Brasil é cobrado na ONU por retrocesso nos direitos indígenas

A manifestação internacional se alinha com o que foi definido pelos mais de 3600 indígenas que participaram do Acampamento Terra Livre. Crédito: Isabel Harari

O Brasil foi cobrado na sexta-feira 5 pela falta de demarcação de terras indígenas em sabatina de direitos humanos na Organização das Nações Unidas (ONU). Recebeu também recomendações para fortalecer a Funai, manter políticas específicas de saúde e educação indígena, e fazer valer o direito de consulta livre, prévia e informada.

Mais de 30 países mencionaram a questão indígena em seus discursos ao país e vários relacionaram o racismo e a discriminação com a violência e a impunidade praticadas contra lideranças e povos indígenas.

A manifestação internacional se alinha com os encaminhamentos definidos pelos mais de 3600 indígenas que participaram do Acampamento Terra Livre e resultam também de um trabalho de sensibilização feito por organizações indígenas, indigenistas e de direitos humanos no processo de Revisão Periódica Universal durante 2016 e 2017.

Especial preocupação dos países na ONU foi direcionada à inoperância do programa de proteção de defensores de direitos humanos, cujos inscritos são majoritariamente indígenas, ambientalistas e campesinos que enfrentam tentativas de criminalização enquanto defensores de direitos.

O relatório da CPI da Funai e Incra – que promete ser votado esta semana – é um exemplo concreto dessa situação. Seis dos 31 indígenas indiciados junto com servidores do MPF, da Funai e do Incra, por essa CPI – que desde sua criação foi colocada à serviço de interesses anti-indígenas-, estão inscritos no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos.

Sem conhecimento básico sobre o sistema internacional de direitos humanos, o relatório da CPI também ataca o Itamaraty e a própria ONU a partir de uma retórica alarmista que pelo medo tenta justificar a injustificável negação de direitos fundamentais aos povos e pessoas indígenas.

O que os povos indígenas do Brasil e do mundo querem, e é aceito pela Declaração dos Povos Indígenas da ONU (2007), é continuar a existir de acordo com seus modos de vida e visões de mundo, dentro dos Estados Nacionais e com o devido respeito às suas terras, línguas e culturas. O Brasil e outros 147 países são apoiadores dessa declaração da ONU, que em setembro comemorará dez anos.

Para manter o alerta sobre o possível retorno de práticas de extinção de povos e culturas pela mão do próprio Estado, organizações indígenas vem informando o alto comissariado da ONU sobre a situação. Alertaram recentemente sobre o fato de que, mesmo depois de receber recomendações da Relatora Especial  da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas em 2016, o país não está garantindo os direitos humanos dos povos indígenas.

Pelo contrário, em poucos meses, o atual governo consolidou sua estratégia para a extinção da Funai visando cristalizar o quadro de não-demarcação de terras – mesmo sem a aprovação da PEC215 – e incita, a partir de falas de autoridades públicas, o ódio, o racismo e situações de maior conflito, violência e intolerância contra os povos indígenas.

Sem as informações trazidas pelas próprias organizações e lideranças indígenas à ONU, os países teriam apenas as informações parciais trazidas pelo governo e que não refletem a realidade. Por isso mesmo, a posição do Brasil na ONU foi considerada “dissimulada” pela representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara.

“Parece que não estamos falando do mesmo país. As questões que são apresentadas como avanço aqui, lá no Brasil, estão sendo desconstruídas, como a demarcação das terras indígenas; a redução de orçamento da Funai e o loteamento de cargos para partidos políticos; o corte de servidores especialmente nas áreas que chegam na ponta (CTLs) e na coordenação de licenciamento ambiental. Tudo isso enfraquece ainda mais a execução da política indigenista e não garante a ocupação e gestão plena das terras como anuncia o governo.”

De fato, a contradição da posição do Brasil na ONU evidenciou-se ainda mais com a ausência de um representante do Ministério da Justiça durante a sabatina que deu ênfase a pelo menos três temas de competência do Ministério, o tema indígena, o tema da segurança pública e violência policial e o tema do sistema prisional.

Além disso, no mesmo dia em que, em Genebra, a Ministra de Direitos Humanos Luislinda Valois afirmava o compromisso do país com a demarcação das terras indígenas, em Brasília a Funai ficava sem presidente.

Dentre outros motivos, o Ministério da Justiça insinuou entraves na Funai para seguir com projetos em terras indígenas sem qualquer processo de consulta (como o da implantação da linha de Transmissão Manaus-Boa Vista na TI Waimiri Atroari).

Segundo o próprio (agora) ex-presidente da Funai Antonio Costa, o Ministro ruralista da (in)Justiça Osmar Serrraglio coloca a Funai sob risco e forte ingerência política. Um dia antes, o Ministro da Justiça anunciava um “mutirão” para demarcar terras indígenas.

Sem uma Funai operando, com um Ministro da Justiça defensor da retirada de direitos constitucionais indígenas, e sem boa-fé do governo para efetivamente fazer respeitar os direitos territoriais e sobre os recursos naturais dos povos indígenas tal como escritos na Constituição Federal, os trabalhos técnicos de demarcação de terras indígenas não podem ser transformado em mutirões ruralistas sem antes violar vários direitos.

 

*Erika Yamada é Relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca e perita no Mecanismo de Direitos dos Povos Indígenas da ONU. 

Fonte: Carta Capital

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