada pela FIAN Internacional e pela Pão para o Mundo (PPM, Alemanha) e elaborada por ocasião do Fórum Social Mundial 2024 em Katmandu como resultado do evento paralelo “20 Years of the Right to Food Guidelines: Passado, Presente e Futuro”, organizado pelas duas organizações com a GNRtFN.
Nota 2: As recomendações baseiam-se na “Carta de Brasília – Sobre a governança democrática dos sistemas alimentares para a realização do direito humano à alimentação adequada”, declaração do Seminário Internacional “Governança democrática dos sistemas alimentares para a realização do direito humano à alimentação adequada”, realizado na capital brasileira em 10 de dezembro de 2023, por ocasião da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
A declaração é endossada pelas seguintes organizações e indivíduos:
Organizações
Actuar – Associação para a Cooperação e o Desenvolvimento
Texto: Ascom da Secretaria Geral da Presidência da República
Estão disponíveis, no site Brasil Participativo, todos os materiais resultantes da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que foi realizada de 11 a 14 de dezembro de 2023, em Brasília.
Entre os documentos, é possível conferir o Manifesto da 6ª CNSAN, elaborado colaborativamente durante a Etapa Nacional, que traz uma ampla difusão sobre os significados da agenda de soberania e segurança alimentar e nutricional e os caminhos para a realização do direito humano à alimentação adequada; a Carta de Brasília, com a apresentação de uma agenda estratégica, decolonial e antirracista para a realização do direito humano à alimentação adequada e a transformação dos sistemas alimentares, composta por nove itens; a Revista 6ª CNSAN com o registro dos principais momentos da conferência; e o relatório final com todas as propostas aprovadas.
Texo: Assessorias de Comunicação das entidades organizadoras do encontro
Criado há mais de 60 anos e presente em todo o Brasil, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é uma política pública consolidada, inspiradora e de enorme alcance. Mas, na prática, ainda são muitos os desafios para que ele cumpra todos os seus objetivos. Para promover um diálogo amplo sobre gargalos e possíveis caminhos, foi realizado em Brasília o Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?”.
Ao longo de dois dias de trabalho, representantes dessa populações, em conjunto com organizações e movimentos sociais, Centros de Colaboração para a Alimentação Escolar (Cecanes), nutricionistas, membros governamentais do Comitê Gestor do Pnae e gestores estaduais e municipais debateram soluções e recomendações para que a compra local de alimentos saudáveis para a alimentação escolar ocorra em terras e territórios tradicionais.
A atividade contou com quase 90 participantes, sendo 60% mulheres e um terço do total composto por indígenas, quilombolas ou representantes de povos e comunidades tradicionais que produzem alimentos para a venda aos mercados institucionais. O evento, realizado entre os dias 27 e 28 de maio, terá como produto final uma agenda comum em forma de publicação, a ser lançada ainda este ano, além de uma carta de recomendações – aprovada no encontro – para ser apresentada ao poder público para melhorias de acesso ao Pnae.
Diálogos a partir da realidade local
A programação do evento foi organizada para promover a troca de experiências entre as pessoas presentes. Estes diálogos trouxeram pontos relevantes para entender como na prática ainda existem muitos desafios para a implementação do Pnae.
Em seu território, Vitória Rodrigues da Silva conhece muito bem essa realidade. Vitória é moradora da aldeia Lourdes, localizada no município amazonense de Boca do Acre, terra indígena (TI) não demarcada. Mas seu povo, os Jamamadi, segue no processo de organização, inclusive por meio da participação nas vendas para o Pnae. “Trabalhamos em nossas roças com muita dificuldade e enfrentamos pressões de fora. Mas já entregamos 26 produtos, como banana, abacaxi, inhame, cará, açaí, buriti, macaxeira. Quando vinha merenda só da sede do município, faltava muito. Isso dificultava muito para as crianças”, conta Vitória.
Em Boca do Acre, foi necessária uma articulação de diversas instituições e organizações locais para que os processos de compras de povos indígenas e comunidades tradicionais fossem colocados em prática. Esse processo vem ocorrendo desde 2021, com a mobilização via Organização dos Povos Indígenas Jamamadi e Apurinã de Boca do Acre- AM (Opiajbam) e a Associação Bom Jesus da Resex Arapixi, em articulação com a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), Ministério Público Federal, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam).
Em 2022, foram realizadas oficinas de preparação, compartilhando processos de mapeamento de produção e de realização de chamadas públicas entre estas organizações, povos indígenas, ribeirinhas e ribeirinhos, e gestão pública local. O esforço rendeu resultados positivos e já em 2023 as primeiras entregas começaram a acontecer.
E essas entregas envolvem grupos diversos: são moradoras e moradores da Reserva Extrativista Arapixi, da Terra Indígena Boca do Acre, e de territórios ainda não demarcados, como aquele onde Vitória vive. “Para nós, acessar o Pnae significa mais uma oportunidade de renda, mesmo com as dificuldades de logística e demandas de burocracia, que exigem que a gente vá para a cidade. Como é o começo, vamos aprendendo e envolvendo mais pessoas. Nós queremos melhorar nosso trabalho, nossa comunidade, e isso também é pelos nossos filhos, porque entregamos nossos produtos na escola deles”, ressalta Vitória.
Com 15 anos de experiência nas vendas ao Pnae, Jorge Henrique Flores participou do encontro representando o Quilombo São Miguel, localizado no município de Maracaju, que fica na região centro-sul de Mato Grosso do Sul. A comunidade possui uma produção de alimentos diversificada e as mais de 60 famílias se organizam para a venda ao Pnae. O carro-chefe é o hortifrúti, com a entrega de verduras, legumes e frutas, incluindo tomate, banana, mamão, melancia, abacaxi, maracujá, entre outros itens. Há também a produção da polpa de frutas, pães, doces, mel, rapadura e farinha de mandioca.
Por semana, as famílias fornecem de 200 a 300 quilos de alimentos para a alimentação escolar das mais de 90 escolas presentes no município. As vendas para o Pnae impulsionaram o retorno das famílias para a produção local de alimentos. “O Pnae, para o quilombo, veio trazer uma mudança de vida para o nosso produtor. Aqueles que trabalhavam em fazendas e em outras áreas voltaram para a comunidade e começaram a ter a sua própria garantia financeira. Puderam melhorar sua situação, comprar um carro, uma moto, melhorar suas casas”, descreve o agricultor.
As vendas, que começaram em 2009, tiveram obstáculos no caminho. O primeiro impasse foi a adequação às normas da Vigilância Sanitária. Como solução, passaram a beneficiar os alimentos. Então surgiu outro desafio: como facilitar o preparo de alimentos que eram vendidos com a casca, como a mandioca? A resposta foi a implementação de mais uma etapa de beneficiamento, com a entrega das mandiocas já descascadas e picadas. As cozinheiras escolares gostaram tanto que o procedimento começou a ser utilizado também com outros alimentos, como a abóbora.
Para avançar ainda mais na aceitação dos produtos, a comunidade mantém um diálogo permanente com as nutricionistas envolvidas nas compras na alimentação escolar, além de criarem um selo de certificação, o “Sabor de Maracaju”. A comunidade também compõe a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos e se articula com outros povos, como a população indígena local. Porém, ainda hoje, existem desafios no acesso ao Pnae, na adequação às normas sanitárias, emissão de notas fiscais, entre outras burocracias, como explica Jorge. Ele salienta a importância do encontro, trazendo esses desafios para o centro do debate.
“Para mim, foi importante [ter participado do encontro] porque tirou muitas dúvidas do que a gente tem feito lá. Como escoar a produção? Como trabalhar a política pública dentro da comunidade? Como vender esses alimentos? Esclareceu várias ideias para as dificuldades que enfrentamos. Como emitir notas fiscais, entregar produtos de qualidade e se adequar à inspeção sanitária? Isso foi muito debatido aqui e a gente está vencendo lá. Eu acredito que esse encontro vai produzir muitos frutos e vai ter resposta [do poder público]. A nossa comunidade vem fazendo muitas coisas que estão questionando aqui”, relata.
Por onde avançar?
Em seus dois dias, o encontro promoveu uma troca intensa, o que permitiu apontar os principais pontos de gargalo do Pnae, estimulando a proposição de soluções que atendam aos modos de vida e de produção de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. “Já temos um quadro que prioriza alimentos da agricultura familiar, principalmente de povos indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária. Mas sabemos que, no plano local, os desafios ainda são muitos”, observa a secretária executiva do ÓSocioBio, Laura Souza.
Ela destaca a necessidade de reconhecer que ainda existem muitos entraves para a implementação desta política. Lembra, nesse sentido, que poucos estados e municípios compram hoje produtos dessas populações, pois há uma burocracia excessiva, como a cobrança de inúmeros documentos e regras. “Cabe ao poder público simplificar esses processos, por meio da adequação das normativas, para facilitar e ampliar o acesso às políticas públicas”, conclui.
Para Mariana Santarelli, coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), ainda são muitos os desafios para que as diretrizes do Pnae sejam plenamente asseguradas. “Em várias escolas indígenas, quilombolas e ribeirinhas a alimentação escolar é insuficiente, ultraprocessada e irregular no decorrer do ano, desconsiderando a diretriz do respeito à cultura alimentar. Além disso, é forte o racismo institucional”, diz.
Ela avalia que as recomendações construídas no encontro constituem uma ferramenta assertiva para influenciar os espaços de tomada de decisão e pressionar órgãos públicos envolvidos na implementação do Pnae. “Precisamos de novas normativas que respeitem o direito à autodeterminação desses povos e comunidades. Nossas políticas universais precisam servir para toda a diversidade de populações, terras e territórios, e isso ainda está longe de ser uma realidade”, acrescenta.
Os pontos trazidos no conjunto de recomendações perpassam por cadastramento, chamadas públicas, vigilância sanitária, operacionalização, alocação de recursos, reajuste anual e período de férias, entre outros eixos. O debate do encontro ressaltou a importância de os processos de compra do Pnae se basearem em diagnósticos e mapeamentos agrícolas que valorizem alimentos locais, tradicionais, respeitando a sazonalidade, com precificação que incorpore custos de logística para entrega de produtos às escolas. E que os procedimentos sejam menos burocráticos e mais adequados às práticas comunitárias e às realidades produtivas locais.
Criada em 2021, a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil é formada por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil, sob a coordenação do Ministério Público Federal (MPF). A Mesa atua em âmbito nacional, com comissões estaduais, discutindo ações e medidas voltadas para viabilizar a compra, pelo poder público, de itens produzidos diretamente pelas populações indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais para a alimentação escolar.
Reconhecendo a alimentação escolar como parte das estratégias de produção, autoconsumo e de controle alimentar inseridos dentro da cultura dos povos indígenas e comunidades tradicionais, em 2020 a Catrapovos lançou a Nota Técnica 3/2020/6ªCCR/MPF. A nota possibilita a dispensa de registro, inspeção e fiscalização dos alimentos produzidos nas aldeias e comunidades tradicionais para a venda à alimentação escolar, respeitando os hábitos e cultura alimentar local.
Porém, a ausência de normativas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) com orientações às entidades executoras sobre os procedimentos operacionais para a sua implementação gera um ambiente de insegurança por parte de gestores e nutricionistas, que, muitas vezes, deixam de comprar alimentos tradicionais e disponíveis localmente – como é o caso do pescado, das farinhas e polpas de fruta. Isso se soma à insuficiente normatização das prioridades asseguradas em lei para as compras públicas, bem como a capacitação dos gestores e agricultores. Esses foram debates centrais ao longo do encontro.
O Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?” foi realizado pelo Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio) e pelo Observatório da Alimentação Escolar, com o apoio da FIAN Brasil, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Fundo Dema, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), WWF Brasil e Ministério Público Federal. Também recebeu apoio da Global Health Advocacy Incubator e do projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor, da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, implementado em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
Ao final do encontro, a partir da sistematização das experiências relatadas, uma agenda comum foi firmada, além de uma carta de recomendações que será apresentada ao poder público ainda neste ano.
O Supremo Tribunal Federal (STF) volta a julgar nesta quarta-feira (12) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553, que questiona isenção fiscal para agrotóxicos. O julgamento acontecia em modalidade virtual e, com destaque em abril pelo ministro André Mendonça, a ação passa ser julgada em plenário presencial. A FIAN Brasil é uma das entidades ouvidas no processo como amicus curiae (“amigo da corte”).
“O uso de agrotóxicos interfere diretamente no direito humano à alimentação e à nutrição adequadas do povo brasileiro”, destaca o assessor de Direitos Humanos da entidade, Adelar Cupsinski. “Esse problema vem afetando sobremaneira a vida e a saúde dos povos indígenas, dos povos e comunidades tradicionais e dos trabalhadores rurais, bem como a sua produção agrícola. A alternativa saudável consiste em incentivar a agricultura tradicional e a agricultura agroecológica.”
Ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) em 2016, a ADI 5.553 questiona as cláusulas 1ª e 3ª do Convênio 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e o Decreto 7.660/2011. Esses dispositivos concedem benefícios fiscais aos agrotóxicos, com redução de 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), além da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de determinados tipos dessas substâncias. A medida ficou conhecida em vários setores como “bolsa-agrotóxicos”.
A isenção dos agrotóxicos ocorre porque o Estado brasileiro aplicou, por meios destes dispositivos, o princípio da seletividade e essencialidade tributárias. Esse princípio determina que o Estado pode selecionar produtos e conferir benefícios fiscais em função da importância social. Isto é, se o produto é essencial para a coletividade pode ter isenções ou reduções tributárias. Desse modo, há 27 anos, o mercado de agrotóxicos é beneficiado com isenção fiscal.
A medida tem impacto direto na arrecadação fiscal. De acordo com levantamento realizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a estimativa é de que estados e União deixaram de arrecadar R$ 12,9 bilhões, considerando a comercialização de agrotóxicos no ano de 2021. O valor representa, por exemplo, cinco vezes o orçamento reservado pela União em 2024 para prevenção e combate a desastres naturais (R$ 2,6 bilhões).
Posicionamento dos ministros
Com ida para plenário, o julgamento – que estava em estágio avançado, já com manifestações de votos de nove ministros – é reiniciado. Ou seja, os ministros deverão se manifestar novamente.
A retomada do julgamento é compreendida por organizações que incidem como amicus curiae (amigos da corte) como importante oportunidade para ampliar o diálogo com sociedade e Suprema Corte sobre impactos da concessão de benefícios ao mercado de agrotóxicos.
Relator da ação, o ministro Edson Fachin havia reconhecido em seu voto que a isenção fiscal dos agrotóxicos é inconstitucional. O ministro conclui que as normas questionadas pela ADI 5.553 violam artigos da Constituição brasileira e sugeriu uma série de providências para a cobrança de ICMS e IPI sobre importação, produção e comercialização de agrotóxicos. Também solicitou que órgãos do governo avaliem “a oportunidade e a viabilidade econômica, social e ambiental de utilizar o nível de toxicidade à saúde humana e o potencial de periculosidade ambiental, dentre outros, como critérios na fixação das alíquotas dos tributos” sobre os agrotóxicos.
Na manifestação do voto, o ministro evocou também o princípio da precaução para destacar as evidências de riscos de uso e consumo dos químicos ao meio ambiente e à saúde. “O uso de produtos nocivos ao meio ambiente ameaça não somente animais e plantas, mas com eles também a existência humana e, em especial, a das gerações posteriores, o que reforça a responsabilidade da coletividade e do Estado de proteger a natureza”, apontou Fachin. O posicionamento do ministro é semelhante ao das organizações sociais que atuam como amicus curiae na ação, como a Terra de Direitos, a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e a FIAN.
Já o ministro Gilmar Mendes acolheu os argumentos de entidades vinculadas ao agronegócio e se manifestou pela manutenção dos benefícios fiscais aos agrotóxicos. Mendes afirmou em seu voto que os danos à saúde “não devem ser desconsiderados, mas por si próprios são insuficientes para se declarar a inconstitucionalidade dos benefícios, porquanto produtos essenciais não são isentos de causarem malefícios à saúde”. A posição diverge do relator Fachin e de um conjunto de organizações, pesquisadores e órgãos que denunciam os fortes impactos dos agrotóxicos para a saúde e meio ambiente, o que descumpre preceitos constitucionais. Os ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli acompanharam o voto de Gilmar Mendes. Já o ministro André Mendonça reconheceu, parcialmente, a inconstitucionalidade da isenção fiscal e determinou que a União e estados façam uma avaliação do benefício. Organizações e instituições de pesquisa também reivindicam a apresentação de dados que justifique a validade das normativas.
Com o reinício do julgamento, as organizações têm a expectativa de que os ministros revejam os votos pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do benefício fiscal.
“Abre-se a oportunidade dos ministros que votaram pela constitucionalidade dos benefícios fiscais reavaliarem seus votos, assim como para os ministros que ainda não julgaram avaliar a matéria com a preocupação constitucional de proteção do meio ambiente e a saúde da população brasileira. A reavaliação das políticas fiscais aos agrotóxicos pelo poder executivo da União e dos Estados relacionando desenvolvimento econômico, proteção ambiental, direito à saúde e à segurança alimentar é essencial para essa ação, para evidenciar a não aplicabilidade do princípio da seletividade tributária sobre os agrotóxicos”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade.
Benefício para mercado de commodities
Segundo as organizações, a isenção fiscal beneficia diretamente o mercado de commodities, voltadas para o mercado externo, e não incide no aumento do preço dos alimentos que compõem a cesta básica para os consumidores, como argumenta entidades representativas do agronegócio.
De acordo com dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), 89% da área total com uso de agrotóxicos em 2022 é voltada para plantio de soja, milho, algodão, cana-de-açúcar e pastagens. Com menos incentivos e pressão do agronegócio, de produção de alimentos para consumo interno sofre seguidas retrações. Enquanto a área de plantio de soja aumento em 187% de 2000 a 2021, no mesmo período o plantio de arroz diminuiu 54%, e o de feijão, 37%.
Além da manifestação contrária à isenção pelas organizações, a Procuradoria Geral da República (PGR) declarou na mesma ação que os incentivos aos agrotóxicos não se coadunam com os objetivos do estado democrático de Direito ambiental. Os conselhos nacionais de Saúde (CNS) e de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) recomendaram aos ministros do STF que “rejeitem quaisquer proposições que resultem ou possibilitem a redução ou a isenção fiscal e tributária a agrotóxicos uma vez que estamos diante de perigos graves de saúde pública devido à exposição a essas substâncias nocivas”.