Parceria entre o MultiplicaSSAN/UnB e a FIAN Brasil, Educação Popular e Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas – Promovendo o Dhana com a Comunidade da Cozinha Solidária do Sol Nascente resulta de um ano e meio de imersão no território, parte da maior favela horizontal do país
Está disponível para baixar o livro Educação Popular e Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas – Promovendo o Dhana com a Comunidade da Cozinha Solidária do Sol Nascente, lançado pela FIAN Brasil e pelo coletivo MultiplicaSSAN. A publicação oferece caminhos para outras comunidades, movimentos, entidades e grupos universitários adaptarem o curso com essa abordagem realizado no local, no Distrito Federal, em setembro e outubro de 2023.
Construída como projeto de extensão universitária do Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional (OPSAN) da Universidade de Brasília (UnB), a iniciativa adota uma metodologia alicerçada na educação popular, de referência freiriana, organizada a partir do convívio e do envolvimento em atividades cotidianas – uma ruptura com a forma tradicional, unidirecional, de educação. O processo de organização das atividades pedagógicas deu-se a partir da imersão da equipe do projeto por um ano e meio no território – o Sol Nascente, parte da maior favela horizontal do país – em que se situa o equipamento do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST).
“As atividades foram planejadas em conjunto com a comunidade, tendo como principais articuladoras as cozinheiras e lideranças da cozinha solidária, que são três mulheres que vêm, junto com a equipe, construindo um processo participativo e inclusivo de educação popular”, conta a professora Anelise Rizzolo. “O preparo das refeições, a logística de abastecimento, o armazenamento, o cuidado com as crianças da comunidade e a relação com as mulheres que ali transitam serviram de material para a gente elaborar um diagnóstico situacional em relação às necessidades e interesses dessa comunidade em relação aos processos educativos.”
Nas oficinas, a temática foi do preparo de temperos sem ultraprocessados à simulação de uma conferência livre em segurança alimentar e nutricional (SAN), passando por identidade e pertencimento cultural, comidas e direitos sociais.
Eixos
Rizzolo destaca três grandes eixos que perpassaram as atividades: o letramento, a busca por mais conhecimento para compreender melhor os processos de trabalho e os problemas que o lugar enfrenta, com vista à emancipação social; a discussão da temática da comida e o seu potencial em termos de reflexão e ação para a garantia da segurança e da soberania alimentar e nutricional; e o empoderamento feminino, de forma que as participantes se percebessem numa relação interseccional entre raça, classe e gênero e enxergassem o papel social que desempenham e sua condição de inserção no mundo.
“Chegaram lá dizendo que tinham mais a aprender com a gente do que a gente com eles e eu ficava: ‘Como assim?’”, conta uma das cozinheiras, Sirleide Araújo dos Santos, a Bizza. “E aí vi o tanto que a gente trocava. O trabalho nos fez mudar a forma de tratar o outro, enxergar de outra maneira as pessoas que a gente serve quando está cozinhando. E eu vi que quando as pessoas da universidade vêm aqui e veem o que acontece, também se transformam em outros, em profissionais melhores.”
Ela conta outro impacto dessa vivência: “Despertou na gente a vontade de voltar a estudar, de ler, de conhecimento, sabe? Eu parei no 6º ano e agora, se Deus quiser, vou voltar a estudar”.
Poder transformador
Para a assessora de Direitos Humanos Paula Gabriela Chianca, da FIAN, a sistematização dessa experiência tem caráter transformador, que vai além de documentar uma experiência vívida. “O livro organiza aprendizados, dá visibilidade às vozes das protagonistas e oferece subsídios para replicar e adaptar ações em contextos semelhantes. A sistematização permitiu resgatar as metodologias utilizadas, os desafios enfrentados e as conquistas, valorizando o saber popular em diálogo com o conhecimento técnico”, diz.
O destaque às mulheres nesse processo traz à luz o papel que elas desempenham como agentes de transformação social e do cuidado alimentar, acrescenta a assessora. “Como Paulo Freire sugere, é pela conscientização – entendida como a capacidade de enxergar-se como sujeito na história – que construímos uma sociedade mais equitativa. Então, além de fortalecer essas lideranças, a publicação pode inspirar outras mulheres e coletivos a desenvolver iniciativas que promovam autonomia, segurança alimentar e justiça social”, pontua. Chianca ressalta, por fim, a importância de que experiências locais inspirem políticas públicas em que práticas de educação popular sejam ferramentas na construção de justiça social e inclusão.
Sobre o Sol Nascente e sua cozinha solidária
O território do Sol Nascente faz parte de região administrativa do DF composta também pelo território do Pôr do Sol.
A ocupação do Sol Nascente começou, de maneira irregular, nos anos 1990, com aproximadamente 80 moradias. O processo deu-se de forma contínua e acelerada, com condições precárias de infraestrutura.
A Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) apontou que em 2021 a população urbana do Sol Nascente/Pôr do Sol era de 93.217 pessoas, sendo 50,3% do sexo feminino, com idade média de 28,6 anos. No que diz respeito à raça/cor da pele, 53,9% dos moradores se referiram como pardos. Sobre a escolaridade, 95,5% dos moradores com 6 anos ou mais de idade declararam saber ler e escrever e entre as pessoas com 25 anos ou mais, 39,2% declararam ter o ensino médio completo. No aspecto de renda, a remuneração de trabalho principal teve valor médio de R$1.578,78, sendo que 70% da população recebia de um a dois salários mínimos. A avaliação da segurança alimentar aponta que 49,8% dos domicílios estavam em algum grau de insegurança alimentar nos três meses anteriores à data da entrevista, seja a insegurança leve, moderada ou grave (PDAD, 2021).
Nesse contexto, a Cozinha Solidária do Sol Nascente é um equipamento social, coordenado pelo MTST e financiado pela sociedade civil e por parceiros a partir de doações.Inaugurada no início da pandemia de Covid-19, atende uma média de 120 pessoas diariamente, incluindo adultos, mulheres e crianças, e oferece almoço, de forma gratuita, de segunda a sexta-feira. Desde 2024, participa do PAA Cozinha Solidária, recebendo alimentos agroecológicos do assentamento da reforma agrária do DF, o Canaã, a partir de sua associação de mulheres.
A estrutura da cozinha solidária inclui uma horta agroecológica na parte externa, onde são cultivadas plantas alimentícias e medicinais. Além disso, conta com um espaço amplo onde são realizadas atividades coletivas e a entrega das refeições. Outro componente é a biblioteca, que possui exemplares doados de livros e publicações diversas tanto para crianças, quanto para adultos.
Sobre as cozinhas solidárias
A ideia de inaugurar cozinhas solidárias surgiu durante a pandemia de Covid-19, em 2020, com o intuito de enfrentar o aumento da insegurança alimentar e nutricional (InSAN) nas comunidades em que o movimento estava presente e a entrega de cestas básicas para as famílias não estava sendo suficiente. A ocupação do MTST no Sol Nascente deu-se no dia 21 de abril de 2018, e a inauguração da cozinha solidária, em 26 de junho de 2021. O governo federal incluiu iniciativas como essa numa política pública por meio do Programa Cozinha Solidária, criado em julho de 2023 e regulamentado em março de 2024.