Parlamento Europeu apela às autoridades brasileiras pela proteção e demarcação das terras Guarani e Kaiowá

O Parlamento Europeu aprovou uma Resolução Urgente onde “condena” e “deplora” a violência e as violações de direitos humanos sofridas pelo povo Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Em apelo dirigido às autoridades brasileiras, os eurodeputados pedem medidas imediatas para a proteção, segurança e demarcação das terras dos povos indígenas.

“Convictos”, os eurodeputados dizem: “As empresas deveriam prestar contas por qualquer dano ambiental e por quaisquer violações dos direitos humanos e a União Europeia e os Estados-Membros deveriam consagrar esta condição como princípio fundamental, tornando-o uma disposição vinculativa em todas as políticas comerciais”.

A resolução foi publicada no início da noite desta quinta-feira, 24, e norteará as relações políticas e comerciais dos países que compõem o Parlamento Europeu com o Brasil. Conforme os eurodeputados, o direito originário dos povos indígenas ao território tradicional, presente na Constituição brasileira, é um dever do Estado de proteger – o que não ocorre.

Para os eurodeputados, é urgente um “plano de trabalho visando dar prioridade à conclusão da demarcação de todos os territórios reivindicados pelos Guarani-Kaiowá e criar as condições técnicas operacionais para o efeito, tendo em conta que muitos dos assassinatos se devem a represálias no contexto da reocupação de terras ancestrais”.

Diante da iniciativa do governo brasileiro de congelar gastos primários pelos próximos 20 anos com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, “recomenda que as autoridades brasileiras assegurem um orçamento suficiente para as atividades da Funai”. A resolução apresenta preocupações com medidas dos poderes Executivo e Legislativo.

Naquilo que entende como “direitos opostos aos dos índios”, o Parlamento Europeu afirma que a PEC 215, se for aprovada, irá ameaçar os direitos à terra, permitindo um bloqueio do reconhecimento dos novos territórios indígenas. O marco temporal também foi condenado como interpretação limitada da Constituição brasileira.

O Parlamento Europeu recordou às autoridades brasileiras, em trecho da resolução, a obrigação do país de ” respeitar o direito internacional no domínio dos direitos humanos no que diz respeito às populações indígenas, tal como estabelecido, em especial, pela Constituição Federal Brasileira e a Lei 6.001/73 sobre «o Estatuto do Índio»”.

Ressaltou: “O Ministério Público Federal e a Fundação Nacional do Índio(FUNAI) assinaram em 2007 o Compromisso de Ajustamento de Conduta, a fim de identificar e demarcar 36 territórios da comunidade Guarani-Kaiowá até 2009”. O que não ocorreu, conforme atestou a Organização das Nações Unidas (ONU).

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Velório de Clodiodi Guarani e Kaiowá. Crédito: Ana Mendes/Cimi

Relatoria da ONU: demarcação de terras

A Relatora Especial das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas Victoria Tauli-Corpuz esteve no Brasil em março. Visitou os Guarani e Kaiowá (MS), os Tupinambá (BA) e esteve junto às comunidades impactadas pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA). Produziu um relatório e o apresentou na última Assembleia da ONU, em outubro.

O Parlamento Europeu tomou por base o pronunciamento de Victoria: ”Considerando que, de acordo com a Relatora Especial das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, nos últimos oito anos tem-se registado uma preocupante ausência de progressos na implementação das recomendações da ONU”.

Comunidade do tekoha Apykai. Crédito: Ruy Sposati/Cimi
Comunidade do tekoha Apykai. Crédito: Ruy Sposati/Cimi

Estado integrante da ONU, o Brasil tem o dever de seguir suas resoluções e executar recomendações. Tanto Victoria como seu antecessor, James Anaya, que esteve no Brasil em 2008, apresentaram preocupações quanto a demarcação dos territórios tradicionais, assim como a crescente deterioração da proteção dos direitos dos povos indígenas.

Longe de suas terras, os povos amargaram toda sorte de privações e violências. No Brasil, não é novidade que os Guarani e Kaiowá são um trágico símbolo de desgraças variadas levando o povo a ser considerado por organismos internacionais como um dos casos mais graves envolvendo populações indígenas no mundo.

Dados oficiais do governo brasileiro respaldam a tese e a resolução do Parlamento Europeu: “De acordo com os dados da Secretaria Especial da Saúde Indígena (SESAI) e do Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul (DSEI-MS), nos últimos 14 anos foram assassinados pelo menos 400 indígenas e 14 líderes indígenas”.

Simeão Vilharva e Clodiodi de Souza, assassinados durante ataques de fazendeiros, são citados nominalmente. A resolução apela “às autoridades brasileiras para que tomem medidas imediatas para proteger a segurança dos povos indígenas e garantir a realização de inquéritos independentes sobre os assassinatos e os ataques”.

 

Segurança alimentar e suicídios

Longe das terras tradicionais, abandonados pelo Estado brasileiro na proteção e garantia de direitos, os Guarani e Kaiowá, conforme estudo recente da FIAN Brasil e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vivem em grave situação de insegurança alimentar e nutricional.

O estudo, citado pelo Parlamento Europeu, registra que o índice de desnutrição crônica para crianças menores de 5 anos é de 42% em três comunidades Guarani e Kaiowá pesquisadas. Uma das fontes do estudo foi o Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas realizado em 2009, também citado pelo Parlamento Europeu na resolução de ontem: “[…] a taxa de subnutrição crônica entre as crianças indígenas [no Brasil] é de 26 %, em comparação com a média de 5,9 % registada entre as crianças não indígenas”.

A subnutrição deixa os Guarani e Kaiowá mais expostos a todo tipo de doença, desde crônicas a simples diarreias não tratadas que levam crianças ao óbito. Mortes, abandono, falta de perspectiva de vida: o resultado é um aumento chocante de suicídios que acometem sobretudo a população mais jovem, algo não registrado em relatos históricos.

Para o Parlamento Europeu, a “falta de prestação de cuidados de saúde, educação e serviços sociais e a ausência de demarcação das terras indígenas têm tido repercussões no suicídio de jovens e na mortalidade infantil”. Novamente a resolução faz uso de dados oficiais e do Relatório de Violências Contra os Povos Indígenas, do Cimi.

“Nos últimos 15 anos, pelo menos 750 pessoas, na sua maioria jovens, cometeram suicídio e que mais de 600 crianças com menos de 5 anos de idade morreram, na maior parte dos casos por doenças tratáveis e facilmente evitáveis”, pontua o documento dos eurodeputados.

A resolução mais uma vez recorda ao governo brasileiro: “A responsabilidade que lhes incumbe de manter e aplicar integralmente à população Guarani-Kaiowá as disposições da Constituição brasileira relativas à proteção dos direitos individuais e aos direitos das minorias e dos grupos étnicos indefesos”.

Conquista dos Guarani e Kaiowá

Há três anos a Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá – realiza incidências na ONU, Parlamento Europeu e Organização dos Estados Americanos (OEA). “No Brasil cansou da gente falar e nada ser feito. Morreu e morre parente nosso de todo jeito. Então ficamos felizes que esse trabalho tenha dado certo”, explica Elizeu Guarani e Kaiowá (na foto, em incidência na ONU).

A liderança indígena tem a cabeça a prêmio no Cone Sul do Mato Grosso do Sul. “Toda vez que eu voltava de fora do Brasil, vindo da ONU nessas denúncias, tinha uma nova ameaça. É complicado viver assim, né. Mas a Aty Guasu resolveu e das nossas terras a gente não desiste. Agora é seguir na luta”, frisa o Guarani e Kaiowá.

Para o indígena, no Brasil os Guarani e Kaiowá conseguiram “mostrar o que acontece no Mato Grosso do Sul, mas no estado o racismo, preconceito é grande. Tem comércio em Dourados que não deixa nem a gente entrar”, diz. “É um estado que um boi e um saco de soja valem mais que um indígena”, conclui.

Elizeu acredita que quando os europeus se derem conta que a carne, o açúcar e a soja do Mato Grosso do Sul são frutos do “sangue indígena” indígena sobre territórios tradicionais tomados pelos latifúndios, os fazendeiros e empresas que mantêm os Guarani e Kaiowá na situação em que se encontram vão sentir no bolso – e só assim para algo mudar.

“O povo Guarani e Kaiowá espera agora que o governo brasileiro leia a resolução e tome providências. Sobretudo sobre a demarcação de terras. Tendo nossos tekoha – lugar onde se é – podemos plantar comida e floresta. Viver em harmonia com nossos antepassados. Vamos deixa de morrer e passar a viver”, afirma o Guarani e Kaiowá.

A Aty Guasu, composta por caciques, professores e lideranças Guarani e Kaiowá, construiu aliados durante esses três anos no Brasil e no mundo. Portanto, a resolução do Parlamento Europeu é apenas o começo de uma série de ações, até mesmo dos próprios eurodeputados, para sensibilizar o Estado brasileiro a garantir os direitos indígenas.

“A Resolução é mais um instrumento para reforçar a legítima luta do Povo Guarani e Kaiowá, e tal documento ganha especial importância em um momento de ruptura democrática e criminalização das lutas sociais no Brasil”, afirma Valéria Burity, Secretária-Geral da FIAN Brasil.

“Com a resolução, o Parlamento Europeu se torna mais um organismo internacional a condenar a crise humanitária junto aos Guarani. Além de se comprometer com soluções que efetivamente resolvam uma das situações mais dramáticas em se tratando de povos indígenas. É sem dúvida uma vitória importante dos Kaiowá que ao longo de 3 anos bateram de porta em porta de europarlamentares, testemunhando o genocídio silencioso a que esse povo está submetido. Em tudo os Guarani Kaiowá pediam a condenação do Estado Brasileiro, por acreditar ser este o maior responsável de suas dores e violência”, destaca Flávio Vicente Machado, do Cimi.

Por Renato Santana/ Da página do CIMI