Guia sugere metodologias para mulheres do campo “cozinharem” políticas transformadoras

A FIAN Brasil lança Cozinhando Agendas Políticas – Guia Feminista Sobre o Direito à Alimentação e à Nutrição das Mulheres Rurais. A publicação oferece a essas mulheres – pertencentes ou não a organizações locais ou nacionais – orientações práticas para a construção coletiva de estratégias e ações transformadoras com ênfase nesse direito fundamental, conhecido pela sigla Dhana, com base nas recentes normas internacionais de direitos humanos.

Ao tomar a experiência de vida e os conhecimentos das participantes (denominadas “cozinheiras”) como ponto de partida, as atividades permitem a adaptação por diferentes grupos para tratar de suas necessidades e prioridades em resposta a sua própria realidade.

Cozinhando Agendas Políticas foi desenvolvido por defensoras dos direitos humanos, ativistas e trabalhadoras do campo. Inspira-se na resistência histórica e, em particular, numa prática adotada em vários países da América Latina sob regimes autoritários: o “caldeirão comum” (comunitário). Em torno dele, mulheres reuniam-se para cozinhar e, ao mesmo tempo, ter um espaço com liberdade para discutir política e articular ações de resistência ou responder a graves crises econômicas e alimentares.

O guia explica o conceito de Dhana e traz informações sobre a situação das mulheres em relação a segurança alimentar, conta um pouco sobre a luta feminista e suas conquistas e resume os tratados internacionais que impactam o tema, bem como as obrigações dos Estados determinadas por eles.

É a versão em português de uma publicação coordenada pela FIAN Internacional que resultou do trabalho coletivo entre Via Campesina, FIAN México, FIAN Colômbia, FIAN Honduras, Comitê Latino-Americano e Caribenho para a Defesa dos Direitos da Mulher, Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Miami, Universidade Nacional Autônoma do México, Coordenadora Nacional de Mulheres Indígenas (Conami), Cooperativas de Produtoras da Esperança da Grande Costa de Guerrero, Centro de Capacitação em Ecologia e Saúde de Chiapas e Rede Global pelo Direito à Alimentação e à Nutrição. A tradução e a adaptação contaram com apoio da Agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação (SDC), Pão Para o Mundo (PPM) e Misereor.

O conteúdo dirige-se a mulheres indígenas, sem-terra, trabalhadoras sazonais e migrantes, camponesas, mulheres engajadas na agricultura familiar ou de pequena escala, no trabalho em plantações, caça ou coleta e artesanato relacionado à agricultura ou qualquer outra ocupação no contexto rural.

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Caderno FIAN Brasil 20 Anos

Publicação comemorativa em linguagem simples. Celebra as duas décadas de existência completadas em 2020 e traz o histórico e o conceito do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Também conta um pouco da trajetória da entidade.

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Projeto buscará promover o direito à comida de verdade nas escolas ao longo de 2021

Crescer e Aprender com Comida de Verdade – pelo Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas na Escola é o nome do projeto que a FIAN Brasil começou em novembro e desenvolverá ao longo deste ano. A iniciativa busca promover esse direito, conhecido pela sigla Dhana, no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). A ideia é contribuir para o combate à obesidade infantil e à carência de nutrientes – e, consequentemente, para um desenvolvimento pleno – por meio da restrição gradual aos produtos alimentícios ultraprocessados, da promoção de hábitos alimentares saudáveis e do incentivo a uma maior participação da agricultura familiar no fornecimento para a política pública.

“O Brasil enfrenta uma epidemia de obesidade relacionada, dentre outros fatores, ao aumento no consumo de produtos ultraprocessados pela população, especialmente o público infantil”, explica a coordenadora do projeto, a nutricionista Vanessa Manfre. Ela lembra que, além alto teor de sódio e do excesso de gorduras, açúcar e outras substâncias, esses produtos alimentícios – mais conhecidos como “comida porcaria”, junk food ou “besteiras” – são pobres em nutrientes. “Nesse contexto, o ambiente escolar representa um espaço propício à formação de hábitos alimentares saudáveis desde a infância. A regulamentação do Pnae, publicada recentemente, proíbe a oferta de ultraprocessados para estudantes menores de 3 anos e limita-a para estudantes acima dessa idade, em consonância com o Guia Alimentar para a População Brasileira e seu desdobramento que trata da alimentação para crianças de até 2 anos.”

Com a aprovação da proposta, a FIAN Brasil passa a integrar a equipe brasileira do Food Policy Program (FPP, “Programa de Política Alimentar”, em tradução livre) da Bloomberg Philanthropies, que tem como coordenadora do escopo de advocacy a organização Global Health Advocacy Incubator (Ghai – em tradução livre, “Incubadora de Advocacy da Saúde Global”). A palavra advocacy não tem uma tradução exata em português, mas costuma ser usada no sentido de defesa de determinadas pautas e agendas, tendo como caminhos a difusão de valores na sociedade e a influência sobre tomadores de decisões.

Com base na identificação dos desafios para a boa execução do Pnae, o projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade desenvolverá ações de sensibilização, formação e advocacy entre os atores sociais do programa e o poder público, a fim de fortalecer a estrutura normativa dessa política, para que as escolas possam, efetivamente, promover alimentação e nutrição adequadas aos e às estudantes.

“Especialmente se considerarmos o desmonte brutal da política de segurança alimentar e nutricional [SAN] e o aumento acelerado da extrema pobreza no país, o Pnae tem um importante papel nessa garantia”, ressalta a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity. “O desenho desse programa, que chama a atenção de outros países do mundo, permite, de um lado, garantir esse acesso e, de outro, fortalecer a agricultura familiar, já que o marco legal determina que parte da alimentação escolar seja proveniente desse setor.” Ela destaca o potencial do conceito de direito humano à alimentação e à nutrição adequadas como base para a execução e o monitoramento do programa.

Desde sua concepção, o Pnae tem por princípio norteador melhorar as condições nutricionais dos estudantes e contribuir, assim, para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a redução dos índices de evasão e repetência, resultando numa melhora na aprendizagem e no rendimento escolar. Isso passa pelo entendimento de que a má nutrição, em suas diversas formas, compromete o desenvolvimento do cérebro e do corpo, temporária ou permanentemente. Já uma nutrição adequada contribui para o bom desenvolvimento fisiológico, cognitivo e também imunológico – dimensão que ganha ainda mais relevância nestes tempos de pandemia. A desnutrição e a obesidade, portanto, são consequências da violação ao direito à alimentação e impedem o acesso a outros direitos, como a educação de qualidade.

Eixos e estratégias

O projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade pretende gerar informação e conhecimento sobre os principais fatores que impedem a execução de uma alimentação escolar pautada pelo Dhana; difundir uma cultura de garantia de direitos, sobretudo esse, na sociedade como um todo; divulgar os riscos de uma alimentação baseada em produtos ultraprocessados; promover a exigibilidade de direitos no contexto do Pnae; incidir politicamente pela garantia das estruturas necessárias e pela institucionalização das práticas que atuam nesse sentido; e contribuir para a construção ou o aprimoramento dos marcos legais ligados a esses objetivos.

As atividades previstas incluem pesquisas e entrevistas; oficinas; produção de publicações, reportagens e vídeos; e reuniões com gestores e funcionários de escolas da rede pública, representantes de administrações municipais e parlamentares. A estratégia passa por uma campanha sensibilizadora com a participação de figuras públicas. Essa frente teve como primeira etapa a criação de uma logomarca, que coube à designer Mariana Henrique, em diálogo com a equipe da FIAN.

A atuação envolverá estreita colaboração com a ACT Promoção da Saúde, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP). Um novo parceiro será o Instituto Desiderata, que também ingressou no Food Policy Program no fim de 2020 com projeto focado na saúde de crianças e adolescentes, em âmbito municipal, no Rio de Janeiro. Parte da produção de conteúdo caberá ao portal jornalístico O Joio e o Trigo.

São parceiros globais no FPP a agência Vital Strategies, a Universidade da Carolina do Norte (UNC) e o Instituto O’Neill, da Universidade de Georgetown (GU).

Na iniciativa, a FIAN Brasil também contará com a parceria da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da Universidade de Brasília (UnB) e da FIAN Colômbia.

Sobre o Pnae

Popularmente conhecido como merenda escolar, o Pnae tem seis décadas e meia de história e é o segundo maior programa do gênero do mundo, perdendo apenas, em termos quantitativos, para seu equivalente da Índia. Trata-se da única política pública brasileira que tem como pilares a universalização e a gratuidade na oferta de refeições. O programa tem suas bases legais fundamentadas em artigos da Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) e na Lei da Alimentação Escolar, promulgada em 2009 – que, por sua vez, balizam e fortalecem a compreensão do Dhana nesse ambiente como direito do cidadão e dever do Estado.

Passado, presente e futuro: memória, realizações e desafios em cinco leituras

No centro dos testemunhos do evento em que a FIAN Brasil comemorou 20 anos, as percepções de transformação conceitual e política, fortalecimento institucional e desafio ampliado pelo cenário nacional e internacional também atravessam as análises de cinco pessoas ligadas a esta história: a representante permanente da FIAN Internacional em Genebra, Ana María Suárez Franco; o presidente da seção brasileira, Enéias da Rosa; o diretor executivo da FIAN Colômbia, Juan Carlos Morales González; o cofundador da FIAN Brasil Irio Conti; e a diretora financeira, Norma Alberto.

Principal responsável pela interlocução da FIAN com a Organização das Nações Unidas (ONU), Suárez Franco destaca as realizações da seção brasileira na incidência internacional. “Valorizo ​​o papel que a FIAN Brasil desempenhou durante o processo de negociação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Zonas Rurais, bem como processos relacionados, incluindo as discussões do Comitê Desc para a adoção de um Comentário Geral sobre a Terra e os Desc [direitos econômicos, sociais e culturais], ou os esforços da sociedade civil para conduzir a transição para um mundo livre de agrotóxicos”, enumera.

Ela também cita como de grande importância o acompanhamento das comunidades Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. “Em estreita colaboração com o Cimi [Conselho Indigenista Missionário] e com o Secretariado Internacional da FIAN, a FIAN Brasil tem contribuído para trazer as vozes que contam as realidades cruéis que vivem esses povos”, diz, lembrando a documentação do caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ao Comitê Desc, ao Conselho de Direitos Humanos e aos relatores especiais da ONU. “Essas autoridades obtiveram várias recomendações ao Estado brasileiro. O trabalho de advocacia no Parlamento Europeu resultou numa resolução de apoio às comunidades”, comenta.

“É uma seção muito respeitada, muito prestigiada, que mantém uma agenda muito densa, que inclui casos complicados”, descreve Juan Carlos Morales González. Ele vê um esforço compartilhado entre as duas representações e a equatoriana na articulação entre as FIANs da América Latina e do Caribe. “Temos problemáticas similares a enfrentar, além daquelas regionais e planetárias.”

Momentos

Irio Conti identifica quatro períodos claros nessa consolidação. No primeiro, do começo da década de 80 ao fim da década de 90, o debate de direitos humanos (DH) vai se alargando a partir de uma ênfase nos direitos civis e políticos, bastante focada na redemocratização e na superação das heranças da ditadura militar; os anos que antecedem imediatamente a fundação, com o intercâmbio entre a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a FIAN Internacional; a expansão da militância e da presença nos espaços institucionais, baseadas no voluntariado, até 2010; e a profissionalização, com a primeira contratação como marco inicial, daí até os dias atuais.

“Nos anos 90 vemos pautas como o feminismo e a negritude emergirem da discussão geral de direitos humanos, um forte clamor pela terra – ainda não se falava muito em “território” – e uma crescente articulação dos diversos movimentos”, recorda. Nessa agenda, os direitos econômicos, sociais e culturais, conhecidos pela siga Desc, ganham centralidade, e o Brasil compromete-se em 1992 com o pacto internacional que os promove, o Pidesc.

Ele lembra que a origem da FIAN Brasil entremeia-se à do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e à da Plataforma Dhesc, hoje Dhesca Brasil. Fundada em 2000, em Cuiabá, com o nome Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar, a organização funcionou inicialmente na casa de Paulo Metzner, Luciano Wolff e Cristina Wolff, com Conti na presidência.

“No dia da fundação, 26 de agosto, estávamos na casa deles, também com Vitor Metzner. Mais dez membros, para quem não tínhamos condição de pagar passagem, assinaram a ata. Em novembro o comitê internacional da entidade já nos reconhecia como seção. É um processo que normalmente leva anos”, ressalta, citando similaridades com a história da FIAN Internacional, criada 14 anos antes em na Alemanha. “Lá, também na casa do Rolf Künnemann, em Heidelberg, o escritório funcionou muito tempo num cantinho no sótão, e a colaboração se dava num espírito afetivo, caloroso.” 

Os principais momentos dessa construção estão contados no informe institucional de 18 anos da organização, publicado em 2018.

“Cheiro de burocracia”

O cofundador conta que um dilema marcante foi participar ou não de políticas públicas, no contexto do primeiro governo Lula, que teve o Programa Fome Zero como pedra fundamental. “Nos anos 80 e 90 vínhamos de uma crítica forte ao que vinha do Estado e ao que vinha da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura]. Dizia-se que cheirava a burocracia, cheirava a Estado.” Na avaliação sobre participar ou não do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), havia o receio de ser absorvido, de a organização ficar por conta daquelas demandas. “Mas a partir de 2007 começamos a participar, e nossa presença nos grupos de trabalho foi muito importante em termos de visibilidade institucional e de pautar o tema como direito humano.”

Foi nessa arena que a atual diretora financeira, Norma Alberto, conheceu o trabalho da FIAN. Ela presidia o Consea do Piauí e coordenava, no conselho nacional, a comissão de Conseas estaduais. “A participação da FIAN nos debates, sempre bem fundamentada e aguerrida, chamava atenção, assim como a defesa da dignidade humana com foco naqueles povos que são mais marginalizados, mais esquecidos”, diz.

Norma aproximou-se a da entidade, foi aceita como integrante em 2015 e convidada a integrar o corpo diretor, continuando nele na gestão seguinte. Data daquele ano a mudança da sede – desde 2003 em Goiânia – para Brasília. Um ano e meio depois, o nome da entidade seria alterado para Organização  pelo  Direito  Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, espelhando um realinhamento político-conceitual em andamento também na FIAN Internacional e que teve, lá e aqui, a contribuição de pesquisadores/representantes como Conti e Flavio Valente. 

Nutricionista por formação, a dirigente avalia que incorporar essa dimensão ao direito à alimentação adequada – que acrescenta um “n” à sigla DHAA, que passa a Dhana – contribuiu para que se olhasse com mais profundidade para a alimentação: “Muitas universidades têm hoje disciplinas de SSAN [soberania e segurança alimentar e nutricional]. Vemos a formação de profissionais com visão mais ampla e holística, e a sociedade ampliando seu olhar.”

Norma identifica na extinção do Consea – na primeira canetada de Jair Bolsonaro como presidente, em 2019 – a interrupção de um salto de dez anos. Avalia como uma medida que, para além de retaliar as organizações atuantes no setor, prejudica as populações que constituíam o público alvo dessa política pública. “Mas os movimentos não esmoreceram”, afirma.

A relação entre autoritarismo, neoliberalismo e os retrocessos nas áreas de proteção social e combate à fome, e de produção e consumo de alimentos sustentáveis, é tratada no Informe Dhana 2019, que detalha o cenário pós-golpe de 2016, no governo Temer.

A publicação expressa a atual linha de atuação da entidade, que tem dois momentos centrais de depuração. Em 2008, com a elaboração da metodologia  da  FIAN  Internacional  de  acompanhamento  e  monitoramento  de  casos, baseada em um enfoque de direitos humanos (human rights-based approach), que compreende  processos de documentação e análise das violações de direitos, empoderamento dos  sujeitos  de  direitos,  delimitação  de  estratégias  e  consequente  exigibilidade  e/ou  justiciabilidade  desses  direitos  diante do  Estado e de organizações  supranacionais. Nesse momento, já se opta pelo acompanhamento de um número menor de casos, com maior profundidade.

Em 2015, dois outros eixos de ação passam a configurar um tripé estratégico ao lado dos casos: incidência e advocacy. A primeira visa à adoção de medidas concretas do poder público, ao passo que a segunda consiste na defesa de determinadas pautas e valores, buscando sensibilizar a sociedade e influenciar tomadores de decisões. 

Alimentação e democracia

“Não tenho dúvida de que nosso lugar no debate político e social do país é de referência no tema de Dhana”, comenta o atual presidente, Enéias da Rosa, que descreve a fase em curso como de consolidação institucional. “A FIAN tem estado em vários espaços de diálogo, de debate, contribuindo, orientando, também em defesa da democracia e da participação social como princípios basilares da garantia dos direitos humanos, em especial o que trabalha.” Ele sublinha a atuação de destaque em outras agendas relacionadas ao tema, como a da luta contra os agrotóxicos e a do enfrentamento da pobreza e da desigualdade.

A seu ver, um tema central para atuação no presente e no futuro próximo é a garantia de acesso à renda. “A gente já vem observando nos últimos anos, sobretudo de 2014 para cá, o empobrecimento e o aumento da desigualdade no país. Agora, com a pandemia, os dados apontam para um processo ainda mais intenso. Na perspectiva do fortalecimento das articulações e dos diálogos, me parece que o tema da renda básica surge novamente como um tema estratégico que a FIAN pode trabalhar.”

Irio Conti expressa leitura semelhante, citando o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) como outras bandeiras mobilizadoras. “Na época, o próprio governo popular achou a proposta de renda básica muito avançada. Os movimentos poderiam ter abraçado a ideia com mais ênfase.”

“Garantir a sobrevivência econômica das organizações para as quais trabalhamos por um mundo mais justo é difícil em tempos de recessão”, alerta Ana María Suárez Franco, acrescentando que os fundos internacionais para organizações de direitos humanos, especialmente na América Latina, diminuem notavelmente. “Assim, o trabalho para garantir os recursos que permitam ao setor dar continuidade ao seu trabalho também será essencial para garantir mais 20 anos de trabalho contra as injustiças.” Leia artigo da autora.

Na leitura de Enéias da Rosa, entre os muitos desafios e prioridades será preciso fazer algumas opções, tendo presente o tamanho institucional e o papel a cumprir na conjuntura como um todo. “Diria que o primeiro, e isso é meio dado, é que o papel da denúncia da violação de direitos humanos está na origem da FIAN e tem que ser mantido. O contato direto com os grupos, o contato direto com as populações, com os territórios, no sentido de dar visibilidade às violações”, pondera.

Defesa da vida

Para Juan Carlos Morales González, da FIAN Colômbia, estão na ordem do dia problemas como o crescimento da extrema-direita em diversos países e a iminência de um colapso ambiental. Ele destaca o desencadeamento de epidemias e pandemias como sintoma e resultado desse desequilíbrio: “Boa parte do que está acontecendo é explicada pelo modelo alimentar corporativo, com a destruição dos bosques, florestas, pântanos, cursos d’água”. O diretor alerta que os conflitos alimentares seguirão crescendo em número e gravidade. “Nesse sentido, é inspiradora a linha de trabalho da FIAN Brasil, com a defesa dos territórios e das populações indígenas, quilombolas e camponesas”, elogia.

“A luta pelo direito à alimentação é supremamente estratégica de encarar o futuro que enfrentamos. Precisamos ascender o sujeito humano ao centro da atenção, ao lado da defesa da natureza, do direito à vida das outras espécies. Se não conseguirmos, qualquer luta será insuficiente e experimentaremos um grande fracasso.”

O que quer dizer essa frase? Por que essas sementes?

A FIAN Brasil completou 20 anos em 26 de agosto. A frase escolhida para celebrar estas duas décadas de atividade sintetiza duas ideias centrais para nós. A primeira é que direito não se pede, exige-se, e a informação tem um papel fundamental nisso. A outra é que a ação de nos alimentarmos e às pessoas à nossa volta vai muito além da necessidade imediata de saciar a fome: representa, dos pontos de vista orgânico e social, o ato de constituir pessoas, ou, dito de outro modo, transformar natureza em gente. Gera saúde, identidade, acolhimento, sentimentos de comunhão e de pertencimento a um grupo.

Vemos este ano como estratégico para a FIAN espalhar sua mensagem, os valores que defende, reforçar os laços com os parceiros de estrada e chegar a novas pessoas, que não acompanham tão de perto a discussão do Dhana ou mesmo dos direitos humanos em geral. Daí a ideia de uma campanha também. Um ano de celebração e, ao mesmo tempo, de luta.

A frase vai nos acompanhar por 365 dias, até 25 de agosto do ano que vem. A logomarca comemorativa, idem. Quer vir junto?  

A logo foi criada pelo Marcelo Armesto, designer e ilustrador de Porto Alegre, em diálogo com a gente.

A ideia era combinar a reafirmação da identidade da FIAN por meio da sua marca – em que uma enxada rompe o arame farpado representativo de tantos cercamentos – com a ênfase aos 20 anos de trajetória e uma certa “licença poética”, por ser uma marca temporária, celebrativa.

A proposta escolhida nasceu com feijões, que viraram sementes crioulas variadas.

Elas expressam diversidade tanto regional como biológica (biodiversidade agrícola) e nutricional, estão muito associadas à agroecologia, a tecnologias sociais, ao compartilhamento, a um sistema alimentar mais sustentável em todas suas dimensões – em oposição aos pacotes tecnológicos do “agro”, recheados de agrotóxico, de transgênicos, de padronização, de mecanização e de financeirização.

Essas sementes têm uma carga simbólica que evoca não só produção e alimentação, mas também chão, cultura, semeadura, enraizamento, resistência, resiliência, cuidado… ancestralidade, esperança, crescimento, amadurecimento, tempo, futuro

Achamos que esse padrão visual passa, ainda, a ideia de união, de soma de forças e de pontos de vista.

E você, como lê nossa frase e interpreta nossa simbologia?

Celebração dos 20 anos une testemunho afetivo e disposição para a luta

No dia 26 de agosto a FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas completou duas décadas de atividade desde que foi fundada em Cuiabá.

A data foi celebrada em sessão que combinou memória afetiva, análise de conjuntura e testemunhos técnicos e políticos, além de leituras poéticas com elementos que remetem à história e ao “espírito” da entidade.

Entre outros pontos, as falas destacaram a longevidade e o fortalecimento institucional ao longo da trajetória; a qualidade e os impactos do trabalho realizado; e o desafio de atuar sob um governo autoritário e neoliberal, somado à tendência de que o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) desloque-se ainda mais para o centro do debate nacional em função dos efeitos da pandemia de Covid-19.

Realizada de modo virtual, a sessão reuniu representantes de instituições parceiras, apoiadoras e apoiadores e integrantes da diretoria, da membresia e da equipe executiva. Estavam presentes a presidenta da FIAN Internacional, Sofia Monsalve, e o presidente da seção brasileira, Enéias da Rosa.

Pelas organizações e movimentos com os quais nossa entidade atua em pautas conjuntas, falaram Antônio Canuto, da Comissão Pastoral da Terra (CPT); Antonio Escrivão Filho, o Tuco, de O Direito Achado na Rua; Cláudia Pinho, da Rede de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil; Denise Carreira, da Plataforma Dhesca; Elisabetta Recine, da Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional; Flávio Machado, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi); Francisco Menezes, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN); e Luiz Zarref, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

A diretora financeira da FIAN Brasil, Norma Alberto, abriu o evento. Em nome da organização também falaram o fundador Irio Conti, a ex-presidenta Mariza Rios e a atual secretária-geral, Valéria Burity. Célia Varela, que já respondeu pela Secretaria-Geral, representou a membresia.

O evento lançou a logomarca celebrativa dos 20 anos, com a frase “Exigir direitos, alimentar a vida”, que desde então figuram em todos os nossos materiais e seguirão até agosto de 2021.   

A parte musical da celebração ficou por conta de Vanessa Soares e
Léo Bleggi.

Relatório de Monitoramento do Direito à Alimentação e à Nutrição Durante a Covid-19 – junho/2020

Informe sobre os impactos da pandemia do novo coronavírus na segurança alimentar das populações de todos os continentes. Acesse aqui, em PDF.

Originalmente publicado em inglês com o título Monitoring Report on the Right to Food and Nutrition during covid-19 – june 2020, foi traduzido pela FIAN Brasil com apoio de Flavio Valente.

FIAN participa de apelo contra calote brasileiro à Opas

A importância da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) para o Sistema Único de Saúde (SUS) é o ponto central de carta aberta lançada por dezenas de organizações da sociedade civil, entre elas a FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas. Trata-se de um alerta para os prejuízos na saúde pública do país, principalmente num momento de pandemia, se os governos Bolsonaro e Trump levarem adiante as ameaças de retirada e desfinanciamento – já em curso, na prática, na forma de diversos calotes aplicados nas instituições da Organização das Nações Unidas, o Sistema ONU.

O documento aponta o risco de insolvência da Opas, escritório regional da Organização Mundial da Saúde (OMS), e a possibilidade de que deixe de intermediar aquisição de vacinas e medicamentos para o enfrentamento da Covid-19 nas Américas. Assinada inicialmente por 27 instituições, a manifestação pública já soma mais de 40 signatários, entre organizações não governamentais (ONGs), seções universitárias, fóruns e conselhos – como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), que congrega dezenas de entidades.

Dirigido à sociedade, aos gestores da saúde pública e ao Legislativo, o apelo destaca que a atuação do organismo das Nações Unidas e a participação brasileira nele permitem que nossa população tenha acesso a diversos medicamentos a preços reduzidos, a pesquisas de excelência e aos resultados da cooperação de nossas universidades com centros de estudos de outros países. O grupo lembra que as compras intermediadas pela entidade são um possível caminho para solucionar a falta de anestésicos para entubamento de pacientes de Covid-19 nos estados.

“Qualquer agressão à Organização é uma ameaça ao sistema público brasileiro, especialmente para usuários em tratamento de câncer, de doenças autoimunes, de doenças reumáticas, de certas hepatites virais, assim como para o fornecimento de vacina”, enfatizam as signatárias.

Trabalho na Amazônia e arrecadação para combate à pandemia

A mensagem à sociedade e às autoridades públicas lembra o papel de destaque da Opas na cooperação regional e sua contribuição em vitórias para a saúde mundial como a erradicação do sarampo, da varíola, da rubéola e da poliomielite.

O braço regional da OMS anunciou recentemente, por exemplo, que trabalhará para intensificar o combate à Covid-19 em áreas indígenas da Amazônia com a coordenação de Organizações Indígenas da Bacia do Rio Amazonas (Coica), que inclui organizações indígenas da selva peruana, do leste da Bolívia, da Amazônia brasileira, equatoriana e colombiana. Para mobilizar mais recursos voltados a ações como essa, a Opas colocou no ar um novo portal de doações ao Fundo de Resposta à Covid-19.

As Américas são hoje o epicentro da pandemia. O novo coronavírus propagou-se para todos os 54 países e territórios do hemisfério.

Alimentação adequada e saudável na promoção de saúde

A carta assinada pela FIAN aponta, ainda, como fundamental sua importância na promoção de uma alimentação adequada e saudável. “É sabido que o avanço das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como diabetes e hipertensão, tem como fatores de risco as diferentes formas de má alimentação. O agravo das DCNTs é também uma das principais causas de mortes evitáveis no país, o que por sua vez, implica não apenas o comprometimento da qualidade de vida dos cidadãos brasileiros, mas traz impactos diretos ao SUS.”

As organizações ressaltam a necessidade de assegurar uma agenda de promoção da saúde para reverter as atuais tendências crescentes dos fenômenos elencados.

“Neste sentido, a Opas vem contribuindo ao longo das décadas com relatórios técnicos e recomendações, liderando discussões regionais e realizando ações concretas para a promoção de ambientes mais saudáveis”, sublinham. “Estes perpassam pelo fomento à amamentação nos primeiros anos de vida e estímulo ao consumo de alimentos in natura como fatores protetivos, até as diversas medidas para restrição ao consumo de ultraprocessados, com quantidades elevadas de sal, gorduras, açúcar e aditivos químicos, assim como seus estímulos pela publicidade excessiva ou ausência de rótulos informativos.”

Para saber mais sobre as relações entre sistemas alimentares, meio ambiente, cultura e saúde/doença, baixe gratuitamente o módulo 1 do nosso Curso Básico sobre o Direito Humano À Alimentação e à Nutrição Adequadas (Dhana). A publicação em formato PDF mostra as conquistas, os desafios e a base jurídico-constitucional desse direito humano fundamental.

Foto destacada: Opas

Assista aos vídeos das sessões sobre impactos da pandemia

Está disponível, no canal da FIAN Brasil no YouTube, a gravação das duas primeiras sessões online Impactos da Pandemia.

Na mais recente, a antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB), e a pedagoga Sandra Marli, integrante da Direção Nacional do Movimento de Mulheres Camponesas, conversaram sobre “As mulheres e a Covid-19: cuidado e vulnerabilidades”. Assista!

A reunião, em 26 de maio, discutiu fatores que causam violações aos direitos das mulheres agravados ou decorrentes da pandemia do novo coronavírus, buscando interseções entre as vulnerabilidades vivenciadas por diferentes grupos de mulheres e a relação destas com a fome e insegurança alimentar.

“A (in)segurança alimentar e a pandemia de coronavírus no Distrito Federal” foi o tema da sessão anterior, realizada em 28 de abril.

Clique para assistir

Participaram: a diretora de Alimentação Escolar da Secretaria de Educação do DF, Rosana Mara de Carvalho; a subsecretária de Segurança Alimentar e Nutricional da Secretaria de Desenvolvimento Social do DF, Karla Lisboa; o deputado distrital Fábio Félix (Psol); o representante do Projeto Dividir, Lucas Hamu; a integrante da Conselho de Alimentação Escolar (CAE) do DF Karla Carvalhal; e representante da Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Desenvolvimento Rural do DF.

As sessões online são uma parceria do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da Universidade de Brasília (UnB) com a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável – Núcleo DF e a FIAN Brasil.

Os blocos de debate foram comentados por Elisabetta Recine, da Aliança e do Opsan; Anelise Rizzolo, do Observatório; e Valéria Burity, da FIAN. A moderação ficou por conta de Nayara Côrtes, também da entidade.

Artigo | Renda básica: por um “novo normal” que se oponha ao inaceitável

Francisco Menezes e Valéria Burity
Publicado originalmente no site de Carta Capital, em 11 de junho

“O futuro será dramático se não repensarmos nosso modelo de sociedade e redirecionarmos a atuação do Estado”, alertam o economista Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a a advogada Valéria Burity, secretária-geral da FIAN Brasil – Organização Pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas.

Eles criticam o fato de que, “mesmo com a calamidade expondo a inconsequência das políticas que incentivam a informalidade”, o governo procura rechaçar a proposta de uma renda básica definitiva, já em em debate ou mesmo em implementação em vários países.

“É talvez o programa mais urgente para conter os impactos da pandemia e restituir o fôlego que ela nos retira”, observam Francisco Menezes e Valéria Burity, destacando as obrigações constitucionais do país como prover à sua população acesso à alimentação adequada. Os autores apontam a possibilidade de financiar a implementação a partir de uma reforma tributária solidária, combinando justiça social, racial, de gênero e ambiental.

Leia o artigo.