A quem interessa mudar a lei do Pnae?

Leia, abaixo, carta aberta que 40 entidades, entre elas a FIAN Brasil, encaminharam aos senadores e senadoras para que rejeitem o Projeto de Lei 3.292/2020 e outros PLs que tentam descaracterizar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). E acompanhe nossa atuação em defesa dessa política pública.

A quem interessa mudar a lei do Pnae?

A quem interessa tirar a prioridade de aquisição de povos indígenas, quilombolas e assentados/as da reforma agrária?

A quem interessa criar mercado para as empresas e para o agronegócio?

No dia 8 de junho, 40 movimentos sociais e organizações não governamentais, somadas a seis Frentes Parlamentares, realizaram um ato virtual em defesa do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que reuniu cerca de 800 participantes em uma sala de Zoom, e pouco mais de 8.000 espectadores que assistiram ao ato nas redes sociais. O que motiva esta ampla mobilização é o posicionamento contrário a uma série de projetos de Lei (PLs) que tramitam no Congresso Nacional e que ameaçam o Pnae, comprometem a autonomia dos estados e municípios, dos/as nutricionistas responsáveis técnicos/as e retiram de cena protagonistas importantes como indígenas, quilombolas e assentados/as da reforma agrária na aquisição de alimentos. As mudanças propostas tornam o Pnae vulnerável aos múltiplos interesses de grandes produtores, da indústria de alimentos e das grandes redes de supermercados, ferindo frontalmente a garantia da alimentação adequada e saudável, que respeita a produção sustentável, a cultura e os hábitos alimentares saudáveis. 

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é uma política pública fundamental para a promoção da segurança alimentar e nutricional, reconhecida internacionalmente por garantir comida saudável no prato de mais de 40 milhões de estudantes em todo o Brasil. Existe há quase 70 anos, mas somente em 2009, por meio da Lei 11.947, é que os/as agricultores/as familiares, assentados/as da reforma agrária, povos indígenas e comunidades remanescentes de quilombos passaram a ter prioridade na venda de  sua produção para alimentar os/as estudantes.  Foi também no período mais recente que se aperfeiçoaram os cardápios em prol de uma alimentação pautada pela cultura alimentar e produção local, sustentabilidade, sazonalidade e diversificação. Estas conquistas levaram a uma significativa melhora na qualidade da alimentação e na dinamização das economias locais, fortalecendo sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. 

Com a pandemia, as aulas presenciais foram suspensas, e a oferta das refeições nas escolas, interrompida. Nesta ocasião, o Congresso Nacional tomou a importante decisão de autorizar a distribuição de kits/cestas de alimentos do Pnae às famílias dos/as estudantes, através da Lei nº 13.987/2020.

O Congresso Nacional sempre esteve ao lado da Alimentação Escolar, mas neste momento a virtuosa lei que rege o programa está ameaçada por PLs que tramitam tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado.  Não há dúvidas quanto à intenção de setores econômicos em acessar este mercado governamental, que adquire anualmente, apenas com recursos do Governo Federal, cerca de R$ 4 bilhões em alimentos, em todo o território nacional.  

Por isso, apelamos para que modificações na legislação não aconteçam sem um amplo debate com as representações dos diversos setores envolvidos com o Pnae, a exemplo da agricultura familiar e camponesa, nutricionistas e gestores. As alterações propostas podem levar a retrocessos que vão prejudicar a alimentação dos estudantes e os circuitos locais de produção e abastecimento.

ATENÇÃO, SENADORES/AS: rejeitem o PL 3.292/2020!!!!!!!

Foi aprovado na Câmara dos Deputados, seguindo para o Senado, o PL 3.292/2020, de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PSL/GO). Este PL cria reserva de mercado para a compra de leite fluido na alimentação escolar e retira a prioridade da aquisição de alimentos de povos indígenas e comunidades quilombolas e assentados(as) da reforma agrária. Cabe destacar que tramitam no Congresso Nacional mais de dez PLs de natureza similar, como o PL 4.195/2012 (que propõe a obrigatoriedade de oferta da carne suína) e seus apensados, e o PL 1.466/2021 (que torna obrigatória a oferta diária de feijão e arroz em pelo menos 50% das refeições servidas no âmbito do Pnae).  

Dizemos não ao PL 3.292/2020, e a outros PLs similares, porque:

  1. NÃO SE DEVE CRIAR RESERVAS DE MERCADO NA ALIMENTAÇÃO ESCOLAR. A criação de uma cota para a compra de leite fluido cria um perigoso precedente de reserva de mercado, tornando o Pnae vulnerável aos múltiplos interesses e lobbies da indústria de alimentos, que veem no programa um canal de escoamento de seus produtos; 
  1. A AGRICULTURA FAMILIAR NÃO SERÁ BENEFICIADA. Quem fornece majoritariamente leite fluido ao Pnae não são os/as agricultores/as familiares, e sim, laticínios de médio e grande porte. Neste sentido, o argumento central de favorecimento da agricultura familiar não se sustenta; 
  1. ESTADOS E MUNICÍPIOS DEVEM TER AUTONOMIA PARA DECIDIR O QUE COMPRAR PARA A ALIMENTAÇÃO A ESCOLAR. Ao transferir a responsabilidade de definição do cardápio para o Congresso Nacional, é ferida a autonomia de estados e municípios na definição da compra e dos cardápios, que devem ser pautados pela oferta local, sazonalidade, diversificação agrícola da região e na promoção da alimentação adequada e saudável, e elaborado por nutricionistas; 
  1. ÓRGÃOS FEDERAIS JÁ SE POSICIONARAM CONTRA CONSIDERANDO A VIABILIDADE TÉCNICA E OPERACIONAL. A Comissão de Educação da Câmara dos Deputados votou pela rejeição, sendo esse também o posicionamento oficial do próprio FNDE, Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), da Casa Civil, e do Ministério Público Federal. 
  1. LOGÍSTICA E VIABILIDADE OPERACIONAL DEVEM SER LEVADAS EM CONSIDERAÇÃO PARA A COMPRA DA ALIMENTAÇÃO ESCOLAR. Muitos municípios, especialmente os de menor porte, não possuem condições adequadas para o transporte e armazenamento do leite fluido nas escolas; 
  1. ALIJAM AS COMUNIDADES INDÍGENAS E GRUPOS TRADICIONAIS ESPECÍFICOS E VÃO TRAZER SÉRIOS EFEITOS PARA A SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL DESSAS COMUNIDADES. Ao retirar a prioridade de aquisição concedida aos assentamentos da reforma agrária, comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, os PLs ampliam sua exclusão do acesso aos mercados e às políticas públicas, além de prejudicar sua cultura alimentar e promover ainda mais a desnutrição destes povos. Em Nota Técnica, a Funai avalia como fundamental considerar, no âmbito da alimentação escolar indígena e de comunidades tradicionais, o respeito aos costumes e características de suas culturas, bem como o contexto de autoconsumo; 
  1. O PNAE É UM PROGRAMA DA EDUCAÇÃO QUE CUMPRE PAPEL CENTRAL NA AGENDA DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL E EDUCAÇÃO. O FNDE É O ÓRGÃO COMPETENTE PARA REGULAMENTAR E MONITORAR O Pnae. Ao retirar a designação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) da regulamentação da aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar, o PL 3.292 soma-se a uma série de outros ataques legislativos que tentam fragilizar esta instituição tão importante para a coordenação nacional e intersetorial do Pnae.

Mais argumentos técnicos podem ser conhecidos em Nota Técnica produzida pelo Observatório da Alimentação Escolar.

ATENÇÃO DEPUTADOS: Rejeitem o PL 284/2021!!!!!!!!

Este PL, de autoria da deputada Luísa Canziani (PTB/PR), prevê que durante o período de suspensão das aulas presenciais, em razão de situação de calamidade pública, possa haver não apenas a distribuição de gêneros alimentícios diretamente às famílias, mas, de modo alternativo, a distribuição de recursos financeiros. Nos opomos a esta proposta por avaliar que o tema da distribuição de alimentos durante a pandemia já está devidamente disciplinado pela Lei nº 13.987/2020, que permitiu a distribuição apenas de gêneros alimentícios, e não a utilização de “cartões alimentação”. Cabe lembrar que este tema já foi exaustivamente debatido na Câmara dos Deputados, tanto na tramitação da MP nº 934/2020, quanto na tramitação do PL nº 2159/2020, sendo rejeitado. Qualquer nova proposta de alteração proveniente deste PL e seus apensados deve seguir os ritos de passagem pelas comissões e os debates com a sociedade. 

Dizemos não ao PL 284/2021, porque:

  1. A DISTRIBUIÇÃO DE CESTAS DE ALIMENTOS É A MAIS ADEQUADA PARA A GARANTIA DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO. Se tomado como base o recurso per capita (no Ensino Fundamental, por exemplo, é de R$ 0,36 por dia letivo), o valor passível de ser transferido seria de apenas R$ 7,20 por mês. Estes valores, fora da dinâmica das compras públicas, não são suficientes para garantir segurança nutricional dos estudantes durante um mês;
  2. A TRANSFERÊNCIA FINANCEIRA INTERROMPE AS COMPRAS DA AGRICULTURA FAMILIAR. Isso coloca em risco a produção e compromete a renda de pequenos as agricultores/as, que dependem deste canal de comercialização para seu sustento, o que tende a aumentar a pobreza no campo, já acentuada pela pandemia da Covid-19, contexto no qual, de um total de 19 milhões de pessoas passando fome, 12% são da área rural (Vigisan) ;
  3. FAVORECE O CONSUMO DE ALIMENTOS ULTRAPROCESSADOS E A COMPRA EM GRANDES REDES DE SUPERMERCADO. A operacionalização dos recursos do Pnae por empresas de “cartão alimentação”, que podem ser utilizados apenas em rede cadastrada de supermercados, tende a centralizar nas grandes redes de abastecimento e na aquisição de alimentos ultraprocessados o orçamento destinado à alimentação escolar. Esta mudança vai na contramão das diretrizes do programa, que favorecem as compras locais da agricultura familiar e a garantia de oferta de uma alimentação saudável e adequada. Não há dúvidas quanto ao interesse destas empresas e da indústria de alimentos em acessar este bilionário mercado institucional, através de modelos de gestão que já estão sendo incubados em prefeituras de grandes capitais. 

ACT Promoção da Saúde

Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável

Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil)

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)

Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)

Campanha Nacional pelo Direito à Educação 

Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida

Comissão Pastoral da Terra (CPT)

Comissão de Presidentes e Presidentas dos CONSEAs Estaduais (CPCE)

Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG)

Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)

Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (CONTRAF Brasil)

Conselho Federal de Nutricionistas (CFN)

Colegiado Nacional de Presidentes e Presidentas dos CONSEAs Estaduais (CPCE)

Conselho Indigenista Missionário (CIMI)

Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB)

Federação Nacional dos Nutricionistas (FNN)

FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas

Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional

Frente Parlamentar de Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional

Frente Parlamentar Mista da Agricultura Familiar

Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Quilombolas

Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas

Frente Parlamentar pelo Desenvolvimento da Agroecologia e Produção Orgânica

Frente Parlamentar em Defesa da Convivência com o Semiárido

Frente Parlamentar em Defesa dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável

Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)

Movimento Camponês Popular (MCP)

Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)

Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP)

Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

Movimento Geraizeiro

Movimento Nacional pela Soberania Popular Frente à Mineração (MAM)

Núcleo Agrário do PT

Observatório da Alimentação Escolar

Rede de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil

União Nacional das Organizações Cooperativistas Solidárias (UNICOPAS)

World Wildlife Fund (WWF Brasil)

Livro jurídico liga os pontos entre lutas sociais, sustentabilidade, o direito à alimentação e o sistema de justiça

O que o direito a se alimentar e se nutrir adequadamente tem a ver com as retomadas indígenas, a educação quilombola, a agroecologia e a luta sem-terra? Como é tratado na nossa Constituição e nos pactos internacionais dos quais o Brasil faz parte, como tem sido aplicado na prática e como isso poderia ser diferente?

Esses são alguns dos pontos abordados no livro O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: Enunciados Jurídicos, iniciativa da FIAN Brasil e de O Direito Achado na Rua.

Com prefácio de Carlos Marés e artigo de Boaventura de Sousa Santos sobre o sistema judicial, a publicação de 196 páginas é uma obra coletiva voltada para a proteção e efetivação desse direito individual e social, conhecido pela sigla Dhana, indispensável à dignidade humana e à própria vida. A coletânea é organizada por Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro e José Geraldo de Sousa Junior.

“Temos um conjunto de normas que dispõe sobre o Dhana no Brasil, o que nos falta é que as pessoas que aplicam o direito se posicionem de maneira efetiva pela sua realização”, diz Burity. “Este trabalho traz a visão de movimentos e de pessoas que pesquisam e advogam neste campo sobre como o direito à alimentação pode ser garantido. É, portanto, um instrumento para potencializar lutas sociais.” 

“Queremos que o livro chegue aos advogados/as, procuradores/as, defensores/as, juízes/as, juristas, professores/as e estudantes do nosso campo de conhecimento”, diz Escrivão Filho. 

A FIAN pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para se manifestar em arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) para que o governo federal adote medidas emergenciais de combate à insegurança alimentar.

Rigor e linguagem simples

O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas divide-se em duas partes. A primeira apresenta os principais conceitos envolvidos e os contextualiza no Brasil e no mundo, com abordagens sobre o Dhana e o sistema de justiça, ao passo que a segunda traz os enunciados, teses jurídicas utilizadas na defesa  e promoção desse direito. Cada um corresponde a um capítulo e aborda um assunto específico. 

Para dar maior alcance e mais efetividade ao conteúdo, as autoras e autores – advogadas e advogados que atuam junto aos movimentos sociais no tema – buscaram uma linguagem simples e direta, longe do dito “juridiquês”, sem descuidar do rigor técnico da defesa.

A compilação baseia-se numa intensa agenda de discussão a partir das experiências e concepções de movimentos, entidades de direitos humanos e advocacia popular, juristas e intelectuais.

Participam, como autoras e autores: Valéria Torres Amaral Burity, Roberta Amanajás Monteiro, Antonio Escrivão Filho, José Geraldo de Sousa Junior, Carlos Marés, Boaventura de Sousa Santos, Raquel Z. Yrigoyen-Fajardo, Renata Carolina Corrêa Vieira, Olivier De Schutter, Felipe Bley Folly, Luiz Eloy Terena, Gladstone Leonel Júnior, Rafael Modesto, Naiara Andreoli Bittencourt, Eduarda Aparecida Domingues, Givânia Silva, Vercilene Francisco Dias, Camila Cecilina Martins, Joice Silva Bonfim, Carlos Eduardo Lemos Chaves, Larissa Ambrosano Packer, Leticia Santos Souza, Diego Vedovatto, Edgar Menezes Mota, Euzamara de Carvalho e Victória Lourenço de C. e Gonçalves.Confira o debate de lançamento, em 30 de abril, e leia artigo do co-organizador José Geraldo de Sousa Junior sobre o livro.

Foto: Humberto Góes

FIAN pede ao STF para ser ouvida em ação contra fome

A FIAN Brasil pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para ingressar como amicus curiae na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 831, que visa obrigar o governo federal a investir em medidas de combate à fome no contexto da pandemia de Covid-19.

Com pedido de medida liminar, a ADPF 831 busca o afastamento do limite de 20 anos imposto ao Orçamento pela Emenda Constitucional (EC) 95/2016, conhecida como Teto dos Gastos. A ação também pede um programa emergencial de atendimento à população vulnerável, com a inclusão automática de pessoas em situação de pobreza e de extrema pobreza no Bolsa Família e aumento do valor do benefício.

Outro pedido é que as esferas federal, estadual e municipal de governo garantam um kit alimentação aos e às estudantes sem aulas presenciais em decorrência da pandemia. Apresentada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), a manifestação questiona, ainda, a redução do auxílio emergencial por meio da EC 109/2021.

ADPF é um tipo de ação que visa evitar ou reparar lesão a um preceito fundamental causada por um ato ou uma omissão do poder público. Esses preceitos são os direitos e garantias que representam a base da Constituição, bem como os fundamentos e principais objetivos da República. Amicus curiae (“amigo da corte” ou “amigo do tribunal”, em latim) designa uma instituição ou pessoa que, por seus conhecimentos num assunto específico, é ouvida no intuito de embasar decisões justas em casos judiciais complexos e de repercussão social da controvérsia, ou seja, que tendem a extrapolar o processo e formar precedente para outros julgamentos.

Foi designada como relatora a ministra Rosa Weber, responsável por outros casos envolvendo o tema. Ela já requisitou informações prévias ao presidente Jair Bolsonaro, ao Senado, à Câmara dos Deputados e aos ministros da Cidadania, da Economia e da Educação. É possível acompanhar o andamento do processo aqui.

Conhecimento técnico e legitimidade

Na sua petição, protocolada na sexta-feira (14), a FIAN Brasil destaca sua capacidade de fornecer subsídios para o julgamento em função de seu acúmulo e sua representatividade na temática, a partir do viés dos direitos humanos fundamentais.

O pedido lembra a atuação há 20 anos em todas as regiões do país, com o papel central de assessorar agricultoras e agricultores familiares, movimentos sociais, povos e comunidades tradicionais, povos indígenas e outros grupos, como consumidores, com o objetivo de fortalecer as lutas sociais em prol da efetivação dos direitos humanos, em especial do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). A entidade ressalta que sua missão é contribuir para a realização de tal direito considerando todas as etapas e dimensões do processo alimentar e levando em conta as causas que geram obstáculos a essa garantia.

“A FIAN Brasil vem acompanhando o desmonte gradativo, promovido pelo governo federal, das políticas públicas e a falta de repasse de recursos públicos para a geração de renda e o combate à fome da população brasileira”, pontua o documento. “São políticas públicas comprovadamente eficientes, que foram sendo consolidadas no decorrer das últimas décadas, com resultados expressivos para a população brasileira e que neste momento de pandemia, deixaram de ser prioridades em decorrência de escolhas políticas.”

A organização lista como exemplos o Programa Cisternas, de segurança hídrica no Semiárido; o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de compras públicas de produtos da agricultura familiar e fornecimento a pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional; e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que atende os 41 milhões de estudantes da rede pública.

Foto: Valmir Fernandes/Coletivo Marmitas da Terra

Informe mostra impactos dos agrotóxicos na América Latina e no Caribe

A FIAN lançou nesta terça-feira (27) o informe Agrotóxicos na América Latina: violações contra o direito à alimentação e à nutrição adequadas.

Com 108 páginas, a publicação reúne dados e relatos sobre os impactos dessas substâncias no Brasil e em mais sete países latino-americanos e caribenhos: Colômbia, Paraguai, Equador, Honduras, Guatemala, México e Haiti.

O relatório mostra como os agrotóxicos impactam a saúde humana e o meio ambiente, e como isso impede a realização plena do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Também identifica um padrão na estratégia das corporações na região.

O lançamento contou com a participação do relator especial para Substâncias Tóxicas e Perigosas da ONU, Marcos Orellana, e da geógrafa Larissa Bombardi, autora do atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia. Foram apresentados testemunhos sobre comunidades atingidas de Brasil, Haiti e Paraguai. A documentação do caso brasileiro, em que pulverização aérea foi usada como arma para expulsão de posseiros de área rural em disputa em Pernambuco, será entregue a Orellana e possivelmente a relatores/as especiais de outros temas. 

A mediação coube a Valéria Burity, da FIAN Brasil, e o informe foi apresentado por Juan Carlos Morales González, da FIAN Colômbia, e pelo pesquisador Leonardo Melgarejo. Mais de 700 pessoas participaram.

Confira como foi o debate e acesse a publicação em português, espanhol ou inglês.

No dia 5 o relatório terá novo momento de divulgação global: um seminário no qual a FIAN Internacional vai apresentar também os resultados de estudo sobre experiências de transição para comunidades e sistemas alimentares livres de agrotóxicos.

Múltiplos impactos

Agrotóxicos na América Latina parte da conceituação do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana), consagrado em tratados internacionais, para mostrar como esse direito é violado na região.

O Dhana deve ser considerado em suas duas dimensões: o direito de estar livre da fome e o direito à alimentação e à nutrição adequadas. Esse direito não se restringe a uma condição biológica. Portanto, é preciso falar de todo o processo alimentar (o conjunto de processos sociais, econômicos e culturais nos quais a alimentação está envolta), visando que ele esteja direcionado para a promoção da dignidade humana e garantindo a sustentabilidade socioambiental desse processo.

Assim, a garantia efetiva do Dhana relaciona-se à garantia, para toda população, do consumo, por seus próprios meios e de forma emancipatória, de alimentos adequados, saudáveis, nutritivos e culturalmente aceitáveis, sem discriminação por motivos de raça, de etnia, de gênero, de geração, ou de questões econômicas e sociais. Os dados e relatos apresentados no informe mostram como o uso dessas substâncias afeta todas essas dimensões do Dhana.

Estado capturado por corporações

Os dados e os relatos trazidos pelas FIANs evidenciam que existe uma captura do Estado por parte das grandes corporações. Há tolerância, aquiescência e até protagonismo de nossos Estados diante das diferentes formas de violência que permitem que agrotóxicos sejam usados sem controle. Há, assim, a violação sistemática e deliberada das obrigações estatais para com o Dhana e direitos relacionados, priorizando o lucro em lugar do respeito aos direitos humanos, à sustentabilidade ambiental e à própria democracia. A agenda legislativa e várias mudanças regulatórias ocorrem para favorecer essa situação e os interesses das empresas.

Por padrão, houve aumento do uso e comercialização de agrotóxicos na última década. O produto de maior uso é o herbicida glifosato, classificado como cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc). Esse aumento está associado também ao aumento das lavouras geneticamente modificadas (GM), no contexto da venda de pacotes tecnológicos. Seguem-se a esse modelo a simplificação dos hábitos alimentares e a destruição de práticas e de saberes culturais. Os impactos sobre a saúde e o meio ambiente concentram-se nos países exportadores de commodities (basicamente soja, milho, algodão e colza) dominadas por essas transnacionais.

Violência e desregulação

A flexibilização das legislações é agravada por perseguições e mortes de ativistas, criminalização de movimentos sociais, legalização de crimes e abafamento de reações. Os conflitos de interesses associados a tais desvios da comunidade científica e política expressam-se na omissão ou na culpa direta de agências responsáveis pelo controle da qualidade dos alimentos, dos insumos e da proteção à saúde e ao ambiente, estabelecendo um ciclo vicioso no qual o agravamento de problemas soma-se a decisões que recrudescem suas causas.

O uso de agrotóxicos proibidos na Comunidade Europeia cresce em nossa região, onde registra-se que, atualmente, pelo menos um terço dos produtos mais vendidos corresponde a praguicidas altamente perigosos, vetados em seus países de origem.

Também tem ocorrido aumento no número de intoxicações aliado à subnotificação dessa questão. As informações sobre intoxicação e altas taxas de enfermidades relacionadas ao emprego de agrotóxicos, apesar da ausência de espaços de denúncia para tais casos, são bastante numerosas em praticamente todos os países que participam deste informe.

Na Guatemala, por exemplo, houve registro de resíduo do agrotóxico DDT no leite materno em volume 185 vezes superior ao limite considerado tolerável pela OMS, enquanto na Colômbia agrotóxicos representaram 28,67% das intoxicações por substâncias químicas em 2014. Esses dados se agravam pela ausência de políticas públicas aplicadas à análise e ao monitoramento de resíduos desses princípios ativos.

Recomendações

Agrotóxicos na América Latina aponta os Estados onde estão localizadas as sedes das empresas fabricantes dessas substâncias como os grandes responsáveis por seus danos. A FIAN identifica graves deficiências nos mecanismos universais e regionais de direitos humanos ao propor medidas vinculativas para reverter e punir o uso crescente de desses produtos e suas consequências.

A entidade defende que os países da região estabeleçam moratórias sobre culturas geneticamente modificadas ou outros modelos agroprodutivos altamente exigentes de agrotóxicos e observem o princípio da precaução em qualquer decisão sobre o assunto. O relatório enfatiza a necessidade de estruturar mecanismos de nacionais de justiciabilidade, reparação, indenização e não repetição acerca de violações dos direitos de populações, comunidades e indivíduos. Propõe também que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos incorpore e aplique o enfoque das obrigações extraterritoriais ao analisar a situação em nossos países.

FIAN e outras entidades da Rede Global pelo Dhana manifestam apoio a Larissa Bombardi

A partir de proposta da FIAN Brasil, a FIAN Internacional e 11 seções da entidade divulgaram nota pública de apoio à professora Larissa Bombardi e contra a perseguição a pesquisadores e pesquisadoras.

A manifestação defende a liberdade de pesquisa, o direito de informação e a democracia. É assinada por mais 22 organizações da Rede Global pelo Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN) – entre elas o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) – e três coletivos latino-americanos de agricultura familiar.

Bombardi, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), anunciou em março a decisão de deixar o país em razão das intimidações que vem sofrendo há anos. Elas buscam interromper seus trabalhos sobre os impactos dos agrotóxicos nos direitos humanos e no meio ambiente, além de suas investigações sobre a ligação entre sistemas alimentares corporativos e pandemias como a que vivemos agora.

Participação em lançamento da FIAN

Autora do atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, Bombardi participará do lançamento do informe regional Agrotóxicos na América Latina: Violações Contra o Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas, previsto para o dia 27, com transmissão ao vivo. A publicação é uma iniciativa da FIAN Brasil realizada em parceria com a FIAN Colômbia e com a colaboração das seções, coordenações e grupos da FIAN no Paraguai, no Equador, em Honduras, na Guatemala, no México e no Haiti.

A geógrafa tem recebido apoio massivo de entidades acadêmicas e organizações civis. Leia, abaixo, a manifestação organizada pela FIAN.

Nota de apoio das seções da FIAN à professora Larissa Bombardi, do Departamento de Geografia da USP

As seções da FIAN que assinam esta nota repudiam as ameaças sofridas pela professora Dra. Larissa Bombardi, da Universidade de São Paulo, em razão de suas pesquisas sobre agrotóxicos e seus impactos nos direitos humanos e no meio ambiente no Brasil, sendo um de seus principais trabalhos como pesquisadora o atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia. Bombardi também tem alertado como sistemas alimentares corporativos apresentam graves externalidades e podem estar associados a pandemias, como a que vivemos agora.

Reconhecemos a qualidade técnica e relevância do seu trabalho, especialmente em um momento de grave crise ambiental e sanitária que afeta a população mundial. 

É inaceitável que pesquisadores e pesquisadoras sejam perseguidos/as e criminalizados/as em decorrência de seus trabalhos científicos. Essa é uma violação à liberdade de pesquisa, ao direito de informação da sociedade e à democracia.

Declaramos que estamos atentos/as à gravidade desta situação e incansavelmente solidários/as à professora Larissa Mies Bombardi.

Assinam:

FIAN Internacional
FIAN Brasil
FIAN Colômbia
FIAN Equador
FIAN Índia
FIAN Indonésia
FIAN Nepal
FIAN Portugal
FIAN Sri Lanka
FIAN Suécia
FIAN Suíça
FIAN Uganda

Outros membros da Rede Global pelo Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN):

African Centre for Biodiversity
Biowatch South Africa
Bread for all, Switzerland
Center for Food and Adequate Living Rights (CEFROHT), Uganda
Focus on the Global South
Food Security Network-Khani, Bangladesh
Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN)
International Union of Food, Agricultural, Hotel, Restaurant, Catering, Tobacco and Allied Workers’ Associations (IUF)
Katarungan, the Philippines
Maleya Foundation, Bangladesh
Movimiento de la Juventud Kuna, Panama
Nafso, Sri Lanka
Pakistan Kissan Rabita Committee, Pakistan
PPSS/ Anti-Jindal & Anti-POSCO Movement, India
Right To Food Campaign, West Bengal, India
Sri Lanka Nature Group
The Right to Food Network Malawi
Why Hunger, USA
World Forum of Fisher People’s (WFFP)
Youth’s Forum for Protection of Human Rights (YFPHR), India
Zambia Alliance for Agroecology and Biodiversity

Também assinam:

Centro Agrícola Cantonal de Quevedo
Colectivo Agroecologico del Ecuador
Colectivo de Jóvenes Rurales Machete y Garabato


Foto: Cecília Bastos (publicada no Portal USP)

FIAN manifesta à ONU preocupação com Cúpula de Sistemas Alimentares

Um apelo pela correção das rotas da Cúpula de Sistemas Alimentares, marcada para setembro. Esse foi o teor da declaração lida pela secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, no diálogo interativo com o relator especial de Direito à Alimentação, na 46ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Burity falou em nome da FIAN Internacional e das seções nacionais da entidade.

A manifestação endossou as preocupações externadas pelo relator especial Michael Fakhri quanto à urgência de transformar o sistema alimentar, acrescentando que o informe produzido por ele reafirma vários dos resultados do monitoramento realizado pela Rede Global pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas.

A FIAN lembrou a carta de mais de 150 organizações apresentada pelo Mecanismo da Sociedade Civil (MSC) do Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA) no começo de fevereiro. O documento alerta para a captura corporativa no processo de preparação da cúpula do tema, conjugada à falta de uma base sólida de direitos humanos; à ausência de um enfoque que realinhe os sistemas alimentares corporativos aos direitos das pessoas, dos povos e da natureza; e à ameaça de que as instituições públicas democráticas e o multilateralismo sejam postos em segundo plano pelo modelo de múltiplas partes interessadas (multistakeholder).

Na intervenção, a FIAN exorta os Estados-membros a reorientar radicalmente o curso do evento de setembro nas suas instâncias decisórias. “Não tem sentido para nossas organizações participar de uma cúpula assim”, alerta o texto, pedindo o fortalecimento dos atores e instituições comunitárias e públicas como vitais para o funcionamento dos sistemas alimentares e da democracia. “Também pedimos ao relator que considere a importância dos sistemas camponeses de sementes e dos povos indígenas e investigue o impacto da digitalização, tomando como exemplo o contexto da Covid-19”, finaliza a mensagem lida por Valéria Burity.

Ao lado da desmaterialização e da financeirização, a digitalização está transformando profundamente nossos sistemas alimentares, num processo que alguns chamam de “Quarta Revolução Industrial”. Uma das bases dela é uma fusão de tecnologias que apaga as fronteiras entre as esferas física, digital e biológica.

Desigualdades acentuadas

Ao falar ao Conselho de Direitos Humanos CDH na sessão de 2 de março, o relator Michael Fakhri observou que o mundo estava ficando para trás em realizar plenamente o direito à alimentação mesmo antes da pandemia, e que esta revelou as iniquidades do sistema alimentar e acelerou essa tendência. A seu ver, muitos Estados relutaram em considerar a crise de fome causada pelo contexto da Covid-19 uma questão de direitos humanos, e não houve uma ação coordenada para enfrentá-la.

Fakhri apresentou o relatório que descreve os rumos que pretende tomar durante sua gestão. Ele destacou mais três áreas temáticas prioritárias: sistemas alimentares e governança global; sementes e direitos dos agricultores; e o direito à alimentação em conflitos armados e crises prolongadas.

O Programa Mundial de Alimentos (PMA) estimou que o número total de pessoas que sofrem de fome aguda dobraria em 2020 para 265 milhões. Para o relator, não seria muito difícil desenvolver um plano internacional baseado nos direitos humanos que ajudasse a superar essa crise. Ele alertou que quase metade dos 3,3 bilhões de trabalhadores do mundo corriam o risco de perder seus meios de subsistência.

Em seu relatório, ele defende uma aliança entre o Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) para enfrentar a crise da fome iminente. Com relação à Cúpula de Sistemas Alimentares, pontuou que ela estava priorizando soluções científicas e baseadas no mercado, e que era importante observar que organizações que representam milhões de pessoas protestaram porque os direitos humanos foram inicialmente excluídos da agenda.

Fakhri assinalou que agroecologia e direitos humanos andam de mãos dadas e devem estar no centro da cúpula. Ele pontuou, ainda, que muitos países começaram a envolver o direito à alimentação ao discutir a mudança climática, o que representaria uma oportunidade de colocar a questão na agenda da conferência das Nações Unidas sobre o clima, marcada para dezembro.

Leia mais  e assista à sessão do conselho da ONU (em inglês) e à declaração da FIAN (em espanhol).

Guia sugere metodologias para mulheres do campo “cozinharem” políticas transformadoras

A FIAN Brasil lança Cozinhando Agendas Políticas – Guia Feminista Sobre o Direito à Alimentação e à Nutrição das Mulheres Rurais. A publicação oferece a essas mulheres – pertencentes ou não a organizações locais ou nacionais – orientações práticas para a construção coletiva de estratégias e ações transformadoras com ênfase nesse direito fundamental, conhecido pela sigla Dhana, com base nas recentes normas internacionais de direitos humanos.

Ao tomar a experiência de vida e os conhecimentos das participantes (denominadas “cozinheiras”) como ponto de partida, as atividades permitem a adaptação por diferentes grupos para tratar de suas necessidades e prioridades em resposta a sua própria realidade.

Cozinhando Agendas Políticas foi desenvolvido por defensoras dos direitos humanos, ativistas e trabalhadoras do campo. Inspira-se na resistência histórica e, em particular, numa prática adotada em vários países da América Latina sob regimes autoritários: o “caldeirão comum” (comunitário). Em torno dele, mulheres reuniam-se para cozinhar e, ao mesmo tempo, ter um espaço com liberdade para discutir política e articular ações de resistência ou responder a graves crises econômicas e alimentares.

O guia explica o conceito de Dhana e traz informações sobre a situação das mulheres em relação a segurança alimentar, conta um pouco sobre a luta feminista e suas conquistas e resume os tratados internacionais que impactam o tema, bem como as obrigações dos Estados determinadas por eles.

É a versão em português de uma publicação coordenada pela FIAN Internacional que resultou do trabalho coletivo entre Via Campesina, FIAN México, FIAN Colômbia, FIAN Honduras, Comitê Latino-Americano e Caribenho para a Defesa dos Direitos da Mulher, Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Miami, Universidade Nacional Autônoma do México, Coordenadora Nacional de Mulheres Indígenas (Conami), Cooperativas de Produtoras da Esperança da Grande Costa de Guerrero, Centro de Capacitação em Ecologia e Saúde de Chiapas e Rede Global pelo Direito à Alimentação e à Nutrição. A tradução e a adaptação contaram com apoio da Agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação (SDC), Pão Para o Mundo (PPM) e Misereor.

O conteúdo dirige-se a mulheres indígenas, sem-terra, trabalhadoras sazonais e migrantes, camponesas, mulheres engajadas na agricultura familiar ou de pequena escala, no trabalho em plantações, caça ou coleta e artesanato relacionado à agricultura ou qualquer outra ocupação no contexto rural.

Baixe gratuitamente, use e divulgue o material!

Caderno FIAN Brasil 20 Anos

Publicação comemorativa em linguagem simples. Celebra as duas décadas de existência completadas em 2020 e traz o histórico e o conceito do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Também conta um pouco da trajetória da entidade.

Clique na imagem para acessar o material.

Projeto buscará promover o direito à comida de verdade nas escolas ao longo de 2021

Crescer e Aprender com Comida de Verdade – pelo Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas na Escola é o nome do projeto que a FIAN Brasil começou em novembro e desenvolverá ao longo deste ano. A iniciativa busca promover esse direito, conhecido pela sigla Dhana, no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). A ideia é contribuir para o combate à obesidade infantil e à carência de nutrientes – e, consequentemente, para um desenvolvimento pleno – por meio da restrição gradual aos produtos alimentícios ultraprocessados, da promoção de hábitos alimentares saudáveis e do incentivo a uma maior participação da agricultura familiar no fornecimento para a política pública.

“O Brasil enfrenta uma epidemia de obesidade relacionada, dentre outros fatores, ao aumento no consumo de produtos ultraprocessados pela população, especialmente o público infantil”, explica a coordenadora do projeto, a nutricionista Vanessa Manfre. Ela lembra que, além alto teor de sódio e do excesso de gorduras, açúcar e outras substâncias, esses produtos alimentícios – mais conhecidos como “comida porcaria”, junk food ou “besteiras” – são pobres em nutrientes. “Nesse contexto, o ambiente escolar representa um espaço propício à formação de hábitos alimentares saudáveis desde a infância. A regulamentação do Pnae, publicada recentemente, proíbe a oferta de ultraprocessados para estudantes menores de 3 anos e limita-a para estudantes acima dessa idade, em consonância com o Guia Alimentar para a População Brasileira e seu desdobramento que trata da alimentação para crianças de até 2 anos.”

Com a aprovação da proposta, a FIAN Brasil passa a integrar a equipe brasileira do Food Policy Program (FPP, “Programa de Política Alimentar”, em tradução livre) da Bloomberg Philanthropies, que tem como coordenadora do escopo de advocacy a organização Global Health Advocacy Incubator (Ghai – em tradução livre, “Incubadora de Advocacy da Saúde Global”). A palavra advocacy não tem uma tradução exata em português, mas costuma ser usada no sentido de defesa de determinadas pautas e agendas, tendo como caminhos a difusão de valores na sociedade e a influência sobre tomadores de decisões.

Com base na identificação dos desafios para a boa execução do Pnae, o projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade desenvolverá ações de sensibilização, formação e advocacy entre os atores sociais do programa e o poder público, a fim de fortalecer a estrutura normativa dessa política, para que as escolas possam, efetivamente, promover alimentação e nutrição adequadas aos e às estudantes.

“Especialmente se considerarmos o desmonte brutal da política de segurança alimentar e nutricional [SAN] e o aumento acelerado da extrema pobreza no país, o Pnae tem um importante papel nessa garantia”, ressalta a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity. “O desenho desse programa, que chama a atenção de outros países do mundo, permite, de um lado, garantir esse acesso e, de outro, fortalecer a agricultura familiar, já que o marco legal determina que parte da alimentação escolar seja proveniente desse setor.” Ela destaca o potencial do conceito de direito humano à alimentação e à nutrição adequadas como base para a execução e o monitoramento do programa.

Desde sua concepção, o Pnae tem por princípio norteador melhorar as condições nutricionais dos estudantes e contribuir, assim, para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a redução dos índices de evasão e repetência, resultando numa melhora na aprendizagem e no rendimento escolar. Isso passa pelo entendimento de que a má nutrição, em suas diversas formas, compromete o desenvolvimento do cérebro e do corpo, temporária ou permanentemente. Já uma nutrição adequada contribui para o bom desenvolvimento fisiológico, cognitivo e também imunológico – dimensão que ganha ainda mais relevância nestes tempos de pandemia. A desnutrição e a obesidade, portanto, são consequências da violação ao direito à alimentação e impedem o acesso a outros direitos, como a educação de qualidade.

Eixos e estratégias

O projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade pretende gerar informação e conhecimento sobre os principais fatores que impedem a execução de uma alimentação escolar pautada pelo Dhana; difundir uma cultura de garantia de direitos, sobretudo esse, na sociedade como um todo; divulgar os riscos de uma alimentação baseada em produtos ultraprocessados; promover a exigibilidade de direitos no contexto do Pnae; incidir politicamente pela garantia das estruturas necessárias e pela institucionalização das práticas que atuam nesse sentido; e contribuir para a construção ou o aprimoramento dos marcos legais ligados a esses objetivos.

As atividades previstas incluem pesquisas e entrevistas; oficinas; produção de publicações, reportagens e vídeos; e reuniões com gestores e funcionários de escolas da rede pública, representantes de administrações municipais e parlamentares. A estratégia passa por uma campanha sensibilizadora com a participação de figuras públicas. Essa frente teve como primeira etapa a criação de uma logomarca, que coube à designer Mariana Henrique, em diálogo com a equipe da FIAN.

A atuação envolverá estreita colaboração com a ACT Promoção da Saúde, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP). Um novo parceiro será o Instituto Desiderata, que também ingressou no Food Policy Program no fim de 2020 com projeto focado na saúde de crianças e adolescentes, em âmbito municipal, no Rio de Janeiro. Parte da produção de conteúdo caberá ao portal jornalístico O Joio e o Trigo.

São parceiros globais no FPP a agência Vital Strategies, a Universidade da Carolina do Norte (UNC) e o Instituto O’Neill, da Universidade de Georgetown (GU).

Na iniciativa, a FIAN Brasil também contará com a parceria da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da Universidade de Brasília (UnB) e da FIAN Colômbia.

Sobre o Pnae

Popularmente conhecido como merenda escolar, o Pnae tem seis décadas e meia de história e é o segundo maior programa do gênero do mundo, perdendo apenas, em termos quantitativos, para seu equivalente da Índia. Trata-se da única política pública brasileira que tem como pilares a universalização e a gratuidade na oferta de refeições. O programa tem suas bases legais fundamentadas em artigos da Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) e na Lei da Alimentação Escolar, promulgada em 2009 – que, por sua vez, balizam e fortalecem a compreensão do Dhana nesse ambiente como direito do cidadão e dever do Estado.

Artigo | Construindo conjuntamente o futuro do direito à alimentação no Brasil com raízes profundas em tempos de tormenta

Significado dos avanços e desafios no vigésimo aniversário da FIAN Brasil

Ana María Suárez Franco – representante permanente da FIAN Internacional em Genebra

Com estas palavras quero fazer um breve reconhecimento ao trabalho da FIAN Brasil em seus 20 anos de luta pelo direito à alimentação. Eles certamente não abrangem todo o esforço valioso que colocaram em seu trabalho e os desafios que enfrentam. No entanto, esse olhar de fora visa juntar as vozes de muitas outras pessoas que comemoram esses 20 anos reconhecendo sua valiosa contribuição.

Quando comecei a trabalhar como estagiária na FIAN em 2002, a FIAN Brasília estava em Goiânia. Seu trabalho já era muito relevante, principalmente nas questões de acesso à terra e na defesa do direito à alimentação diante do despejo e do impacto das monoculturas e dos agrocombustíveis. Nesse tempo, se minha memória não me trair, o trabalho foi feito principalmente com os movimentos que lutavam pela terra. A FIAN Brasil também apoiou as comunidades quilombolas.

Mais ou menos entre 2009 e 2011 a FIAN Brasil teve várias mudanças relevantes. Eles passaram a trabalhar sobre o direito à alimentação de uma perspectiva mais abrangente, incluindo discussões sobre Governança Alimentar em nível nacional, participando de discussões em torno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e contribuindo para reuniões internacionais sobre o direito à alimentação e à nutrição do que no período foram organizados em Brasília e no exterior. Isso aconteceu em um momento em que as políticas e instituições públicas brasileiras deram grandes passos que constituíram um exemplo para o mundo no que se refere ao direito à alimentação. A partir dessa época também lembro como mudança relevante a mudança do escritório para Brasília, o que ampliou as possibilidades de interação com as autoridades nacionais.

Também de grande importância foi o início do acompanhamento das Comunidades Guarani e Kaiowá, a documentação de sua situação na perspectiva do direito à alimentação e à nutrição e a apresentação de uma petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual foi admitida e está em andamento. Nesse trabalho, que continua até hoje, a cooperação com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem gerado um grande aprendizado. Este apoio continua. Em estreita colaboração com o Cimi e com o Secretariado Internacional da FIAN, a FIAN Brasil tem contribuído para trazer as vozes que contam as realidades cruéis que vivem os Guarani e Kaiowá, incluindo suas reivindicações pela terra, contra o genocídio e as violações do direito à alimentação, perante o Sistema Internacional de Direitos Humanos da ONU e as autoridades europeias. Nesse contexto, apresentaram o caso ao Comitê Desc, ao Conselho de Direitos Humanos e aos três últimos relatores especiais de Direitos Humanos para o Direito à Alimentação e ao último relator para Pobreza Extrema e Direitos Humanos. Essas autoridades da ONU obtiveram, entre outras, várias recomendações ao Estado brasileiro, defendendo-o para respeitar, proteger e garantir os direitos das comunidades. O trabalho de advocacia no Parlamento Europeu resultou numa resolução de apoio às comunidades. Todas essas recomendações são instrumentos que fortalecem a luta pelo Tekoha dos Guaraní e Kaiowá. Uma luta que ainda representa um imenso desafio.

Em nível regional, nas Américas, a FIAN Brasil tem sido uma das seções-chave na formação da articulação regional, apoiando essa cooperação com suas ideias. Isso também implicou a definição e implementação de estratégias em nosso trabalho perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Eu, como representante permanente da FIAN Internacional em Genebra, valorizo ​​o papel que a FIAN Brasil desempenhou durante o processo de negociação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Zonas Rurais, bem como processos relacionados, incluindo as discussões do Comitê Desc para a adoção de um Comentário Geral sobre a Terra e os Desc [direitos econômicos, sociais e culturais], ou os esforços da sociedade civil para conduzir a transição para um mundo livre de agrotóxicos. Nesse contexto, a FIAN Brasil tem contribuído para manter nossos parceiros no Brasil informados sobre esses processos e para levar as análises e propostas do movimento pelo direito à alimentação no Brasil aos respectivos debates internacionais. Participou de negociações na ONU em Genebra, apoiou a participação de representantes das comunidades de base nesses espaços e liderou a elaboração de um estudo sobre Agrotóxicos e Direito à Alimentação, realizado pelas seções do FIAN na América Latina, que será publicado em breve.

A FIAN Brasil também desempenhou um papel útil e n a conexão entre o processo internacional no âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, para a adoção de um Instrumento Vinculativo (um tratado) sobre Empresas Transnacionais e Outros Negócios em Direitos Humanos, participando dos debates e contribuindo para os debates em nível brasileiro.

Infelizmente os tempos mudaram e o ambiente político que apoiava o direito à alimentação e reconhecia as contribuições da sociedade civil e a importância da participação das comunidades de base na elaboração e monitoramento das políticas no Brasil foi deixado para trás. Hoje a sociedade brasileira vive um regime hostil e autoritário, que ignora os direitos humanos e ataca frontalmente os povos indígenas, as mulheres, a população LGTBI e os defensores dos direitos humanos. O Consea foi desmontado, medidas regressivas de direitos humanos foram adotadas e a militarização da sociedade instigou o pânico naqueles que antes defendiam as agendas dos Desc.

Acho que, nesse novo contexto, a FIAN Brasil tem um trabalho muito importante. Assim como fez quando mobilizou as ações que buscavam impedir o desmantelamento do Consea, infelizmente sem o efeito final pretendido, agora a FIAN Brasil deve continuar seu papel de guardiã atenta e defensora do direito à alimentação e direitos conexos. Isso implica em um grande investimento de energia no fortalecimento de alianças e na ampliação de convergências que permitam à sociedade civil brasileira criar uma massa crítica mais forte em defesa dos avanços que fez nos últimos anos. Um desafio titânico, mas fundamental!!! O trabalho também envolve a denúncia de situações de criminalização de defensores dos direitos humanos, incluindo líderes de comunidades de base que são atacados diretamente.

Embora as medidas regressivas já tenham começado, a Covid-19 acumula-se com as crises existentes e, em muitos casos, é usada pelos governos para justificar novas medidas regressivas. Esta nova crise, que aprofunda outras já existentes, também cria um novo desafio para a FIAN Brasil. Enquanto os olhos do mundo estão voltados para a crise da saúde, nosso trabalho como FIAN no Brasil e no mundo também exigirá chamar a atenção para os impactos que a pandemia está gerando sobre o direito à alimentação e à nutrição. Somos chamados a propor medidas de contenção e recuperação que avancem na transição para sistemas alimentares mais saudáveis, sustentáveis ​​e justos. É fundamental que a FIAN Brasil, junto com seus aliados, proponha e exija medidas que respeitem, protejam e garantam o Dhana, especialmente para as comunidades marginalizadas, incluindo povos indígenas, quilombolas, camponeses e pescadores artesanais, entre outros. Neste contexto, a FIAN Brasil tem o novo desafio de estar alerta, documentar e resistir a novas violações do direito à alimentação, ao mesmo tempo que aprende com as respostas inovadoras e solidárias das comunidades de base e dá-lhes visibilidade. Sem dúvida, para fazer este trabalho sem se colocar em perigo, também neste aspecto é imprescindível o fortalecimento de suas alianças atuais e a ampliação de suas convergências.

Em minha opinião, a FIAN Brasil também poderia se beneficiar com a adoção de abordagens inovadoras que continuam a se enquadrar no conceito holístico de direito à alimentação e apoio à luta dos movimentos sociais e comunidades de base, reconhecendo-os, como sempre fez, como agentes de mudança, titulares dos direitos humanos, que possuem o conhecimento e a força para continuar lutando pela realização do direito à alimentação. Levando em consideração os desafios apresentados pelas atividades das grandes corporações para a efetivação do direito à alimentação e os desafios gerados pela destruição ecológica e pelas mudanças climáticas, acredito que continuar e aprofundar o trabalho dessas lutas seria fundamental para o setor.

Quero também agradecer o excelente trabalho que o Conselho de Administração e a equipe da Secretaria Executiva da FIAN Brasil têm feito para alcançar tudo o que conquistaram até agora. É importante que continuem com o seu compromisso institucional, aproveitando a grande experiência adquirida ao longo destes 20 anos. Além disso, acredito que é fundamental que a FIAN Brasil continue a envolver jovens de diversas disciplinas e regiões do Brasil em sua equipe e a treiná-los em nossos valores fianistas, para garantir que a instituição se mantenha, fortaleça-se e continue a desempenhar um papel relevante no movimento de direitos humanos no Brasil, na região e no mundo. Esse aprendizado e treinamento permanente, no entanto, representa um grande desafio. Garantir a sobrevivência econômica das organizações para as quais trabalhamos um mundo mais justo é difícil em tempos de recessão. Esse desafio é maior também porque os fundos internacionais para organizações de direitos humanos, especialmente na América Latina, diminuem notavelmente. Assim, o trabalho para garantir os recursos que permitam ao setor dar continuidade ao seu trabalho também será essencial para garantir mais 20 anos de trabalho contra as injustiças.

Agradeço muito à FIAN Brasil por esses 20 anos de grande compromisso com o direito à alimentação e à nutrição.

Foto: Alex Del Rey/FIAN Internacional

Texto original (em espanhol)

Co-construyendo el Futuro del Derecho a la Alimentación en Brasil sobre Raíces Profundas en Tiempos Borrascosos: importancia avances y desafíos en el vigésimo aniversario de FIAN Brasil

Ana María Suárez Franco – Representante Permanente de FIAN Internacional en Ginebra

Con estas palabras quiero hacer un corto reconocimiento al trabajo de FIAN Brasil en sus 20 años de lucha por el derecho a la alimentación. Sin duda ellas no abarcan todo el valioso empeño que han puesto en su labor y en los desafíos que confrontan. No obstante, esta mirada desde afuera pretende unirse a las voces de muchas otras personas que celebran estos 20 años reconociendo su valioso aporte.

Cuando yo entré a trabajar como practicante a FIAN en 2002, FIAN Brasilia estaba en Goiânia. Su trabajo ya era muy relevante, especialmente en los temas de acceso a la tierra y la defensa del derecho a la alimentación frente al desalojo y el impacto de los monocultivos y los agro- combustibles. Durante esta época, si mi memoria no me traiciona, el trabajo se hacía principalmente con los movimientos que luchaban por la tierra. FIAN Brasil además apoyaba las comunidades Quilombola.

Más o menos entre 2009 y 2011 FIAN Brasil tuvo varios cambios relevantes. Pasaron a trabajar sobre el derecho a la alimentación desde una perspectiva más integral, incluyendo las discusiones sobre Gobernanza Alimentaria a nivel nacional, participando en las discusiones alrededor del Consea y contribuyendo a las reuniones internacionales sobre el derecho a la alimentación y la nutrición que en la época se organizaron en Brasilia y en el exterior. Esto sucedió en tiempos en los cuales las políticas públicas e instituciones brasileras tuvieron grandes avances que han sido ejemplo para el mundo en materia del derecho a la alimentación. De esta época también recuerdo como un cambio relevante el paso de la oficina a Brasilia, que amplió las posibilidades de interactuar con las autoridades nacionales.

También de gran importancia fue el inicio del acompañamiento a las Comunidades Guarani y Kaiowa, la documentación de su situación desde la perspectiva del derecho a la alimentación y la nutrición y la presentación de una petición ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, que ha sido admitida y se encuentra en curso. En este trabajo, que se extiende hasta hoy, la cooperación con Cimi ha generado un gran aprendizaje. Este apoyo continúa. En estrecha colaboración con Cimi y con el Secretariado Internacional de FIAN, FIAN Brasil ha contribuido a llevar las voces que cuentan las crueles realidades que viven los Guarani & Kaiowá, incluyendo sus demandas por la tierra, contra el genocidio y en cuanto a las violaciones a su derecho a la alimentación, ante el Sistema Internacional de Derechos Humanos de la ONU y las autoridades europeas. En este marco, han presentado el caso ante el Comité Desc, el Consejo de Derechos Humanos y ante los tres últimos Relatores Especiales de Derechos Humanos sobre el Derecho a la Alimentación y el último relator sobre Pobreza Extrema y Derechos Humanos. De estas autoridades de la ONU se han obtenido, entre otras, diversas recomendaciones al estado brasilero, avocándolo a respetar, proteger y garantizar los derechos de las comunidades. El trabajo de incidencia en el Parlamento Europeo dio como fruto una resolución en apoyo a las comunidades. Todas estas recomendaciones son instrumentos que fortalecen la lucha por el Tekoha de los Guaraní y Kaiowá. Una lucha que aún representa un inmenso desafío.

A nivel regional, en las Américas, FIAN Brasil ha sido una de las secciones clave en la conformación de la articulación regional, apoyando con sus ideas a dicha cooperación. Esto ha implicado también la definición e implementación de estrategias sobre nuestro trabajo ante el Sistema Interamericano de Derechos Humanos.

Yo, como representante permanente de FIAN Internacional en Ginebra, valoro el rol que FIAN Brasil jugó durante el proceso de negociación de la Declaración de Naciones Unidas sobre los Derechos de los Campesinos, Campesinas y Otras Personas que Trabajan en áreas Rurales, así como procesos relacionados, incluyendo los debates del Comité Desc hacia la adopción de una Observación General sobre Tierra y Desc, o los esfuerzos de la sociedad civil por impulsar la transición hacia un mundo libre de pesticidas. En este marco FIAN Brasil ha contribuido a mantener informadas a nuestras parceras en Brasil sobre dichos procesos y a llevar el análisis y las propuestas del movimiento del derecho a la alimentación en Brasil a los respectivos debates internacionales. En este marco FIAN Brasil ha participado en negociaciones en la ONU en Ginebra, ha apoyado la participación de representantes de las comunidades de base en esos espacios y ha liderado la elaboración de un estudio sobre Pesticidas y Derecho a la Alimentación, realizado por las secciones de FIAN en América Latina, que será publicado próximamente.

FIAN Brasil también ha jugado un rol útil en la conexión entre el proceso internacional en el marco del Consejo de Derechos Humanos de Naciones Unidas, para la adopción de un Instrumento Vinculante (un tratado) sobre Empresas Transnacionales y Otros Negocios con respecto a los Derechos Humanos, participando en los debates y contribuyendo a los debates a nivel brasilero.

Desafortunadamente los tiempos han cambiado y el ambiente de políticas que apoyaban al derecho a la alimentación y reconocían los aportes de la sociedad civil y la importancia de la participación de las comunidades de base en la elaboración y monitoreo de políticas en Brasil han quedado atrás. Ahora la sociedad brasilera se encuentra bajo un régimen hostil y autoritario, que desconoce los derechos humanos y ataca frontalmente a los pueblos indígenas, las mujeres, la población LGTBI y a las personas defensoras de derechos humanos. Se ha desmantelado el Consea, se han adoptado medidas regresivas en cuanto a los derechos humanos y la militarización de la sociedad ha infundido el pánico en quienes otrora han impulsado las agendas en materia de Desc.

Yo pienso que en este nuevo contexto FIAN Brasil tiene una labor muy importante. Así como lo hizo cuando movilizó las acciones que buscaron impedir el desmantelamiento del Consea, desafortunadamente sin el efecto final buscado, ahora FIAN Brasil deberá continuar con su rol de atenta guardiana y defensora del derecho a la alimentación y los derechos relacionados. Esto implica una gran inversión de energía en el fortalecimiento de alianzas y la ampliación de las convergencias que le permitan a la sociedad civil brasilera crear una masa crítica más fuerte defender los avances que ha logrado en los últimos años. Un desafío titánico, pero fundamental !!! Este trabajo también implica la denuncia de situaciones de criminalización a las personas defensoras de derechos humanos, incluyendo a las personas líderes de las comunidades de base que son directamente atacadas.

Si bien las medidas regresivas ya habían comenzado, el COVID-19 se ha acumulado con las crisis existentes y en muchos casos es utilizado por los gobiernos para justificar medidas regresivas adicionales. Esta nueva crisis, que profundiza otras preexistentes, también genera un nuevo desafío para FIAN Brasil. Mientras los ojos del mundo están enfocados en la crisis sanitaria, nuestro trabajo como FIAN en Brasil y en el mundo, también requerirá llamar la atención sobre los impactos que la pandemia está generando en el derecho a la alimentación y la nutrición. Estamos llamadas a proponer medidas de contención y recuperación que avancen en la transición hacia sistemas alimentarios más saludables, sostenibles y justos. Es fundamental que FIAN Brasil, junto con sus aliadas, proponga y exija medidas que respeten, protejan y garanticen el DHANA, especialmente para las comunidades marginadas, incluyendo los pueblos tradicionales, pueblos indígenas, comunidades quilombolas, campesinas y pescadoras, entre otras.  En este contexto, FIAN Brasil tiene el nuevo desafío de estar alerta documentar y resistir nuevas violaciones del derecho a la alimentación, mientras aprende de las respuestas innovadoras y solidarias de las comunidades de base y les da visibilidad. Sin duda, para hacer este trabajo sin ponerse en peligro, en este aspecto también el fortalecimiento de sus actuales alianzas y la ampliación de sus convergencias resulta fundamental.

En mi opinión FIAN Brasil podría también beneficiarse de la adopción de enfoques innovadores, que se sigan enmarcando dentro del concepto holístico del derecho a la alimentación y el apoyo a la lucha de los movimientos sociales y las comunidades de base, reconociéndolos, como siempre ha hecho, como agentes de cambio, titulares de derechos humanos, que poseen el conocimiento y la fuerza para seguir luchando por la realización del derecho a la alimentación. Teniendo en cuenta los desafíos que presentan las actividades de las grandes corporaciones para la realización del derecho a la alimentación y los desafíos que generan la destrucción ecológica y el cambio climático, creo que continuar y profundizar el trabajo desde estas luchas sería fundamental para la sección.

También quiero reconocer el gran trabajo que la Junta Directiva y el equipo del Secretariado Ejecutivo de FIAN Brasil ha hecho para alcanzar todo lo que han logrado hasta ahora. Es importante que sigan con su compromiso institucional, aprovechando la gran experiencia que han ganado durante estos 20 años. Más allá, creo que es fundamental que FIAN Brasil siga involucrando gente joven de diversas disciplinas y regiones de Brasil en su equipo y formándola en nuestros valores FIANistas, para asegurar que la institución permanezca, se fortalezca y siga jugando un rol relevante en el movimiento de derechos humanos en Brasil, en la región y en el mundo. Este permanente aprendizaje y capacitación, sin embargo, representan un gran desafío. Asegurar la supervivencia económica de las organizaciones que trabajamos por un mundo más justo se dificulta en tiempos de recesión. Este desafío es mayor, también porque los que los fondos internacionales para las organizaciones de derechos humanos, especialmente en América Latina, disminuyen notablemente. Así, el trabajo por asegurar los recursos que permitan a la sección continuar con su labor también será fundamental para asegurar otros 20 años de trabajo contra la injusticia.

Mil gracias FIAN Brasil por estos 20 años de gran compromiso por el derecho a la alimentación y la nutrición.