
Já ouvida como amicus curiae (“amiga da corte”) numa das ações sobre o marco temporal, a FIAN Brasil pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para contribuir nessa condição também na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.582. A entidade lembra que, em função da relação holística e orgânica dos povos indígenas com os territórios ancestrais, o reconhecimento e a proteção das terras tradicionais são centrais para a garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana).
A ADI 7.582 foi protocolada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) com apoio de dois partidos, Psol e Rede Sustentabilidade. Outras duas ADIs, 7.583 e 7.586, reiteram o caráter inconstitucional da tese. O ministro relator do caso, Gilmar Mendes, apensou todas as ações à Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) 87. Completa esse conjunto a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86, que se situa no extremo da posição ruralista.
“Fazemos o pedido para reforçar a ação da Apib como a mais relevante e legítima, dado que se trata da principal representação dos indígenas, a parte mais afetada pela disputa”, explica o assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil Adelar Cupsinski. “É questão de sobrevivência dos povos originários. Além disso, como o próprio Supremo já declarou em 2023, a tese em julgamento é inconstitucional.”
Parte do modo de vida
No memorial entregue ao STF dia 7, a FIAN Brasil lembra que o direito à alimentação é reconhecido no artigo 6º da Constituição e consagrado em tratados internacionais como o Pidesc. Acrescenta que, para os povos originários, produzir alimentos vai além da segurança alimentar: está no centro da identidade cultural, do modo de vida. Elaborado com a FIAN Internacional, o documento apresenta achados de pesquisa entre os Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul.
O marco temporal só voltou à ordem do dia porque também em 2023, pouco depois da manifestação da Suprema Corte, os parlamentares aprovaram a tese, ao promulgar a Lei 14.701, derrubando veto presidencial contrário.
“Tudo fica ainda mais preocupante com a minuta de anteprojeto de lei elaborada por Mendes como ministro relator”, alerta Cupsinski. “A proposta foi divulgada como resultado da comissão especial que ele criou como instância conciliatória, mas seu teor incorpora outros pontos e ameaça grande parte dos direitos conquistados milímetro por milímetro ao longo de quatro séculos, desde as cartas régias de 1611 e de 1680, quando os europeus passaram a se preocupar com a situação jurídica dos nativos no período colonial.” A Apib retirou-se de pronto e denunciou a impossibilidade de conciliação, mas a instância foi mantida.
Em fevereiro, três relatoras especiais da ONU publicaram declaração pedindo que as autoridades brasileiras rejeitem essas medidas regressivas.
Rompimento de acordo
Para o assessor da FIAN, a aprovação de tais retrocessos romperia um acordo entre o Estado brasileiro e as sociedades originárias sacramentado na Constituição Federal de 1988. “Ela tratou as questões indígenas em diferentes dispositivos articulados, criando um arcabouço jurídico consistente”, diz.
O marco temporal define a data da promulgação da Carta Magna como linha de corte para o reconhecimento das terras indígenas, como desfecho de uma disputa acolhida pelo STF no caso Raposa Serra do Sol. Mas o Plenário do tribunal reviu sua decisão após 16 anos, depois de a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) dar ganho de causa aos Xukuru, de Pesqueira (PE), contra o Estado brasileiro. Agora em março, decisão na mesma linha declarou o Brasil responsável por violação de direitos dos quilombolas de Alcântara (MA) e determinou a demarcação de seu território.
Como apoiadora da luta indígena, a FIAN participará do Acampamento Terra Livre (ATL) 2025 ao lado de delegação guarani e kaiowá. Em sua 21ª edição, a mobilização convoca a população brasileira a ocupar Brasília – simultaneamente a ações locais – de 7 a 11 de abril. Com o tema “Apib somos todos nós: em defesa da Constituição e da vida”, o evento celebra os 20 anos da organização.