A história de um povo de quatro países: os Guarani e Kaiowá

Há 147 anos, em março de 1870, um sucesso musical retumbante estreava na Europa, no teatro Scala de Milão, na Itália. Era a ópera O Guarani, do brasileiro Carlos Gomes, ainda hoje tema de abertura do programa de rádio A Voz do Brasil. A obra se baseava no romance homônimo de José de Alencar, publicado em forma de folhetins em 1857, no jornal Diário do Rio de Janeiro. Estamos em pleno romantismo. O nacionalismo e o amor à natureza são as ferramentas que vão esculpir um herói brasileiro idealizado, o indígena Peri, mistura de cavaleiro medieval e dono do conhecimento da terra selvagem.

Mas quem era esse guarani? No romance, Peri abandona tribo, língua e religião em nome da amada Ceci. Assim, a imposição da cultura branca e do cristianismo se dá por amor, supostamente sem violência, com o casal sumindo no horizonte como símbolos fundadores da nação. Nas praias do Brasil, na região do Chaco no Paraguai, no noroeste da Argentina e leste da Bolívia, no entanto, os guaranis viviam nessa época – e ainda vivem – realidades bem diversa das salas de teatro e romances do indianismo literário.

Na verdade, desde os idos de 1500, no século XVI, sofriam perseguições e massacres por parte dos colonizadores espanhóis e portugueses. Nas regiões litorâneas do Sul e Sudeste do Brasil, bem como nas bacias dos rios Paraná e Prata, eram os Tupis-Guaranis os primeiros a entrarem em contato com os europeus. Na medida em que avançavam continente adentro, as expedições avistavam diferentes povos guaranis e lhes davam nomes de acordo com o que ouviam das pessoas encontradas: Karió, Tobatin, Guarambaré, Itatin, Mbaracayú, gente do Guairá, do Paraná, do Uruguai, os Tape e muitos outros.

Pelas matas, os “brancos” seguiam levando doenças que dizimavam aldeias inteiras; sua ambição de conquista e riqueza, que acelerava a assimilação cultural forçada dos indígenas; a escravização dos ameríndios e seu uso indiscriminado como mão de obra para os mais diversos fins. As diferentes trajetórias vividas pelos grupos guaranis na fuga a esse processo levaram a novas distinções culturais entre eles.

Os povos guaranis que se refugiaram em florestas, montes e pântanos, escapando do alcance dos bandeirantes, dos encomenderos espanhóis ou às missões jesuíticas, teriam sido chamados genericamente de kainguákaaiguá, cainguá ou ka’ayguá – termos derivados da palavra guarani ka’aguyguá, “habitantes das matas”. Para muitos estudiosos, esta seria a origem do nome de um dos atuais subgrupos guaranis, os Kaiowás.

O preço do contato com os conquistadores foi alto para os guaranis. Calcula-se que somavam até cerca de 1 milhão e 500 mil indivíduos quando da chegada dos europeus. Em 2008, estimava-se que haviam apenas 51.000 deles, entre os Kaiowá (31.000), Ñandeva (13.000) e Mbya (7.000).

Fronteiras antropológicas

Os guaranis, embora espalhados por quatro países, são considerados até hoje um mesmo conjunto de povos, que falam línguas muito semelhantes, têm costumes e hábitos parecidos, afinidade de interesses, além de traços históricos e tradições comuns. São pessoas que têm uma origem étnica comum, mas que foram se diferenciando entre si no decorrer da história. Por isso, para eles, as fronteiras políticas entre Brasil, Paraguai, Argentina e Colômbia não têm muita importância, o que costuma provocar conflitos com as autoridades locais.

Mesmo perseguidos e acuados, eles guardam com zelo costumes e lembranças de antes da chegada do conquistador, quando praticavam uma agricultura produtiva e abundante, que gerava amplos excedentes, servidos em grandes festas. Os produtos eram distribuídos entre todos os povos guaranis, termo que significa “guerreiro”. Ao chegarem ao local onde hoje se ergue a cidade de Assunção, no Paraguai, os europeus ficaram maravilhados com a “divina abundância” que encontraram entre os indígenas. Hoje a realidade destes povos é a fome e a pobreza.

Espoliação da terra e insegurança alimentar

Uma das principais “famílias” dos Guaranis são os Kaiowás, explica o líder Sílvio Ortiz, integrante do Conselho Indígena da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), área do Ministério da Saúde que coordena a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). De acordo com Sílvio, os Kaiowás são hoje a maioria no estado do Mato Grosso do Sul.

No Brasil, especificamente, a situação dos Guarani e Kaiowá no interior do país sofreu profundas alterações após a Guerra do Paraguai (1864-1870). Em 1880, se iniciou a ocupação sistemática do território ao sul do então estado de Mato Grosso, marcada a princípio pela exploração econômica da erva-mate em grandes propriedades. Em 1943, o então presidente da República, Getúlio Vargas, criou em pleno território indígena a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand), para dar acesso à terra a milhares de famílias de colonos, migrantes de outras regiões do país.

A criação dessa e de outras colônias agrícolas nacionais situou-se dentro da política da “Marcha para o Oeste”, buscando incorporar novas fronteiras e aumentar a produção de alimentos e produtos primários necessários à industrialização a preços baixos. A partir da década de 1950 acentua-se a instalação de empreendimentos agropecuários nos demais espaços ocupados pelos Kaiowá e Guarani, ampliando o processo de desmatamento desse território.

Um número significativo de comunidades indígenas foi obrigado a abandonar suas aldeias e deslocar-se para dentro de oito reservas de terra demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão que deu origem à Funai. Assim, acentuou-se o confinamento das aldeias. A instalação de poderosos grupos de fazendeiros na região gerou um processos de ocupação pela força e com uso de violência.

Conta-se que em 1960, por exemplo, um único fazendeiro mandou expulsar de forma violenta centenas Guarani e Kaiowá (crianças, mulheres, idosos) de seus territórios tradicionais. Em seguida, se apropriaria de amplas terras indígenas, formando uma propriedade de 30 mil hectares. Para o grupo de 170 indígenas Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay sobraria apenas um hectare de terra.

A divisão do Mato Grosso, com a criação do Mato Grosso do Sul, não alterou substancialmente esse quadro, em que fazendeiros buscam se apossar da terra indígena.Desta forma, os antigos guerreiros, que formavam uma das populações indígenas de maior presença territorial no continente sul-americano, encontram-se agora encurralados à beira de estradas ou em acampamentos precários, onde padecem de problemas graves de saúde e, principalmente, sofrem as consequências da insegurança alimentar.

A terra, para os indígenas, é a fonte de alimentos, água, remédios, matéria-prima para suas casas e espaço físico para manifestações culturais e espirituais. Para eles, um dos piores males é a invasão e destruição da terra, as ameaças contra seu modo de viver, a expulsão e a discriminação que passam a sofrer com a chegada de colonos e fazendeiros.

Essa é a situação dos Kaiowá no sul do Mato Grosso do Sul, para onde, a pedido do Ministério Público Federal, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) enviou vários representantes em uma missão que constatou as severas ameaças a que estão submetidas as comunidades indígenas locais (veja o relatório da missão aqui).

Fonte: Consea

“Carne Fraca”: JBS foi maior doadora de campanha de Osmar Serraglio

Ministro da Justiça chamou líder da organização criminosa, na definição da PF, de “grande chefe”; confira as conversas gravadas pela Justiça

O ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB-PR), aliado de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e nomeado a partir do lobby da bancada ruralista, aparece em interceptação telefônica da Polícia Federal feita na Operação Carne Fraca, a maior operação da história da instituição, que tem como alvos empresários do agronegócio.

O grampo interceptou a conversa de Serraglio em fevereiro do ano passado, quando era deputado federal pelo PMDB paranaense, em conversa com Daniel Gonçalves Filho, ex-superintendente do Ministério da Agricultura no Paraná e descrito pela PF como “líder da organização criminosa”.

O deputado procurou Gonçalves para obter informações sobre uma fiscalização no Frigorífico Larissa, do empresário Paulo Rogério Sposito, conhecido como Paulinho Larissa, candidato pelo PPS à Câmara nas eleições de 2010.

“Em conversa com o deputado Osmar Serraglio”, informa a Justiça Federal, “Daniel é informado acerca de problemas que um Frigorífico de Iporã estaria tendo com a fiscalização do Mapa (o frigorífico Larissa situa-se na referida cidade)”.

Veja abaixo a conversa interceptada pela PF:

O diálogo:

Osmar: Grande chefe, tudo bom?

Daniel: Tudo bom?

Osmar: Viu, tá tendo um problema lá em Iporã. Cê tá sabendo?

Daniel: Não.

Osmar: O cara lá….que o cara que tá fiscalizando lá…aprovou o Paulo lá…disse que hoje vai fechar aquele frigorífico…botô a boca..deixou o Paulo apavorado. Mas para fechar tem o rito, não tem? Sei lá…como funciona um negócio deste?

Daniel: Deixa eu ver o que está acontecendo..tomar pé da situação de lá…falo com o senhor.

Segundo a PF, logo após a ligação, Daniel Gonçalves ligou para Maria do Rocio, fiscal na região implicada na operação. Ela responde que não há nada de errado. Gonçalves repassa as informações para Serraglio.

O delegado da PF Maurício Moscardi Grillo disse ao R7 que o deputado não foi grampeado, mas apareceu nas interceptações feitas no telefone de Gonçalves. Como Serraglio era deputado quando apareceu no grampo, “não poderíamos avançar em nenhuma investigação”, disse o delegado.

Mesmo assim, Grillo confirmou que o diálogo foi “encaminhado ao procurador-geral da República […] para que não houvesse dúvidas sobre a investigação e a legalidade do que estava sendo apurado”.

JBS, A MAIOR DOADORA

Serraglio declarou ao Tribunal Superior Eleitoral, em 2014, um patrimônio de R$ 5,4 milhões. Os bens mais valiosos estão ligados ao mercado imobiliário. Imóveis rurais, ele declarou dois. Um de 24 hectares em Nova Prata do Iguaçu (PR), por R$ 5.966,54, e outro em Umuarama (PR), que ele possui desde 1976, por R$ 409, 20. Em 1997 o deputado possuía R$ 704 mil.

A maior doação feita legalmente para Serraglio, em 2014, foi do frigorífico JBS, uma das empresas investigadas na Operação Carne Fraca, com um aporte de R$ 200 mil.

O deputado paranaense também ficou conhecido por defender o ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), no ano passado, ao pautar recursos que poderiam anular o processo contra seu aliado no Conselho de Ética. Quando Cunha foi finalmente preso, Serraglio lamentou: “É a queda da República!”

Eduardo Cunha cumprimenta o presidente da CCJ, Osmar Serraglio, antes do início da reunião da comissão. ALEX FERREIRA CÂMARA
Osmar Serraglio é aliado de Eduardo Cunha (Foto: Alex Ferreira/ Câmara)

OUTRO LADO

Em nota, o Ministério da Justiça diz:

Se havia alguma dúvida de que o Ministro Osmar Serraglio, ao assumir o cargo, interferiria de alguma forma na autonomia do trabalho da Polícia Federal, esse é um exemplo cabal que fala por si só. O Ministro soube hoje, como um cidadão igual a todos, que teve seu nome citado em uma investigação. A conclusão tanto pelo Ministério Público Federal quanto pelo Juiz Federal é a de que não há qualquer indício de ilegalidade nessa conversa gravada.

Fonte: De Olho nos Ruralistas

FIAN Brasil: trabalho de incidência é fundamental para exigir realização dos direitos humanos

Incidência. Este é um termo muito comum na atuação e universo das organizações não-governamentais que atuam, principalmente, pela defesa dos direitos humanos. No caso da FIAN Brasil, a incidência, junto com articulação, formação e produção de conhecimento, é um dos seus eixos de atuação. Mas afinal, o que é essa tal de incidência?

Incidência é o ato de criar pressão frente aos poderes públicos nacionais e internacionais, a partir de demandas das organizações da sociedade civil organizada, com o propósito de garantir o acesso e qualificação das políticas públicas.

Com 16 anos de atuação no Brasil, a FIAN tem desenvolvido ações para exigir a realização dos direitos humanos, em especial do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA), direito que engloba diversos elementos como: Segurança Alimentar e Nutricional, Adequabilidade, Soberania Alimentar, Gênero e Nutrição. Neste sentido, diversos temas relacionados ao DHANA e aos direitos humanos, bem como segmentos em situação de vulnerabilidade, em geral, são priorizados na atuação da organização, a exemplo de: terra e território, combate aos agrotóxicos, impactos de mega projetos sobre direitos humanos, consumo de alimentos, publicidade infantil e povos e comunidades tradicionais e direitos das mulheres.

“Tendo como base o trabalho de acompanhamento de casos concretos de violações de direitos a FIAN Brasil busca, a partir de sua experiência específica, incidir de maneira geral sobre políticas públicas, leis e jurisprudência (decisões judiciais reiteradas sobre um tema) ou decisões judiciais, buscando atuar em favor não apenas dos sujeitos de direitos dos casos concretos acompanhados, mas de outros indivíduos e grupos que são afetados e impactados pelas mesmas ações”, informa a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.

O trabalho no âmbito da incidência realizado pela FIAN Brasil tem como base a experiência desenvolvida em conjunto com o Secretariado Internacional da FIAN e contribuições de outras seções, coordenações e membros da FIAN Internacional. “O trabalho da FIAN tem como objetivo apoiar a luta da sociedade civil em seus esforços para tornar efetivas as obrigações de respeitar, proteger, promover e prover o DHANA, como instrumento contra a fome, a má nutrição e a alimentação inadequada, no contexto da promoção da equidade e da dignidade humana”, destaca Valéria Burity.

Atualmente, a FIAN Brasil realiza dois acompanhamentos de casos: povo indígena Guarani Kaiowá (MS) e território quilombola de Brejo dos Crioulos (MG). O acompanhamento de casos, é uma das principais ações da FIAN Brasil, a partir deste acompanhamento é possível tornar visíveis as violações do DHANA e demais direitos nestas comunidades e apoiar a lutas dos grupos afetados com as violações e violências.

Caso Guarani e Kaiowá

Um dos casos mais emblemáticos de violações de direitos no Brasil, é o dos povos indígenas Guarani e Kaiowá que, desde 2005, são acompanhados pela FIAN Brasil. “A FIAN não é uma organização indigenista, no entanto atuamos, fortemente, por meio de incidência juntos aos órgãos nacionais e internacionais visando fortalecer a luta dos grupos que têm seus direitos violados”, aponta Valéria Burity.

Os Guarani e Kaiowá são o segundo maior povo indígena do Brasil atualmente, com cerca de 50 mil habitantes que se concentram principalmente no estado do Mato Grosso do Sul. Expulsos de suas terras pelo avanço da colonização promovida pelo Estado Brasileiro principalmente após a Guerra do Paraguai, os Guarani e Kaiowá vivem, em sua maioria, em reservas criadas pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) no início do século XX.

Além dos que estão em centros urbanos, a maioria dos indígenas vive em três situações: minoria em terra demarcada; grande maioria nas reservas, onde estão os piores indicadores de violência, desnutrição e suicídio; e outra parcela está em acampamentos de beira de estrada ou em áreas de retomadas, isto é, ocupando partes de fazendas que se sobrepõem aos seus territórios tradicionais, em situação de conflito. Geralmente, os Guarani e Kaiowá encontram-se cercados por monoculturas de cana e grãos que demandam uso intensivo de agrotóxicos. Há muitas denúncias sobre contaminação de água. Também há denúncias de que as comunidades são, intencionalmente, alvos de pulverização de agrotóxicos.

Os conflitos entre os representantes dos setores do agronegócio e as comunidades indígenas são graves, persistindo os despejos e o assassinato de lideranças como reação à luta pelo Tekohá (lugar onde se é). Desde o assassinato de Marçal de Souza, em 1983, foram mortos dezenas de líderes, sendo que alguns nunca tiveram seus corpos encontrados, como é o caso de Nísio Gomes, do Tekohá Guaiviry. Além do assassinato de lideranças, centenas de mortes decorrem dos conflitos pela terra. Em 2014, o Mato Grosso do Sul concentrava 54,8 % dos assassinatos contra povos indígenas no país. Apesar da abertura, em alguns casos, de processos judiciais, não há ninguém preso em razão das mortes das lideranças indígenas no Mato Grosso do Sul.

“O contexto de violações de direitos do povo Guarani e Kaiowá está associado à ausência de demarcação de seus territórios tradicionais, mas também à omissão do Estado em relação à segurança pública, saúde, alimentação, educação, questões ambientais, justiça e promoção de outras políticas públicas que permitam tal povo viver de acordo com sua identidade cultural”, pondera Burity.

A FIAN Brasil em parceria com o CIMI – Conselho Indigenista Missionário lançou, em agosto de 2016, a pesquisa “O Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição do povo Guarani e Kaiowá – um enfoque holístico”, que apresenta um diagnóstico sobre as mais diversas violações de direitos humanos relacionadas à atual situação dos Guarani e Kaiowá. A pesquisa comprovou que, nas comunidades pesquisadas, o índice de insegurança alimentar e nutricional deste povo indígena era de 100%.

Incidência Internacional

 

Delegação brasileira em agenda de incidência internacional, na imagem representantes da FIAN Brasil, FIAN Internacional, CIMI, APIB e Aty Guassu.

No acompanhamento do caso dos Guarani e Kaiowá, a incidência política tem sido um dos principais eixos para denunciar as graves violações de direitos humanos cometidas contra estes povos.

A exemplo da importância do papel da incidência internacional, a FIAN Brasil, FIAN Internacional, CIMI e liderança Aty Guassu Guarani e Kaiowá participaram, em setembro de 2016, de uma Gira pela Europa com o objetivo de denunciar o Estado brasileiro sobre as violações de direitos humanos contra os Guarani e Kaiowá.

Na rota das organizações estiveram países como Alemanha, Bélgica, Suíça, Suécia, Inglaterra. Na agenda, foram apresentadas as principais denúncias de violações contra os povos indígenas brasileiros, como o diagnóstico realizado pela FIAN Brasil que aponta a grave situação nutricional dos Guarani e Kaiowá.

Além de reuniões com parlamentares alemães e do Europarlamento e organizações internacionais, também foram realizados debates com a sociedade sobre a situação dos povos indígenas brasileiros. Ainda na visita, a delegação participou, no dia 20 de setembro, da 33ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC) em Genebra, onde a Relatora Especial da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, apresentou o relatório da missão ao Brasil com conclusões e recomendações visando à superação do quadro de violações dos direitos humanos dos povos indígenas. No dia seguinte à apresentação do relatório, organizações e representantes indígenas do Brasil se reuniram em Genebra para analisar a apresentação do documento, que contou também com a participação da Relatora Especial da ONU.

Alguns meses depois desta ação de incidência internacional, já apareceram os primeiros resultados do trabalho

– Resolução do Parlamento Europeu

Em 24 de novembro de 2016, o Parlamento Europeu aprovou uma Resolução Urgente onde “condena” e “deplora” a violência e as violações de direitos humanos sofridas pelo povo Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Em apelo dirigido às autoridades brasileiras, os eurodeputados pedem medidas imediatas para a proteção, segurança e demarcação das terras dos povos indígenas. A resolução norteará as relações políticas e comerciais dos países que compõem o Parlamento Europeu com o Brasil. Conforme os eurodeputados, o direito originário dos povos indígenas ao território tradicional, presente na Constituição brasileira, é um dever do Estado de proteger – o que não ocorre.

– Visita do Parlamento Europeu no Brasil

Após a visibilidade internacional da situação dos Guarani e Kaiowá, em dezembro de 2016, uma missão do Parlamento Europeu esteve no Brasil para uma diligência ao Mato Grosso do Sul, com o objetivo de verificar denúncias de mortes, ameaças e ataques contra as comunidades indígenas.

– Revisão Periódica Universal (RPU)

Audiência Pública sobre a RPU na Câmara dos Deputados.

Um outro tema abordado na incidência internacional, durante a Gira pela Europa, está relacionado com a RPU. Em maio de 2017, o Brasil será submetido pela terceira vez à Revisão Periódica Universal (RPU) do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Este é um mecanismo pelo qual os Estados-membros da ONU são avaliados por seus pares quanto à situação de proteção aos direitos humanos no país.

– Petição internacional

A Assembleia Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá protocolou online, no dia 6 de dezembro, uma petição à CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). A denúncia contra o Estado brasileiro protocolada na CIDH é apresentada pelo Conselho da Aty Guasu Guarani e Kaiowá, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Fian Internacional, Fian Brasil e Justiça Global, em representação das comunidades indígenas Guarani e Kaiowá de Apyka’i, Guaiviry, Ypo’i, Ñhanderu Marangatu e Kurusu Ambá, por violações aos direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, no Protocolo de San Salvador e na Convenção de Belém do Pará. “Além das mortes, denunciamos a falta completa de demarcação das nossas terras tradicionais. Isso motiva toda uma série de graves violações que geram o genocídio do nosso povo”, explicou Eliseu Guarani e Kaiowá, à época.

“Esta petição é fruto de um longo e profundo processo conjunto de análises de violações de direitos humanos, e demanda do Estado Brasileiro, em síntese, a efetivação dos direitos humanos dos Guarani e Kaiowá”, destaca Valéria Burity.

Embora o Brasil esteja vivendo cenários de retrocessos, a expectativa é que as denúncias e a pressão de organismos internacionais reforcem a luta dos Guarani e Kaiowá e pressionem o Governo Brasileiro a adotar medidas efetivas que garantam os direitos humanos não só dos Guarani e Kaiowá, mas de todos os povos indígenas.

“A ação de incidência e os resultados que já vemos, como uma manifestação do Parlamento Europeu, por exemplo, são importantes, mas sem dúvida, é a luta direta do Povo Guarani e Kaiowá que tem barrado maiores violações de direitos, temos compreensão, portanto, que é fundamental incidir contra a criminalização dessa luta”, informa Valéria Burity.

FIAN

A FIAN Brasil é uma seção da FIAN Internacional, organização de direitos humanos que trabalha há 30 anos pela realização do Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas. No Brasil, a FIAN acompanha e monitora casos de violações deste direito, incidindo sobre o poder público e realizando ações de formação e informação.

Por Flávia Quirino/Ascom Fian Brasil

Foto Capa: Lunaé Parracho

Plataforma #ChegaDeAgrotóxicos é lançada no Brasil

Construído por diversas organizações, site explica ameaças de retrocessos na legislação de agrotóxicos e coleta assinaturas para pressionar pela Política de Redução de Agrotóxicos

Foi lançada nesta quinta-feira (16) a plataforma online #ChegaDeAgrotóxicos. A ferramenta é uma estratégia de mobilização da sociedade na luta contra os retrocessos que podem colocar ainda mais venenos na mesas da famílias brasileiras.

Preocupadas com o chamado Pacote do Veneno – uma série de medidas que visam liberar ainda mais o uso de agrotóxicos no Brasil –, diversas organizações da sociedade se juntaram para construir a plataforma #ChegaDeAgrotóxicos. O site recolhe assinaturas contrárias ao Projeto de Lei 6299/2002, do agora ministro da agricultura Blairo Maggi, e divulga informações sobre os riscos dos agrotóxicos.

Carla Bueno, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, explica o objetivo deste movimento: “Queremos alertar a sociedade para o enorme risco que estamos correndo caso o Pacote do Veneno seja aprovado. Nossa proposta é a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA), que é composta por uma série de medidas que restringem os agrotóxicos e podem nos livrar do posto de maior consumidor de venenos do mundo”.

A PNaRA foi construída há mais de dois anos, numa parceria entre a sociedade civil e o governo, no contexto da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Na época não pôde ser implementada pois foi vetada pelos ruralistas. Entre as medidas contidas na PNaRA, estão o fim das isenções fiscais para agrotóxicos, e a criação de zonas livres de agrotóxicos e transgênicos para incentivar a agroecologia no Brasil.

“O agronegócio, além de ser 100% dependente do uso de agrotóxicos, representa um grande entrave para o desenvolvimento da agroecologia e a produção de alimentos saudáveis. É preciso dar um basta nos ruralistas, e iniciar uma transição do modelo de produção agrícola em nosso país e para isso a Reforma Agrária se coloca na ordem do dia”, afirma Carla.

Projetos de Lei

As assinaturas recolhidas no site chegadeagrotoxicos.org.br irão servir como pressão para barrar o Projeto de Lei 6299/2002. Nele, há uma proposta de revogação da atual lei de agrotóxicos, e a criação de uma lei de “defensivos fitossanitários”, que acabaria inclusive com o nome “agrotóxico”. Desta forma, todo o perigo representado por estas substâncias ficaria oculto. Além disso, o texto abre brechas para aprovação de novas substâncias que provocam câncer, mutação genética e má-formação fetal.

Ao mesmo tempo, o conjunto de organizações que lançou a plataforma pretende apoiar a aprovação do Projeto de Lei 6670/2016, que institui a PNaRA. O projeto é uma iniciativa da sociedade civil, que propõe mais de 100 medidas para reduzir os agrotóxicos no Brasil.

A plataforma #ChegaDeAgrotóxicos é assinada pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Greenpeace, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Associação Brasileira de Agroecologia, Articulação Nacional de Agroecologia, Aliança Pela Alimentação Saudável, Aliança de Controle do Tabagismo, Central Única dos Trabalhadores, Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, FIAN Brasil, Fiocruz, Fórum Brasileiro de Segurança e Soberania Alimentar, Idec, Slow Food e Via Campesina.

Acesse o site: http://www.chegadeagrotoxicos.org.br/

Fonte: Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida

Demarcar terra é imprescindível para resolver problemas indígenas

“A demarcação das terras indígenas é condição primária para a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada dos povos indígenas Guarani e Kaiowá e para o acesso a todas as políticas públicas previstas no Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan)”. O diagnóstico consta do relatório de visita, realizada entre os dias 28 de agosto e 2 de setembro de 2016, às comunidades indígenas (acampamentos e reservas) das etnias Guarani e Kaiowá do Cone Sul do estado de Mato Grosso do Sul.

Os Guarani e Kaiowá lutam há décadas pela regularização fundiária de seus territórios de ocupação tradicional. A comitiva que visitou a região, liderada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), abordou o acesso dos Guarani e Kaiowá aos alimentos, os impactos de programas sociais, qualidade, quantidade e regularidade das cestas básicas, o acesso à água, documentação e questões relacionadas à demarcação das terras.

A situação de insegurança alimentar e nutricional dos povos Guarani e Kaiowá, diz o relatório, tem relação direta com o descumprimento dos direitos territoriais garantidos às comunidades indígenas pela Constituição Federal do Brasil. “Foi possível constatar em todas as comunidades visitadas a ocorrência de fome e desnutrição, a precariedade do acesso à saúde, à água e à educação e a ausência de documentação civil”.

A comitiva verificou um quadro de violência com mortes por assassinato, manifestações de preconceitos e violação de direitos humanos. “A realidade vivida pelos povos Guarani e Kaiowá pode ser denominada como uma tragédia humanitária e denota explicitamente a negação sistemática de direitos humanos em função da omissão do Poder Público”, destaca o documento.

O relatório evidencia a necessidade da adoção de ações estruturantes para as comunidades, tanto em reservas indígenas como em áreas de retomada, que garantam a produção de alimentos para o autoconsumo e a comercialização do excedente, respeitando suas tradições agrícolas e sua cultura alimentar.

O Consea tem discutido e se manifestado sobre a situação de insegurança alimentar e nutricional e das recorrentes violações de direitos dos povos indígenas no Brasil. O Conselho encaminhou várias Exposições de Motivos e Recomendações aos órgãos do Poder Público sobre demandas indígenas, em especial os direitos dos povos Guarani e Kaiowá.

Clique aqui para acessar o relatório

Fonte: Consea

Parecer Jurídico: Cimi analisa impactos da Reforma da Previdência nos direitos dos povos indígenas

Neste 15 de março o Brasil irá parar contra a Reforma da Previdência proposta pelo governo Temer. Os povos indígenas também têm a perder com a reforma. Isto porque os indígenas e as indígenas fazem parte da aposentadoria rural. Esta seguridade especial está programada para acabar com a reforma.

Um indígena, hoje, pode se aposentar ao completar 60 anos se homem e 55 anos se mulher, no valor de um salário mínimo. Além da aposentadoria por idade, os indígenas dispõem do direito ao salário maternidade, aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, pensão por morte – entre outros benefícios sociais.

Existe no país a determinação judicial para regular e resguardar a especificidade das questões envolvendo o direito previdenciário indígena. A certidão fornecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai) é a comprovação para o indígena da qualidade de segurado especial – a aposentadoria rural; o que deverá acabar.

“A proposta é igualar a idade mínima dos trabalhadores urbanos e rurais, bem como instituir uma cobrança individual mínima e periódica para o segurado especial, substituindo o modelo de recolhimento previdenciário sobre o resultado da comercialização da produção”, diz trecho de parecer do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Leia na íntegra o parecer elaborado pela Assessoria Jurídica do Cimi:

PARECER: OS DIREITOS INDÍGENAS E A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 287/2016 QUE TRATA DA SEGURIDADE SOCIAL

INTRODUÇÃO >> OS DIREITOS SOCIAIS E PREVIDENCIÁRIOS DOS INDÍGENAS

Na condição de cidadãos plenos, os indígenas dispõem do direito aos benefícios sociais e previdenciários do Estado Brasileiro e são considerados Segurados Especiais, pois também exercem atividades rural ou extrativista. Para comprovar a qualidade de segurado especial, os indígenas precisam apresentar uma certidão fornecida pela Fundação Nacional do Índio. Evidentemente que as atividades indígenas são mais amplas e de grande relevância para o país e a sociedade brasileira. Mesmo assim, a síntese acolhida pelo direito até o momento tem sua importância.

Embora não haja regulação específica, o direito à aposentadoria dos indígenas é igual ao dos trabalhadores rurais. Contudo, já existe determinação judicial para regular e resguardar a especificidade das questões atinentes ao direito previdenciário indígena.

No ano de 2008, o Ministério Público Federal – MPF, ingressou com a Ação Civil Pública (2008.71.00.024546-2 – RS) em face do INSS e da FUNAI para que fosse assegurado o benefício previdenciário também aos indígenas não aldeados e residentes na zona urbana. Deste modo, o Poder Judiciário determinou, em âmbito nacional, que à FUNAI passe a emitir para os indígenas, inclusive os não aldeados e residentes na zona urbana, certidão dando conta das atividades desempenhadas quanto ao artesanato proveniente de extrativismo vegetal, bem como sobre como se dá essa extração (se em regime familiar e se o indígena depende disso para sua subsistência).

Atualmente, nos termos da Lei 8.213/91, tem direito à aposentadoria rural por idade o trabalhador rural que completar 60 anos se homem e 55 anos se mulher, no valor de um salário mínimo, estando incluídos aí, portanto, os indígenas. Além da aposentadoria por idade, os indígenas dispõem do direito ao salário maternidade, aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, pensão por morte entre outros benefícios sociais.

AS MUDANÇAS PROPOSTAS PELA PEC 287/2016 QUANTO AOS SEGURADOS ESPECIAIS

Dentre as mudanças que devem afetar o trabalhador rural ou segurado especial rural, são: 1 – elevação da idade mínima de 60 (homens) e de 55 (mulheres) para 65 anos, sem distinção; e, 2 – contribuição não mais presumida sobre a comercialização, mas sim sobre uma alíquota mensal de 5% sobre o salário mínimo, através de recolhimento individual.

A PEC também apresenta uma modificação com relação às pensões por morte, que pretende, segundo a proposta do governo federal, abolir sua cumulação com a aposentadoria por idade.

Veja-se parte da fundamentação da proposta que visa a reforma previdenciária:

Das regras previdenciárias do trabalhador rural.

43. No que concerne à aposentadoria rural, cumpre mencionar que a regra atual prevê as idades mínimas de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, uma redução de 5 anos de idade em relação à aposentadoria do trabalhador urbano. Tal discriminação se justificava, à época, pelas adversas condições de vida e trabalho desse grupo, que exerce atividade tipicamente braçal, exposto às intempéries e, no passado, com grande dificuldade de acesso a serviços públicos básicos.

(…) A solução encontrada foi a criação, para os trabalhadores rurais que exercem sua atividade em regime de economia familiar, de um sistema contributivo diferenciado para possibilitar o acesso à rede de proteção social, definido na própria Constituição Federal.

(…)

47. Outrossim, pelas regras atuais, o segurado especial não precisa comprovar recolhimentos previdenciários caso não comercialize sua produção: basta provar que trabalhou 15 anos em atividade rural, por meio de início de prova material (notas de produtor rural, declaração de sindicato, documentos pessoais dos quais conste a ocupação rurícola, dentre outros), corroborada por prova testemunhal.

(…)

50. Portanto, a melhoria das condições de vida e trabalho nas áreas rurais, o aumento da expectativa de vida de homens e mulheres, e o desequilíbrio entre arrecadação e despesas com benefícios rurais, justificam a alteração das regras para esses trabalhadores, especialmente o aumento da idade mínima e a forma de contribuição, com a substituição da contribuição atual sobre a comercialização.

51. A proposta é igualar a idade mínima dos trabalhadores urbanos e rurais, bem como instituir uma cobrança individual mínima e periódica para o segurado especial, substituindo o modelo de recolhimento previdenciário sobre o resultado da comercialização da produção. Propõe-se a adoção de uma alíquota favorecida sobre o salário mínimo, adequada à realidade econômica e social do trabalhador rural.

53. Importante destacar que essa alteração de sistemática de contribuição do segurado especial se dará gradualmente, por meio de uma transição do modelo contributivo, sem afetar o reconhecimento do período de atividade rural anterior à data de promulgação da Emenda, com base na legislação então vigente (g.n.).

Diante da justificativa da medida proposta pelo governo federal, duas regras afetam diretamente e de forma negativa os segurados especiais rurais. A primeira determina que a idade mínima passa de 60 (homens) e 55 (mulheres) para 65 anos ambos, sem distinção. A segunda obriga o contribuinte a, mensalmente, recolher uma alíquota à previdência, o que revoga a forma atual de contribuição presumida através da comercialização da produção rural.

As duas medidas mais impactantes sobre os segurados especiais rurais tendem a impor uma idade mínima de 65 anos para homens e mulheres, mais a comprovação do recolhimento mensal à previdência, o que afeta diretamente a economia da agricultura familiar e tende a afetar também e diretamente os povos originários.

Por fim, o governo gostaria, ainda, de acabar com a vinculação de todos os benefícios da Previdência do reajuste do salário mínimo, mas não encontra respaldo na legislação. Nos casos da pensão e da Loas, o entendimento é que não há insegurança jurídica e, por isso, a proposta de Emenda já regula essa mudança. Quanto aos demais benefícios, mesmo sem previsão na Emenda, o governo pretende, logo que aprove a reforma, suprimir o reajuste do salário mínimo e aplicar apenas a correção da inflação.

A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 287/2016 E OS POVOS INDÍGENAS

Quanto aos povos indígenas, o impacto será ainda maior, caso seja aprovada a medida como se encontra proposta. Cabe ressaltar que em nenhum momento, seja no texto legal, seja na justificativa, as palavras “índios” ou “povos indígenas” são mencionadas.

Veja-se que muitas comunidades indígenas vivem da pesca, coleta, pequenas roças de subsistência comunitária, de seus tratos culturais produtivos específicos e das diversas formas tradicionais que produzem sua economia, nos termos do art. 231 da CF/88. Sem renda mensal em espécie, como contribuiriam os indígenas diante dessa nova regra previdenciária?

A resposta a esse questionamento seria apenas um: diante dessa nova proposta de Emenda Constitucional os indígenas não conseguiriam se aposentar. Sem contribuição mensal recolhida à previdência, sem direito à aposentadoria, portanto.

Ademais, diante da elevação da idade mínima para acessar o benefício, aliado ao recolhimento mensal à previdência, os indígenas entrariam numa condição ainda pior da que vivem hoje. Alijados da terra, em boa parte das regiões brasileiras, com condições precárias de vida e sem uma produção “não-índia” que sustente uma contribuição individual mensal, estariam à margem do direito previdenciário proposto pelo governo federal.

Ainda, as condições em que vivem os indígenas atualmente, é pior do que aquela em que viviam os trabalhadores rurais no contexto em que originou a legislação previdenciária vigente, à qual elegeu os camponeses como necessitados de política menos gravosa, como consta da justificativa da proposta de Emenda. Senão vejamos o que justificou a legislação em vigor e veja-se a condição indígena de hoje sem acesso à terra e desalojados cultural e juridicamente, em função da falta de efetividade na política indígena, diante do que prevê o art. 231 da CF/88:

No que concerne à aposentadoria rural, cumpre mencionar que a regra atual prevê as idades mínimas de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, uma redução de 5 anos de idade em relação à aposentadoria do trabalhador urbano. Tal discriminação se justificava, à época, pelas adversas condições de vida e trabalho desse grupo, que exerce atividade tipicamente braçal, exposto às intempéries e, no passado, com grande dificuldade de acesso a serviços públicos básicos. (g.n.)

A realidade indígena de hoje, repita-se, pode ser considerada pior do que aquela que justificou a legislação em vigor. Ainda, aumentar a idade mínima dos indígenas para acessar o benefício previdenciário é condenar os indígenas em idade de aposentadoria, que têm uma vida dura nos roçados, pescas, caças, coletas, e outros meios de renda de subsistência, nos acampamentos à margem de sua terra (terras em processo de demarcação ou reivindicada como tradicional) ou na vida urbana a uma velhice desumanizada e cruenta.

Ademais, a legislação indigenista, além das sistemáticas decisões judiciais, determina que índio permanece índio, independentemente da sua situação econômica ou da sua economia, de onde e como vivem, etc., para fins de proteção constitucional (Pet. 3388/RR – Rel. Min. Ayres Britto). Ainda, de acordo com a decisão na Ação Civil Pública nº 2008.71.00.024546-2 – RS, os indígenas em situação urbana que vivem de artesanato, oriundo de extrativismo vegetal têm o mesmo direito ao benefício especial rural, assim como os demais indígenas em quaisquer das situações que se encontrem.

A conclusão que se pode chegar é que em face da omissão da situação indígena, submeter os povos tradicionais à mesma condição não-indígena para o acesso do benefício seria um retrocesso sem precedentes, já que inúmeras as especificidades a serem consideradas, sob pena de grave erro e insegurança jurídica.

Por fim, cabe ressaltar que a medida (PEC 287/16), ao ser extensivamente direcionada aos indígenas, torna-se manifestamente inconstitucional. O motivo da inconstitucionalidade, doravante, é a previsão do art. 231 da Carta Política, como já mencionado:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

A CF/88 reconheceu aos índios, além do direito à terra, seus usos, costumes e tradições, línguas e sua organização social diferenciada, de acordo, ainda, com cada povo e suas especificidades.

O direito previdenciário hodierno que se estende então aos povos indígenas é aquele mesmo do trabalhador rural em regime de economia familiar, ou seja, o benefício especial rural – mesmo que em nenhuma passagem da Lei ou da proposta de Emenda conste a palavra “índios” ou “povos indígenas”, dependendo, apenas, para requerer o benefício, de uma certidão emitida pela FUNAI. Acaso seja aprovada a PEC da reforma previdenciária, continuaria sendo aplicado extensivamente, como é hoje, vale dizer, aos povos tradicionais, esse mesmo regime especial, agora com as mudanças que inconstitucionais e mais gravosas, o que seria erro de inquestionável leitura.

CONCLUSÃO

Por fim, forçoso concluir que a coerção da contribuição mensal à previdência, para aquisição de direito previdenciário pelos índios, encontra óbice no art. 231 da CF/88: os povos indígenas têm direito constitucional de viver de acordo com seus usos, costumes e tradições, podendo não comercializar, se for próprio da sua organização social. Mesmo sem comercializar sua produção ou artesanatos, os índios têm direito ao benefício em comento. Do contrário, estariam guerreando um direito constitucional indígena.

Primeiro, é inconstitucional a PEC 287/16, já que o art. 231 da CF/88 impede o recolhimento mensal de 5% sobre o salário mínimo pelos povos tradicionais à previdência para evidenciar direito de aposentadoria, considerando o regime constitucional multicultural e pluriétnico dos povos tradicionais; e, depois, inconsistente aumentar em cinco anos (para homens) e dez anos (para mulheres) o período de contribuição, o que não encontra respaldo na legislação indigenista e nem na atual condição objetiva (aldeados, acampados ou em condição urbana) dos povos indígenas.

Ainda, nos tempos atuais torna-se imperativo reconhecer de forma mais eficaz a grande contribuição dos povos indígenas para com a sociedade brasileira e o país que se traduz na preservação das florestas e das águas, nos diferentes modos de produção, na riqueza e diversidade cultural e no conhecimento ancestral, condição nova reconhecida pelo direito, mas ainda sem efetividade.

Brasília-DF, 16 de janeiro de 2016.

Adelar Cupsinski e Rafael Modesto dos Santos

Por Adelar Cupsinski e Rafael Modesto dos Santos, da Assessoria Jurídica – Cimi 

CNDH aprova recomendações contra Reforma da Previdência e pela publicação imediata da Lista Suja do Trabalho Escravo

Os documentos, protocolados no dia 15 de março, foram aprovados pelo Plenário do Conselho Nacional dos Direitos Humanos

A 25ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), realizada nos últimos dias 9 e 10 de março, em Brasília, aprovou recomendação direcionada ao Presidente da República Michel Temer, para que retire a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/2016 – que trata da Reforma da Previdência – e ao Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, para que suspenda a tramitação da proposta no Congresso Nacional até que haja uma escuta ampla e democrática da sociedade.

Também foi aprovada recomendação ao Ministério do Trabalho solicitando imediata atualização e publicação do cadastro de empregadores autuados por utilização de mão de obra escrava – a Lista Suja do trabalho escravo. Os documentos foram protocolados nesta quarta-feira (15).

Para o CNDH, a PEC 287 dificulta o acesso e até mesmo impede o pleno exercício da seguridade social, direito humano previsto na Constituição Federal e em diversos Tratados e Convenções Internacionais dos quais o Brasil é signatário.

O presidente do CNDH, Darci Frigo, destaca que a PEC 287/2016 apresenta “retrocessos inaceitáveis” no campo dos direitos trabalhistas e sociais, como a redução do valor geral das aposentadorias; a exigência de 49 anos de tempo de contribuição para ter acesso à aposentadoria integral e a precarização da aposentadoria de trabalhadores e trabalhadoras rurais.

A exigência de idade mínima de 65 para homens e mulheres também é mencionada pela vice-presidenta do CNDH, Fabiana Galera Severo, como grave retrocesso, que contribui para reforçar a desigualdade entre homens e mulheres.

“Como alertaram as mulheres em manifestações no último dia 8 de março, essa medida desconsidera as jornadas extras de trabalho acumuladas pelas mulheres e as dificuldades que elas têm de garantir a permanência da contribuição previdenciária, já que são preteridas no mercado de trabalho e ocupam parcela significativa de empregos sem garantias trabalhistas”, declara Fabiana.

Lista Suja do Trabalho Escravo

O CNDH também aprovou, em sua última reunião, documento que recomenda ao Ministério do Trabalho imediata atualização e publicação da Lista Suja do trabalho escravo. Para o colegiado, “não há, atualmente, qualquer restrição legal, embaraço jurídico ou impedimento técnico que justifique a não publicação da lista suja do trabalho escravo, sendo, ao contrário, do interesse público a sua divulgação”.

A recomendação também solicita ao Ministério do Trabalho que qualquer debate envolvendo trabalho escravo seja promovido no âmbito da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), espaço de discussão que envolve a participação de representantes do poder público, do setor privado, de organismos internacionais e da sociedade civil que acumulam experiência na luta pelo enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil.

Fonte: Plataforma Dhesca

Lançado em Brasília o Prêmio Juliana Santilli de Agrobiodiversidade

O Instituto Socioambiental (ISA), a Associação Bem-Te-Vi Diversidade e a Editora Mil Folhas, do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), lançaram nesta quarta-feira (15/03), em Brasília, o Prêmio Juliana Santilli de Agrobiodiversidade.

As inscrições estão abertas até 20 de junho.

O nome da premiação é homenagem à pesquisadora, professora, jornalista e promotora do Ministério Público do Distrito Federal, Juliana Santilli, falecida em 2015, aos 50 anos de idade. Ela foi fundadora do ISA.

São três as categorias, duas delas recebem o Troféu Juliana Santilli, selo de reconhecimento e auxílio financeiro, na forma de custeio de intercâmbio, de R$ 10 mil cada uma delas. Já a terceira categoria terá a publicação de um livro, pela Editora Mil Folhas do IEB.

Os objetivos são reconhecer e promover iniciativas, individuais ou coletivas, que fazem a diferença para a ampliação, a conservação, o acesso, a distribuição ou o uso de produtos da agrobiodiversidade, além de premiar a produção intelectual sobre o tema.

Demais dados e informações – como o edital, os critérios, as etapas, a ficha de inscrição – devem ser buscados no site www.juliana-santilli.org.

CNDH se posiciona contra criminalização de movimentos sociais

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos aprovou na última sexta-feira (10) uma nota pública em que repudia a criminalização dos movimentos sociais e de militantes, que tem crescido nos últimos anos e que hoje atinge níveis ameaçadores para a nossa recente democracia.

No documento, o Conselho faz menção à prisão da militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Fabiana Braga, de 22 anos, presa desde 4 de novembro de 2016 acusada exclusivamente por ter participado de manifestações no dia 8 de março daquele ano, Dia Internacional da Mulher.

Confira a nota na íntegra abaixo ou aqui:

NOTA PÚBLICA DO CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos – CNDH, órgão de Estado instituído pela Lei nº 12.986/2014, vem a público manifestar seu repúdio com relação à criminalização dos movimentos sociais e de militantes, que tem crescido nos últimos anos e que hoje atinge níveis ameaçadores para a nossa recente democracia.

A luta social surge e se desenvolve onde o Estado não cumpre com sua obrigação constitucional de garantir direitos sociais através de políticas públicas adequadas – neste contexto as comunidades populares e categorias de trabalhadoras e trabalhadores se organizam e realizam ações coletivas para denunciar esta situação e reivindicar direitos estabelecidos e negados.

A resposta dada pelo Estado brasileiro, de maneira recorrente, é a de negar o diálogo com os movimentos sociais que protagonizam as ações reivindicatórias e, com rigidez e violência crescentes, tratar os grupos populares como criminosos, por meio da repressão policial e da prisão de seus militantes.

Para tentar dar respaldo legal a tais atos de violência institucional, policiais, promotores e juízes lançam mão da Lei nº 12.850/2013, buscando enquadrar movimentos sociais legítimos e pacíficos como “organização criminosa”, sendo evidente a ausência de qualquer cometimento de crime.

Agrava esse contexto a possibilidade de cumprimento da pena de prisão após decisão de segundo grau no Judiciário, pois esta interpretação acaba alcançando em primeiro lugar as pessoas mais pobres, negras e as/os representantes de movimentos sociais.

Esta hipertrofia da face policial do Estado brasileiro tem resultado em prisões de dezenas de militantes populares em todo o país, além de perseguição sistemática de outras dezenas, pessoas cujos únicos “crimes” são a busca de melhores condições de vida para suas comunidades e a garantia de seus direitos constitucionais.

Como exemplo e símbolo desta situação de injustiça denunciamos a prisão da jovem Fabiana Braga, de 22 anos, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sua comunidade é constituída por 3.000 famílias acampadas na região de Quedas do Iguaçu (PR) que reivindicam a destinação, para a Reforma Agrária, de imóveis sob acusação de serem griladas pela Empresa Araupel Sociedade Anônima. Em novembro de 2016 foi deflagrada a “Operação Castra” com o objetivo de prender diversos militantes sob a acusação de constituírem e integrarem uma “organização criminosa”. Fabiana está presa desde 4 de novembro de 2016, acusada exclusivamente por ter participado de manifestações no dia 8 de março daquele ano, Dia Internacional da Mulher.

A grave situação exposta está inserida no contexto amplo de acirrada crise econômica, social e política e de fragilidade das instituições democráticas brasileiras. Neste cenário, assistimos também com preocupação os episódios de criminalização de estudantes que protagonizaram recentemente ocupações de escolas em luta por educação de qualidade.
Somam-se a esse cenário as perseguições sofridas por manifestantes que lutam legitimamente contra a agenda de redução de direitos. Tais casos de criminalização institucional têm sido recorrentes, atingindo ainda advogadas/os, sindicalistas, comunicadoras/es e defensoras/es de direitos humanos.

Assim, ao criminalizar os movimentos sociais, o Estado brasileiro viola o direito à liberdade de expressão, à livre manifestação e associação, dentre outros direitos essenciais e, mais que isso, atenta contra a própria democracia.

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) reafirma – e vem alertar a sociedade brasileira – que tais procedimentos judiciais, que resultam em prisões, perseguições e mais sofrimento para os setores populares, devem ser substituídos por diálogo com os movimentos sociais e por efetivas políticas públicas por parte do Estado.

Brasília-DF, 10 de março de 2017.
CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS – CNDH

Democracia já tem quase 2 mil assassinatos políticos no campo

Dados da CPT mostram que, desde 1985, 1.833 camponeses e lideranças pela reforma agrária morreram em conflitos; latifúndio cresceu 375%

O ano de 2016 deixou uma marca de retrocessos pelo país. No campo a situação não foi diferente: o número de assassinatos causados por conflitos de terra retroagiu 13 anos. Com 60 mortes, 20% a mais que o ano anterior, 2016 tornou-se o ano mais violento no campo desde 2003, quando 71 pessoas foram assassinadas por lutarem pela reforma agrária e por seus territórios tradicionais, de acordo com o relatório Conflitos no Campo Brasil em 2016, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Como nos anos anteriores, a violência se concentrou nas bordas da Amazônia. Dos 60 assassinatos, 49 aconteceram na região. Rondônia disparou na frente como o estado mais violento, com 21 mortes. O Maranhão ficou em segundo lugar, com 13 assassinatos. Antigo líder, o Pará ficou em terceiro, com seis mortes. Tocantins somou três assassinatos; Amazonas, Alagoas e Mato Grosso, dois. Na sequência de regiões com mais conflitos agrários aparecem o Nordeste, o Centro-Oeste, o Sudeste e a região Sul.

Segundo o relatório, as disputas pela terra e pelos recursos hídricos são as principais causas da violência no campo. A intensificação dos conflitos está situada onde há expansão do agronegócio, mineração e grandes obras de infraestrutura.

Entre as vítimas estão indígenas, lideranças quilombolas, camponeses e sindicalistas. O levantamento da CPT destaca três casos emblemáticos: os assassinatos da ativista Nilce de Souza Magalhães, em Porto Velho (RO); do camponês Ivanildo Francisco da Silva, em Mogeiro (PB); e do indígena Clodiode Aquileu de Souza, em Caarapó (MS).

Nilce, que denunciava violações contra ribeirinhos na construção da usina de Jirau, em Porto Velho, foi assassinada em janeiro do ano passado. Foto:MAB/ Divulgação
Nilce, que denunciava violações contra ribeirinhos na construção da usina de Jirau, em Porto Velho, foi assassinada em janeiro do ano passado. Foto: MAB/ Divulgação

O assassinato de Nilce, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), foi o caso mais impactante. Nilce, que era conhecida por sua liderança na militância contra as violações atribuídas à construção da usina hidrelétrica de Jirau, desapareceu no dia 7 de janeiro de 2016. Cinco meses depois, em meados de junho, seu corpo foi encontrado com as mãos e pés amarrados e preso a pedras no fundo do lago da barragem da usina, a apenas 400 metros de distância do acampamento de pescadores onde morava, em Mutum. As duas filhas de Nilce reconheceram o relógio e as roupas da mãe.

“É fácil de entender se olhamos o mapa do desmatamento da Amazônia Legal: Rondônia está em áreas de expansão, que velozmente avançam para ingressar em outros espaços”

Outro assassinato impiedoso com repercussão nacional aconteceu no agreste paraibano – de importância histórica para as lutas camponesas no Brasil. Ivanildo Francisco da Silva, de 46 anos, do assentamento Padre João Maria, foi assassinado no dia 7 de abril, com um tiro de espingarda calibre 12, na cabeça, dentro de casa, na zona rural do município de Mogeiro. Ele estava ao lado da filha de 1 ano. O corpo foi encontrado somente na manhã do dia seguinte, pela mulher. A criança estava ao lado do cadáver, chorando e suja de sangue. Em 2015, Ivanildo e outros assentados já tinham sido vítimas de pistolagem paga pelos proprietários de terra da região. Na época, sete pistoleiros foram presos, mas liberados após pagamento de fiança.

Em junho, o assassinato do jovem Guarani Kaiowá Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, próximo do município de Caarapó, no interior do Mato Grosso do Sul, inflamou a disputa entre indígenas e fazendeiros na região. Os Kaiowá ocuparam a reserva Tey’ikue, onde fica a fazenda Yvu, para reivindicar suas terras ancestrais, identificadas e delimitadas em estudo publicado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), quando foram cercados por 70 fazendeiros encapuzados e armados que abriram fogo com munições letais – de acordo com o hospital e testemunhas oculares. O jovem agente de saúde morreu, e outros cinco indígenas, entre eles uma criança, ficaram feridos.

Os métodos dos fazendeiros para intimidarem as comunidades indígenas na região não se restringem à pistolagem. Em julho, a 1ª Vara Federal de Dourados concedeu uma liminar em favor da comunidade indígena local, proibindo as fazendas do entorno de pulverizar agrotóxicos, por aviões e outros meios, a menos de 50 metros das reservas. O caso se arrastava desde 2008, quando indígenas ganharam na Justiça o direito de ocupar área da reserva legal de dois imóveis rurais e viram os fazendeiros substituírem os tratores pelos aviões para pulverizarem suas plantações de soja e arroz.

OS PRINCIPAIS FATORES DA VIOLÊNCIA NO CAMPO

Entre 1964 e 2016, o número total de assassinatos no campo foi de 2.507 homens e mulheres pelas regiões do Brasil, segundo os dados da Comissão Pastoral da Terra, que recolhe os dados sistematicamente desde 1984, e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que reuniu dados anteriores a 1986. No decorrer deste período um dos picos mais violentos ocorreu na década de 1980, quando o país se reencontrou com a democracia. A década foi marcada pela fundação do MST e pelo aumento das mobilizações sociais e lutas para democratizar a terra.

Depois da restauração do poder civil, entre 1985 e 2016, a CPT registrou 1.833 assassinatos no campo. Em outras palavras, houve três vezes mais registros de mortes derivadas de conflitos no campo no período democrático do que nos anos anteriores à redemocratização. Isso não significa que ocorreram mais mortes no período democrático, pois antes os registros eram mais precários – mas mostra a relevância dos conflitos desde 1985.

Indígena mostra cartuchos recolhidos após ataque de fazendeiros. FotoRuy Sposati/ Cimi/ Divulgação
Indígena mostra cartuchos recolhidos após ataque de fazendeiros. Foto Ruy Sposati/ Cimi/ Divulgação

Nos anos 1990 o número de mortes diminuiu. Em 2000, foram registrados 21 assassinatos. Como explicar, então, que eles tenham duplicado em 2015 (50 mortes) e triplicado em 2016?

Para Thiago Valentim, da coordenação nacional da CPT, há três fatores principais para o aumento dos conflitos. Primeiro: a impunidade, mas aquela “relativa aos conflitos no campo, porque nosso sistema prisional é um dos que mais prendem”, enfatiza. Segundo: sucateamento dos órgãos e falta de política do Estado voltada para a democratização da terra. Valentim lembra que nos últimos anos houve pouco investimento na reforma agrária, “chegando ao ponto de ter anos em que o governo não desapropriou nenhuma terra”.

Por isso, conclui o coordenador, os conflitos aumentam porque existem comunidades em luta e, quando os governos não agem, “os movimentos é que batem de frente com o latifúndio”. O terceiro fator identificado por Valentim é a expansão do agronegócio, “o avanço de grandes corporações econômicas no campo e grandes obras de infraestrutura”, que visam o território de comunidades tradicionais pela riqueza que ele tem.

“Na região já mataram quatro trabalhadores e até agora não foi concluída nenhuma investigação. Os autores dos homicídios são policiais civis e militares que atuam na região”

O secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber César Buzatto, vê como a principal causa da violência contra indígenas a lentidão e a paralisação dos procedimentos administrativos de demarcação das terras: “Esse fator contribui muito para o aumento da tensão e dos conflitos entre os povos. Outro aspecto é uma maior organização e atuação mais articulada, sistemática e violenta do agronegócio no ataque aos direitos dos povos. A atuação da bancada ruralista nos últimos anos tem sido intensa com instrumentos legislativos contra os direitos indígenas, como a PEC 215 – projeto de autoria do deputado Almir Moraes de Sá, do PR, de Roraima, que transfere do Executivo para o Legislativo a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. Muitos deputados têm feito discurso de ódio e incitação à violência contra comunidades tradicionais e organizações de apoio e isso tem insuflado a ação armada contra lideranças indígenas e seus apoiadores”, ressalta Buzatto.

Nas contas do secretário executivo do Cimi, entre 2015 e 2016 houve mais de 30 ataques armados de paramilitares e jagunços, comandados por fazendeiros.

Segundo João Peres, autor do livro Corumbiara: caso enterrado (editora Elefante), sobre o massacre de camponeses na fazenda Santa Elina, em 1995, não é de hoje que Rondônia figura entre os estados mais violentos. “As mortes têm duas causas: ação e omissão do Estado. Na ação, a criação das duas hidrelétricas-irmãs, Jirau e Santo Antônio, que incentivou o desmatamento, abrindo espaço para a formação de condomínios de desmate nos quais o Estado tem dificuldade e até teme adentrar”, considera. “Ainda é possível destacar a especulação fundiária, estimulada pela possibilidade de asfaltamento da BR 319, exatamente onde algumas lideranças emblemáticas foram mortas”.

Peres destaca que os assassinatos ocorrem exatamente onde há intensa exploração madeireira e pouca fiscalização: “É fácil de entender se olhamos o mapa do desmatamento da Amazônia Legal: Rondônia está em áreas de expansão, que velozmente avançam para ingressar em outros espaços. É assim que foram mortas pessoas no Vale do Jamari, que parece ter substituído neste século o Cone Sul rondoniense como área mais perigosa do estado. A apuração insatisfatória alimenta a violência contra os movimentos. Como são os donos da terra que comandam as estruturas institucionais, é evidente que o Estado não atuará em favor da resolução dos casos, pelo contrário, trabalhará para que restem impunes”.

O autor lembra que Rondônia atraiu, na ditadura, latifundiários e sem-terra e essa mistura “segue sendo explosiva”, mesmo após cinco décadas do boom migratório.

PRISÕES E PERSEGUIÇÕES

A violência no campo em 2016 não começou nem terminou nesse ano. Perseguições políticas e prisões arbitrárias lembram a ditadura de 1964 – que volta a ser evocada no presente. Em novembro de 2016, em ação da Policia Civil do Paraná batizada de “Operação Castra”, oito integrantes do MST foram presos na região de Quedas do Iguaçu. Acusados de fazerem parte de uma organização criminosa e “extorquir assentados”, os camponeses foram presos e continuam encarcerados.

Segundo Geani Paula, coordenadora do movimento no Paraná, as razões expostas no decreto de prisão “são acusações sem lastro na realidade”. A região é marcada por conflitos desde 2014, quando aproximadamente 3 mil famílias ocuparam terras pertencentes à empresa Araupel. As áreas foram caracterizadas como griladas e declaradas, pela Justiça Federal, terras públicas pertencentes à União, que deveria destiná-las à reforma agrária.

“Na região já mataram quatro trabalhadores e até agora não foi concluída nenhuma investigação. Os autores dos homicídios são policiais civis e militares que atuam na região”, lamentou Paula.

CONCENTRAÇÃO E FALTA DE DEMOCRATIZAÇÃO DAS TERRAS

A democratização das urnas não chegou com a mesma velocidade no campo. Segundo o relatório Terrenos da Desigualdade – Terra, agricultura e as desigualdades no Brasil rural, elaborado pela Oxfam Brasil, organização ligada à Universidade de Oxford e presente em 94 países, a concentração fundiária é o principal motivo para a violência no campo. Atualmente, menos de 1% dos grandes proprietários concentram 45% de toda a área rural – enquanto pequenos proprietários, com menos de 10 hectares, ocupam menos de 2,3% da área rural.

O relatório, publicado em janeiro deste ano pelo Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), ligado à Universidade Estadual Paulista (Unesp), reforça o problema do aumento da concentração de terras no Brasil. De acordo com o estudo, as áreas ocupadas por latifúndios cresceram 375% nos últimos 30 anos. A pesquisa calcula o crescimento de propriedades com mais de 100 mil hectares desde 1985.

Para os pesquisadores, a reforma agrária segue um ritmo mais lento do que a expansão do agronegócio, que vem ampliando seu território com grilagem e estrangeirização de terras. A pesquisa aponta pelo menos 23 países donos de terras em território nacional, destacando-se Estados Unidos, Japão, Reino Unido, França e Argentina. “Os principais investimentos são em commodities: soja, milho, canola, colza, sorgo, cana de açúcar e monocultura de árvores, além da produção de sementes transgênicas”, detalha o relatório.

NOVAS FRONTEIRAS AGRÍCOLAS, NOVOS CONFLITOS

Os conflitos incendeiam-se mais na região Norte, segundo Thiago Valentim, da CPT, porque “o avanço do capital ali é maior” e por ser uma área muito rica, onde as empresas compram grandes lotes de terras”. Ele alerta para outra área cobiçada que explica o aumento dos conflitos no Nordeste: o Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).

Valentim considera a região um exemplo nítido do ataque contra as comunidades tradicionais, que antes avançava no Norte e agora se expande também de maneira mais articulada em outras regiões do país. O relatório da CPT registrou dezenas de casos de violência no Matopiba, como pistolagem, destruição de lavouras e casas, expulsões, despejos, ameaças de despejos e obstrução do acesso à água.

TERRA MANCHADA DE SANGUE

Mais de 2,5 mil homens e mulheres foram mortos entre 1964 e 2016 em todas as regiões do Brasil, de acordo com levantamentos da Comissão Pastoral da Terra e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A década de 1980, período de redemocratização do país, coincide com o acirramento da violência no campo, com execuções de lideranças a mando de fazendeiros, mineradoras e grandes corporações. Apesar de eventuais indiciamentos de pistoleiros, os mandantes raramente foram alcançados pela Justiça.

Em 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores rurais sem-terra foram mortos pela Polícia Militar no episódio que ficou mundialmente conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no sudeste do Pará. Os trabalhadores do MST faziam uma caminhada até a cidade de Belém, quando foram impedidos pela polícia de prosseguir. Mais de 150 policiais – armados de fuzis, com munições reais e sem identificação nas fardas – foram destacados para interromper a caminhada, o que levou a uma ação repressiva extremamente violenta. Duas décadas depois, dois comandantes da operação foram condenados, o coronel Mario Colares Pantoja, a 258 anos, e o major José Maria Pereira de Oliveira, a 158 anos, que estão presos desde 2012. As evidências de participação da Vale do Rio Doce, uma estatal à época, no transporte das tropas desde Paraupebas e Marabá, em ônibus da empresa Transbrasiliana nunca foi investigada. “O gerente da Transbrasiliana que recebeu a ordem – e o dinheiro – se chama Gumercindo de Castro. O funcionário da Vale que contratou os serviços se chama James. Como explicar que uma empresa estatal contrate uma empresa particular para transportar tropas da PM que iriam desfazer uma manifestação pública?”, questiona Eric Nepomuceno, autor do livro O Massacre: Eldorado dos Carajás: Uma história de impunidade (Ed. Planeta).

Foto: Memorial Chico Mendes/Divulgação

O líder seringueiro Francisco Alves Mendes Filho, Chico Mendes, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Acre, foi assassinado aos 44 anos, no dia 22 de dezembro de 1988, em Xapuri, com tiros de escopeta, por Darci Alves a mando do pai, o fazendeiro Darli Alves. Ambos foram condenados, em 1990, a 19 anos de detenção, mas fugiram da prisão em 1993, tendo sido recapturados três anos depois. Foram beneficiados com progressões para regimes domiciliar e semiaberto.

Foto: CPT/Divulgação

A missionária norte-americana Dorothy Mae Stang, ativista dos direitos socioambientais e defensora de um projetode sustentabilidade para a Amazônia, foi assassinada aos 73 anos, em 12 de fevereiro de 2005, no interior de Anapu, nas margens da Transamazônica, no Pará. A religiosa naturalizada brasileira vivia na região desde a década de 1970 e pressionou pela criação da reserva Esperança, projeto do Incra, onde foi emboscada por pistoleiros. Dois mandantes do crime, Vitalmiro Bastos de Moura e Regivaldo Pereira Galvão, estão em liberdade. Clodoaldo Batista e Rayfran das Neves Sales, que executaram o crime, foram condenados a 18 anos e 27 anos de prisão, respectivamente.

Foto: Greenpeace/Felipe Milanez

O casal de agricultores José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva foi executado na manhã de 24 de maio de 2011, em Nova Ipixuna, sudeste do Pará. No dia 6 de dezembro de 2016, a Tribunal do Juri de Belém condenou a 60 anos o fazendeiro José Rodrigues Moreira, que encomendou as execuções. Zé Cláudio e Maria eram ambientalistas e extrativistas, e denunciavam grilagem de terras, desmatamento ilegal no interior do assentamento agroextrativista da localidade.

 

 

Por Cauê Seigner Ameni – De Olho nos Ruralistas – para o ExtraClasse

Fonte: De Olho nos Ruralistas