Um ano após a visita de Victoria Tauli-Corpuz ao Brasil, Relatora Especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, organizações indígenas, indigenistas, socioambientalistas e defensores dos direitos humanos alertam o Alto Comissariado da ONU sobre as crescentes ameaças aos direitos constitucionais e dos povos indígenas no Brasil.
Em carta assinada pela APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil em conjunto com cerca de 30 organizações, denúncias sobre o não cumprimento por parte do governo brasileiro de compromissos assumidos no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, e que ao invés de avanços, os últimos meses foram marcados pela forte escalada de vários retrocessos preocupantes são focos do documento.
Entre eles, ataque aos direitos territoriais, através de medidas legislativas como a PEC 215; o desmantelamento das políticas públicas de Saúde, Educação e outras; o desmonte de instituições governamentais indigenistas, tais como a FUNAI e a SESAI; a tentativa de criminalização de lideranças indígenas e organizações que os apoiam; ameaças e até assassinatos de lideranças indígenas, além da ausência de qualquer diálogo, participação e consulta com os representantes indígenas.
Ao fim do documento, as organizações solicitam que a Relatoria siga com o monitoramento da situação no Brasil e que, se possível, considere a pertinência de alertas urgentes e questione o Estado sobre quais as razões para os fatos apontados.
O informe original pode ser acessado neste link e a tradução para o português pode ser conferida a seguir:
Estimada Señora Victoria Tauli-Corpuz
Relatora de la ONU sobre los Derechos
Estimado Señor Joaquín Alexander Embajador
Presidente del Consejo
Estimado Señor Zeid Ra’ad Al Hussein
Alto Comisariado de Derechos Humanos
Estimado Señor Amerigo Incalterra
Representante de la Oficina del para América del Sur
Cc.: Estimado Señor Luciano Mariz
Coordinador da 6ª Cámara do Ministerio Público Federal
No mês de março de 2017 completamos um ano desde a visita ao Brasil da Relatora Especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, enquanto o Brasil completa seu terceiro mês como membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Como já havíamos afirmado no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o informe da missão e as recomendações da Relatora Especial Victoria Tauli-Corpuz coincide com nossas principais preocupações ante a violação e negação dos direitos humanos dos povos e das pessoas indígenas no Brasil. Por exemplo, a Relatora apresenta muito bem a conexão existente entre o persistente racismo institucional, a falta de capacidade dos órgãos governamentais e as principais violações e retrocessos no campo das políticas e leis que protegem os direitos dos povos indígenas, em especial o direito à terra, à vida, a não discriminação e proteção dos líderes defensores dos direitos humanos. Em seu informe, a relatora assinala que as propostas de redução do orçamento e de funcionários do instituto indigenista (Fundação Nacional do Índio – FUNAI) ia contra as demandas dos povos indígenas e as recomendações do Relator Especial anterior, James Anaya, que já destacavam a necessidade de fortalecer a Funai para que o Estado possa cumprir suas obrigações legais de proteção aos direitos dos povos indígenas.
Em reação ao informe independente, o governo brasileiro afirmou, na sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU em setembro de 2016, que se comprometia a fortalecer a Funai e a proteger o direito constitucional de reconhecimento das terras indígenas, ameaçado por propostas legislativas como a Proposta de Emenda Constitucional conhecida como PEC 215.
Ocorre que, realmente, estamos assistindo exatamente o contrário. FUNAI e outros importantes órgãos para a implementação de direitos indígenas estão sofrendo intenso desmonte, da mesma forma que as políticas específicas conquistadas nos últimos 30 anos, como por exemplo as de demarcação de terras, de proteção de povos voluntariamente isolados, de assistência diferenciada à saúde educação bilíngue, intercultural, diferenciada. Projetos de lei que buscam prejudicar e discriminar ainda mais os povos indígenas (como o que condena a prática do infanticídio como se fosse uma prática comum e generalizada somente entre os indígenas) andam junto com propostas de mudanças legislativas para diminuir o controle dos povos indígenas sobre suas terras e territórios, tudo isso sem nenhum processo de consulta livre, prévia e informada. Depois de sua visita, e diante do contexto de mudanças políticas, a Relatora assinalou preocupação com o fato da concentração do poder político e econômico nas mãos de um pequeno segmento da sociedade brasileira, situação que levou à exploração abusiva de terras e recursos dos povos indígenas sem considerar seus direitos.
De fato, diante do quadro político e dos casos de corrupção do governo atual, os povos indígenas e seus direitos seguem ainda mais ameaçados, incluindo a sua integridade física. As constantes mudanças de ministros, secretários e da presidência da FUNAI atendem a estes setores abertamente contrários aos interesses e direitos dos povos indígenas e contribuem para o agravamento de situações de violência e impunidade no campo. Neste último ano aumentou o retrocesso dos direitos fundamentais dos povos indígenas, incluindo a suspensão da demarcação de terras indígenas.
Abaixo seguem as principais violações concretizadas somente neste último ano, e depois do envio do informe dos povos indígenas ao Exame Periódico Universal das Nações Unidas. As medidas adotadas pelo Estado brasileiro contradizem suas recomendações assim como os compromissos e obrigações com os Direitos Humanos no campo internacional e, em especial, com a declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Solicitamos que a Relatoria siga com o monitoramento da situação no Brasil e, se possível, considere a pertinência de alertas urgentes e questione o Estado sobre quais os motivos para estes fatos:
1) Apesar de sua recomendação para que os escritórios regionais da FUNAI tivessem recursos adequados para oferecer os serviços que os povos indígenas, incluindo os isolados, necessitam, em outubro de 2016 o governo reduziu drasticamente o orçamento da instituição, que já estava trabalhando com apenas 36% da capacidade de funcionários. E em março de 2017 foram realizadas mudanças estruturais para a extinção de 347 cargos de coordenação e assessoria (incluindo técnicos de campo) da FUNAI, afetando especialmente a atenção local para as comunidades indígenas, o setor de acompanhamento de licenciamento ambiental e de proteção aos povos indígenas em isolamento.
2) O corte de postos na FUNAI foi encomendado pelo ministro da Justiça, Osmar Serraglio (no cargo desde fevereiro de 2017). Antes ele era deputado federal pelo estado do Rio Grande do Sul, um dos promotores da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra as atividades da FUNAI e do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Esta CPI continua o seu trabalho sem justificação técnica ou jurídica suficiente, depois de ter sido anteriormente arquivado sem conclusões, mas continua a intimidar os organismos públicos e seus servidores, assim como, para criminalizar as organizações indígenas e da sociedade civil que defendem os direitos indígenas. O atual ministro da Justiça, ao qual está subordinada a FUNAI, também foi o relator da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215) que tenta transferir a demarcação das terras indígenas para decisões políticas do Congresso Nacional, composto majoritariamente por grandes fazendeiros, proprietários de terras e produtores rurais, o que impediria conclusões favoráveis aos povos indígenas. De fato, em uma de suas primeiras entrevistas a jornais nacionais, o ministro afirmou que “o que os povos indígenas precisam não são suas terras tradicionais porque (“terra não enche barriga de índio”).
3) Neste março de 2017 também foi aprovada pelo Congresso a prorrogação do prazo para o funcionamento da CPI contra FUNAI e INCRA por supostas ações irregulares dos órgãos públicos na demarcação de terras indígenas e comunidades negras rurais (quilombolas), mas na realidade o que está em jogo é a criminalização de lideranças indígenas e de organizações que os apoiam, disseminando suspeitas infundadas que buscam atacar seu prestígio com a divulgação de informações sigilosas ou privadas de pessoas e instituições da sociedade civil.
4) O ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, que a partir de março de 2017 assume como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e participará de julgamento de casos constitucionais. Ele teve sua candidatura muito criticado pela sociedade civil, entre outras razões, pela manobra realizada pelo governo e Congresso Nacional para minimizar os impactos de casos de corrupção envolvendo seus colegas do governo e políticos apoiadores que foram a julgamento na Supremo Corte. Da mesma forma, questões como a demarcação de terras indígenas que estavam diretamente sob sua autoridade agora passam a ser analisados pelo próprio, à partir da mais alta autoridade do Judiciário, afetando até mesmo o direito de acesso dos povos indígenas à Justiça em virtude de privilegiar interesses políticos anti-indígenas.
5) Poucos meses antes de sua indicação para o Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes ainda como ministro da Justiça, acabava de tentar alterar o processo de demarcação de terras indígenas, através de legislação chamada Portaria MJ 68. Essa legislação criou uma instância de pressão política no processo de demarcação, diminuiu o papel da Funai e de informações técnicas especializadas e incluiu possibilidades inconstitucionais para justificar a negação de direitos à terra dos povos indígenas. Depois de fortes protestos do movimento indígena e do Ministério Público Federal, e também de segmentos da sociedade civil, a norma foi substituída pela Portaria 80, de conteúdo similar entrelinhas.
6) Todas essas mudanças estão sendo feitas sem qualquer diálogo, participação ou consulta dos representantes indígenas. Mesmo o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), órgão paritário entre representantes indígenas e governamentais, criado para o diálogo com os povos indígenas, passou a ser desvalorizado e desde 2016 não realiza suas reuniões. Em seu relatório, a Relatora Especial recomendou que o CNPI deveria participar das indicações da FUNAI, buscando competência técnica e independência política para cumprir o mandato do órgão, além condições de funcionamento garantidos.
7) As ameaças não dizem respeito apenas aos direitos territoriais. A nível federal, os povos indígenas estão lutando contra o fim das políticas que foram construídas com muito empenho pelos indígenas como, por exemplo, as políticas de atenção diferenciada à Saúde Indígena, implementadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) do Ministério da Saúde e políticas de Educação intercultural bilíngue coordenadas pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade, Inclusão e Diversidade do ministério da Educação (SECADI), instituições indicadas pelo relator especial como importantes e dignas de fortalecimento.
8) No caso da saúde, também foram editados normativas que mudaram o funcionamento dos serviços de Saúde e espaços de controle social, e logo depois revogadas, em resposta aos protestos indígenas. Foi criado um Grupo de Trabalho com a participação indígena, e o Ministério da Saúde se comprometeu de realizar pelo menos 05 seminários regionais de consulta que logo se reduziram a reuniões dos 34 Distritos de Saúde Especial Indígena (ADIS), mas até agora não tiveram efeito, e mudanças na estrutura do ministério estão ocorrendo por interesse político e sem consulta.
9) As tentativas de mudanças normativas e estruturais de importantes órgãos como a FUNAI e SESAI vem acompanhadas por mudanças em suas diretorias, a partir de indicações políticas e, muitas vezes, sem compromisso com os direitos dos povos indígenas. Em janeiro de 2017, foi nomeado um novo presidente da FUNAI, Sr. Antonio Toninho Costa, um pastor evangélico que anteriormente assessorava parlamentares do Partido Social Cristão (PSC), um dos mais ativos nas proposta de iniciativas e discursos anti-indígenas no Congresso Nacional. Em uma de suas primeiras entrevistas, e sem considerar as recomendações da ONU sobre a necessidade de olhar para as situações específicas dos povos indígenas ao falar de programas de geração de renda, o novo presidente da FUNAI afirmou que as demandas para demarcação de territórios a solução seria fazer que os indígenas produzam, sem deixar clara a obrigação do Estado de cumprir as demarcações. Ele sinalizou a necessidade de reforçar a FUNAI e justificou que não foi informado sobre as iniciativas do ministério para reduzir o papel da Funai nas demarcações.
10) Alguns meses antes, outro pastor evangélico e de carreira militar foi nomeado diretor da área responsável pelo acompanhamento de licenciamento de obras que impactam as terras indígenas, assim como, as políticas de assistência social e econômica para povos. Há uma grande preocupação de que o órgão indigenista seja usado para legitimar mega-projetos que podem inviabilizar o meio ambiente, a vida indígena e suas culturas, bem como um instrumento de evangelização e de assimilação dos povos indígenas, suas culturas e terras.
11) Agora, em março de 2017, circularam informações de que o ex-secretário de Saúde Indígena, Rodrigo Rodrigues, também apoiado pelo bloco ruralista, será o novo diretor da FUNAI para a área responsável pela demarcação e proteção das terras indígenas, incluindo os territórios dos povos isolados. Em entrevista, ele afirmou que a terra indígena Marãiwatsédé, da aldeia Xavante, no estado do Mato Grosso, homologada depois de muitas décadas de conflitos provocados por ruralistas e políticos, não seria uma terra indígena. A declaração fez com que a FUNAI escrevesse uma nota pública.
12) Nesse sentido, também, sem a observação do direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado, avançam os mega projetos como o de mineração da canadense Belo Sun, na mesma região do impacto da barragem de Belo Monte, que afetará a saúde e territórios dos povos Juruna e Arara; a linha de transmissão de energia Manaus-Boa Vista a ser construído dentro da terra indígena Waimiri-Atroari; a conclusão do desvio do rio São Francisco na região nordeste; a implantação de hidrovias e hidrelétricas na Bacia de Tapajós; a construção de estradas no Mato Grosso como a MT-242 e BR-158; Projetos de Lei para abrir terras indígenas à mineração; entre outros.
13) O contexto nacional de ataques a instituições e leis que minimamente protegem os direitos dos povos indígenas no Brasil no último ano, vimos um aumento dos casos de ameaças e até assassinatos de líderes indígenas, por exemplo, no Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, objeto de alerta do Representante do Alto Comissariado de Direitos Humanos na região e da relatoria especial sobre defensores de Direitos Humanos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Também se somam a isso o uso indevido da força com forte carga de racismo institucional por determinação judicial e a realização de despejos em caráter provisório, em nome de indivíduos e contra o direito originário dos povos indígenas sobre suas terras como nos casos Tapeba, Pataxó, Terena e Guarani-Kaiowá.
Por estas razões e preocupados com a destruição das instituições de defesa e proteção dos direitos dos povos indígenas no Brasil, bem como o aprofundamento da negação dos seus direitos, além do não cumprimento das recomendações dos Direitos Humanos emitidas pelos Relatores Especiais das Nações Unidas, do Sistema Interamericano e no Exame Periódico Universal, pedimos sua atenção e manifestação junto ao Estado, de modo a evitar um novo ciclo de extermínio dos povos indígenas e suas culturas no Brasil.
APIB – Associação dos Povos Indígenas do Brasil
APOINME – Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
Conselho Terena
Comissão Guarani Yvyrupá
ARPINSUDESTE – Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste
ARPINSUL – Articulação dos Povos Indígenas do Sul
ATY GUASSU – Grande Assembleia do Povo Guarani
COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
ATIX – Associação Terra Indígena Xingu
AMAAIC – Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre
APINA – Conselho das Aldeias Wajãpi
FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
HAY – Associação Yanomami
CIR – Conselho Indígena de Roraima
OPIAC – Organização dos Professores Indígenas do Acre
Wyty-Catë – Associação Wyty-Catë dos Povos Indígenas Timbira do Maranhão e Tocantins
OGM – Organização Geral Mayuruna
ABA – Associação Brasileira de Antropologia
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
Conectas Direitos Humanos
CTI – Centro de Trabalho Indigenista
CPI-AC – Comissão Pró-Índio do Acre
CPI-SP – Comissão Pró-Índio de São Paulo
IEB – Instituto Internacional de Educação do Brasil
Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
ISA – Instituto Socioambiental
Greenpeace
RCA – Rede de Cooperação Amazônica
Plataforma de Direitos Humanos – DHesca Brasil
Nas fotos: Reunião entre as lideranças indígenas Sonia Guajajara e Davi Kopenawa Yanomami com representantes do Alto Comissariado da ONU, Juan Nuez e Melanie Santizo. Acompanham o encontro representantes da RCA e DHESCA, Luis Donisete Benzi Grupioni e Erika Yamada. Genebra, 05/04/2017.
Fonte: CIMI