Carta ao governo e ao Congresso propõe melhorias no acesso ao Pnae para indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais

Texto: Assessorias de Comunicação das entidades organizadores do encontro

Foi lançada nesta segunda-feira (8) a carta-proposta “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?”. A carta contém 23 proposições para tornar realidade melhorias discutidas durante encontro homônimo realizado em Brasília. O documento com 18 recomendações ao governo federal e cinco dirigidas ao Congresso Nacional foi entregue a representantes desses poderes, bem como do Judiciário e do Ministério Público.

O objetivo é promover as compras locais e o acesso dessas populações ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) como fornecedoras e adequar o cardápio escolar do ponto de vista cultural, como previsto na lei do Pnae (Lei 11.947, de 2009) e nas resoluções e portarias que a regulamentam. 

“O Pnae é uma política pública de grande dimensão e importância, desempenhando papel fundamental na garantia da segurança alimentar e nutricional [SAN], no apoio à agricultura familiar e na promoção de uma alimentação saudável, cultural e adequada. Porém, é necessário olhar para as diversidades e desigualdades presentes em sua execução, para garantir a concretização de suas determinações legais e a exigibilidade do direito à alimentação escolar”, explica a assessora executiva e de pesquisa do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Luana de Lima Cunha.

Assinam o texto 52 organizações e pessoas, entre entidades da sociedade civil, associações comunitárias, associações e lideranças indígenas, associações quilombolas, grupos informais, nutricionistas, centros de pesquisa, secretarias de Educação e prefeituras.

“Os relatos e debates do encontro destacaram o potencial e os gargalos do programa para atender os modos de vida e de produção de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, tanto como fornecedores quanto como estudantes nas escolas situadas nos territórios”, observa a secretária executiva do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), Laura Souza.

As recomendações cobram a plena execução das diretrizes estabelecidas há 15 anos na Lei da Alimentação Escolar (11.947/2009) – um marco no Pnae. Criado há quase  70 anos e presente em todo o Brasil, o programa é uma política pública consolidada, inspiradora e de enorme alcance. Mas, na prática, ainda são muitos os desafios para que cumpra todos os seus objetivos.

Mais adequações e menos burocracia

A criação de um marco normativo específico para as compras públicas para povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais está entre as 18 recomendações voltadas para o Governo Federal. A ideia é que seja uma resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) orientada pela perspectiva de reconhecimento do autoconsumo, da autodeterminação dos povos e da promoção das economias da sociobiodiversidade.

Isso passaria por uma adequação das chamadas públicas, do cadastro dos agricultores/as e das exigências sanitárias, considerando ainda as necessidades logísticas e de mecanismos de mitigação relativos a eventos climáticos. O primeiro grande entrave é o acesso à documentação exigida. São empecilhos a falta de documentos básicos, como RG e CPF, de cadastro do produtor e a obtenção do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF).

Segundo Vitória Rodrigues da Silva, agricultora da aldeia Lourdes, terra indígena (TI) não demarcada em Boca do Acre (AM), “vender alimentos para o programa significa mais uma oportunidade de renda, mesmo com as dificuldades de logística e demandas de burocracia, que exigem que a gente vá para a cidade”.

A necessidade de se deslocar para a sede do município é um empecilho para esses agricultores/as. Em muitos casos, o trajeto leva um dia inteiro. Por isso, uma das recomendações ao poder público é a “criação de um aplicativo para a automatização dos processos de assinaturas de contratos, emissão de guias de entrega, notas e pagamentos”.

Vitória destaca em sua fala a virtude presente no autoconsumo, “Nós queremos melhorar nosso trabalho, nossa comunidade. E isso também é pelos nossos filhos, porque entregamos nossos produtos na escola deles”.

São muitos os relatos sobre o excesso de burocracia, a escassez de informações e a inadequação das chamadas públicas – processo pelo qual agricultoras e agricultores são chamados para apresentar propostas de venda para o Pnae. Há chamadas que não se adequam à sazonalidade de plantio e cardápios sem adequação à realidade produtiva de cada localidade. “Se não tem nosso alimento no cardápio escolar, não tem demanda e, consequentemente, não tem venda”, descreve Daniel Mendes Vieira.

Ele compõe o Núcleo Pequi, uma rede de associações, cooperativas e instituições voltada à assistência de agricultores e extrativistas do Norte de Minas Gerais. O núcleo realiza capacitações e outras ações para contribuir com o aproveitamento das safras e venda dessa produção do Cerrado.

Para aumentar a aceitação dos alimentos locais na alimentação escolar, acontecem capacitações com os associados para análises de como vender os produtos beneficiados. “Nelas desenvolvemos receitas para inclusão nos cardápios da alimentação escolar”, conta. “Isso é feito junto a uma articulação entre as pontas de cada lado. Nutricionistas da alimentação escolar e associados da agricultura familiar conversam e se articulam.”

Diálogo com o Executivo

As recomendações voltadas ao Executivo federal dirigem-se ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e demais órgãos que fazem parte do Comitê Gestor do Pnae – composto por ministérios e autarquias federais.

Uma das orientações é para que se mantenha ativo e efetivo o Grupo de Trabalho de Povos e Comunidades Tradicionais, no âmbito do Grupo Consultivo, do Comitê Gestor do Pnae.

“A participação de representantes do poder público na mesa do encontro dedicada a esse diálogo trouxe contribuições para o aperfeiçoamento das propostas e reforçou a expectativa de que a carta seja acolhida”, avalia Laura Souza, do ÓSocioBio. “Os avanços no PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] nos últimos dois anos, por exemplo, mostram que é perfeitamente possível.”

Em 2023, algumas importantes medidas foram implementadas pelo Governo Federal. Entre elas, a autodeclaração de renda e de pertencimento étnico indígena e quilombola, em substituição aos documentos de comprovação de propriedade particular, com a retirada da exigência de CPF de todos os membros da família. O Número de Identificação Social (NIS) do Cadastro Único das Políticas Sociais (CadÚnico) também passou a ser aceito como instrumento de comprovação para acesso de povos e comunidades tradicionais (PCTs) ao Pnae e ao PAA. E abriu-se a possibilidade de que povos e comunidades forneçam alimentos diretamente nas escolas de seu território por meio do PAA, com o NIS como referência. Mas ainda há desconhecimento em relação a essas mudanças e como operá-las, tanto por parte de agricultores quanto de gestores.

“Aprendemos no encontro coisas que não sabíamos – leis, estratégias – e vamos voltar para a nossa cidade empoderadas e mais preparadas para lutar pelos nossos direitos”, relata Joelma Meneses da Silva Souza. A agricultora compõe a Associação de Mulheres Produtoras de Polpas de Frutas (AMPPF), que organiza a produção de mais de 60 associadas/os – 80% mulheres – e suas famílias para a venda de polpas de frutas à alimentação escolar em São Félix do Xingu (PA).

Reconhecimento de povos e comunidades tradicionais

Um desafio para o acesso é o não reconhecimento de todos os segmentos de povos e comunidades tradicionais existentes, tanto na Lei do Pnae quanto nos cadastros utilizados para as compras institucionais. Isso dificulta para esses grupos o fornecimento de alimentos ao programa e a exclusão de benefícios e normas que deveriam contemplá-los.

Maria de Jesus, conhecida como Janete, é coordenadora do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) no Piauí. Segundo ela, as quebradeiras beneficiam diversos alimentos a partir do coco babaçu, como a amêndoa; o mesocarpo; o azeite, que vem substituindo o óleo de soja na comunidade; e a farinha, carro-chefe das vendas. Também são agricultoras e produzem diversos outros alimentos.

Apesar de hoje terem acesso ao Pnae dentro dos territórios, “as informações não chegam de um jeito que os produtos estejam dentro das chamadas”. As quebradeiras até apresentam propostas de inclusão de produtos no cardápio, mas não conseguem aceitação na maioria das vezes.  

Para enfrentar esses desafios, entre as recomendações da carta ao Executivo Federal estão: a adequação das diretrizes nutricionais à realidade dos PCTs e o aumento de sua representação nos conselhos de Alimentação Escolar (CAEs); a inclusão de todas as categorias com assento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e no Cadastro Único das Políticas Sociais (CadÚnico); a inclusão no Censo Escolar da identificação de escolas e estudantes de povos e comunidades tradicionais em geral; e a elaboração de um novo modelo de chamada pública específica.

Para o Congresso Nacional também se recomenda a inclusão como prioridade na lei do Pnae de todos os grupos sociais que têm assento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).

Apesar de todas as limitações e da desvalorização dos produtos, Maria de Jesus aponta que as quebradeiras “têm visto que o Pnae e o PAA trazem avanços para as mulheres associadas”.

Costurando caminhos

Na ausência e/ou insuficiência de leis e marcos regulatórios que garantam a devida adequação e execução das diretrizes do Pnae em todos os 5.570 municípios brasileiros, relatos apresentados no encontro mostram caminhos possíveis para inspirar o poder público.

Uma experiência exitosa da adequação do Pnae apresentada no encontro foi o caso de Afuá, município da Ilha de Marajó, no Pará, com o projeto “Açaí direto na escola”. Lá, as cozinhas escolares possuem despolpadeiras. As cozinheiras recebem treinamento de boas práticas para a manipulação no processamento do fruto. E agricultoras e agricultores o entregam diretamente nas escolas, no dia em que o açaí será ofertado no cardápio, obedecendo aos critérios do termo de entrega de alimentos.

O projeto é desenvolvido desde 2022 nas escolas da sede do município, com perspectiva de ampliação para as demais unidades escolares. Exemplo da regionalização do cardápio com a inclusão de alimentos da sociobiodiversidade, a iniciativa nasceu do diálogo entre o Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar da Universidade Federal do Pará (Cecane/Ufpa), a Prefeitura Municipal de Afuá, a população ribeirinha local e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater/PA).

Neri Gemaque de Almeida é agricultor ribeirinho e uma dos produtores de açaí que realiza a entrega diretamente nas escolas do município. Para tal tarefa, ela utiliza uma bicicleta adaptada. Questionado sobre a aceitabilidade do item na alimentação, afirma que “está sendo um sucesso”.

Ele e outros produtores vendem também para o município vizinho, mas o principal destino é a alimentação escolar de Afuá. “Vendemos principalmente o açaí chumbinho. É de muita qualidade. Tem mais polpa e faz sucesso com as crianças. Comem junto com frango, com farinha, na refeição e também como suco”, relata o ribeirinho.

A adequação das cozinhas e capacitação das cozinheiras foi um ponto muito importante neste processo, além do acompanhamento de nutricionistas. São muitos os relatos de como a precarização das cozinhas escolares e das condições de trabalho de cozinheiras e nutricionistas impedem avanços na implementação das diretrizes do Pnae.

Neste sentido, outra recomendação apresentada ao governo federal é a instituição de um plano de carreira para as nutricionistas e cozinheiras. E investimentos para estruturar e equipar as cozinhas escolares.

Outro exemplo do Norte do país está em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. O município, considerado um dos três mais indígenas do Brasil, não teve nenhuma compra para alimentação escolar vinda de agricultores indígenas entre 2016 e 2017.

Em 2019, a partir de nota técnica do Ministério Público Federal (MPF), uma articulação uniu instituições do poder público para fazer visitas aos territórios, em diálogo com as comunidades e organizações locais. Assim se chegou à marca de 130 projetos de venda firmados em 2024. 

“Foi a partir desse momento, de sair do município e adentrar os territórios, que muitos agricultores conseguiram acessar as chamadas”, descreve Beatriz Castro Barbosa, nutricionista da Secretaria de Educação local. “Logo depois entrou a pandemia e esses agricultores já cadastrados puderam entregar nas próprias comunidades. Isso garantiu renda aos agricultores e alimento para as famílias.”

O agricultor indígena Cenaide Pastor Marques Lima também acompanhou esse processo. Ele integra a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e preside o Conselho de Alimentação Escolar (CAE) no município.

Para ele, foi importante começarem a fazer chamadas públicas nas comunidades, aumentando o tempo hábil de chamamento, “para que a mensagem chegasse e para que os agricultores pudessem se organizar”.

A partir desses diálogos, foi-se entendendo a sazonalidade de plantios para a adaptação dos cardápios das diferentes regiões, por ser um território extenso. Ainda existem desafios para incluir mais agricultores, mas estão ocorrendo avanços com normas que simplificam o cadastramento de agricultores individuais – como o uso do NIS e a dispensa de normas sanitárias por se tratar de autoconsumo. “Isso tem sido muito animador para as comunidades”, conta Cenaide. 

“A meta é alcançar mais comunidades para apoiar e ampliar as chamadas”, relata Beatriz. “Tivemos neste ano 128 agricultores participando, entre grupos formais e informais, no valor total de R$ 637.609,60.”

Apesar dos avanços, um problema vivenciado em boa parte dos municípios do Amazonas é o alto gasto logístico da distribuição dos alimentos não perecíveis. Estes, acabam por consumir parte significativa do orçamento destinado à alimentação escolar, a consequência é que, em muitos dias letivos, falta alimento nas escolas.

Analisando as experiências exitosas e os obstáculos existentes, outras recomendações da carta são: a criação de um programa de agentes de apoio ao Pnae e ao PAA; a capacitação de servidores dos órgãos gestores dos territórios tradicionais; a integração das diferentes políticas voltadas à agricultura familiar e aos povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais; e a aceleração e ampliação de políticas complementares, como demarcação das terras indígenas e territórios, assistência técnica e extensão rural (Ater) agroecológica, crédito rural e estruturação de agroindústrias.

Compreendendo a situação de insegurança social que muitas dessas populações vivem, o documento também orienta para se assegurar que o fornecimento ao Pnae não prejudique o acesso a benefícios socioassistenciais como Seguro Defeso e Bolsa Família. Outra recomendação consiste em fomentar a adesão de estados e Distrito Federal ao consórcio nacional Convênio ICMS 139 ou outros que isentem a agricultura familiar da cobrança de impostos no caso de comercialização para os programas nacionais de compras públicas.

Necessidade de reajuste anual

Um ponto muito discutido foi a insuficiência de recursos para o Pnae. Além de representar um risco para a adequada alimentação dos estudantes, a questão se desdobra em diversos entraves para o segmentos da agricultura familiar, da desvalorização de sua produção a atrasos nos pagamentos. “Somos obrigados a entregar sem receber e arcar com todos os custos. Não queremos mais trabalhar dessa forma, pois estamos tendo prejuízo”, relatou uma agricultora durante o debate.

Segundo a Foirn, estudos realizados no estado do Amazonas mostram que o valor da refeição, seguindo as resoluções do FNDE, teria um custo mínimo R$ 3,46. Valor muito acima de R$ 0,86, que é per capita atual do Pnae para estudantes matriculados em escolas de educação básica localizadas em áreas indígenas e remanescentes de quilombos.

Nem todos os municípios destinam o mínimo de 30% estabelecido em lei para as compras da agricultura familiar. E a complementação de recursos por estados e municípios, em muitos casos, é insuficiente ou inexistente.

Para enfrentar essa situação, entre as recomendações ao Governo Federal está o aprimoramento do desenho de financiamento do Pnae para o enfrentamento das desigualdades, e a ampliação do orçamento do programa e também do PAA. Para o Congresso Nacional é proposto que se crie mecanismo de reajuste anual dos valores per capita na lei do Pnae – a exemplo do  PL 2.754/2023.

Por avanços no Congresso

A parte da carta voltada ao Parlamento traz proposições legislativas que possibilitem avanços e evitem retrocessos nos direitos das populações. Entre as recomendações estão: rejeitar projetos de lei que proponham a retirada a prioridade de povos indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária e mulheres nas compras públicas do Pnae; e avançar na proposta de uma Política Nacional de Promoção da Alimentação e dos Produtos da Sociobiodiversidade de Povos e Comunidades Tradicionais, prevista no Projeto de Lei (PL) 880/2021.

“O mesmo Congresso que tem sido desfavorável aos indígenas e permite a tramitação de PLs ruins para a alimentação escolar aprovou, nas últimas legislaturas, medidas de combate à fome e de apoio à agricultura familiar, como o reajuste para o Pnae de 28 a 39%, dependendo da modalidade de ensino”, lembra o assessor de Advocacy do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Pedro Vasconcelos. “Esperamos que, no contexto de necessidade de proteção ambiental e de adaptação à emergência climática, este conjunto de reivindicações sensibilize os e as congressistas.”

Riscos imediatos

No momento em que a carta de recomendações é lançada, surge um novo risco para o acesso de indígenas, quilombolas e PCTs aos mercados institucionais. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) iniciou a consulta pública de uma nova Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) que equipara a agricultura familiar e economia solidária a outros segmentos econômicos.

A consulta pública nº 1.249, de 02 de maio de 2024, propõe uma nova RDC “sobre  a identificação e a classificação do grau de risco das atividades econômicas sujeitas à vigilância sanitária”, revogando a RDC nº 49/2013.

A resolução 49/2013 é considerada um marco ao reconhecer as especificidades dos riscos desses setores da agricultura familiar e da economia solidária. E envolveu, no seu processo de consulta pública, a realização de sete seminários regionais em todos os territórios brasileiros.

Como reação à proposta, uma carta aberta em defesa de normas sanitárias inclusivas será lançada nos próximos dias com, aproximadamente, 130 assinaturas de movimentos, organizações, comunidades, pesquisadores, parlamentares e outros setores da sociedade.

Segundo a carta, a consulta pública da Anvisa representa um retrocesso em termos de normas sanitárias e suas adequações para os segmentos da agricultura familiar e das economias da sociobiodiversidade.

“A nova norma proposta na Consulta Pública reforça a exclusão sanitária (…) Dá também um passo atrás ao restringir a autonomia dos estados e municípios em estabelecerem classificações de risco específicas (…) Outro retrocesso em relação à RDC 49/ 2013 são as exigências relativas ao Responsável Técnico, que podem inviabilizar economicamente a legalização sanitária de pequenos empreendimentos”, destaca o documento.

Para Vanessa Schottz, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), uma contraproposta à medida é manter a Resolução 49 e ampliar a consulta pública. “Deve-se buscar estratégias que viabilizem participação ativa e efetiva dos segmentos atendidos. É fundamental também avançar na implementação do Programa para Inclusão Produtiva e Segurança Sanitária, a Praissan, e na instalação do comitê desse programa, o Cissan”, defende.

Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?”

O encontro que deu origem à carta-proposta foi realizado em 27 e 28 de maio, em Brasília. Ao longo de dois dias de trabalho, representantes de povos do campo, das águas e das florestas, em conjunto com organizações e movimentos sociais, Centros de Colaboração para a Alimentação Escolar (Cecanes), nutricionistas, membros governamentais do Comitê Gestor do Pnae e gestores estaduais e municipais debateram soluções e recomendações para que a compra local de alimentos saudáveis para a alimentação escolar ocorra em terras e territórios tradicionais.

A atividade contou com quase 90 participantes, sendo 60% mulheres e um terço do total composto por indígenas, quilombolas ou representantes de povos e comunidades tradicionais que produzem alimentos para a venda aos mercados institucionais. Além da carta-proposta, as discussões realizadas terão como produto final uma agenda comum em forma de publicação, a ser lançada ainda este ano.

O Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?” foi realizado pelo Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio) e pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), com o apoio de: FIAN Brasil, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Fundo Dema, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), WWF Brasil e Ministério Público Federal (MPF). Também recebeu apoio da Global Health Advocacy Incubator (GHAI) e do projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor, da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, implementado em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).

Nova edição de observatório confronta verdadeiras e falsas soluções diante de crises globais

A nova edição do relatório anual Observatório do Direito à Alimentação e à Nutrição examina as causas, os impactos e as respostas às crises alimentar, climática e ecológica. A publicação põe em xeque soluções falsas e motivadas pelo lucro e apresenta alternativas fundamentadas no direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana), na justiça ecossocial, na agroecologia e na soberania alimentar.

Estão disponíveis as versões em espanhol e inglês, e em breve divulgaremos em português (acesse o sumário executivo).

Os sistemas alimentares industriais não conseguiram atender às necessidades nutricionais da população do nosso planeta. Cerca de 800 milhões de pessoas passam fome atualmente. Nossos sistemas alimentares produzem um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa (GEEs), contribuindo enormemente para a crise climática e exacerbando o acesso a alimentos e nutrição. A extinção em massa de espécies, a destruição de ecossistemas e a interrupção dos ciclos naturais que sustentam a vida na Terra afetam ainda mais o acesso aos alimentos.

O extrativismo, a mercantilização e a financeirização da natureza exacerbaram a exploração, a desapropriação e os despejos violentos. O controle cada vez maior dos recursos naturais por um pequeno número de corporações, indivíduos e estados poderosos também está alimentando a violência baseada em gênero, as formas de discriminação que se cruzam e a crescente desigualdade.

Com o título Alternativas Ecológicas Populares ao Greenwashing Corporativo, a publicação da Rede Global pelo Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN, na sigla em inglês) propõe um caminho diferente com base nas lutas de base contra a captura corporativa, a lavagem verde e as práticas neocoloniais. Ele promove o Dhana, os direitos humanos dos camponeses e de outras pessoas nas áreas rurais e a soberania alimentar para todas e todos.

A edição do observatório está dividida em quatro seções, que examinam os acontecimentos internacionais; a alimentação e a tripla crise ecológica; o colonialismo verde associado à descarbonização; e as lutas de base e suas soluções para as crises climática e alimentar.

Apesar do agravamento da crise alimentar, em 2023 houve pouca ação internacional decisiva para tratar de suas causas. Em vez disso, a captura corporativa dos fóruns internacionais, principalmente na ONU, continuou inabalável. A crise alimentar e a tríplice crise ecológica do clima, da perda de biodiversidade e da poluição estão inextricavelmente ligadas, porém as empresas e os Estados promovem soluções tecnológicas semelhantes para cada uma delas e não abordam os direitos dos pequenos produtores de alimentos.

Nos últimos anos, a descarbonização e as abordagens relacionadas ao mercado foram impostas como o principal paradigma para lidar com essas crises entrelaçadas. Mas esse neocolonialismo verde simplesmente perpetua a destruição ecológica e a mercantilização da natureza, ao mesmo tempo que aprofunda as desigualdades existentes.

Uma transformação ecossocial justa de nossos sistemas alimentares que proteja o direito de todos à alimentação e à nutrição exige justiça global e a promoção da soberania alimentar, da harmonia e do equilíbrio entre a humanidade e o meio ambiente.

Movimento indígena enfatiza necessidade de derrubar decisão de Gilmar Mendes sobre marco temporal

Texto: Anna Beatriz Anjos/Agência Pública (apublica.org)
Foto: José Cícero/Agência Pública

O movimento indígena elegeu um desafio no encerramento da 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), a maior assembleia dos povos originários no Brasil: derrubar a mais recente decisão de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o marco temporal.

Em 22 de abril, durante o primeiro dia do acampamento, Mendes suspendeu todas as ações sob sua relatoria que tratam da lei que valida o marco temporal. Ela propõe que só sejam demarcadas terras ocupadas pelos indígenas na data de promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. A lei, aprovada no Congresso Nacional em 2023, foi patrocinada pela bancada ruralista.

Gilmar Mendes é relator de três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que pedem a derrubada da lei do marco temporal. Uma delas foi proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizadora do ATL, junto a partidos políticos. As lideranças esperavam que Mendes desse um parecer rejeitando o marco, já que o próprio STF havia declarado, em setembro do ano passado, que a tese é inconstitucional, num ato considerado como uma conquista histórica dos indígenas.

Contudo, Mendes não só manteve a vigência da lei como determinou a criação de uma câmara de conciliação para discutir a tese. Essa câmara será formada por entidades de defesa dos direitos indígenas e do agronegócio, partidos políticos, poderes Executivo e Legislativo, Procuradoria-Geral da República (PGR) e Advocacia-Geral da União (AGU). Cada uma das partes tem 30 dias para apresentar propostas para alcançar um consenso sobre o tema.

Por que isso importa?
A ação do ministro Gilmar Mendes contrariou decisão do próprio STF do ano passado e, segundo as lideranças indígenas, fortalece a tese do marco temporal. O marco é o maior obstáculo à demarcação de novas terras atualmente.

Agora, segundo a Apib, uma das prioridades do movimento nos próximos meses é trabalhar para tentar reverter a medida tomada por Mendes.

Há dois caminhos para isso, segundo Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib. Um deles é convencer outros ministros da Corte a rechaçar a decisão monocrática de Mendes. Ela foi encaminhada para apreciação dos demais via julgamento virtual. A carta final do ATL cobra que os juízes “não se acovardem” e “sejam contrários a essa decisão de morte”.

A segunda alternativa depende de o ministro Edson Fachin decidir pela inconstitucionalidade da lei em uma ação que pede sua derrubada, da qual ele é relator.

Indígenas avaliam que decisão de Gilmar Mendes é retrocesso

“O ministro Gilmar Mendes, acima de tudo, desprestigia o entendimento do colegiado do Supremo que já decidiu pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal”, destaca Terena, da Apib. “Isso traz uma insegurança jurídica enorme para os povos indígenas. A lei ainda está em vigência; os povos indígenas, no limbo jurídico; e a violência nos territórios, aumentando.”

A Apib avaliou a decisão de Mendes como um retrocesso que adiará ainda mais o já prolongado debate sobre o marco temporal, encarado pelos indígenas como a maior ameaça às demarcações. A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, relatou em entrevista à Agência Pública no começo do mês que a lei tem atrapalhado a efetivação de novas demarcações pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Enquanto isso, o presidente da bancada ruralista no Congresso, deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), classificou a decisão de Mendes como “uma vitória”. “Se a Funai a partir de agora quiser demarcar, vai ter que cumprir a lei que nós aprovamos no Congresso”, disse em vídeo postado em suas redes sociais.

O avanço no reconhecimento dos territórios tradicionais pelo Estado é a pauta central do movimento indígena e do Acampamento Terra Livre desde o seu surgimento, em 2003. Embora seja um direito garantido pela Constituição, a demanda segue longe de ser plenamente atendida.

“No ano passado, em setembro, quando o Supremo declarou a inconstitucionalidade da tese, não achamos que não estaríamos aqui, no dia de hoje, novamente falando sobre esse assunto”, afirmou Terena no fim do acampamento.

Foto: Ruy Sposati/Cimi

Com pesquisa sobre insegurança alimentar, entidades pedem a Cidh urgência no caso dos Guarani e Kaiowá

Foto: Ruy Sposati/Cimi
Foto: Ruy Sposati/Cimi

A Aty Guasu, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a FIAN Brasil, a FIAN Internacional e a Justiça Global apresentaram novas informações à denúncia oferecida contra o Estado brasileiro no caso envolvendo violações de direitos humanos de cinco comunidades dos povos indígenas Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul: Apyka’i, Guaiviry, Kurusu Ambá, Ñande Ru Marangatu e Ypo’i.

Foram incluídos achados da pesquisa recém-lançada sobre insegurança alimentar e nutricional nesses territórios; o contexto do marco temporal, que ameaça as demarcações; e um relato sobre a morte da xamã Damiana Cavanha, liderança histórica do tekoha Apyka’i.

O memorial entregue no dia 27 de fevereiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh), em Washington (EUA), expõe as violações em especial quanto à soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN) dos dois povos. As peticionárias caracterizam a situação como um quadro de violência estrutural e sistêmica e recorrem ao artigo 29 da instância, que trata de casos de urgência ou gravidade. A Cidh é um órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA).

“Trazemos mais uma vez para o mundo a questão do nosso povo”, diz o líder da comunidade de Kurusu Ambá, Elizeu Lopes, conselheiro da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá. “Estamos cercados. Expulsos dos nossos territórios, baleados à queima-roupa, envenenados por agrotóxicos, atacados com leis no Congresso Nacional. É muito triste trazer essa realidade para fora do país, mas precisamos trazer, porque é o dia a dia que vivemos com nossas crianças, com nossos avós, com nossos anciãos.”

Precariedade e vulnerabilidade

A pesquisa lançada em fevereiro pela FIAN com o Cimi atualiza a situação de três comunidades estudadas em 2013 (Guaiviry, no município de Aral Moreira; Kurusu Ambá, em Coronel Sapucaia; e Ypo’i, em Paranhos) e inclui outras duas (Apyka’i, em Dourados, e Ñande Ru Marangatu, em Antônio João). Os números mostram uma melhora em relação a dez anos atrás, mas também a persistência de um quadro de precariedade e vulnerabilidade.

Enquanto no levantamento de 2013 não houve nenhum domicílio em situação de segurança alimentar e nutricional (SAN), no de agora, naquelas três áreas, esse percentual foi de 15,0% – um dado que reforça a importância das retomadas de terras tradicionais para a alimentação e a promoção da saúde das famílias. Quase 95% dos entrevistados e entrevistadas associaram essa mudança à permanência no tekoha – “lugar onde se é”, ou em que se pode viver plenamente.

Cabe ressaltar que o índice de segurança alimentar e nutricional (SAN) é muito pior que aquele verificado no conjunto da população brasileira em 2022, sob o impacto de dois anos de pandemia.

“Além disso, como alertamos nesta nova ida à comissão, esse elemento de estabilização e melhoria – a demarcação das terras – está totalmente inviabilizado no momento, com a aprovação da lei inconstitucional do marco temporal”, ressalta o membro do Cimi Flávio Vicente Machado. O dispositivo só permite aos indígenas reivindicar áreas que estivessem ocupando quando foi promulgada a atual Constituição Federal, em 1988. Os deputados e senadores votaram a favor da tese mesmo depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) considerá-la inconstitucional, e derrubaram o veto do presidente Lula a ela, inscrevendo-a na Lei 14.701, de 2023, já contestada na Justiça.

Como demonstração do grave cenário, as entidades destacam no memorial o caso da matriarca Damiana Cavanha, de Apyka’i. Ela passou por toda sorte de violações de direitos e violências na vida – como perder vários membros da família em atropelamentos – e morreu aos 84 anos em novembro, em condições a esclarecer, sem ver reconhecido seu tekoha, que no momento está sem moradores e em risco de desaparecer.

“Outro elemento que agregamos é o dos direitos econômicos, sociais e culturais, os Desc”, relata o assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil Adelar Cupsinski, citando como exemplo a total ligação do bem-viver e da espiritualidade das duas etnias com a terra e a produção de alimentos. “Como signatário do pacto internacional que protege essas dimensões da cidadania, o Pidesc, nosso país tem o dever de honrá-lo. Mais um motivo para a admissão e a priorização do caso. Sem a terra demarcada, os Desc não são viabilizados.”

Para o coordenador do programa de Justiça Internacional da Justiça Global, Eduardo Baker, o caso permite ao sistema interamericano aprofundar sua discussão sobre esses direitos no contexto específico dos indígenas no Brasil. “É algo ainda pouco explorado por seus órgãos”, observa. “Vale lembrar que a própria Cidh elegeu os direitos econômicos, sociais e culturais como um de seus três temas prioritários e os povos indígenas como uma população prioritária para os próximos anos. É uma oportunidade para conciliar a agenda do órgão com uma demanda de reversão de um quadro estrutural de violações.”

“A situação das cinco comunidades é emblemática e consegue representar as principais violências que assolam há décadas os Kaiowá e Guarani, então esperamos que a análise e as providências beneficiem as outras 55 retomadas e o povo como um todo”, acrescenta Flávio Vicente Machado, do Cimi.

A Cidh tem uma “fila” de pedidos e, quando decide pela admissibilidade de um deles, abre um processo que pode resultar em recomendações a um Estado nacional. Descumpri-las pode levar a um julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), como aquele em que o governo brasileiro foi condenado a demarcar o território indígena e indenizar o povo Xukuru.

Histórico

A petição inicial submetida à comissão da OEA já completou sete anos. Em dezembro de 2019 o Estado brasileiro apresentou sua resposta e em julho de 2020 as peticionárias fizeram observações a essa manifestação.

“Na prática, não mudou nada, a não ser quando retomamos nossos territórios por conta própria, conseguindo um pedaço de mato, um rio, um mínimo para sobreviver”, pontua Elizeu Lopes, lembrando das visitas de duas relatoras da ONU, comissões do Parlamento Europeu e outras missões internacionais. “Esperamos agora, pelo menos, ter um retorno sobre a denúncia e que ela pressione o governo do estado e o governo brasileiro. Que diminua a perseguição e que sejam punidos os assassinos de Xurite Lopes, Dorvalino Rocha, Nísio Gomes, Ronildo Ramires. Não queremos que esse massacre continue.”

Pesquisa detalha insegurança alimentar e nutricional em retomadas guarani e kaiowá

Agricultora indígena no tekoha Ypo’i. Foto: Ruy Sposati/Cimi

A FIAN Brasil lançou o relatório Insegurança Alimentar e Nutricional em Retomadas Guarani e Kaiowá – Um Estudo em Cinco Territórios Indígenas do Mato Grosso do Sul. A pesquisa atualiza a situação de três comunidades estudadas em 2013 (Guaiviry, no município de Aral Moreira; Kurusu Ambá, em Coronel Sapucaia; e Ypo’i, em Paranhos) e inclui outras duas (Apyka’i, em Dourados, e Ñande Ru Marangatu, em Antônio João). Acesse o livro e veja como foi o lançamento.

“Com esta pesquisa, pudemos avaliar a importância das retomadas das terras tradicionais para a alimentação e a promoção da saúde das famílias”, comenta a secretária-geral da organização, Nayara Côrtes Rocha. “Os números mostram uma melhora em relação a dez anos atrás, mas também a persistência de um quadro de precariedade e vulnerabilidade.”

No levantamento de 2013, não houve nenhum domicílio em situação de segurança alimentar e nutricional (SAN). No de agora, naquelas três áreas, esse percentual foi de 15,0%, Côrtes lembra que 94,9% das famílias associaram essa mudança à permanência no tekoha – “lugar onde se é”, ou em que se pode viver plenamente. A insegurança alimentar e nutricional (InSAN) grave (fome) e a moderada diminuíram, ao passo que a leve subiu.

“Cabe ressaltar que o índice de SAN é muito pior que aquele verificado no conjunto da população brasileira sob o impacto de dois anos de pandemia. Mesmo computando os dados de Ñande Ru Marangatu, que não estava no levantamento anterior e eleva o índice para 23,3%.”

Comparação dos dados das pesquisas realizadas em 2013 e em 2023 pela FIAN Brasil nas áreas de retomada guarani e kaiowá (Mato Grosso do Sul, Brasil)

 “A dimensão alimentar depende de uma série de outros elementos”, comenta a professora Verônica Gronau Luz, uma das coordenadoras do estudo. “Os indicadores socioeconômicos e sanitários constatam a escassez de água, a exposição a agrotóxicos, as limitações de transporte e mobilidade, a falta de acesso a educação e saúde.”

 A docente da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) lembra, ainda, o desafio de um solo empobrecido por desmatamento, monocultura e pastagem ao longo de décadas. “Muitos moradores e moradoras relatam, por exemplo, a dificuldade de capinar a braquiária e o colonião sem equipamentos, bem como a ocorrência fora do comum de formigas e outros animais afugentados pela pulverização intensiva das fazendas no entorno.”

A pesquisa de 2023 mostra tanto o peso de programas assistenciais como o Bolsa Família e as cestas de alimentos – uma expressão das possibilidades limitadas de soberania ou autonomia alimentar – quanto a negação do acesso a esses direitos por racismo institucional.  

Casos emblemáticos

As áreas estudadas têm em comum a luta histórica pela reocupação de seus territórios originários, o processo de demarcação estagnado e as mortes violentas de lideranças ao longo do movimento de retorno e autodemarcação territorial. “Foi difícil, para as lideranças da Aty Guasu, escolher apenas cinco retomadas de um universo de 60 que diariamente registram um quadro de violações generalizadas”, pontua o membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Flávio Vicente Machado. “Foram ao menos dois anos de assessoria jurídica e política especializada, por parte das organizações aliadas, às lideranças. O consenso resultou na identificação de comunidades emblemáticas dessa luta.”

Ele adianta que o retrato atualizado dessa realidade será incorporado à petição encaminhada em 2016 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh), em conjunto também com a FIAN Internacional e a Justiça Global. “Denunciamos ali o quadro histórico de violência e esbulho, ora sob omissão do Estado brasileiro, ora com sua contribuição ativa”, diz. “Esta nova documentação criteriosa aumenta a chance de admissão da petição baseada nas demandas dessas populações quanto a seus direitos territoriais, à vida, à integridade pessoal e às garantias e proteções judiciais, entre outros direitos civis, políticos e sociais. E o seu resultado beneficiará todo o povo Guarani e Kaiowá.”

Para o integrante do Conselho da Aty Guasu Genito Gomes, líder do tekoha de Guaiviry, a parceria dará mais visibilidade ao cenário de massacre. “As falas dos nossos grandes pais e mães trouxeram a voz sagrada para o relatório, que levará o nosso clamor às autoridades e mostrará como a gente vive”, diz. “Não dá mais para os fazendeiros seguirem nos matando, não dá mais para derramar sangue indígena.”

Genito aponta o Marco Temporal como uma lei criada pelos não indígenas para exterminar esses povos. A tese, inscrita na Lei 14.701/2023 pelos deputados e senadores, condiciona o direito territorial indígena à ocupação dos locais na data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que precisará voltar à questão. “Nós não aceitamos essa lei”, enfatiza. “Nossos grandes pais e mães criaram esta terra para a gente viver com saúde, plantar nosso próprio alimento – mandioca, milho, arroz, abóbora, feijão, banana.”

Metodologia mista e protagonismo

O estudo combina dados quantitativos e qualitativos. A parte quantitativa teve como principal instrumento de coleta um questionário construído com o apoio da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). O questionário passou por validação com a população do estudo por meio dos entrevistadores e das entrevistadoras da pesquisa.

“Foram várias etapas de aprimoramento, ouvindo pessoas-chave, até chegar ao aplicativo de celular usado nas entrevistas”, conta o pesquisador Lucas Luis de Faria, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que coordenou o trabalho com Verônica Gronau. “Essa metodologia não foi ao acaso. Ter as comunidades como protagonistas era um pressuposto e foi fundamental tanto em termos de legitimidade quanto de qualidade.” Houve várias devolutivas, conversas para apresentação dos resultados e escuta.

As dimensões qualitativas abrangeram a etnografia colaborativa e multissituada, observações de campo, registros fotográficos e escritos, história oral, descrições realizadas no decorrer das atividades de capacitação e entrevistas.

“Para realizar as entrevistas capacitamos 17 pessoas das próprias comunidades”, conta a pesquisadora Indianara Ramires Machado, mestre pela Universidade de São Paulo (USP). “Muitas delas destacaram a oportunidade de conhecer melhor as condições de vida das famílias ou viram mais a fundo coisas com que tinham contato no atendimento de saúde ou no cotidiano escolar. Algumas se mostraram interessadas no fazer científico. Que esse oguata [caminhada] seja mais um meio de empoderamento indígena”, completa a integrante da Ação dos Jovens Indígenas de Dourados (AJI).

A ideia é que as adaptações do app da Rede Penssan e da Escala de Insegurança Alimentar Indígena sirvam a pesquisas com outras etnias em todas as regiões do país.

Pressão pela garantia de direitos

“Queremos que o material tenha o máximo possível de usos, tanto na academia como na incidência – a pressão para que o poder público cumpra suas obrigações”, diz o antropólogo da Universidade de Lisboa Felipe Mattos Johnson, também da equipe, exemplificando com as manifestações do Abril Indígena em Brasília e em todo o país.

“Tudo o que vimos e ouvimos nesta construção reafirma que as condições para que os Guarani e Kaiowá possam viver de forma plena só estarão garantidas a partir de um conjunto de elementos, cosmológicos e institucionais, fortalecidos com a demarcação dos territórios.”

Insegurança Alimentar e Nutricional nas Retomadas Guarani e Kaiowá

O livro tem como subtítulo Um Estudo em Cinco Territórios Indígenas no Mato Grosso do Sul.

Assista à íntegra do lançamento, em 7 de fevereiro de 2024, e saiba mais sobre a metodologia, o processo e os achados da pesquisa.

Executive summary – Food and Nutrition Sovereignty and Security in the Guarani and Kaiowá Territories of Mato Grosso do Sul, Brazil

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This executive summary presents the results of the survey carried out by FIAN Brasil with Cimi and a group of researchers in 2023 which reassessed the situation of three territories visited in 2013 and included two other communities in the diagnosis.

Em declaração conjunta, Cimi, FIAN Internacional e outras entidades denunciam à ONU genocídio indígena e ilegalidade do Marco Temporal

Na última terça-feira (4) o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e as instituições FIAN Internacional, Right Livelihood Award Foundation (RLAF), Vivat Internacional, Terra de Direitos e Justiça Global denunciaram, em declaração conjunta, o genocídio dos povos indígenas e apontaram a tese inconstitucional do Marco Temporal como uma das causas da violência contra os povos originários no Brasil.

Paulo Arantes, assessor internacional do Cimi, foi o porta-voz das denúncias durante diálogo com a subsecretária-geral das Nações Unidas e assessora especial para Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu.

No discurso, Arantes mencionou a situação dos Guarani e Kaiowá, Yanomami, Ye’kwana, Karipuna e Wapichana destacando que, na recente visita ao Brasil, o que Nderitu viu “é fruto de uma dívida histórica, agravada pelo antigo governo federal, e vários governos estaduais, que negaram a pandemia, abandonaram todas políticas de proteção, disseminam discursos de ódio e, assim, legitimaram a violência, intensificaram conflitos mortais, negaram serviços básicos de saúde e alimentação e colocaram em risco a existência de diversos povos, levando a muitas mortes evitáveis”.

Disse ainda que “as atrocidades cometidas pela administração passada devem ter seus autores materiais e intelectuais identificados, processados e julgados de acordo com o direito internacional. As vítimas, suas famílias e comunidades devem obter reparação integral, incluindo a verdade sobre os fatos. A tese do Marco Temporal é de fato um fator de atrocidade.”

Por fim, o porta-voz solicitou à Nderitu a continuidade da adoção de medidas frente a situação problemática que encontrou no país e solicitou apontamentos a respeito do que o Brasil deve fazer para cumprir suas recomendações.

O diálogo fez parte da 53ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que segue até este sábado (14) na sede das NAÇÕES UNIDAS em Genebra, Suíça.

Para acompanhar ou rever os diálogos, acesse: https://www.ohchr.org/en/hrbodies/hrc/home

Documentários retratam desafios da alimentação escolar indígena

Uma aldeia cercada por “mares” de soja, milho transgênico e cana no Centro-Oeste. Uma comunidade regida pelos tempos e distâncias dos rios amazônicos. Uma população guarani e kaiowá, uma população majoritariamente tikuna. Duas realidades distintas, com desafios próprios e comuns. É o que retratam os minidocumentários A Roça, o Rio e os Degraus: Alimentação Escolar Indígena no Alto Solimões e O Tekoha e o Prato Escolar: O Pnae na Aldeia Te’yikue, realizados pela FIAN Brasil com a produtora Extrato de Cinema. Ambos estão disponíveis com legenda em espanhol e inglês, além de português.

Com 14 minutos cada, os filmes documentam iniciativas para o cumprimento de duas diretrizes do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae): a adequação do cardápio à cultura de cada comunidade; e a prioridade para agricultores familiares indígenas no fornecimento.

As entrevistas com professores/as, cozinheiras, produtores/as rurais e alunos/as também mostram obstáculos como a burocracia que dificulta a documentação, a falta de estrutura nas cozinhas e o avanço dos produtos alimentícios ultraprocessados, com as doenças associadas ao aumento no seu consumo.

O Pnae representa uma das principais políticas para a segurança alimentar e nutricional de crianças e adolescentes. Tanto no apoio ao rendimento escolar e na formação de hábitos saudáveis como no nível mais urgente, do combate à fome. Além disso, é um exemplo da possibilidade de uso das compras públicas para atingir objetivos como o desenvolvimento local, a melhoria das condições de vida de populações em vulnerabilidade e o fortalecimento da agroecologia.

A Roça, o Rio e os Degraus foi rodado na comunidade de Belém do Solimões, na Terra Indígena Eware 1, em Tabatinga (AM). Traz relatos do dia a dia nas escolas municipais indígenas (EMIs) Eware Mowatcha e Ngetchutchu Ya Mecü, em que a produção local tem seu espaço, mas a alimentação escolar escasseia ou falta em vários momentos. A produção também mostra o trabalho da Mapana, associação de mulheres tikuna, com roçados coletivos e formação, que já passa de 200 associadas.

O Tekoha e o Prato Escolar se passa na Aldeia Te’yikue, em Caarapó (MS), com a comunidade da EMI Ñandejara. A escola introduziu alimentos tradicionais no cardápio e deixou os preparos mais saudáveis, mas depoimentos pedem uma transição mais estruturada, ao lado da compra da produção de moradores. O documentário apresenta dois projetos de educação alimentar e nutricional (EAN): o Sabor da Terra, com preparo de pratos típicos pelas/os estudantes e famílias; e a Unidade Experimental Poty Reñoi, em que crianças e adolescentes plantam, cuidam e colhem – e provam do que cultivaram.

“Essas gravações com as etnias indígenas no Amazonas e Mato Grosso do Sul foram bastante transformadoras”, diz o diretor dos filmes, Marcelo Coutinho. “Não só no quesito de experiências profissionais únicas, mas, sobretudo, na importância da difusão da cultura e da resistência política daqueles povos que, mais do que nunca, merecem e precisam da atenção e do respeito da sociedade brasileira.”

A trilha traz faixas musicais de Djuena Tikuna e do projeto Memória Viva Guarani.

 Equidade e saúde

Cada minidocumentário liga-se a um estudo de caso, que gerou um diagnóstico e recomendações aos atores envolvidos, em especial o poder público dos dois municípios. “Temos a expectativa de que os materiais produzidos ajudem a superar os gargalos e impactar a realidade local. E que contribuam para a luta de povos indígenas em outras regiões”, diz a integrante da coordenação da FIAN Mariana Santarelli.

Esse trabalho faz parte do projeto “Equidade e saúde nos sistemas alimentares”,que inclui ainda um mapeamento nacional de como as iniquidades se refletem e se agravam nesse campo. A iniciativa conta com o apoio da Global Health Advocacy Incubator (GHAI).

É possível acessar os conteúdos, em português, aqui e aqui.

Fichas técnicas

A Roça, o Rio e os Degraus: Alimentação Escolar indígena no Alto Solimões
Brasil, 2023

Realização: FIAN Brasil
 Produção: Extrato de Cinema
 Apoio: Global Health Advocacy Incubator (GHAI)
 Direção: Marcelo Coutinho
 Entrevistas: Pedro Biondi
 Direção de fotografia: Luis Barbosa
 Som direto: Takelson Vasques
 Pesquisa: Gabriele Carvalho e Mariana Santarelli (coordenação); Mislene Mendes Ticuna
 Montagem: Marcelo Coutinho e Diego Benevides
 Colorista: Diego Benevides
 Foto still e videografismo: Marcelo Coutinho
 Trilha sonora: “Eware”, “Maiyü Wüiguü” e “Marakanandê” (Djuena Tikuna)
 Revisão da tradução: Mariam Pessah (espanhol) e Dominique Bennett (inglês)

O Tekoha e o Prato Escolar: O Pnae na Aldeia Te’yikue
Brasil, 2023

 Realização: FIAN Brasil
 Produção: Extrato de Cinema
 Apoio: Global Health Advocacy Incubator (GHAI)
 Direção: Marcelo Coutinho
 Entrevistas: Pedro Biondi
 Direção de fotografia: Diego Benevides
 Som direto: Kiki Dailece
 Pesquisa: Gabriele Carvalho e Mariana Santarelli (coordenação), Elemir Soare Martins e Emily Miléo Azevedo
 Montagem: Marcelo Coutinho e Diego Benevides
 Colorista: Diego Benevides
 Foto still e videografismo: Marcelo Coutinho
 Trilha sonora: “Xekyvy’i”, “Nhamandu”, “Nhamandu Miri” e “Tape Porã” (Memória Viva Guarani)
 Revisão da tradução: Mariam Pessah (espanhol) e Dominique Bennett (inglês)

STF retoma julgamento sobre a legalidade do Marco Temporal nesta quarta (7)

Tese político-jurídica é inconstitucional e ameaça os direitos dos povos indígenas no Brasil

Nesta quarta-feira, 7 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento sobre a legalidade do Marco Temporal, uma tese político-jurídica inconstitucional segundo a qual os povos indígenas no Brasil só teriam direito às terras sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Porém, é sempre importante lembrar: a história dos povos indígenas não começou em 1988.

Sobre o assunto, no final de maio a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh) reiterou a preocupação com o possível reconhecimento jurídico do Marco Temporal pelo STF. Em comunicado à imprensa, a Cidh reafirma que a aplicação dessa tese contraria os padrões universais e interamericanos de direitos humanos, colocando em risco a própria existência dos povos originários no país.

“No contexto da possível apreciação dessa tese pelo STF, agendada para o dia 7 de junho, e seu nocivo efeito sobre todos os casos de demarcação de terras ancestrais já concluídos e futuros, a CIDH reafirma que sua aplicação contraria disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas”, destaca o comunicado.

Em paralelo, a Câmara dos Deputados tenta acelerar o plano de tornar a aplicação do Marco Temporal um mecanismo legal. Para se ter uma ideia, no último dia 30 e em regime de urgência, deputadas e deputados aprovaram o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que dentre outros assuntos transfere do Poder Executivo para o Poder Legislativo a competência para realizar demarcações de terras indígenas. Foram 283 votos a favor e 155 votos contra.

Dentre os parlamentares que votaram a favor estão os membros da bancada ruralista e do agronegócio, que querem a utilização da tese como critério para todos os trâmites que envolvem terras indígenas e, desta forma, inviabilizar a demarcação dos territórios originários que ainda não tiveram seus processos finalizados.

No dia da votação, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) divulgou nota em que classificou a aprovação do Marco Temporal pelos parlamentares federais como um “genocídio legislado”. “O PL 490 representa um genocídio legislado porque afeta diretamente povos indígenas isolados, autorizando o acesso deliberado em territórios onde vivem povos que ainda não tiveram nenhum contato com a sociedade, nem mesmo com outros povos indígenas, cabendo ao Estado brasileiro atuar também pela proteção dos territórios onde vivem estes povos”, diz o documento.

Também em nota, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) destacou que ao determinar a aplicação “da nociva e inconstitucional tese do Marco Temporal, o PL inviabiliza as demarcações dos territórios indígenas, legaliza o genocídio contra os povos em isolamento voluntário ao permitir o contato com esses povos, flexibiliza o usufruto exclusivo dos territórios para a exploração de terceiros e extingue o direito de consulta aos povos segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”.

Para se tornar lei o texto precisa ser analisado e votado pelo Senado Federal, ainda sem data definida.

Aporte jurídico

Ao manifestar preocupação com a aprovação do PL 490/2007, a FIAN Brasil relata que a justificativa das deputadas e deputados para a aprovação da normativa foi fundamentada na aplicação da tese do Marco Temporal, em 2009, durante julgamento do caso Raposa Serra do Sol. “Embora os direitos territoriais das comunidades indígenas daquela localidade tenham sido resguardados, a decisão dos ministros do STF gerou muitos conflitos”, explica o assessor de direitos humanos da FIAN Brasil, Adelar Cupsinski.

A tese político-jurídica foi utilizada para anular processos administrativos de demarcação, a exemplo de áreas pertencentes aos Guarani e Kaiowá, e vem sendo questionada pelos povos indígenas em muitas ocasiões.

Cupsinski explica que as organizações indígenas, apoiadas por indigenistas, defensores de direitos humanos e ambientalistas, argumentam que o Marco Temporal “desconsidera os direitos dos povos originários sobre aquelas áreas de onde foram violentamente retirados, especialmente durante os anos da ditadura militar, momento em que os direitos humanos foram violados”. O assessor de direitos humanos esclarece que a Constituição brasileira seguiu a tese jurídica do “indigenato”, que consiste no direito inato e congênito dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas.

Por estas razões e com o intuito de pacificar as disputas sobre os direitos indígenas, a Suprema Corte brasileira reconheceu a repercussão geral da matéria, no Recurso Extraordinário 1017365 SC, pautado para julgamento nesta quarta-feira, 7 de junho. O caso envolve a disputa possessória entre os indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani e o estado de Santa Catarina e chegou até o Supremo Tribunal Federal através de um recurso manejado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

A FIAN Brasil, apoiada pela FIAN Internacional, participa do processo judicial na qualidade de amicus curiae (amigo da Corte) e apresentou um memorial aos ministros do STF defendendo os direitos dos povos indígenas.

Um dos pontos do documento afirma que o direito humano à alimentação foi incorporado ao artigo 6º da Constituição Federal de 1988 como direito fundamental social, por meio da Emenda Constitucional 64/2010. Para Adelar Cupsinski, a decisão do Estado brasileiro “rompeu com o paradigma assistencialista destinado à alimentação, ao reconhecê-la enquanto direito fundamental, assumindo a responsabilidade em adotar estratégias para efetivar a segurança alimentar e nutricional”.

O direito fundamental à alimentação também está implícito no artigo 194, o qual determina ações públicas para a garantia dos direitos relativos à saúde, previdência social e assistência social, assim como no artigo 196, que eleva a saúde à condição de “direito de todos e dever do Estado”.

Sobre o assunto, o assessor de direitos humanos destaca que “este direito ainda precisa ser lido em consonância com o multiculturalismo reconhecido pela Constituição Federal de 1988. O multiculturalismo se expressa pelo dever que o texto constitucional incumbiu ao Estado de proteger o patrimônio histórico e cultural dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Por estas razões, o Estado brasileiro precisa assegurar os direitos territoriais dos povos indígenas, nos termos da Constituição Federal de 1988 e dos tratados internacionais de que participa”, conclui Cupsinski.

Quer saber mais sobre o Marco Temporal?

No livro O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: Enunciados Jurídicos, vários textos abordam o Dhana do ponto de vista dos povos indígenas. Especialmente dois enunciados trazem elementos para o debate atual: “Terra e território como elementos centrais para a garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais”, de Olivier De Schutter, Valéria Burity e Felipe Bley Folly (p. 87); e “O direito constitucional à retomada de terras indígenas originárias” (p. 99), de Eloy Terena e Roberta Amanajás.

A questão também é tratada no episódio 4 do podcast baseado no livro.

Em 2017, a FIAN Brasil e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançaram a campanha “Seu Direito É Nossa Pauta”, na qual indígenas e organizações parceiras explicam o Marco Temporal, falam de sua inconstitucionalidade e comentam as ameaças da tese às garantias constitucionais dos povos indígenas. São cinco episódios curtinhos que você pode escutar aqui.

FIAN Brasil