STF nega por unanimidade pedido de indenização do estado do Mato Grosso por demarcação da União de terras indígenas

Em sessão extraordinária, realizada na manhã desta quarta-feira, 16 de agosto, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou duas ações relacionadas à demarcação de terras indígenas no Mato Grosso. Tanto na Ação Cível Originária (ACO) 362, quanto na ACO 366, o estado do Mato Grosso pedia indenização à União por desapropriação indireta de terras incluídas no Parque Nacional do Xingu e nas reservas indígenas Nambikwára e Parecis.

A discussão central das duas matérias era saber se as terras compreendidas no Parque Nacional do Xingu e das reservas indígenas Nambikwára e Parecis são tradicionalmente ocupadas por povos indígenas. Relator do processo, o ministro Marco Aurélio julgou improcedente os pedidos do Estado do Mato Grosso e o condenou a pagar as despesas processuais e honorários advocatícios no valor de R$ 50 mil reais. “As terras são de tradicional ocupação indígena, assim como muitas outras áreas adjacentes na região”, argumentou o Ministro em seu parecer. Confira o voto do Ministro AQUI.

Os demais ministros do STF acompanharam o voto do relator e também julgaram improcedente as ações. A Procuradoria Geral da República também se manifestou pela improcedência das duas ações, reconhecendo o direito originários dos povos indígenas às terras em questão. Uma das grandes preocupações para o julgamento das ações seria o uso da tese do marco temporal, no entanto os ministros não a colocaram em questão. A tese do marco temporal, elaborada pela 2ª turma do STF, impõe a promulgação da Constituição Federal de 88 como um marco para o reconhecimento do direito ao território de povos indígenas do país.

Para o assessor jurídico da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Luiz Eloy Terena, o STF reafirmou mais uma vez o entendimento de que as terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas são um direito originário. “Para os povos indígenas é um momento importante, é uma decisão importante. O ministro Barroso deixou claro que a tese do marco temporal (aplicada no julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol, em 2009) não é vinculante e não se aplica as terras indígenas do Brasil, o que para nós é um precedente importante e é uma forma do STF dar um recado ao Legislativo e Executivo de que os direitos dos povos indígenas são originários e não devem ser mitigados em nome de interesses políticos e econômicos”, destacou.

Embora a tese do marco temporal não tenha sido ventilada durante o julgamento no STF, em julho um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) foi chancelado pelo presidente Michel Teme. O parecer obriga que os órgãos do governo federal a adotarem genericamente, a tese do marco temporal para qualquer caso de demarcação no país. A medida pode paralisar mais 700 processos de demarcação em andamento.

Adiamentos
Na terça (15/08) a ACO 469, sobre a Terra Indígena Ventarra, do povo Kaingang, movida pela Funai contra o estado do Rio Grande do Sul foi retirada de pauta.

Já o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239, movida pelo partido Democratas (DEM), que questiona o Decreto nº 4.887/2003 – que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, também foi retirado de pauta em razão de licença médica do ministro Dias Toffoli, que no último julgamento pediu vistas do processo.

 

Ascom Fian Brasil/ Foto: Nelson Jr./SCO/STF 

O Supremo e a (não) demarcação de terras indígenas

Na última semana (22/06), a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Carmen Lúcia, recebeu uma delegação de mulheres e crianças Guarani-Kaiowá que descreveram o quadro de fome e insegurança alimentar, racismo e violências que se impõem aos indígenas frente à falta de demarcação de suas terras. A ministra afirmou que o Judiciário está cada vez mais atento à realidade dos Povos Indígenas relacionada à falta de demarcação de suas terras e garantiu ajuda nos problemas que dependam de decisão jurídica. Mas o que o STF pode de fato fazer?

Em meio à crise política do país e no atual contexto de ruptura democrática, entender o papel e do poder do STF é fundamental. Há alguns anos, temas centrais do Legislativo e do Executivo são deslocados por diferentes motivos para a Suprema Corte, que, ao julgar, muitas vezes termina por legislar, ou afirmar e redefinir políticas públicas no Brasil. No campo dos direitos humanos, alguns avanços podem ser assinalados especialmente no que se refere ao reconhecimento pelo STF de direitos de caráter individual.[1] No entanto, há pelo menos uma década a corte não avança e ainda faz retroceder o reconhecimento de direitos étnicos coletivos, como os direitos territoriais indígenas e quilombolas.

Em 2010, foram identificadas mais de 150 ações sobre demarcação de terras indígenas pendentes de decisão no STF.

O Supremo também foi responsável pela concessão de uma série de medidas liminares que passaram a impedir o acesso de Povos Indígenas a territórios devidamente identificados e demarcados nos termos da Constituição Federal.[2] A sinalização de esforços do Executivo – desde pelo menos 2012 – e do Legislativo – com a tramitação da PEC 215/00 e com a instalação da CPI sobre a Funai e o Incra – visando paralisar ou acabar com a demarcação de terras indígenas acirraram conflitos e contribuíram para a escalada de assassinatos, tal como documentado todos os anos no Mato Grosso do Sul. Essa pressão política e social chega apenas parcialmente ao Judiciário. A morosidade no STF, por exemplo, só reforçou a estratégia de “judicialização” contra os processos de demarcações de terras indígenas precarizando ainda mais o direito dos indígenas. A judicialização transformou-se então em justificativa confortável do Estado para a negação do direito à terra dos Povos Indígenas.

O direito à terra é considerado um direito humano fundamental de caráter coletivo dos Povos Indígenas porque a vida, o bem estar, as tradições, o futuro das comunidades e até mesmo as línguas indígenas dependem da relação que essas populações mantêm com seus territórios e recursos naturais.

No entanto, apesar de formalmente protegido, esse direito não tem sido implementado pelo Estado brasileiro e o STF tem sua parcela de responsabilidade. Por exemplo, ao não julgar o mérito das ações e manter os indígenas fora de suas terras, a corte contribuiu e contribui para a consumação de situações de fato (ex. ocupação não indígena com violenta degradação ambiental) que, de acordo com sua própria jurisprudência, seriam consideradas demandas improcedentes ou inconstitucionais.

Enquanto isso, cada vez mais impedidos de acessar seus territórios para cultivar suas roças de subsistência, caçar, pescar, praticar plenamente seus rituais, Povos Indígenas vão assistindo à derradeira derrubada de suas matas e degradação de seu ambiente juntamente com a morte de lideranças. Em resistência, muitos mantiveram-se em ocupações de ínfimas parcelas de seus territórios para reivindicar seus direitos. Contra isso também, cresceram as judicializações e, durante o julgamento do caso da terra indígena Raposa Serra do Sol/RR, uma nova âncora de conforto para a negação de direitos é apresentada: a tese do marco temporal.

A tese do marco temporal tem sido usada pela 2ª turma do STF e, basicamente, impõe a data da Constituição Federal (05/10/1988) como uma data limite para a constituição de um direito que, em sua natureza, é originário, ou seja, não depende de um ato ou fato constituinte.  Esse entendimento diverge do que diz, expressamente, o artigo 231 da Carta Magna e de tudo o que as constituições, anteriores a de 1988, previram sobre os direitos territoriais indígenas, desde 1934. Num processo de involução inconstitucional, de acordo com a tese, para alguns ministros do STF, o direito à terra só não se perderia se, ao tempo da promulgação da Constituição, os povos e grupos indígenas não estivessem em seu território tradicional devido a “renitente esbulho” praticado por não índios.

O conceito que vem sendo dado a “renitente esbulho” completa o marco de perversidade, pois para caracterização desse instituto seria necessário que, em outubro de 1988, os povos originários estivessem pleiteando a posse da terra no Poder Judiciário, ou ainda, estivessem sofrendo violência física direta contra a ocupação. A tese do marco temporal não abarca, portanto, milhares de casos ocorridos em um período de ditadura militar em que os Povos Indígenas já haviam sido expulsos e não haviam ajuizado ações por inúmeros motivos, entre eles, a dificuldade de acesso à justiça que até hoje os afeta. Por exemplo, essas mesmas decisões do STF que aplicam o marco temporal são proferidas em processos que não contam com a participação das comunidades indígenas cujas terras tem seu reconhecimento anulado.

Vale registrar que o relatório da Comissão Nacional da Verdade comprovou inúmeras violações de direitos sofridas por esses povos durante a ditadura e em outros períodos. Ou seja, a tese do marco temporal diverge de toda lógica inserida na Constituição  e, em especial, do artigo 51 dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, que evidencia a intenção da Constituinte de não legitimar arbitrariedades do período ditatorial. De acordo com esse dispositivo, deveriam ser “revistos pelo Congresso Nacional, através de Comissão mista, nos três anos a contar da data da promulgação da Constituição, todas as doações, vendas e concessões de terras públicas com área superior a três mil hectares, realizadas no período de 1º de janeiro de 1962 a 31 de dezembro de 1987”.

Apesar de ser apenas um entendimento minoritário do STF, a tese do marco temporal vem alterando de fato a vida dos Povos Indígenas por exemplo das terras Limão Verde, Guyraroká, e, mais recentemente Buriti, todas no Mato Grosso do Sul. A tese do marco temporal, que deveria ser aplicada apenas no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol abriu precedentes no STF que já estão sendo replicados por outros juízes para fundamentar a expulsão dos indígenas de suas terras.

Faixa deixada por manifestantes de etnias indígenas em gramado em frente ao Congresso Nacional, em maio de 2017. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Num efeito bola de neve, diante do aumento da judicialização, o STF passou a ser demandado para analisar em caráter de urgência ordens de despejo ou reintegrações de posse que colocam as comunidades indígenas em risco ainda mais grave. Nesses casos, sempre de maneira precária porque apenas sob a forma de suspensão de liminar, o STF tem conseguido garantir a manutenção das comunidades indígenas em parcelas ínfimas de seus territórios reivindicados.

De março de 2016 a maio de 2017, subiram de 13 para 17 suspensões de liminares concedidas pelo STF favoráveis aos Povos Indígenas, mas não suficientes para a garantia de seus direitos humanos e constitucionais.

Para os Povos Indígenas, a terra é a base para o gozo de uma multiplicidade de direitos humanos, como, por exemplo, o direito humano à alimentação e nutrição adequadas. Além da disputa judicial, as últimas décadas foram marcadas pelo acelerado agravamento nas condições de sobrevivência dos Povos Indígenas no Brasil. Em 2005, por exemplo, a morte por desnutrição de mais de 20 crianças em apenas duas aldeias (Bororó e Jaguapiru), no Mato Grosso do Sul, chamou a atenção da imprensa nacional e colocou a exigência  de medidas do Estado brasileiro para reverter este quadro, especialmente no que se refere à garantia de territórios e acesso a recursos naturais necessários à sobrevivência física e cultural dos Guarani e Kaiowá. Em 2010, sem avançar com a demarcação das terras indígenas pelo governo federal, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) confirmou o alarmante índice de 32,11 mortes de crianças menores de 1 ano de idade para cada 1000 nascimentos nas aldeias indígenas do município de Dourados (MS), sendo que a média nacional era de 19 mortes para cada 1000 nascimentos.

Em 2016, um estudo da Fian Brasil demonstrou a disparidade do direito humano à alimentação e à nutrição entre a média nacional (4,8% em 2013) e a do povo indígena Guarani e Kaiowá (28% em 2013). Além disso, 100% dos domicílios desse povo indígena pesquisados apresentaram algum grau de insegurança alimentar e nutricional contra a média de 22,6% para a população brasileira em geral. O estudo confirma que, além da situação de confinamento, as inseguranças jurídicas em processos que se arrastam no tempo para a definição jurídica do direito à terra dos Povos Indígenas e a violência impune praticada contra lideranças e comunidades indígenas comprometem ainda mais a soberania alimentar desses povos no Mato Grosso do Sul.

De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a inação do Estado brasileiro com relação às mortes e violências contra indígenas, bem como com relação à falta de demarcação de terras indígenas, insere o caso dos Guarani e Kaiowá como um caso de atenção para prevenção de situações de genocídio, conforme indicadores da ONU para tal. Com similar preocupação, o Parlamento Europeu aprovou resolução sobre a situação do Povo Guarani e Kaiowá e, considerando, entre outros elementos “que estão em curso algumas iniciativas para a reforma, interpretação e aplicação da Constituição Federal do Brasil e que estas eventuais alterações podem pôr em risco os direitos dos indígenas reconhecidos pela Constituição Federal do Brasil”, apelou às autoridades brasileiras para que desenvolvam um plano de trabalho visando dar prioridade à conclusão da demarcação de todos os territórios reivindicados pelos Guarani-Kaiowá e criar as condições técnicas operacionais para o efeito, tendo em conta que muitos dos assassinatos se devem a represálias no contexto da reocupação de terras ancestrais. Porém, além disso, sem um justo e efetivo posicionamento do STF, não haverá medida do Executivo que resolva essa agravada situação.

relatora especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli Corpuz, após sua visita ao Brasil, em março de 2016, afirmou que “a concentração de poder econômico e político nas mãos de um pequeno segmento da sociedade brasileira contribui, historicamente, para a exploração de terras e recursos dos povos indígenas, sem consideração com seus direitos ou bem-estar. Durante sua visita, ela repetidamente ouviu relatos de que ganhos políticos e econômicos individuais têm contribuído para o racismo institucional, para a violação de direitos dos povos indígenas e para os conflitos.”[5]

Resta saber se, nesse contexto, o STF conseguirá sair de sua tradicional zona de conforto para fazer valer os direitos constitucionais dos Povos Indígenas, abordando o mérito das questões sem legislar ou modificar a Constituição Federal. Afinal, a aplicação da tese do marco temporal pela corte adianta os efeitos da proposta de emenda constitucional (PEC 215), antes mesmo dela ser aprovada, e fecha os olhos do Judiciário para o fato de que: impedir que os Povos Indígenas vivam em suas terras é impedir a existência de suas culturas e coletividades. Isso tudo, em benefício de quem?

Erika Yamada é Relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca e Perita no Mecanismo de Peritos da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas. Valéria Burity é Secretária Geral da FIAN Brasil.

Publicado no Justificando


[1] Por exemplo com relação aos direitos identitários de pessoas transgênero, reconhecimento de alguns direitos LGBT, descriminalização do aborto, e à definição de quotas raciais para ingressar no serviço público e na universidade.

[2] YAMADA, E. Quem ganha com conflitos não resolvidos? in Povos Indígenas no Brasil:2006-2010, Instituto Socioambiental, 2011, p.61