Foto: Ruy Sposati/Cimi

Com pesquisa sobre insegurança alimentar, entidades pedem a Cidh urgência no caso dos Guarani e Kaiowá

Foto: Ruy Sposati/Cimi
Foto: Ruy Sposati/Cimi

A Aty Guasu, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a FIAN Brasil, a FIAN Internacional e a Justiça Global apresentaram novas informações à denúncia oferecida contra o Estado brasileiro no caso envolvendo violações de direitos humanos de cinco comunidades dos povos indígenas Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul: Apyka’i, Guaiviry, Kurusu Ambá, Ñande Ru Marangatu e Ypo’i.

Foram incluídos achados da pesquisa recém-lançada sobre insegurança alimentar e nutricional nesses territórios; o contexto do marco temporal, que ameaça as demarcações; e um relato sobre a morte da xamã Damiana Cavanha, liderança histórica do tekoha Apyka’i.

O memorial entregue no dia 27 de fevereiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh), em Washington (EUA), expõe as violações em especial quanto à soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN) dos dois povos. As peticionárias caracterizam a situação como um quadro de violência estrutural e sistêmica e recorrem ao artigo 29 da instância, que trata de casos de urgência ou gravidade. A Cidh é um órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA).

“Trazemos mais uma vez para o mundo a questão do nosso povo”, diz o líder da comunidade de Kurusu Ambá, Elizeu Lopes, conselheiro da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá. “Estamos cercados. Expulsos dos nossos territórios, baleados à queima-roupa, envenenados por agrotóxicos, atacados com leis no Congresso Nacional. É muito triste trazer essa realidade para fora do país, mas precisamos trazer, porque é o dia a dia que vivemos com nossas crianças, com nossos avós, com nossos anciãos.”

Precariedade e vulnerabilidade

A pesquisa lançada em fevereiro pela FIAN com o Cimi atualiza a situação de três comunidades estudadas em 2013 (Guaiviry, no município de Aral Moreira; Kurusu Ambá, em Coronel Sapucaia; e Ypo’i, em Paranhos) e inclui outras duas (Apyka’i, em Dourados, e Ñande Ru Marangatu, em Antônio João). Os números mostram uma melhora em relação a dez anos atrás, mas também a persistência de um quadro de precariedade e vulnerabilidade.

Enquanto no levantamento de 2013 não houve nenhum domicílio em situação de segurança alimentar e nutricional (SAN), no de agora, naquelas três áreas, esse percentual foi de 15,0% – um dado que reforça a importância das retomadas de terras tradicionais para a alimentação e a promoção da saúde das famílias. Quase 95% dos entrevistados e entrevistadas associaram essa mudança à permanência no tekoha – “lugar onde se é”, ou em que se pode viver plenamente.

Cabe ressaltar que o índice de segurança alimentar e nutricional (SAN) é muito pior que aquele verificado no conjunto da população brasileira em 2022, sob o impacto de dois anos de pandemia.

“Além disso, como alertamos nesta nova ida à comissão, esse elemento de estabilização e melhoria – a demarcação das terras – está totalmente inviabilizado no momento, com a aprovação da lei inconstitucional do marco temporal”, ressalta o membro do Cimi Flávio Vicente Machado. O dispositivo só permite aos indígenas reivindicar áreas que estivessem ocupando quando foi promulgada a atual Constituição Federal, em 1988. Os deputados e senadores votaram a favor da tese mesmo depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) considerá-la inconstitucional, e derrubaram o veto do presidente Lula a ela, inscrevendo-a na Lei 14.701, de 2023, já contestada na Justiça.

Como demonstração do grave cenário, as entidades destacam no memorial o caso da matriarca Damiana Cavanha, de Apyka’i. Ela passou por toda sorte de violações de direitos e violências na vida – como perder vários membros da família em atropelamentos – e morreu aos 84 anos em novembro, em condições a esclarecer, sem ver reconhecido seu tekoha, que no momento está sem moradores e em risco de desaparecer.

“Outro elemento que agregamos é o dos direitos econômicos, sociais e culturais, os Desc”, relata o assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil Adelar Cupsinski, citando como exemplo a total ligação do bem-viver e da espiritualidade das duas etnias com a terra e a produção de alimentos. “Como signatário do pacto internacional que protege essas dimensões da cidadania, o Pidesc, nosso país tem o dever de honrá-lo. Mais um motivo para a admissão e a priorização do caso. Sem a terra demarcada, os Desc não são viabilizados.”

Para o coordenador do programa de Justiça Internacional da Justiça Global, Eduardo Baker, o caso permite ao sistema interamericano aprofundar sua discussão sobre esses direitos no contexto específico dos indígenas no Brasil. “É algo ainda pouco explorado por seus órgãos”, observa. “Vale lembrar que a própria Cidh elegeu os direitos econômicos, sociais e culturais como um de seus três temas prioritários e os povos indígenas como uma população prioritária para os próximos anos. É uma oportunidade para conciliar a agenda do órgão com uma demanda de reversão de um quadro estrutural de violações.”

“A situação das cinco comunidades é emblemática e consegue representar as principais violências que assolam há décadas os Kaiowá e Guarani, então esperamos que a análise e as providências beneficiem as outras 55 retomadas e o povo como um todo”, acrescenta Flávio Vicente Machado, do Cimi.

A Cidh tem uma “fila” de pedidos e, quando decide pela admissibilidade de um deles, abre um processo que pode resultar em recomendações a um Estado nacional. Descumpri-las pode levar a um julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), como aquele em que o governo brasileiro foi condenado a demarcar o território indígena e indenizar o povo Xukuru.

Histórico

A petição inicial submetida à comissão da OEA já completou sete anos. Em dezembro de 2019 o Estado brasileiro apresentou sua resposta e em julho de 2020 as peticionárias fizeram observações a essa manifestação.

“Na prática, não mudou nada, a não ser quando retomamos nossos territórios por conta própria, conseguindo um pedaço de mato, um rio, um mínimo para sobreviver”, pontua Elizeu Lopes, lembrando das visitas de duas relatoras da ONU, comissões do Parlamento Europeu e outras missões internacionais. “Esperamos agora, pelo menos, ter um retorno sobre a denúncia e que ela pressione o governo do estado e o governo brasileiro. Que diminua a perseguição e que sejam punidos os assassinos de Xurite Lopes, Dorvalino Rocha, Nísio Gomes, Ronildo Ramires. Não queremos que esse massacre continue.”

Crianças Wichí em Las Lomitas, Salta

Corte interamericana responsabiliza Argentina por descumprimento de direitos de indígenas

“A Argentina é responsável internacionalmente pela violação dos direitos à propriedade comunitária indígena, à identidade cultural, ao meio ambiente saudável, ao alimento e à água”, decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em caso que trata da situação de cinco povos originários na província de Salta, na fronteira com o Paraguai e a Bolívia. A decisão ordenou diversas medidas de reparação e restituição.

Segundo a Corte, é a primeira vez em que se analisam esses direitos num caso contencioso a partir do artigo 26 da Convenção Americana. Leia o comunicado de imprensa da Corte IDH:

San José, Costa Rica, 2 de abril de 2020 – Na decisão do caso “Comunidades indígenas membros da Associação Lhaka Honhat (nossa terra) versus Argentina” notificada hoje, a Corte Interamericana de Direitos Humanos  [Corte IDH] considerou o Estado da Argentina internacionalmente responsável pela violação dos direitos a propriedade comunitária, identidade cultural, ambiente saudável, comida e água adequadas para as comunidades indígenas.

Pela primeira vez em um caso contencioso, a Corte analisou os direitos a um meio ambiente saudável, alimentação adequada, água e identidade cultural de forma autônoma a partir do artigo 26 da Convenção Americana, ordenando medidas específicas de reparação da restituição desses direitos, inclusive ações de acesso a água e alimentos, recuperação de recursos florestais e recuperação da cultura indígena. O caso está relacionado ao pedido de reconhecimento da propriedade de suas terras pelas comunidades indígenas pertencentes aos povos Wichí (Mataco), Iyjwaja (Chorote), Komlek (Toba), Niwackle (Chulupí) e Tapy’y (Tapiete) na província de Salta (na fronteira com o Paraguai e a Bolívia).

Essas terras também foram ocupadas por outros moradores e uma ponte internacional foi construída sem consulta prévia do Estado. A presença indígena tem sido consistentemente encontrada na área, pelo menos desde 1629. Em seu julgamento, a Corte determinou que o Estado violava o direito à propriedade da comunidade, não fornecendo segurança jurídica e permitindo que fosse mantida a presença de colonos “crioulos”, não indígenas, no território. Isso apesar de a reivindicação de propriedade indígena ter mais de 28 anos. Concluiu também que a Argentina não possui regulamentos adequados para garantir suficientemente o direito de propriedade da comunidade.

O tribunal observou que não foram seguidos mecanismos adequados para consultar as comunidades indígenas em uma ponte internacional construída em seu território. Resolveu também que as autoridades judiciais não seguiram um período de tempo razoável no processamento de um caso judicial no qual foi decidido anular regras relativas a concessões fracionárias de terras.

A Corte também determinou que o Estado violava os direitos à identidade cultural, a um ambiente saudável, a alimentos e água adequados, devido à falta de eficácia das medidas estatais para interromper as atividades que lhes eram prejudiciais. Em seu julgamento, o tribunal entendeu que a exploração ilegal de madeira, bem como outras atividades realizadas no território pela população crioula, especificamente pecuária e cercamentos com arame, afetaram os ativos ambientais, impactando as comunidades indígenas em sua maneira tradicional de se alimentar e seu acesso à água. Isso alterou o modo de vida indígena, prejudicando sua identidade cultural. A Corte ordenou que o Estado adotasse várias medidas de reparação. Acesse, em espanhol, o comunicado de imprensa, com links para o resumo oficial e o texto completo da sentença.

Contra a extinção do Consea Banquetaço dá recado: alimentação adequada e saudável e participação social são direitos

Mais do que servir alimento saudável para milhares de pessoas em 40 cidades do país, o Banquetaço, realizado de forma concomitante em 11 estados nesta quarta-feira (27 de fevereiro), foi um instrumento para sensibilizar e educar a população brasileira  sobre a importância da alimentação adequada e saudável e de que esse direito está ameaçado com a extinção do Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

O Banquetaço é um movimento político suprapartidário, que mobiliza a sociedade civil em defesa da boa alimentação. Em um cenário em que aumenta a fome no país, o movimento chamou a atenção da população e dos políticos para a importância da permanência do CONSEA e das demais instâncias do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e dos programas da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que vêm sendo rapidamente desmontadas.

Em Brasília, o Banquetaço serviu mais de 1000 refeições, que envolveu a ação voluntária de 30 cozinheiras e cozinheiros e mais de 50 pessoas na organização geral do ato. Foram preparados cerca de 1 tonelada de alimentos, fruto de doação, e produzidos de forma agroecológica e sem o uso de agrotóxicos.

Crédito: Mídia Ninja

O ato reuniu representantes de movimentos sociais, produtores agroecológicos, parlamentares e contou com distribuição de mudas de hortaliças e sementes do Cerrado, e apresentações culturais como a cantora regional Martinha do Coco. “Todo esse movimento é uma forma de conscientizar as pessoas para que saibam que alimentação adequada e saudável é possível, é um direito e que a gente pode ter alimento saudável e barato para todo mundo. O Banquetaço também tem o objetivo de mobilizar e levar para dentro do Congresso Nacional esse clamor da sociedade brasileira para que os deputados e deputadas, no momento de analisar a Medida Provisória 870, não aprovem o artigo 85, que é o artigo que extinguiu o Conselho”, aponta a presidenta da última gestão do Consea, Elizabetta Recine.

Para Antônia Ivoneide, da Direção Nacional do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a segurança e soberania alimentar é o fator principal da vida do povo brasileiro. “Todo mundo precisa comer, comer bem e saber o que tá comendo. O Consea é importante do ponto de vista da discussão e da participação da sociedade em todo o processo das políticas públicas voltadas para alimentação. Nós sabemos que hoje, cada vez mais a comida está sendo controlada por poucas empresas que monopolizam a questão da agricultura e portanto controlam o processo da alimentação. Para nós do MST toda terra conquistada da reforma agrária tem que ter como função social a produção de alimento e produzir alimento saudável para as famílias assentadas e para as famílias do Brasil, por isso nós achamos fundamental as mobilizações que estão acontecendo em todo país pela manutenção do Consea”.

A Medida Provisória 870 foi umas das primeiras ações do governo de Jair Bolsonaro. Estamos lutando para derrotar a proposta do governo que acabou com o Consea e para retomarmos o caminho das políticas que combatam a fome e que garantam a soberania alimentar do nosso povo”, destacou o deputado federal Patrus Ananias (PT-MG)

Para a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, acabar com o Consea é uma forma de retirar direitos, especialmente dos mais pobres. “Essa é uma lógica de acabar com os direitos dos trabalhadores, uma lógica de favorecer quem tem muito privilégio e continuar matando de fome a população brasileira. É muito importante estarmos aqui hoje, fortalecendo esse movimento e exigindo dos nossos parlamentares, dos homens e mulheres que estão no Congresso, que não aprovem a Medida Provisória do Bolsonaro que extinguiu o Consea”.

Desde o anúncio da extinção do Consea, diversas mobilizações nacionais e internacionais têm sido realizadas com o objetivo de reverter essa situação.

Petição internacional

No dia 13 de fevereiro foram protocoladas cópias do abaixo-assinado contra a extinção do Consea à presidência da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e ao Ministro de Estado da Cidadania para serem anexados ao processos de análise da Medida Provisória Nº 870/2019. Promovido pela Fian Internacional e Fian Brasil e em articulação com diversas entidades nacionais e internacionais, o abaixo-assinado reuniu até agora mais de 34 mil assinaturas. 

As organizações também enviaram petições à Relatora de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização dos Estados Americanos (OEA) e aos mecanismos de proteção de direitos humanos das Nações Unidas (ONU) informando sobre a extinção do Consea e requerendo medidas para reverter o seu fechamento.

ONU

Relatores Especiais da ONU, dentre eles a Relatora para o Direito à Alimentação, enviaram ao governo brasileiro, no dia 22 de fevereiro, uma carta em que pedem informações sobre a extinção do Consea e afirmam que esta decisão pode ter um impacto negativo severo na realização do direito à alimentação e água no país. Até o momento não se sabe se o governo respondeu a este pedido de informações.

Ascom FIAN Brasil/ Foto destaque: Acervo ISPN/Méle Dornelas

Contra a extinção do Consea, FIAN Internacional e FIAN Brasil acionam sistemas internacionais de direitos humanos

 

A FIAN Internacional e a FIAN Brasil enviaram petições à Relatora de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização dos Estados Americanos (OEA) e aos mecanismos de proteção de direitos humanos das Nações Unidas (ONU) informando sobre a extinção do Consea e requerendo medidas para reverter o seu fechamento.

Nos documentos, as organizações destacam a importância do Conselho para a soberania e a segurança alimentar e nutricional no país, além de argumentar que a medida do governo brasileiro configura descumprimento de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

“A extinção do CONSEA significa descumprimento das obrigações relativas ao Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA) previstas no Comentário Geral nº 12 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, especialmente da obrigação de respeitar, isto é, não fazer nada que viole o DHANA e a obrigação de promover, ou seja, adotar ações concretas para que as pessoas possam exercer o seu direito à alimentação”, destaca trecho do documento.

Criado em 2006, o Consea foi extinto com a Medida Provisória 870, publicada no Diário Oficial da União no dia 1º de janeiro de 2019. O Conselho era um espaço institucional para o controle social e participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, com vistas a promover a realização do Direito Humano à Alimentação Adequadas.

Petição online

A FIAN Internacional – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas iniciou no dia 14 de janeiro uma petição online para coleta de assinaturas contra a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

A petição já conta com mais de 30 mil assinaturas. Assine aqui!

CIDH conclui visita ao Brasil

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) fez uma visita in loco ao Brasil, que ocorreu de 5 a 12 novembro de 2018, em função de convite formulado pelo Estado brasileiro realizado em 29 de novembro de 2017. No início de 2018, a Comissão e o Estado brasileiro acordaram a data da presente visita, cujo objetivo foi o de observar a situação dos direitos humanos no país. A outra visita in loco que a CIDH fez ao Brasil foi em 1995.

A delegação que realizou a visita in loco ao Brasil foi chefiada pela Presidenta, Comissária Margarette May Macaulay, e integrada pela Primeira Vice-Presidenta, Comissária Esmeralda Arosemena de Troitiño; Comissário Francisco Eguiguren Praeli; Comissário Joel Hernández García; e pela Comissária Antonia Urrejola Noguera, Relatora para o Brasil. Adicionalmente, integraram a delegação: a Secretária Executiva Adjunta, María Claudia Pulido; a Chefe de Gabinete da Secretaria Executiva, Marisol Blanchard Vera; o Relator Especial para a Liberdade de Expressão, Edison Lanza; a Relatora Especial para os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DESCA), Soledad García Muñoz; e especialistas da Secretaria Executiva da CIDH.

A Comissão Interamericana manteve reuniões com autoridades nacionais, tais como o Ministério dos Direitos Humanos, o Supremo Tribunal Federal, o Ministério das Relações Exteriores, o Conselho Nacional de Direitos Humanos, a Procuradoria-Geral da República e membros de Ministérios Públicos estaduais, a Defensoria Pública da União e Defensorias Estaduais e outras autoridades de diferentes poderes municipais e estaduais; bem como com representantes e organizações da sociedade civil, movimentos sociais, defensores e defensoras dos direitos humanos, afrodescendentes, quilombolas, povos indígenas, trabalhadores rurais, pessoas em situação de pobreza e sem-teto, líderes de movimentos de defesa dos direitos de diversos grupos em situação de discriminação histórica, familiares de policiais assassinados, líderes do movimento LGBTI, moradores de favelas, entre outros. Além disso, a CIDH reuniu-se com organizações internacionais do Sistema das Nações Unidas e representantes do corpo diplomático.

A Comissão também coletou centenas de depoimentos de vítimas de violações de direitos humanos e seus famíliares, e analisou milhares de documentos, leis, projetos de lei e outras informações. A Comissão fez visitas de observação a várias localidades nos estados da Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Roraima, bem como à capital, Brasília. Além disso, visitou instituições do Estado, incluindo centros de detenção; centro de acolhimento e cuidados para migrantes e refugiados na fronteira com a Venezuela; a zona de uso de drogas conhecida como “Cracolândia”, em São Paulo, e um centro sócio-educativo de crianças e adolescentes, entre outros. Também visitou quilombos e territórios de comunidades indígenas. Durante a visita, a CIDH assinou acordos de cooperação com o Ministério Público Federal e com o Conselho Nacional do Ministério Público. A Comissão salienta o importante papel que pode desempenhar órgãos autônomos do sistema da justiça na defesa dos direitos humanos, tais como Ministérios Públicos Estaduais e o Ministério Público Federal, as Defensorias Públicas Estaduais e a Defensoria Pública Federal.

A Comissão agradece ao Governo e às autoridades federais e estaduais, bem como ao povo brasileiro, por todo o apoio e facilidades proporcionados durante a visita. Agradece, ainda, as informações fornecidas pelo Estado, que se traduzem em um diálogo construtivo e franco, bem como as informações recebidas de organizações da sociedade civil, defensores e defensoras de direitos humanos e organizações internacionais. A Comissão valoriza e aprecia os esforços envidados pelas vítimas de violações de direitos humanos e seus familiares para apresentar testemunhos, denúncias e comunicações.

1. Vinte e três anos atrás, em 1995, quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos visitou o Brasil pela primeira vez, o país contava poucos anos da promulgação de sua Constituição Federal e de sua redemocratização. Esta foi a primeira e única vez que a CIDH esteve no Brasil até este momento. E nestes 23 anos, o Brasil, que é um país diverso e com realidades culturais, sociais, e econômicas muito contrastantes, se tornou ainda mais complexo.

2. A CIDH, apesar desse longo período desde a primeira missão ao país, vem acompanhando permanentemente a situação brasileira por meio da análise de documentos, visitas de Relatores, casos, petições e medidas cautelares, da realização de audiências e dos inúmeros canais de comunicação, escuta, denúncia e construção de diálogos de vítimas, familiares, organizacoes da sociedade civil, movimentos sociais e representantes do Estado com o sistema interamericano de Direitos Humanos.

3. Retornar ao Brasil em um momento crucial é parte de uma trajetória que não começa nem termina agora. Estamos acompanhando e continuaremos seguindo de perto o futuro das instituições brasileiras e de sua sociedade em direção a uma perspectiva completa de desenvolvimento do país, onde os direitos humanos são peça fundamental.

4. Esta semana em que os membros da Comissão estiveram circulando por diferentes regiões brasileiras nos deu um retrato do momento atual do país. Observadores brasileiros participaram desse exercício. Um retrato que será detalhado ao longo dos próximos meses de trabalho; e que conta com a colaboração de governos locais, de órgãos federais, de organizações da sociedade civil e de pessoas, protagonistas isoladas de causas ou testemunhas de sofrimentos e de lutas pela superação de injustiças e desigualdades.

5. E como o país se mostra neste momento de sua história? Apesar de alguns avanços, encontramos um país incapaz de abordar e de resolver suas principais dívidas históricas com a cidadania: o problema estrutural da desigualdade e discriminações profundas, das quais se destacam a discriminação racial e a social.

6. Desigualdade e discriminação são fatores decisivos e causas de um quadro geral crítico para os direitos humanos no país.

7. O desenho legal-institucional do Estado Brasileiro necessita ser reformado e fortalecido, com determinação, para superar estes graves problemas estruturais.

8. Em matéria de capacidade estatal, por exemplo, a CIDH expressa profunda preocupação que as recentes medidas de austeridade fiscal implementadas no Brasil possam significar o fim de políticas sociais e a redução das expectativas de melhores condições de vida da grande maioria da população.

9. A exclusão social, a falta de acesso à justiça, a fragilidade de serviços públicos são todos limitantes das condições de desenvolvimento do país e da situação crítica de acesso aos direitos humanos para a maior parte da população. Para millhões de pessoas, isso significa a impossibilidade de realizar direitos fundamentais, econômicos, sociais, culturais e ambientais, a redução de perspectivas de vida, que implicam muitas vezes, na trágica perda da própria vida.

10. A CIDH reitera, como já apontado recentemente a esse propósito, o princípio de progressividade e de não regressividade em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, segundo o estabelecido no artigo 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

11. Este princípio não é apenas uma chamada de atenção a um preceito convencional de valor legal para o Brasil. É acima de tudo necessário que a consciência da sociedade brasileira e internacional de que as mais graves violações aos direitos humanos observadas no país, tais como a ampliação da violência no campo e na cidade, o aumento de assassinatos de defensores dos Direitos Humanos, especialmente os defensores da terrra e do meio-ambiente, as agressões crescentes aos defensores de direitos humanos das minorias, bem como o risco do retorno do país ao mapa da fome mundial, afetam tragicamente a todos. Essas violações afetam de maneira particularmente grave, violenta e diferenciada os grupos economicamente marginalizados e mais vulneráveis, como as comunidades das favelas ou trabalhadores do campo, e aos grupos historicamente discriminados como as comunidades indígenas, afrodescendentes, comunidade LGBTI e pessoas encarceradas. Em um país desigual, isso significa uma maioria numérica, porém excluída das perspectivas que seriam possíveis a uma das dez maiores economias do mundo.

12. A CIDH chama a atenção para o grave contexto de violações aos direitos humanos das mulheres negras e da juventude pobre da periferia. São os pobres e os afrodescendentes aqueles que seguem sendo desproporcionalmente as principais vítimas de violações aos direitos humanos no Brasil. Estes são mortos às dezenas e milhares, sem investigação, julgamento, punição ou reparação adequados.

13. Neste contexto, a CIDH recorda também a obrigação estatal de assegurar às vítimas de racismo, de discriminação racial e formas conexas de intolerância um tratamento equitativo e não discriminatório, a igualdade de acesso ao sistema de justiça, processos ágeis e eficazes e uma reparação integral no âmbito civil ou penal.

14. Desde a última visita a CIDH ao Brasil observamos um importante, contínuo e crescente processo de fortalecimento institucional em matéria de direitos humanos para atender a esta situação de maneira estruturada e progressiva. Durante os anos que se passaram, elogiamos cada passo institucional, como a criação de uma Secretaria de Direitos Humanos em 1997, o fortalecimento do papel do Ministério Público para a defesa da cidadania, a ampliação e autonomia das defensorias públicas, o surgimento das procuradorias e varas judiciais especializadas em diferentes temáticas de direitos humanos e delegacias especializadas em defesa de minorias. Nos diferentes estados e no nível federal, destacamos a instalação de comitês nacionais e estaduais de defesa de distintas áreas dos direitos humanos, a implantação de políticas sociais paradigmáticas e, principalmente, a ampliação de espaços de participação da sociedade civil na gestão pública, possibilitando o controle social da administração. É necessário destacar, adicionalmente, medidas transversais que tematizaram dívidas históricas, como as políticas de ação afirmativa consubstanciadas em cotas raciais que impactaram diretamente no perfil social, econômico e étnico-racial das universidades brasileiras e um horizonte novo de mobilidade social.

15. Graças aos avanços em matéria de direitos humanos, o Brasil sempre se constituiu como um país de referência e exemplar sobre como as políticas de direitos humanos se aperfeiçoaram através de distintos governos, mantendo-se em linha institucional como compromisso de Estado, consistente com a sua Constituição Política. Essa continuidade e maturidade crescente é chave para o desenvolvimento nacional.

16. Neste ponto, a CIDH tristemente identificou uma redução da intensidade dessa dinâmica, com o congelamento do processo progressivo de fortalecimento institucional na área de direitos humanos. Em muitos casos, lamentavelmente se observam retrocessos significativos na implementação de programas, políticas públicas e na garantia de orçamentos em áreas essenciais.

17. A CIDH observa em todas as oportunidades que a existência de espaços da sociedade civil na formulação, gestão e fiscalização dos programas e políticas públicas em matéria de direitos humanos e em outras áreas sensíveis é um elemento fundamental. Temos observado sua redução e enfraquecimento na trajetória institucional recente, com a suspensão de processos de consultas públicas e conferências nacionais participativas. A Comissão espera que se trate de uma situação conjuntural e que isso seja ajustado prontamente. A CIDH recorda que a participação social é uma importante ferramenta para a garantia de direitos e para o fortalecimento da democracia e das políticas públicas, bem como para a realização do controle social das ações governamentais. A Comissão recorda, ainda, que a participação nas decisões governamentais é um direito das cidadãs e dos cidadãos, e que deve ser garantido pelo Estado.

18. A CIDH quer chamar a atenção para algumas situações urgentes que exigem das autoridades nacionais e da sociedade em seu conjunto a devida visibilidade, atenção e solução urgente:

a. as violações de direitos reiteradas contra as populações indígenas, que sofrem frequentes episódios de violências e desatendimento por serviços públicos, além de enfrentarem dificuldades e obstáculos crescentes para a demarcação de suas terras e dificuldades apresentadas pela tese do marco temporal.

A Comissão denuncia, particularmente, a situação da Comunidade Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul que sobrevive em um ambiente marcado por violência por parte de milícias armadas, violações do direito ao território tradicional e as denúncias recebidas de separação das mães e crianças indígenas. A comunidade indígena Muratu em Paquiçamba/Pará, que está sofrendo o impacto ambiental da construção da Usina de Belo Monte. Também a comunidade indígena da Aldeia de Açaizal em Santarém/Pará que está submetida a práticas de coerção, ameaças e tentatvas de intimidações por exercer o direito de defender seus direitos. A esse respeito, a CIDH deseja registrar publicamente que não só recebeu denúncias sobre essas práticas, como também foi alvo direto de intimidação na localidade. Situação semelhante foi observada também em Roraima, com um quadro complexo envolvendo indígenas de povos como os Warao, originários da Venezuela, em um contexto que combina características de migrações forçadas com a a circunstância agravante de viver nas ruas.

b. as violências sofridas pela população quilombola, os ataques ao seu direito à terra, o preconceito étnico-racial e o acesso precarizado à cidadania.

A Comissão denuncia que 3 comunidades do Quilombo de Alcântara, no Maranhão, foram afetadas pela desapropriação de suas terras devido ao não reconhecimento de seu território tradicional. Na Bahia, os povos do Quilombo Rio dos Macacos enfrentam restrições ao acesso à água e vivem em condições de vida extremamente precárias e insalubres e são vítimas de assassinatos e violência sexual. Por sua vez, na comunidade de Quilombo de Pitanga dos Palmares fomos informados de atos de violência e discriminação como, por exemplo, o assassinato do seu líder comunitário, que permanece impune.

c. a violência no campo que afeta trabalhadores rurais que lutam pelo direito à terra, e as condições de trabalho a que muitos desses trabalhadores são submetidos, por vezes extenuantes, trabalhando em situações análogas à escravidão. Além disso, é alarmante a insegurança que atinge a muitos em razão do uso indiscriminado e sem a devida proteção de substâncias químicas como agrotóxicos e outros defensivos que afetam sua saúde e colocam em risco suas vidas.

Em Marabá, no Pará, a CIDH encontrou um assentamento de trabalhadores rurais afetados pela violência policial em processos de despejo de terras. Nesta semana, em Minas Gerais, existe um risco iminente de despejo de 450 famílias que viveram há 20 anos no acampamento de Quilombo Campo Grande, sem um planejamento abrangente que garanta a proteção integral de suas vidas.

d. A exclusão social da população em situação de rua e sem-teto, que sofre os impactos da estigmatização de suas lutas nos centros urbanos ao mesmo tempo em que lidam com políticas públicas insuficientes para atender suas demandas.

A CIDH visitou a ocupação de Vila Nova Palestina, em São Paulo, que continua lutando pela regularização do assentamento. A luta do movimento é afetada pela desprestígio e estigmatização de suas reivindicações e riscos de regressão. Relatam, ainda, que quando há remoção de pessoas sem-teto, não são apresentadas estratégias ou alternativas para garantir o direito à moradia dessa população. Em Coroadinho/Maranhão, a CIDH visitou um dos bairros mais pobres do país, sujeito à marginalização social e ao abandono do Estado para atender às suas necessidades básicas. A CIDH quer aproveitar e reconhecer o papel das mulheres desta comunidade que agem para impedir o agravamento da situação social. Em São Paulo, a Comissão recebeu denúncias de comunidades de populações de rua que estão profundamente vulneráveis, sofrem abusos policiais, maus-tratos e, principalmente, a ausência de uma perspectiva de um projeto de vida digna, com acesso mínimo aos serviços públicos básicos. O ambiente de desumanização enfrentado pelos moradores da Cracolândia em São Paulo deve servir de alerta prioritário e requer uma resposta diferenciada por parte das autoridades estaduais.

Durante a visita, a CIDH teve a oportunidade de reunir-se com a sociedade civil, movimentos e população em situação de rua no Espaço Sociocultural Centro de Inclusão Social pela Arte, Cultura, Trabalho e Educação. A CIDH enfatiza a importância deste centro como espaço para o desenvolvimento cultural, social e profissional das pessoas em situação de rua e incentiva as autoridades a avançar na gestão da cessão do espaço para o movimento.

e. A população carcerária, a quem o cerceamento da liberdade se soma à privação de direitos, como o acesso à saúde, a condições dignas de higiene, a receber visitas íntimas em situações adequadas.

No Maranhão, o Complexo Penitenciario de Pedrinhas, monitorado por medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ocorreu um número alarmante de mortes por violência. A partir dessa trágica experiência, as autoridades estaduais tomaram medidas decisivas. Saudamos que, dias após a visita da CIDH e seguindo sua recomendação, as autoridades penitenciárias tenham iniciado a demolição de uma galeria de isolamento que se encontrava em situação precária. No Rio de Janeiro, dentro do Complexo Penitenciário de Bangu – a situação do Instituto Plácido Carvalho, Nelson Hungria e Jorge Santanna merecem atenção. O presidio Jorge Santana está em condições extremas de operação. A Comissão Interamericana denuncia este lugar como uma das piores prisões de toda a América. Em Roraima, a Comissão encontrou dentro do Centro Penitenciário Agrícola Monte Cristo, detidos sem o direito mínimo à alimentação e sujeitos a doenças graves, há literalmente quatro dias. O Centro Socioeducativo Dom Bosco, no Rio de Janeiro, vive um desvio integral de sua finalidade institucional, face à ausência de atividades socioeducativas e características claras de um verdadeiro presídio.

f. A violência institucional e a impunidade continua sendo uma fragilidade brasileira.

Mães que perderam filhos devido à violência social denunciaram de maneira dramática a situação de um padrão de assassinatos dirigidos a jovens negros da periferia. De acordo com os testemunhos de vítimas recebidas pela Comissão, há um padrão de ação das forças de segurança que gerou situações de execuções extrajudiciais sistemáticas, principalmente de jovens negros e pobres no Brasil.

A CIDH quer deixar registrada a situação de insegurança no trabalho que afetam os profissionais de segurança, tais como policiais civis e agentes penitenciários que merecem ser uma prioridade para as autoridades brasileiras. A Comissão também alerta para o dever de proteção e atenção às famílias de profissionais da polícia assassinados no contexto da violência em todo o Brasil. A CIDH reuniu-se, especialmente, com as mães e familiares de policiais mortos no Rio de Janeiro e denuncia violações de seu direito à justiça, reparação integral e investigação adequada e punição dos responsáveis pelas mortes. Os direitos humanos valem para todos.

Também registramos a situação crítica de impunidade que, em São Paulo, afeta os direitos do movimento das Mães de Maio que permanecem sem resposta satisfatória para a investigação do assassinato em massa de centenas de pessoas em um curto período de tempo, que ocorreu em maio de 2006.

O desastre ambiental de Mariana, por causa de sua dimensão e impacto não pode continuar no quadro de insuficiência de investigações que, ademais, impedem a devida atenção e reparação de todas as pessoas afetadas. Ainda não há uma resposta satisfatória sobre a responsabilidade pela tragédia que afetou as vidas de 242 jovens e mais de 600 feridos na Boate Kiss em Santa Maria/Rio Grande do Sul. A matança de Cabula, em Salvador/Bahia, também não pode ficar sem uma resposta oficial.

Não é demais lembrar que o Estado brasileiro ainda está pendente de cumprimento integral das senteças da Corte Interamericana de Direitos Humanos para o caso Gomes Lund e para o caso Herzog, vinculado aos graves crimes do passado ditatorial. A recente anulação da sentença que estabelecia sanções contra os responsáveis pelo Massacre do Carandiru, aguardando apelação, constitui um grave retrocesso no combate à impunidade para as sérias violações aos direitos humanos no Brasil. Além disso, as indenizações ainda não foram pagas a todas as vítimas e familiares.

g. A discriminação e o preconceito recorrentes, difusos e dirigidos com intensidade para a população trans em instituições como a família, a escola, as instituições de saúde, o trabalho e a igreja, dentre outras. Em particular, destacamos os diversos discursos repressivos que atacam as bandeiras das pessoas trans e de toda a comunidade LGBTI ferindo seus direitos e sua cidadania.

h. Os constantes ataques a defensores de Direitos Humanos em seu ambiente de atuação e os riscos de enfraquecimento de estruturas e programas ameaçados em função disso; os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes demonstram claramente esse desafio estrutural, expondo a resistência à inclusão de pessoas historicamente marginalizadas nas estruturas de participação política e social. A CIDH considera que é imperativo concluir as investigações, punir os responsáveis e evitar que permaneçam impunes. Além do exposto e para garantir a reparação integral desses fatos, a CIDH considera necessário que a memória da vítima e de sua família seja respeitada de acordo com os valores defendidos por Marielle Franco.

i. As violações de direitos e discursos de ódio que atingem imigrantes internacionais e refugiados no Brasil. Em regiões de entradas de fluxos migratórios recentes, especialmente em contextos de chegadas concentradas. A CIDH visitou grupos de migrantes e solicitantes de refúgio venezuelanos em Roraima e constatou a incidência de fatores de risco e violações a direitos fundamentais, em especial envolvendo migrantes em situação de rua, em situação que dificulta e impede maior inclusão social e que é constantemente agravada por episódios de xenofobia na região.

j. Os ataques à liberdade de expressão, que atinge a imprensa, professores e organizações sociais.

19. O cenário que esses casos revelam não deve ofuscar um registro fundamental dos passos consistentes já dados pelo Brasil. Queremos registrar um conjunto de boas práticas e avanços do Estado brasileiro em matéria de Direitos Humanos em anos recentes em diversas áreas temáticas:

a. Mencionamos a implantação e consolidação das audiências de custódia, em articulação entre poderes executivo e judiciário, em nível federal e estadual, concretizando uma garantia fundamental já prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos.

b. Igualmente digna de nota é a sanção da Nova Lei de Migração brasileira (Lei 13.445) que permitiu uma modernização do regime migratório e de nacionalidade, instala mecanismos inovadores de redução da apatridia e formaliza em nível legal a boa prática brasileira da acolhida humanitária em contextos de fluxos migratórios.

c. Em relação ao Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, a Comissão foi informada pelo Ministério dos Direitos Humanos que tal programa foi reforçado financeiramente em nível federal com um orçamento até o final de 2019, além da quase triplicação do orçamento das redes estaduais do programa.

d. A substituição em prisão domiciliar para mulheres anteriormente cumprindo prisão provisória gestantes, mães ou que tenham sob sua guarda crianças ou pessoas com deficiência.

e. Destaque-se igualmente, no contexto de acirradas discussões sobre garantias e liberdades civis no Brasil, dentre elas a liberdade de expressão e opinião, recente decisão do STF referendando decisão liminar dada por ministra daquela corte garantindo a liberdade de manifestação e opinião que embasa a liberdade de cátedra nas Universidades brasileiras.

20. Mencionamos esse acervo de boas práticas a fim de que elas iluminem os caminhos e respostas possíveis aos desafios que se avolumam para o Estado e a Sociedade brasileiros.

21. Dentre esses desafios, registramos que além das violações estruturais e das dívidas históricas não resolvidas, deve-se somar uma percepção sobre o contexto imediato no qual a visita se efetivou. Nesse contexto atual dos Direitos Humanos observamos algumas constatações, possíveis tendências e riscos que exigirão uma atenção da comunidade nacional, regional e internacional:

a. Observarmos o alarmante crescimento de um ambiente de discursos que distorcem, desprestigiam e estigmatizam o papel e a função dos direitos humanos para a sociedade. Observamos também a recorrência de discursos de intolerância e ódio que estão afetando as liberdades de expressão, manifestação, reunião e associação das comunidades LGBTI, das mulheres, dos afrodescendentes, das religiões de matriz afro-descendentes, dos povos indígenas, dos trabalhadores rurais, de movimentos sociais de trabalhadores e de sem teto, do jornalismo independente, de parte da comunidade universitária e acadêmica, entre outros. A Comissão considera preocupante o fato de que uma perspectiva de gênero seja pejorativamente referida como “ideologia de gênero”. As autoridades estatais devem dar o exemplo e têm o dever de promover campanhas promocionais sobre os Direitos Humanos para desconstruir as mensagens demagógicas de que os direitos humanos existem para atender a violadores de direitos humanos ou de que sejam parte de agendas ideológicas ou partidárias. É importante sempre recordar que em sua genealogia histórica os direitos humanos nascem para defender as liberdades públicas, individuais e coletivas, e são resultado de lutas sociais históricas. Em seu sentido existencial, os direitos humanos pertencem e dirigem-se a todos indistintamente. Sua negação ou sua redução ao interesse de uma parcela da população em oposição à totalidade das pessoas visa apenas legitimar violações.

b. Particularmente, o discurso de tolerância zero ou mãos duras na importante luta contra a criminalidade e o crime organizado podem fortalecer concepções incompatíveis com standards internacionais de que os fins podem justificar os meios em matéria de segurança pública. Os padrões adequados de segurança cidadã exigem denunciar, processar e sancionar quaisquer abusos do poder de polícia. A experiência demonstra que a exacerbação destes discursos fortalece o risco do aumento de execuções extrajudiciais. Durante a semana da visita ao Brasil, identificamos um episódio que deve ser investigado de maneira rigorosa pelas autoridades brasileiras que resultou na morte de 11 membros de um grupo criminoso que teria participado em um assalto à uma agência bancária em Santana do Ipanema pela Polícia Civil de Alagoas. Não houve nenhum agente policial ferido. A CIDH alerta para a possibilidade de execuções extrajudiciais e espera que sejam esclarecidas as circunstâncias de maneira célere e diligente. A CIDH recomendou ao Estado brasileiro ampliar os mecanismos de controle da atividade policial para assegurar que atuem no marco do respeito ao uso proporcional da força.

c. Também alertamos para a possibilidade e risco de se criminalizar os movimentos sociais por meio da ampliação das figuras penais referentes na Lei antiterrorismo. Sobre este tema, a CIDH tem afirmado para distintos países da região que que as leis antiterrorismo não devem ser usadas para criminalizar o direito de manifestação e associação.

d. Tem sido crescente nos últimos anos o número de assassinatos de defensores e defensoras de DH. As estatísticas comprovam que aumentam a cada ano o número absolutos de defensores executados devido ao exercício de seu papel de ativistas. Interromper essas mortes deve ser prioritário para o governo brasileiro. Nesse intuito, a CIDH recomendou o fortalecimento do Mecanismo Nacional de Proteção aos Direitos Humanos, das unidades da PFDC e da Defensoria pública.

22. Por tais motivos, as razões estruturais históricas e o contexto atual que vive o Brasil estão refletidos nos fatos registrados durante toda a visita a CIDH, que escutou uma voz uníssona de parte de lideranças sociais, intelectuais, acadêmicas e também de alguns atores estatais vinculados sobre uma fundamentada e exemplificada preocupação com o futuro da agenda de direitos humanos no Brasil.

23. Toda a comunidade internacional tem acompanhado nos últimos anos de maneira muito atenta a luta empreendida pela sociedade brasileira contra a impunidade em matéria de corrupção, ressaltando que a busca por uma sociedade ética também integra a plena realização dos Direitos Humanos. Vinculado a esse tema, A CIDH se manifestou sobre a relação entre corrupção e direitos humanos em fevereiro deste ano por meio de sua Resolução 01/18, justamente por entendermos que cada ato de corrupção corresponde a uma violação aos direitos humanos. A CIDH espera que a mesma mobilização institucional e indignação social que permitiu ao Brasil se mover adiante na importante luta contra a impunidade nos atos de corrupção possa mover e influenciar positivamente a capacidade institucional de superar a impunidade em matéria das graves violações aos direitos humanos no país.

24. Gostaríamos de destacar, falando diretamente a todas as defensoras e a todos os defensores de direitos humanos atuantes no Brasil, aos movimentos sociais, aos veículos de imprensa, jornalistas, professores, trabalhadores rurais, a cada pessoa que luta pelo avanço da cidadania, das garantias, liberdades e direitos neste país: A luta pelos Direitos Humanos tem se tornado debate central definidor da qualidade de vida e do bem estar de povos ao redor do mundo. O acirramento dessa luta em tempos recentes tem atingido pessoas em toda parte, provocado vítimas e gerado um número maior e modalidades novas de ameaças. Nos mais diversos lugares, tentado silenciar redações de jornais, impedir práticas culturais e artísticas, destruir templos e lugares de culto, corromper e subornar, obstaculizar o devido processo legal, afastar cidadãos e cidadãs dos benefícios do Estado Democrático de Direito e atacar a fibra do tecido social, pelo medo, pelo terror e pela violência.

25. Só a democracia, o caminhar progressivo dos direitos, o respeito à diversidade e os esforços de inclusão social podem dar resposta a esses desafios. Nossa visita é, portanto, ponto de partida, relançamento de processo contínuo da relação institucional com a sociedade e as instituições brasileiras. Já estamos acompanhando, de perto, cada passo tomado nessa encruzilhada dos Direitos Humanos no Brasil, pela sua importância regional, seu histórico de avanços e pelos riscos que, em todo o mundo, incidem sobre as instituições democráticas. O relatório e demais documentos que apresentamos nessa ocasião são um passo, convidando essas instituições e pessoas para um longo engajamento e um diálogo construtivo ao longo dos próximos anos.

26. Já nos dirigindo para a conclusão, expressamos profunda preocupação com a situação dos direitos humanos no Brasil e seu futuro. Anunciamos que a Comissão Interamericana acompanhará de maneira prioritária a evolução do presente quadro dos Direitos Humanos no Brasil no próximo período. Relembramos que no âmbito de nosso mandato, cabe à CIDH observar e defender os Direitos Humanos segundo a Declaração e a Convenção Americana de DH. Ao Brasil, que soberanamente ratificou e aderiu a esse sistema legal internacional, cabe a obrigação internacional de implementar as decisões e recomendações do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem como mandato promover a observância e defesa dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA na temática. A CIDH é composta por sete membros independentes, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, sem representarem seus países de origem ou de residência.

 

Por CIDH