Direito à alimentação: qual o papel do Poder Judiciário?

Duas ações que tratam da fome ainda não foram analisadas pelo STF

O papel do Poder Judiciário na garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) será debatido em um evento online que a Conferência Popular por Direitos, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional promoverá nesta quarta, 19 de outubro. O encontro “Fome de Direitos e Sede de Justiça: o papel do Judiciário na garantia do direito humano à alimentação” reunirá especialistas que vão apresentar casos sobre a atuação do sistema judiciário e debater os marcos conceituais.

“O papel do Judiciário é ser o guardião da Constituição. Ele é provocado a atuar quando há omissão do Poder Executivo, quando o Executivo não implementa o que está previsto como direito na Constituição, quando não implementa uma política de segurança alimentar”, explica Leonardo Ribas, da Conferência Popular.

Leonardo, que será um dos palestrantes do evento, acrescenta que cabe também ao Judiciário garantir aos cidadãos o exercício da soberania alimentar. “A soberania alimentar é o cidadão ter poder de participar do processo que determina como se produz os alimentos, como se distribui, como se consome e como se acessa porque hoje esse processo é totalmente controlado pelo sistema alimentar agroindustrial brasileiro”.

Duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) – a 831, protocolada pelo PT, e a 885, protocolada pela OAB – estão no Supremo Tribunal Federal (STF) e aguardam análise.  Essas ADPF tratam da questão da fome no Brasil e estão sob as relatorias dos ministros Luiz Fux e Dias Toffoli. A expectativa das entidades que compõem a Conferência Popular é que sejam analisadas após as eleições.

A defensora pública do Estado do Rio de Janeiro, Andrea Sepúlveda, explica que o evento vai procurar encontrar formas de sensibilizar e mobilizar não somente o Supremo, mas todo o sistema de Justiça no Brasil para a questão da fome. “Nós entendemos que o Judiciário pode e deve interferir nas políticas públicas que são baseadas em direitos constitucionais”, diz. “O grande debate é pensarmos como a gente vai avançar para que de fato o Judiciário passe a ser um pouco mais atuante. O nós demandamos é que simplesmente cumpra o seu papel de monitorar as políticas públicas e de declarar violações coletivas de direitos quando as políticas públicas não são cumpridas, como no caso da fome”, acrescenta.

Trinta e três milhões de pessoas passam fome no Brasil. O aumento da fome se deu num cenário de desmonte de políticas públicas que garantiam a segurança alimentar. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2019, endossa o cenário.  “Quando você extingue o Consea, você tira a sociedade civil desse debate. E eu acredito que a partir da extinção do Consea todas as outras estruturas foram fragilizadas”, ressalta Andrea.

O encontro “Fome de Direitos e Sede de Justiça: o papel do Judiciário na garantia do direito humano à alimentação” poderá ser acompanhado pelo canal da Conferência Popular no Youtube: https://www.youtube.com/c/conferenciapopularssan. Um documento sobre a atuação do Judiciário será produzido a partir do encontro.

DHANA

Sobre a Conferência Popular 

A Conferência Popular por Direitos, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional é um movimento permanente de resistência à fome e à extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Contesta as violações de direitos, racismo estrutural e ameaças à vida. Criada em 2019, é formada por um conjunto de movimentos sociais, organizações da sociedade civil e coletivos.

Para mais informações, acesse o site conferenciassan.org.br.

DHANA

Serviço:

Evento: “Fome de Direitos e Sede de Justiça: o papel do Judiciário na garantia do direito humano à alimentação”

Data: 19/10, das 17h às 19h

Transmissão online: https://www.youtube.com/c/conferenciapopularssan

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Programação:

Parte 1 – Casos

17h – Abertura – Andrea Sepúlveda, Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro

17h05 – Marcos Legais/Dhana – Flávio Valente, pesquisador associado do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco

17h15 – ADPFs no STF e ações no Rio de Janeiro – Rodrigo Azambuja, Defensor Público do Rio de Janeiro

17h25 – “Caso da luta por direitos da Comunidade Sururu do Capote” – Alexandra Beurlen, promotora de Justiça de Alagoas

17h35 – Jurisprudências internacionais e controle da convencionalidade – Miriam Balestro, doutora em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas, Promotora de Justiça Aposentada do MPRS e diretora de articulação da FIAN Brasil

17h45 – Roda de Debate – Andrea Sepúlveda (mediação)

Parte 2 – Marcos Conceituais

18h15 – Economia fiscal e direitos humanos – Livi Gerbase, assessora política do INESC

18h25 – Dhana em regime de recuperação fiscal – Leonardo Ribas, doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional

18h35 – Roda de Debate e encerramento – mediação: André Luzzi, Conferência Popular por Direitos, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional

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Informações para imprensa

Fabiana Novello – [email protected] – (11) 97149-2324

Marcela Coimbra – [email protected] – (11) 99812-5545

Conferência SSAN

Em aldeia do MS, alimentação escolar expõe desafios enfrentados pelos Guarani e Kaiowá

Ko’anga ñande jakaru karai kuera xa avei. Umin ha’e kuera hemityn ome’en mba’asyvai ñande rehe. Heta oin hese ome’eva mba’asy.

Na preleção do professor Nilton Ferreira Lima à turma do 9º ano, palavras como “salgadinho”, “refrigerante”, “diabetes”, “hipertensão”, “cálculo renal” e “AVC” vão se entremeando ao idioma indígena. Uma passagem que conta muito da transição alimentar em curso entre os povos Guarani e Kaiowá, e que a FIAN Brasil busca conhecer melhor por meio de estudo de caso com foco no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Em sua aula, Lima expõe a entrada em cena de problemas de saúde que os moradores e moradoras da Aldeia Te’yikue não costumavam ter e sua relação com o sedentarismo e o aumento do consumo de produtos alimentícios ultraprocessados. Realidade essa, de Caarapó (MS), que se repete em comunidades de todo o país.

“Muitas pessoas buscam seu sustento com trabalho assalariado e, com o dinheiro que ganham, compram alimentos da cidade, que são alimentos contaminados, que têm muita química”, conta o professor da Escola Municipal Indígena Ñandejara. “Com essa mudança no hábito alimentar a gente vê que entra muita doença e as pessoas adoecem muito cedo.” Os ultraprocessados passam por diversas etapas de fabricação e recebem muitos aditivos para ficarem atraentes – verdadeiras fórmulas industriais. Costumam ter alto teor de açúcar, sal e gordura.

Estabelecimentos de ensino como a Ñandejara, com 1.400 estudantes, são palco central desse quadro e do seu enfrentamento. O Pnae garante, para todas e todos estudantes da rede pública, ao menos uma refeição completa – às vezes, a única do dia. No entanto, em 2021, como parte do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade, a FIAN ouviu relatos de crianças de aldeias do Mato Grosso do Sul chegando à sala de aula em grave situação de insegurança alimentar. 

Essa política constitui-se também em caminho para a promoção da saúde por meio da educação alimentar e nutricional (EAN). Representa, ainda, uma oportunidade para fortalecer a agricultura familiar local.  

“O programa poderia estar comprando do pequeno produtor”, diz o cacique Jorginho  Soares Martins. “Temos dificuldade de ter acesso à inscrição estadual e à DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf]. Ajudaria muito o pequeno agricultor, conforme é garantido na Lei.” A DAP está em substituição pelo Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF).

Os dados mais recentes disponibilizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), referentes a 2018, mostram que 54,25% (R$ 298 mil) dos repasses anuais da autarquia do Ministério da Educação (MEC) ao município foram usados na compra direta da agricultura familiar. Trata-se de um percentual bem acima do exigido (30%). Porém, ainda não há agricultores indígenas fornecendo alimentos às escolas, o que fere as determinações legais, que estabelecem que, nas compras diretas, deve-se dar prioridade aos assentamentos da reforma agrária e às comunidades indígenas e quilombolas.

“É uma discussão antiga na comunidade”, reforça o diretor da Escola Ñandejara, Lidio Cavanha Ramires. “Se tiver uma família produtora de arroz, de feijão, pega aqui dentro mesmo para a escola. Orgânico, sem produto químico.” Ele menciona a possibilidade de reunir a produção de agricultores/as que cultivam uma extensão pequena – 0,5 hectare de mandioca, por exemplo, para ficar numa situação comum na Te’yikue – e não teriam condição de fornecer à escola por um período maior.

Questões como essas motivaram, em nível nacional, a criação da Mesa Permanente de Diálogo Catrapovos Brasil, composta por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil, pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2021, para fomentar a adoção da alimentação tradicional em escolas indígenas e de comunidades quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e caiçaras, entre outras. Ligada à Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR), a instância discute os entraves, desafios e formas de viabilizar as compras públicas da produção desses grupos sociais. Além de garantir o cumprimento da cota da agricultura familiar, pauta-se pelo direito à alimentação escolar adequada à cultura de cada população.

A Catrapovos Brasil atua para replicar em todo o país a boa prática desenvolvida pela Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), que conseguiu inserir mais de 60 alimentos produzidos de forma tradicional no cardápio escolar.

A FIAN tem participado das reuniões da Catrapovos do Mato Grosso do Sul.

Salada, abacaxi, pizza, churrasco

Divididos em rodas, os adolescentes anotam aquilo de que gostam e não gostam, e o que gostariam que tivesse, nas refeições servidas na instituição de ensino. Nas preferências escritas em cartelas na oficina organizada pela FIAN, não são raras as respostas mencionando frutas, ou pratos de um almoço comum na maioria das cidades brasileiras. Elas misturam-se a sobremesas e opções como pizza e churrasco. O que pouco aparece são comidas tradicionais guarani e kaiowá.

Ao implementar em 2020 a Resolução 6 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a escola passou a servir pratos típicos às sextas-feiras. A resolução, que regulamentou a lei do Pnae (11.947), reforçou as diretrizes de alimentação adequada, entre elas o respeito à cultura da comunidade e a valorização dos ingredientes regionais. Ao detalhar a aplicação da lei de 2009, reduziu o uso de açúcar, estabeleceu limites para certos itens (como salsicha e demais cárneos) e excluiu outros (refrescos artificiais, biscoitos recheados etc.).

Embora em muitas regiões o apelido merenda permaneça, ao longo dos últimos anos, especialmente após a publicação da lei em 2009, a prioridade é para oferta de refeições cada vez mais completas, do ponto de vista nutricional, e de melhor qualidade, que contemplem frutas, legumes e/ou verduras.  

 Em Caarapó, a entrada de alimentos como a batata-doce no lugar de pão francês e afins repercutiu em grupos de WhatsApp de mães e pais de alunos, em especial de parte das famílias mais acostumadas ao cardápio urbano. A adaptação atravessou os semestres seguintes.

“É difícil de acertar o cardápio que a nutricionista da prefeitura colocou”, relata a cozinheira Jurema Marques, uma das mais antigas da instituição. “Tem as crianças que aceitam e crianças que não aceitam. Do nosso cardápio tradicional que a gente prepara uma vez na semana, não reclamam é do guisado que a gente faz com mandioca e carne. E aquele mbaipy, que é polenta com frango. Esses, eles comem tudo. A chicha [refresco natural de milho fermentado e caldo de cana] também. O que não aceitam é o locro [prato com milho e carne, originalmente de caça].” Além disso, nem sempre as verduras, frutas e carnes dão para a semana toda, assim como acontece de faltarem os ingredientes do preparo mais cultural da sexta. Muitos estudantes relatam que a quantidade servida é insuficiente.

Quem ainda soca milho e arroz?

Foi para valorizar a conexão do alimento com a religião e a cultura guarani e kaiowá que duas professoras criaram, há mais de 20 anos, o projeto Sabor da Terra. A iniciativa começou com duas professoras da Escola Loide Bonfim Andrade – uma das quatro extensões (unidades subordinadas à polo) da Ñandejara – e hoje envolve toda a comunidade escolar. Cresceu ano a ano até permear todas as matérias, de todos os anos – um projeto mobilizador, no jargão da Educação.  

“Quando a gente perguntava: ‘Quem ainda ñembiso? Quem soca ainda milho, arroz?’ Respondiam: ‘Isso é coisa dos antigos… A gente tem pilão em casa, professora, mas é mais fácil ir ao mercado’”, narra uma das fundadoras, Rosileide Barbosa de Carvalho. 

“O Sabor da Terra é para incentivar as famílias a plantar, e valorizar aquele tipo de semente que hoje quase não é plantada. Por exemplo, se você chegar nas casas, hoje quase não tem cará.” Valoriza-se o cultivo viável ao redor das casas, ainda que o espaço seja limitado.

O projeto trabalha desde elementos clássicos de disciplinas curriculares até o cuidado com a saúde. “Por que antigamente os homens não eram muito gordos, não tinham barriga, não tinham doença? A alimentação. Agora você vê pessoas de 13, 14, 15 anos com obesidade, problema de pressão alta, de coração”, enumera a professora. As salas mergulham nos temas desde o primeiro bimestre, e o ciclo culmina numa exposição no meio do ano em que são servidas comidas tradicionais e não indígenas.

Nessa ocasião, cada família leva o seu prato – por exemplo, pira mbichy (peixe assado), mandio mbichy (mandioca assada). Quem conseguir caçar tatu vai levar carne do animal.

“A gente ouve eles falarem: ‘Nossa, isso eu comia quando era criança… Como hoje não tem mais?’”

As atividades na Unidade Experimental Poty Reñoi (“desabrochar da flor”), chácara de 2,6 hectares (ha) vizinha à escola polo, complementam o que é realizado no Sabor da Terra. Conforme a idade, alunas e alunos lidam com sementes, adubagem, rega, trato dos animais.

“A gente começa do começo”, explica o professor Nilton Ferreira Lima. “Fala da importância de cultivar… De ter autonomia também. Em relação ao processo de produzir. Fazer a compostagem, biofertilizantes, as mudas, a época certa do plantio.”

“Dá para ver avanços”, comenta. “Hoje você sai e vê canteirinho de cheiro verde, alface…” Nicole Veron Martins, 14 anos, confirma: “Comecei a levar para minha casa e falar para os meus pais da importância de a gente ter um pouco mais de cuidado com as plantas, com o meio ambiente”.

Sob pressão

Ainda que longe dos extremos enfrentados por seus povos no estado – como o confinamento na Reserva de Dourados –, a Reserva Te’yikue (ou Reserva Indígena de Caarapó) se insere num cenário complexo. Situado a menos de 20 quilômetros do Centro da cidade, o território de 3.594 ha (cada hectare corresponde a um campo de futebol) e habitado por 1.500 famílias não conta com ônibus de linha, embora grande parte dos moradores e moradoras trabalhem em chácaras, fazendas, armazéns e usinas do agronegócio. Os capões de mata destoam dos “mares” de milho, soja e cana do caminho, mas a cobertura vegetal não se compara à de décadas atrás. “Era muito rico de natureza”, descreve o inspetor escolar Agripino Benites. “Muito perobal, muita erva-mate nativa. O mato era mais fechado. Achava ainda caça.”

Homologada há três décadas, a área é circundada por um território reivindicado como tradicional 15 vezes maior e disputado por 87 fazendeiros e chacareiros, a Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipegua 1. A demarcação do perímetro, em 2016, foi retaliada com o ataque que matou o agente de saúde Clodiodi de Souza e feriu outros indígenas, conhecido como Massacre de Caarapó. Em resposta, os Guarani e Kaiowá retomaram 11 localidades (tekoha – “lugar onde se é”) dentro da TI.

Embora se trate de área declarada como de ocupação tradicional por laudo antropológico, a condição de em litígio da TI implica mais barreiras para os indígenas – com todo tipo de dificuldade para acessar políticas públicas – que para os fazendeiros.  A equipe da FIAN Brasil ouviu de um gestor da área agrícola que as retomadas “não são área de ninguém, nem da União”. No caso da Te’yikue, o entorno abriga muito mais cobertura vegetal, fauna e áreas agricultáveis, porém não escapa das limitações do limbo fundiário. Essa fronteira invisível favorece o avanço dos arrendamentos, “parcerias” em que pessoas externas à comunidade exploram terras para monocultura, quase sempre pagando valores baixos ou irrisórios.

Nota técnica encomendada pela FIAN a três pesquisadores em 2021, que abrangeu 12 comunidades, mostrou como a pandemia agravou a insegurança alimentar e nutricional. O trabalho reiterou constatação de levantamento concluído cinco anos antes, em que a insegurança alimentar apareceu em 100% dos domicílios de três localidades. Os autores assinalam a centralidade da regularização fundiária e de apoio à produção agroecológica para permitir a construção de uma vida digna e soberana.

Nos últimos quatro meses, três indígenas foram assassinados na região – um deles em Coronel Sapucaia, a cerca de 140 km dali, e dois em Amambai, a cerca de 95 km. Se nas áreas rurais há o risco de emboscadas, nas urbanas a hostilidade e a discriminação desenham um mapa não oficial.

“Sabemos que muitos lugares da cidade não são para nós”, comenta o pesquisador Elemir Guarani Kaiowá, que cursa doutorado em Geografia e leciona para as turmas do 6° ao 9° ano da Ñandejara.

“A miséria começou com os madeireiros, que retiraram toda a madeira de lei, e continuou nos ciclos econômicos seguintes – mate, gado, cana, soja.”

Sistemas alimentares e desigualdades

O estudo de caso (acesse os materiais produzidos) faz parte do projeto Equidade e Saúde nos Sistemas Alimentares, que a FIAN Brasil executa neste ano e no primeiro semestre de 2023 com o objetivo de contribuir para o entendimento dos impactos dos sistemas alimentares nas desigualdades (e vice-versa) no Brasil, bem como para seu enfrentamento.

A ideia é que o conhecimento produzido embase estratégias para incidir nas compras públicas (de instituições do Estado). O chamado mercado institucional movimenta um orçamento bilionário e pode dar lastro a uma série de políticas – por exemplo, adquirindo a produção agrícola de segmentos sociais mais vulnerabilizados, como indígenas, quilombolas e assentados/as.

A atuação se dará em conjunto com um grupo de entidades – ACT Promoção da Saúde, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto Desiderata e Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) – com apoio da Global Health Advocacy Incubator (GHAI). Outras parcerias serão estabelecidas ao longo do processo.

O projeto inclui um mapeamento das iniquidades nos sistemas alimentares, com um olhar específico para as dimensões de raça, gênero e classe social. Os dois estudos de caso – além de Caarapó, a equipe fez trabalho de campo em Belém do Solimões (AM) – aprofundarão a compreensão dos dilemas, soluções e barreiras enfrentadas pelas comunidades. A equipe participou também da elaboração de documentos políticos coletivos buscando a adesão de candidatos e candidatas à plataforma da comida de verdade, baseada na agricultura familiar, na agroecologia, no comércio justo e nos alimentos frescos. Outra frente tem sido a incidência no Congresso Nacional. Também serão produzidos variados conteúdos de comunicação.

Continuaremos a dedicar atenção especial ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que em 2021 foi o foco do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade. “Poder realizar ações de exigibilidade para fortalecimento do Pnae, especialmente das compras públicas da agricultura familiar no ambiente escolar, em um contexto de retrocesso e aumento da fome, parece-nos fundamental e urgente”, comenta a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.

“A intenção é aprofundar as análises relacionadas à alimentação escolar, sobretudo à alimentação escolar indígena, considerando que essa segue como uma política central na garantia do Dhana”, diz a coordenadora do projeto, Gabriele Carvalho. “Pretendemos ajudar a construir caminhos para que essa população possa, de fato, não só comercializar o que é produzido localmente, mas inserir esses alimentos no cardápio escolar. A soberania e segurança alimentar e nutricional passa necessariamente pelo respeito à cultura e aos hábitos alimentares locais.”

Países latino-americanos discutem estratégias legais em alimentação e saúde à luz do controle do tabaco

Entre 28 de setembro e 1º de outubro, a Cidade do México reuniu advogadas, advogados e ativistas de entidades da América Latina, que atuam nos campos do direito à alimentação e do controle do tabaco, para discutir estratégias legais para a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis. O evento teve em sua composição os encontros: “V Encuentro Latinoamericano: Estrategias Legales en Alimentación y Salud” e o “XII Taller Legal: Control de Tabaco en América Latina”.

A partir de afinidades temáticas, vivências e enfrentamentos jurídicos comuns ao coletivo, a troca de conhecimento e articulação teve como fio condutor um quadro de análises sobre a realização progressiva de direitos econômicos, sociais e culturais, nos campos do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) e do controle do tabaco.

“Esse quadro tem um olhar para a política econômica, para a política fiscal, para o orçamento, para identificar quais atores enfrentam uma carga tributária maior, ou quais são os grupos beneficiados pelas políticas econômicas e fiscais”, explica a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.

Valéria e o assessor de direitos humanos da FIAN Brasil, Adelar Cupsinski, contribuíram com as atividades do evento a partir de um chamamento ao debate de propostas que possam potencializar a relação entre a econômica, os aspectos jurídicos e o direito à alimentação. 

Para a secretária-geral, “essa relação é muito importante porque, no Brasil, as políticas econômicas têm um impacto muito severo na garantia do direito à alimentação, seja aumentando a fome e facilitando o aumento da obesidade, seja apresentando aspectos racistas, ou acentuando desigualdades”.

A iniciativa é do Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad (Dejusticia), Campaign for Tobacco Free Kids (TFK), Global Health Advocacy Incubator (GHAI), Global Center for Legal Innovation on Food Environments (por meio do O’Neill Institute for National and Global Health Law) e Unión Internacional Contra la Tuberculosis y Enfermedades Respiratorias (THE UNION).

Leia a publicação: O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: Enunciados Jurídicos

Tabaco e alimentação – Antes, nos dias 26 e 27 de setembro, também na Cidade do México, o encontro “Fortalecimiento de Habilidades Estratégicas para el Trabajo Legal”, buscou fortalecer as habilidades de pensamento estratégico, destacando sua centralidade ao trabalho jurídico; construir conhecimento além das áreas do direito que geralmente são exploradas em profundidade em contextos específicos; e gerar um espaço seguro para a inovação, permitindo explorar ideias desafiadoras do ponto de vista jurídico.

Iniciativa do Global Center for Legal Innovation on Food Environments por meio do O’Neill Institute, o workshop se dedicou ao tema de evidências e observou estudos de casos de países da América Latina, como o Brasil. “Foi importante ouvir e conhecer a experiência dos vários países. A partir do compartilhamento das estratégias locais, o grupo pôde fazer comparativos e pensar sobre quais tipos de ações judiciais, estratégias de litigância e de incidência, no campo do tabaco, podem ser adotadas no campo da alimentação”, finalizou Valéria.

FIAN Brasil

Foto: Adelar Cupsinski