Carta ao governo e ao Congresso propõe melhorias no acesso ao Pnae para indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais

Texto: Assessorias de Comunicação das entidades organizadores do encontro

Foi lançada nesta segunda-feira (8) a carta-proposta “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?”. A carta contém 23 proposições para tornar realidade melhorias discutidas durante encontro homônimo realizado em Brasília. O documento com 18 recomendações ao governo federal e cinco dirigidas ao Congresso Nacional foi entregue a representantes desses poderes, bem como do Judiciário e do Ministério Público.

O objetivo é promover as compras locais e o acesso dessas populações ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) como fornecedoras e adequar o cardápio escolar do ponto de vista cultural, como previsto na lei do Pnae (Lei 11.947, de 2009) e nas resoluções e portarias que a regulamentam. 

“O Pnae é uma política pública de grande dimensão e importância, desempenhando papel fundamental na garantia da segurança alimentar e nutricional [SAN], no apoio à agricultura familiar e na promoção de uma alimentação saudável, cultural e adequada. Porém, é necessário olhar para as diversidades e desigualdades presentes em sua execução, para garantir a concretização de suas determinações legais e a exigibilidade do direito à alimentação escolar”, explica a assessora executiva e de pesquisa do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Luana de Lima Cunha.

Assinam o texto 52 organizações e pessoas, entre entidades da sociedade civil, associações comunitárias, associações e lideranças indígenas, associações quilombolas, grupos informais, nutricionistas, centros de pesquisa, secretarias de Educação e prefeituras.

“Os relatos e debates do encontro destacaram o potencial e os gargalos do programa para atender os modos de vida e de produção de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, tanto como fornecedores quanto como estudantes nas escolas situadas nos territórios”, observa a secretária executiva do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), Laura Souza.

As recomendações cobram a plena execução das diretrizes estabelecidas há 15 anos na Lei da Alimentação Escolar (11.947/2009) – um marco no Pnae. Criado há quase  70 anos e presente em todo o Brasil, o programa é uma política pública consolidada, inspiradora e de enorme alcance. Mas, na prática, ainda são muitos os desafios para que cumpra todos os seus objetivos.

Mais adequações e menos burocracia

A criação de um marco normativo específico para as compras públicas para povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais está entre as 18 recomendações voltadas para o Governo Federal. A ideia é que seja uma resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) orientada pela perspectiva de reconhecimento do autoconsumo, da autodeterminação dos povos e da promoção das economias da sociobiodiversidade.

Isso passaria por uma adequação das chamadas públicas, do cadastro dos agricultores/as e das exigências sanitárias, considerando ainda as necessidades logísticas e de mecanismos de mitigação relativos a eventos climáticos. O primeiro grande entrave é o acesso à documentação exigida. São empecilhos a falta de documentos básicos, como RG e CPF, de cadastro do produtor e a obtenção do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF).

Segundo Vitória Rodrigues da Silva, agricultora da aldeia Lourdes, terra indígena (TI) não demarcada em Boca do Acre (AM), “vender alimentos para o programa significa mais uma oportunidade de renda, mesmo com as dificuldades de logística e demandas de burocracia, que exigem que a gente vá para a cidade”.

A necessidade de se deslocar para a sede do município é um empecilho para esses agricultores/as. Em muitos casos, o trajeto leva um dia inteiro. Por isso, uma das recomendações ao poder público é a “criação de um aplicativo para a automatização dos processos de assinaturas de contratos, emissão de guias de entrega, notas e pagamentos”.

Vitória destaca em sua fala a virtude presente no autoconsumo, “Nós queremos melhorar nosso trabalho, nossa comunidade. E isso também é pelos nossos filhos, porque entregamos nossos produtos na escola deles”.

São muitos os relatos sobre o excesso de burocracia, a escassez de informações e a inadequação das chamadas públicas – processo pelo qual agricultoras e agricultores são chamados para apresentar propostas de venda para o Pnae. Há chamadas que não se adequam à sazonalidade de plantio e cardápios sem adequação à realidade produtiva de cada localidade. “Se não tem nosso alimento no cardápio escolar, não tem demanda e, consequentemente, não tem venda”, descreve Daniel Mendes Vieira.

Ele compõe o Núcleo Pequi, uma rede de associações, cooperativas e instituições voltada à assistência de agricultores e extrativistas do Norte de Minas Gerais. O núcleo realiza capacitações e outras ações para contribuir com o aproveitamento das safras e venda dessa produção do Cerrado.

Para aumentar a aceitação dos alimentos locais na alimentação escolar, acontecem capacitações com os associados para análises de como vender os produtos beneficiados. “Nelas desenvolvemos receitas para inclusão nos cardápios da alimentação escolar”, conta. “Isso é feito junto a uma articulação entre as pontas de cada lado. Nutricionistas da alimentação escolar e associados da agricultura familiar conversam e se articulam.”

Diálogo com o Executivo

As recomendações voltadas ao Executivo federal dirigem-se ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e demais órgãos que fazem parte do Comitê Gestor do Pnae – composto por ministérios e autarquias federais.

Uma das orientações é para que se mantenha ativo e efetivo o Grupo de Trabalho de Povos e Comunidades Tradicionais, no âmbito do Grupo Consultivo, do Comitê Gestor do Pnae.

“A participação de representantes do poder público na mesa do encontro dedicada a esse diálogo trouxe contribuições para o aperfeiçoamento das propostas e reforçou a expectativa de que a carta seja acolhida”, avalia Laura Souza, do ÓSocioBio. “Os avanços no PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] nos últimos dois anos, por exemplo, mostram que é perfeitamente possível.”

Em 2023, algumas importantes medidas foram implementadas pelo Governo Federal. Entre elas, a autodeclaração de renda e de pertencimento étnico indígena e quilombola, em substituição aos documentos de comprovação de propriedade particular, com a retirada da exigência de CPF de todos os membros da família. O Número de Identificação Social (NIS) do Cadastro Único das Políticas Sociais (CadÚnico) também passou a ser aceito como instrumento de comprovação para acesso de povos e comunidades tradicionais (PCTs) ao Pnae e ao PAA. E abriu-se a possibilidade de que povos e comunidades forneçam alimentos diretamente nas escolas de seu território por meio do PAA, com o NIS como referência. Mas ainda há desconhecimento em relação a essas mudanças e como operá-las, tanto por parte de agricultores quanto de gestores.

“Aprendemos no encontro coisas que não sabíamos – leis, estratégias – e vamos voltar para a nossa cidade empoderadas e mais preparadas para lutar pelos nossos direitos”, relata Joelma Meneses da Silva Souza. A agricultora compõe a Associação de Mulheres Produtoras de Polpas de Frutas (AMPPF), que organiza a produção de mais de 60 associadas/os – 80% mulheres – e suas famílias para a venda de polpas de frutas à alimentação escolar em São Félix do Xingu (PA).

Reconhecimento de povos e comunidades tradicionais

Um desafio para o acesso é o não reconhecimento de todos os segmentos de povos e comunidades tradicionais existentes, tanto na Lei do Pnae quanto nos cadastros utilizados para as compras institucionais. Isso dificulta para esses grupos o fornecimento de alimentos ao programa e a exclusão de benefícios e normas que deveriam contemplá-los.

Maria de Jesus, conhecida como Janete, é coordenadora do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) no Piauí. Segundo ela, as quebradeiras beneficiam diversos alimentos a partir do coco babaçu, como a amêndoa; o mesocarpo; o azeite, que vem substituindo o óleo de soja na comunidade; e a farinha, carro-chefe das vendas. Também são agricultoras e produzem diversos outros alimentos.

Apesar de hoje terem acesso ao Pnae dentro dos territórios, “as informações não chegam de um jeito que os produtos estejam dentro das chamadas”. As quebradeiras até apresentam propostas de inclusão de produtos no cardápio, mas não conseguem aceitação na maioria das vezes.  

Para enfrentar esses desafios, entre as recomendações da carta ao Executivo Federal estão: a adequação das diretrizes nutricionais à realidade dos PCTs e o aumento de sua representação nos conselhos de Alimentação Escolar (CAEs); a inclusão de todas as categorias com assento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e no Cadastro Único das Políticas Sociais (CadÚnico); a inclusão no Censo Escolar da identificação de escolas e estudantes de povos e comunidades tradicionais em geral; e a elaboração de um novo modelo de chamada pública específica.

Para o Congresso Nacional também se recomenda a inclusão como prioridade na lei do Pnae de todos os grupos sociais que têm assento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).

Apesar de todas as limitações e da desvalorização dos produtos, Maria de Jesus aponta que as quebradeiras “têm visto que o Pnae e o PAA trazem avanços para as mulheres associadas”.

Costurando caminhos

Na ausência e/ou insuficiência de leis e marcos regulatórios que garantam a devida adequação e execução das diretrizes do Pnae em todos os 5.570 municípios brasileiros, relatos apresentados no encontro mostram caminhos possíveis para inspirar o poder público.

Uma experiência exitosa da adequação do Pnae apresentada no encontro foi o caso de Afuá, município da Ilha de Marajó, no Pará, com o projeto “Açaí direto na escola”. Lá, as cozinhas escolares possuem despolpadeiras. As cozinheiras recebem treinamento de boas práticas para a manipulação no processamento do fruto. E agricultoras e agricultores o entregam diretamente nas escolas, no dia em que o açaí será ofertado no cardápio, obedecendo aos critérios do termo de entrega de alimentos.

O projeto é desenvolvido desde 2022 nas escolas da sede do município, com perspectiva de ampliação para as demais unidades escolares. Exemplo da regionalização do cardápio com a inclusão de alimentos da sociobiodiversidade, a iniciativa nasceu do diálogo entre o Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar da Universidade Federal do Pará (Cecane/Ufpa), a Prefeitura Municipal de Afuá, a população ribeirinha local e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater/PA).

Neri Gemaque de Almeida é agricultor ribeirinho e uma dos produtores de açaí que realiza a entrega diretamente nas escolas do município. Para tal tarefa, ela utiliza uma bicicleta adaptada. Questionado sobre a aceitabilidade do item na alimentação, afirma que “está sendo um sucesso”.

Ele e outros produtores vendem também para o município vizinho, mas o principal destino é a alimentação escolar de Afuá. “Vendemos principalmente o açaí chumbinho. É de muita qualidade. Tem mais polpa e faz sucesso com as crianças. Comem junto com frango, com farinha, na refeição e também como suco”, relata o ribeirinho.

A adequação das cozinhas e capacitação das cozinheiras foi um ponto muito importante neste processo, além do acompanhamento de nutricionistas. São muitos os relatos de como a precarização das cozinhas escolares e das condições de trabalho de cozinheiras e nutricionistas impedem avanços na implementação das diretrizes do Pnae.

Neste sentido, outra recomendação apresentada ao governo federal é a instituição de um plano de carreira para as nutricionistas e cozinheiras. E investimentos para estruturar e equipar as cozinhas escolares.

Outro exemplo do Norte do país está em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. O município, considerado um dos três mais indígenas do Brasil, não teve nenhuma compra para alimentação escolar vinda de agricultores indígenas entre 2016 e 2017.

Em 2019, a partir de nota técnica do Ministério Público Federal (MPF), uma articulação uniu instituições do poder público para fazer visitas aos territórios, em diálogo com as comunidades e organizações locais. Assim se chegou à marca de 130 projetos de venda firmados em 2024. 

“Foi a partir desse momento, de sair do município e adentrar os territórios, que muitos agricultores conseguiram acessar as chamadas”, descreve Beatriz Castro Barbosa, nutricionista da Secretaria de Educação local. “Logo depois entrou a pandemia e esses agricultores já cadastrados puderam entregar nas próprias comunidades. Isso garantiu renda aos agricultores e alimento para as famílias.”

O agricultor indígena Cenaide Pastor Marques Lima também acompanhou esse processo. Ele integra a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e preside o Conselho de Alimentação Escolar (CAE) no município.

Para ele, foi importante começarem a fazer chamadas públicas nas comunidades, aumentando o tempo hábil de chamamento, “para que a mensagem chegasse e para que os agricultores pudessem se organizar”.

A partir desses diálogos, foi-se entendendo a sazonalidade de plantios para a adaptação dos cardápios das diferentes regiões, por ser um território extenso. Ainda existem desafios para incluir mais agricultores, mas estão ocorrendo avanços com normas que simplificam o cadastramento de agricultores individuais – como o uso do NIS e a dispensa de normas sanitárias por se tratar de autoconsumo. “Isso tem sido muito animador para as comunidades”, conta Cenaide. 

“A meta é alcançar mais comunidades para apoiar e ampliar as chamadas”, relata Beatriz. “Tivemos neste ano 128 agricultores participando, entre grupos formais e informais, no valor total de R$ 637.609,60.”

Apesar dos avanços, um problema vivenciado em boa parte dos municípios do Amazonas é o alto gasto logístico da distribuição dos alimentos não perecíveis. Estes, acabam por consumir parte significativa do orçamento destinado à alimentação escolar, a consequência é que, em muitos dias letivos, falta alimento nas escolas.

Analisando as experiências exitosas e os obstáculos existentes, outras recomendações da carta são: a criação de um programa de agentes de apoio ao Pnae e ao PAA; a capacitação de servidores dos órgãos gestores dos territórios tradicionais; a integração das diferentes políticas voltadas à agricultura familiar e aos povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais; e a aceleração e ampliação de políticas complementares, como demarcação das terras indígenas e territórios, assistência técnica e extensão rural (Ater) agroecológica, crédito rural e estruturação de agroindústrias.

Compreendendo a situação de insegurança social que muitas dessas populações vivem, o documento também orienta para se assegurar que o fornecimento ao Pnae não prejudique o acesso a benefícios socioassistenciais como Seguro Defeso e Bolsa Família. Outra recomendação consiste em fomentar a adesão de estados e Distrito Federal ao consórcio nacional Convênio ICMS 139 ou outros que isentem a agricultura familiar da cobrança de impostos no caso de comercialização para os programas nacionais de compras públicas.

Necessidade de reajuste anual

Um ponto muito discutido foi a insuficiência de recursos para o Pnae. Além de representar um risco para a adequada alimentação dos estudantes, a questão se desdobra em diversos entraves para o segmentos da agricultura familiar, da desvalorização de sua produção a atrasos nos pagamentos. “Somos obrigados a entregar sem receber e arcar com todos os custos. Não queremos mais trabalhar dessa forma, pois estamos tendo prejuízo”, relatou uma agricultora durante o debate.

Segundo a Foirn, estudos realizados no estado do Amazonas mostram que o valor da refeição, seguindo as resoluções do FNDE, teria um custo mínimo R$ 3,46. Valor muito acima de R$ 0,86, que é per capita atual do Pnae para estudantes matriculados em escolas de educação básica localizadas em áreas indígenas e remanescentes de quilombos.

Nem todos os municípios destinam o mínimo de 30% estabelecido em lei para as compras da agricultura familiar. E a complementação de recursos por estados e municípios, em muitos casos, é insuficiente ou inexistente.

Para enfrentar essa situação, entre as recomendações ao Governo Federal está o aprimoramento do desenho de financiamento do Pnae para o enfrentamento das desigualdades, e a ampliação do orçamento do programa e também do PAA. Para o Congresso Nacional é proposto que se crie mecanismo de reajuste anual dos valores per capita na lei do Pnae – a exemplo do  PL 2.754/2023.

Por avanços no Congresso

A parte da carta voltada ao Parlamento traz proposições legislativas que possibilitem avanços e evitem retrocessos nos direitos das populações. Entre as recomendações estão: rejeitar projetos de lei que proponham a retirada a prioridade de povos indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária e mulheres nas compras públicas do Pnae; e avançar na proposta de uma Política Nacional de Promoção da Alimentação e dos Produtos da Sociobiodiversidade de Povos e Comunidades Tradicionais, prevista no Projeto de Lei (PL) 880/2021.

“O mesmo Congresso que tem sido desfavorável aos indígenas e permite a tramitação de PLs ruins para a alimentação escolar aprovou, nas últimas legislaturas, medidas de combate à fome e de apoio à agricultura familiar, como o reajuste para o Pnae de 28 a 39%, dependendo da modalidade de ensino”, lembra o assessor de Advocacy do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Pedro Vasconcelos. “Esperamos que, no contexto de necessidade de proteção ambiental e de adaptação à emergência climática, este conjunto de reivindicações sensibilize os e as congressistas.”

Riscos imediatos

No momento em que a carta de recomendações é lançada, surge um novo risco para o acesso de indígenas, quilombolas e PCTs aos mercados institucionais. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) iniciou a consulta pública de uma nova Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) que equipara a agricultura familiar e economia solidária a outros segmentos econômicos.

A consulta pública nº 1.249, de 02 de maio de 2024, propõe uma nova RDC “sobre  a identificação e a classificação do grau de risco das atividades econômicas sujeitas à vigilância sanitária”, revogando a RDC nº 49/2013.

A resolução 49/2013 é considerada um marco ao reconhecer as especificidades dos riscos desses setores da agricultura familiar e da economia solidária. E envolveu, no seu processo de consulta pública, a realização de sete seminários regionais em todos os territórios brasileiros.

Como reação à proposta, uma carta aberta em defesa de normas sanitárias inclusivas será lançada nos próximos dias com, aproximadamente, 130 assinaturas de movimentos, organizações, comunidades, pesquisadores, parlamentares e outros setores da sociedade.

Segundo a carta, a consulta pública da Anvisa representa um retrocesso em termos de normas sanitárias e suas adequações para os segmentos da agricultura familiar e das economias da sociobiodiversidade.

“A nova norma proposta na Consulta Pública reforça a exclusão sanitária (…) Dá também um passo atrás ao restringir a autonomia dos estados e municípios em estabelecerem classificações de risco específicas (…) Outro retrocesso em relação à RDC 49/ 2013 são as exigências relativas ao Responsável Técnico, que podem inviabilizar economicamente a legalização sanitária de pequenos empreendimentos”, destaca o documento.

Para Vanessa Schottz, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), uma contraproposta à medida é manter a Resolução 49 e ampliar a consulta pública. “Deve-se buscar estratégias que viabilizem participação ativa e efetiva dos segmentos atendidos. É fundamental também avançar na implementação do Programa para Inclusão Produtiva e Segurança Sanitária, a Praissan, e na instalação do comitê desse programa, o Cissan”, defende.

Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?”

O encontro que deu origem à carta-proposta foi realizado em 27 e 28 de maio, em Brasília. Ao longo de dois dias de trabalho, representantes de povos do campo, das águas e das florestas, em conjunto com organizações e movimentos sociais, Centros de Colaboração para a Alimentação Escolar (Cecanes), nutricionistas, membros governamentais do Comitê Gestor do Pnae e gestores estaduais e municipais debateram soluções e recomendações para que a compra local de alimentos saudáveis para a alimentação escolar ocorra em terras e territórios tradicionais.

A atividade contou com quase 90 participantes, sendo 60% mulheres e um terço do total composto por indígenas, quilombolas ou representantes de povos e comunidades tradicionais que produzem alimentos para a venda aos mercados institucionais. Além da carta-proposta, as discussões realizadas terão como produto final uma agenda comum em forma de publicação, a ser lançada ainda este ano.

O Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?” foi realizado pelo Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio) e pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), com o apoio de: FIAN Brasil, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Fundo Dema, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), WWF Brasil e Ministério Público Federal (MPF). Também recebeu apoio da Global Health Advocacy Incubator (GHAI) e do projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor, da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, implementado em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).

Nova edição de observatório confronta verdadeiras e falsas soluções diante de crises globais

A nova edição do relatório anual Observatório do Direito à Alimentação e à Nutrição examina as causas, os impactos e as respostas às crises alimentar, climática e ecológica. A publicação põe em xeque soluções falsas e motivadas pelo lucro e apresenta alternativas fundamentadas no direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana), na justiça ecossocial, na agroecologia e na soberania alimentar.

Estão disponíveis as versões em espanhol e inglês, e em breve divulgaremos em português (acesse o sumário executivo).

Os sistemas alimentares industriais não conseguiram atender às necessidades nutricionais da população do nosso planeta. Cerca de 800 milhões de pessoas passam fome atualmente. Nossos sistemas alimentares produzem um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa (GEEs), contribuindo enormemente para a crise climática e exacerbando o acesso a alimentos e nutrição. A extinção em massa de espécies, a destruição de ecossistemas e a interrupção dos ciclos naturais que sustentam a vida na Terra afetam ainda mais o acesso aos alimentos.

O extrativismo, a mercantilização e a financeirização da natureza exacerbaram a exploração, a desapropriação e os despejos violentos. O controle cada vez maior dos recursos naturais por um pequeno número de corporações, indivíduos e estados poderosos também está alimentando a violência baseada em gênero, as formas de discriminação que se cruzam e a crescente desigualdade.

Com o título Alternativas Ecológicas Populares ao Greenwashing Corporativo, a publicação da Rede Global pelo Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN, na sigla em inglês) propõe um caminho diferente com base nas lutas de base contra a captura corporativa, a lavagem verde e as práticas neocoloniais. Ele promove o Dhana, os direitos humanos dos camponeses e de outras pessoas nas áreas rurais e a soberania alimentar para todas e todos.

A edição do observatório está dividida em quatro seções, que examinam os acontecimentos internacionais; a alimentação e a tripla crise ecológica; o colonialismo verde associado à descarbonização; e as lutas de base e suas soluções para as crises climática e alimentar.

Apesar do agravamento da crise alimentar, em 2023 houve pouca ação internacional decisiva para tratar de suas causas. Em vez disso, a captura corporativa dos fóruns internacionais, principalmente na ONU, continuou inabalável. A crise alimentar e a tríplice crise ecológica do clima, da perda de biodiversidade e da poluição estão inextricavelmente ligadas, porém as empresas e os Estados promovem soluções tecnológicas semelhantes para cada uma delas e não abordam os direitos dos pequenos produtores de alimentos.

Nos últimos anos, a descarbonização e as abordagens relacionadas ao mercado foram impostas como o principal paradigma para lidar com essas crises entrelaçadas. Mas esse neocolonialismo verde simplesmente perpetua a destruição ecológica e a mercantilização da natureza, ao mesmo tempo que aprofunda as desigualdades existentes.

Uma transformação ecossocial justa de nossos sistemas alimentares que proteja o direito de todos à alimentação e à nutrição exige justiça global e a promoção da soberania alimentar, da harmonia e do equilíbrio entre a humanidade e o meio ambiente.

Nos 20 anos das Diretrizes da ONU para o Direito à Alimentação, rede pede implementação integral

Foto: Marcelo Coutinho/Arq. FIAN Brasil

No 20º aniversário das Diretrizes das Nações Unidas para o Direito à Alimentação e à Nutrição, um conjunto de entidades ligadas a essa bandeira – a FIAN entre elas – pedem sua plena implementação.

Declaração divulgada pela Rede Global para o Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN, na sigla em inglês) enfatiza a necessidade de reconhecer devidamente os avanços na estrutura normativa e jurídica do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) desde a adoção das diretrizes, em 2004. A FIAN faz parte da rede e assina o documento.

 O documento foi inicialmente elaborado pela FIAN Internacional e pela Pão para o Mundo (PPM) durante o Fórum Social Mundial 2024, em Katmandu, como resultado do evento paralelo “20 Anos das Diretrizes para o Direito à Alimentação: passado, presente e futuro”.

As recomendações baseiam-se na “Carta de Brasília – Sobre a governança democrática dos sistemas alimentares para a realização do direito humano à alimentação adequada”, declaração do seminário internacional realizado na capital brasileira em 10 de dezembro de 2023, por ocasião da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

DECLARAÇÃO

20 anos das Diretrizes da ONU para o Direito à Alimentação: hora da implementação integral

Por ocasião do 20º aniversário das Diretrizes Voluntárias das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, a Rede Global para o Direito à Alimentação e à Nutrição (GNRtFN, na sigla em ingês) pede sua implementação imediata e abrangente, com o devido reconhecimento e a aplicação dos avanços da estrutura normativa e jurídica sobre o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) desde que foram adotadas, em 2004.

Milhões de pessoas estão sofrendo de fome e desnutrição devido a desigualdades estruturais, violência nas sociedades e nos sistemas alimentares e apropriação desenfreada de territórios, caracterizada pela aquisição injusta e insustentável de terra, água, sementes e outros recursos naturais, bem como por regimes comerciais injustos e iníquos. Em função da violência baseada em gênero e das formas de discriminação entrelaçadas, as mulheres, as meninas e as diversidades têm sido desproporcionalmente afetadas por essa desapropriação e pelo aumento das desigualdades. Ao mesmo tempo, o extrativismo, a mercantilização e a financeirização, inclusive no contexto da agricultura industrial e da aquicultura, desencadearam a tripla crise planetária das mudanças climáticas, da perda de biodiversidade e da poluição, com impactos devastadores sobre a realização do direito à alimentação e à nutrição, tanto para as gerações atuais quanto para as futuras.

 As Diretrizes do Direito à Alimentação foram adotadas pelo Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS) da ONU e pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) em 2004. Elas forneceram uma base sólida para a elaboração e o desenvolvimento de um conjunto completo de normas e políticas de direitos humanos adotadas posteriormente pela ONU, como a Recomendação Geral 34 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), as Diretrizes de Posse da FAO, as Diretrizes para a Pesca em Pequena Escala, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Camponeses e de Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (Undrop) e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (Undrip). Elas contribuíram para o avanço da narrativa dos direitos humanos e enriqueceram a estrutura jurídica normativa do Dhana, fornecendo uma orientação para a transformação dos sistemas alimentares com base nos direitos humanos.

Hoje, 29 países reconhecem explicitamente o direito à alimentação adequada em suas constituições, enquanto mais de 100 países o reconhecem implicitamente ou por meio de diretrizes, princípios ou outras disposições pertinentes. Nesse contexto, gostaríamos de destacar o papel do Nepal como pioneiro: a constituição do país garante o direito à alimentação e à soberania alimentar, e uma lei nesse sentido foi aprovada em 2018. A lei prevê mecanismos institucionais em nível nacional, provincial e local, bem como o desenvolvimento coordenado de um plano nacional de nutrição. Uma portaria para implementar a lei foi aprovada pelo governo do Nepal em março deste ano.  Com esse reconhecimento legal, o Nepal concentrou seus esforços na redução da proporção da população subnutrida pela metade desde 2018 e atualmente ocupa a 69ª posição entre 125 países no Índice Global de Fome.

Isso contrasta fortemente com outros países do sul da Ásia. Em Bangladesh, por exemplo, uma lei de direito à alimentação foi elaborada pela Comissão de Leis já em 2016, mas sua aprovação ainda está pendente. Na Índia, apesar de vários desenvolvimentos positivos, como o reconhecimento do direito à alimentação como um direito fundamental pela Suprema Corte em 2001 e a promulgação de uma legislação histórica, como a Lei Nacional de Garantia de Emprego Rural de 2005 e a Lei Nacional de Segurança Alimentar de 2013, a situação da fome é grave e o país ocupa a 111ª posição no Índice Global de Fome.

Pedimos aos governos que fortaleçam seus compromissos com a realização do direito à alimentação e à nutrição e que acabem com a fome e a desnutrição, incorporando as disposições internacionais de direitos humanos à legislação, aos regulamentos, às políticas e aos programas nacionais. Isso implica a criação de mecanismos de responsabilização, garantindo a participação significativa das comunidades afetadas nos processos de tomada de decisão e estabelecendo sistemas transparentes para monitorar e corrigir casos de violações do direito à alimentação. 

Pedimos aos governos de todo o mundo que cumpram suas obrigações com relação à realização do direito humano à alimentação e à nutrição, implementando as diretrizes e tomando medidas decisivas para acabar com a fome e a desnutrição. Ao fazer isso, podemos construir coletivamente um futuro em que o gozo do direito à alimentação e à nutrição seja uma realidade para todos, em que os direitos dos indivíduos e das comunidades sejam respeitados, protegidos e cumpridos e em que a comunidade global esteja unida contra as forças que perpetuam a fome e a discriminação.

A cooperação internacional entre os Estados para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais é uma obrigação de todos os Estados. Todo Estado tem a responsabilidade de contribuir ativamente para a manutenção da paz e da justiça duradouras – especialmente em nações afetadas por conflitos – e para acabar com a pobreza e a fome. Ao abordar as causas fundamentais, responsabilizar os atores responsáveis e promover a colaboração em nível local, nacional e internacional, podemos nos esforçar coletivamente em direção a um mundo em que o direito à alimentação e à nutrição seja realizado para todos. Em particular, nós, as organizações abaixo assinadas, recomendamos o seguinte a todos os Estados para a implementação das Diretrizes do Direito à Alimentação:

Colaborações estratégicas: fortalecer as convergências e estratégias conjuntas com a sociedade civil em sua diversidade, priorizando os detentores de direitos, como movimentos sociais, povos indígenas, movimentos feministas e produtores de alimentos em pequena escala.

 Fortalecimento da governança com participação social em todos os níveis: criar e implementar sistemas de governança alimentar com fortes mecanismos de participação social e com uma sólida estrutura legal e institucional e condições garantidas de operação.

Defesa do interesse público diante da influência corporativa nos sistemas alimentares: desenvolver estruturas jurídicas abrangentes de responsabilidade, regulamentação e prestação de contas para as empresas, desde a produção até o consumo, bem como normas que protejam os espaços de governança da influência corporativa e do conflito de interesses.

Engajamento em processos e políticas para transformar os sistemas alimentares e fortalecer a posse da terra: promover e participar ativamente da transformação dos sistemas alimentares, respeitando as culturas alimentares locais, valorizando a agrossociobiodiversidade e os princípios da agroecologia, e priorizando os sistemas locais e territoriais, especialmente a importância da segurança da posse da terra.

Nota 1: A declaração foi iniciada pela FIAN Internacional e pela Pão para o Mundo (PPM, Alemanha) e elaborada por ocasião do Fórum Social Mundial 2024 em Katmandu como resultado do evento paralelo “20 Years of the Right to Food Guidelines: Passado, Presente e Futuro”, organizado pelas duas organizações com a GNRtFN. 

Nota 2: As recomendações baseiam-se na “Carta de Brasília – Sobre a governança democrática dos sistemas alimentares para a realização do direito humano à alimentação adequada”, declaração do Seminário Internacional “Governança democrática dos sistemas alimentares para a realização do direito humano à alimentação adequada”, realizado na capital brasileira em 10 de dezembro de 2023, por ocasião da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

A declaração é endossada pelas seguintes organizações e indivíduos:

Organizações

 Actuar – Associação para a Cooperação e o Desenvolvimento

Articulação Sul 

Bangladesh Food Security Network (Khani)  

Bizilur 

Confédération Paysanne du Faso 

Coprofam 

FIAN Alemanha

FIAN Áustria 

FIAN Bélgica

FIAN Brasil 

FIAN Burkina Faso 

FIAN Colômbia 

FIAN Equador 

FIAN Índia 

FIAN Indonésia 

FIAN Internacional  

FIAN Nepal  

FIAN Portugal 

FIAN Sri Lanka 

FIAN Suíça

FIAN Uganda 

Gaza Urban & Peri-urban Agriculture Platform (Gupap) 

Housing and Land Right Network – Habitat International Coalition 

Institute for Agriculture and Trade Policy 

Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) 

Kitwe District Land Alliance 

Movimento Urbano de Agroecologia (Muda)  

National Fisheries Solidarity Organization. 

Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (Opsan) – Universidade de Brasília (UnB) 

ONG Appui Solidarite pour le Renforcement de l’Aide au Developpement 

Participatory Research & Action Network (Praan) 

Pelum Association Regional Secretariat  

Rede para a Soberania e Segurança alimentar e Nutricional da Guiné-Bissau (Ressan-GB)

Right to Food Campaign India 

Rural Reconstruction Nepal (RRN) 

Slow Food 

Sustainable Innovations Africa 

The Zambia Alliance for Agroecology and Biodiversity (Zaab) 

Unicam Suri/Cloc LVC 

WhyHunger 

Zabarang Kalyan Samity

Indivíduos

 Bishnu Bhusal

Claudio Schuftan

Cynthia Betsabe Santillan Ibarra

Egidio Angel Strappazzon

Garcia Jaciara

Govinda Dhakal

Grace Tepula

Maïmouna Soulama Soma

Neetu Sharma

Rakesh katal

Roy Paz Cordero Cuisano

Sasmita Jena Souad Mahmoud

Consea divulga o relatório final da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Texto: Ascom da Secretaria Geral da Presidência da República

Estão disponíveis, no site Brasil Participativo, todos os materiais resultantes da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que foi realizada de 11 a 14 de dezembro de 2023, em Brasília.

Entre os documentos, é possível conferir o Manifesto da 6ª CNSAN, elaborado colaborativamente durante a Etapa Nacional, que traz uma ampla difusão sobre os significados da agenda de soberania e segurança alimentar e nutricional e os caminhos para a realização do direito humano à alimentação adequada; a Carta de Brasília, com a apresentação de uma agenda estratégica, decolonial e antirracista para a realização do direito humano à alimentação adequada e a transformação dos sistemas alimentares, composta por nove itens; a Revista 6ª CNSAN  com o registro dos principais momentos da conferência; e o relatório final com todas as propostas aprovadas.

Clique aqui e confira!

Foto: Pedro Biondi/Repórter Brasil (2018)

Inconstitucionalidade de isenções para agrotóxicos volta a ser julgada pelo STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) volta a julgar nesta quarta-feira (12) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553, que questiona isenção fiscal para agrotóxicos. O julgamento acontecia em modalidade virtual e, com destaque em abril pelo ministro André Mendonça, a ação passa ser julgada em plenário presencial. A FIAN Brasil é uma das entidades ouvidas no processo como amicus curiae (“amigo da corte”).

“O uso de agrotóxicos interfere diretamente no direito humano à alimentação e à nutrição adequadas do povo brasileiro”, destaca o assessor de Direitos Humanos da entidade, Adelar Cupsinski. “Esse problema vem afetando sobremaneira a vida e a saúde dos povos indígenas, dos povos e comunidades tradicionais e dos trabalhadores rurais, bem como a sua produção agrícola. A alternativa saudável consiste em incentivar a agricultura tradicional e a agricultura agroecológica.”

Ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) em 2016, a ADI 5.553 questiona as cláusulas 1ª e 3ª do Convênio 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e o Decreto 7.660/2011. Esses dispositivos concedem benefícios fiscais aos agrotóxicos, com redução de 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), além da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de determinados tipos dessas substâncias. A medida ficou conhecida em vários setores como “bolsa-agrotóxicos”.  

A isenção dos agrotóxicos ocorre porque o Estado brasileiro aplicou, por meios destes dispositivos, o princípio da seletividade e essencialidade tributárias. Esse princípio determina que o Estado pode selecionar produtos e conferir benefícios fiscais em função da importância social. Isto é, se o produto é essencial para a coletividade pode ter isenções ou reduções tributárias. Desse modo, há 27 anos, o mercado de agrotóxicos é beneficiado com isenção fiscal.   

A medida tem impacto direto na arrecadação fiscal. De acordo com levantamento realizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a estimativa é de que estados e União deixaram de arrecadar R$ 12,9 bilhões, considerando a comercialização de agrotóxicos no ano de 2021. O valor representa, por exemplo, cinco vezes o orçamento reservado pela União em 2024 para prevenção e combate a desastres naturais (R$ 2,6 bilhões).  

Posicionamento dos ministros 

Com ida para plenário, o julgamento – que estava em estágio avançado, já com manifestações de votos de nove ministros – é reiniciado. Ou seja, os ministros deverão se manifestar novamente.  

A retomada do julgamento é compreendida por organizações que incidem como amicus curiae (amigos da corte) como importante oportunidade para ampliar o diálogo com sociedade e Suprema Corte sobre impactos da concessão de benefícios ao mercado de agrotóxicos.  

Relator da ação, o ministro Edson Fachin havia reconhecido em seu voto que a isenção fiscal dos agrotóxicos é inconstitucional. O ministro conclui que as normas questionadas pela ADI 5.553 violam artigos da Constituição brasileira e sugeriu uma série de providências para a cobrança de ICMS e IPI sobre importação, produção e comercialização de agrotóxicos. Também solicitou que órgãos do governo avaliem “a oportunidade e a viabilidade econômica, social e ambiental de utilizar o nível de toxicidade à saúde humana e o potencial de periculosidade ambiental, dentre outros, como critérios na fixação das alíquotas dos tributos” sobre os agrotóxicos.   

Na manifestação do voto, o ministro evocou também o princípio da precaução para destacar as evidências de riscos de uso e consumo dos químicos ao meio ambiente e à saúde. “O uso de produtos nocivos ao meio ambiente ameaça não somente animais e plantas, mas com eles também a existência humana e, em especial, a das gerações posteriores, o que reforça a responsabilidade da coletividade e do Estado de proteger a natureza”, apontou Fachin. O posicionamento do ministro é semelhante ao das organizações sociais que atuam como amicus curiae na ação, como a Terra de Direitos, a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e a FIAN.  

Já o ministro Gilmar Mendes acolheu os argumentos de entidades vinculadas ao agronegócio e se manifestou pela manutenção dos benefícios fiscais aos agrotóxicos. Mendes afirmou em seu voto que os danos à saúde “não devem ser desconsiderados, mas por si próprios são insuficientes para se declarar a inconstitucionalidade dos benefícios, porquanto produtos essenciais não são isentos de causarem malefícios à saúde”. A posição diverge do relator Fachin e de um conjunto de organizações, pesquisadores e órgãos que denunciam os fortes impactos dos agrotóxicos para a saúde e meio ambiente, o que descumpre preceitos constitucionais. Os ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli acompanharam o voto de Gilmar Mendes. Já o ministro André Mendonça reconheceu, parcialmente, a inconstitucionalidade da isenção fiscal e determinou que a União e estados façam uma avaliação do benefício. Organizações e instituições de pesquisa também reivindicam a apresentação de dados que justifique a validade das normativas. 

Com o reinício do julgamento, as organizações têm a expectativa de que os ministros revejam os votos pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do benefício fiscal.  

“Abre-se a oportunidade dos ministros que votaram pela constitucionalidade dos benefícios fiscais reavaliarem seus votos, assim como para os ministros que ainda não julgaram avaliar a matéria com a preocupação constitucional de proteção do meio ambiente e a saúde da população brasileira. A reavaliação das políticas fiscais aos agrotóxicos pelo poder executivo da União e dos Estados relacionando desenvolvimento econômico, proteção ambiental, direito à saúde e à segurança alimentar é essencial para essa ação, para evidenciar a não aplicabilidade do princípio da seletividade tributária sobre os agrotóxicos”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade.   

Benefício para mercado de commodities 

Segundo as organizações, a isenção fiscal beneficia diretamente o mercado de commodities, voltadas para o mercado externo, e não incide no aumento do preço dos alimentos que compõem a cesta básica para os consumidores, como argumenta entidades representativas do agronegócio.  

De acordo com dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), 89% da área total com uso de agrotóxicos em 2022 é voltada para plantio de soja, milho, algodão, cana-de-açúcar e pastagens. Com menos incentivos e pressão do agronegócio, de produção de alimentos para consumo interno sofre seguidas retrações. Enquanto a área de plantio de soja aumento em 187% de 2000 a 2021, no mesmo período o plantio de arroz diminuiu 54%, e o de feijão, 37%.  

Além da manifestação contrária à isenção pelas organizações, a Procuradoria Geral da República (PGR) declarou na mesma ação que os incentivos aos agrotóxicos  não se coadunam com os objetivos do estado democrático de Direito ambiental. Os conselhos nacionais de Saúde (CNS) e de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) recomendaram aos ministros do STF que “rejeitem quaisquer proposições que resultem ou possibilitem a redução ou a isenção fiscal e tributária a agrotóxicos uma vez que estamos diante de perigos graves de saúde pública devido à exposição a essas substâncias nocivas”.

FIAN Brasil anuncia vaga para assessor(a) de Advocacy

TERMO DE REFERÊNCIA

A FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas anuncia a abertura de processo seletivo para a contratação temporária de assessor(a) de Advocacy.

O regime de contratação é como pessoa jurídica, com início dos trabalhos previsto para julho de 2024. A duração do contrato é de 12 meses, prorrogável por igual período.

Sobre a FIAN Brasil

Somos uma organização de direito privado, sem fins lucrativos, apartidária, sem vínculo religioso, com sede e foro em Brasília (DF), com atuação de abrangência nacional. 

Nossa missão é contribuir para um mundo livre da fome e da desnutrição, no qual cada pessoa possa desfrutar plenamente dos seus direitos humanos, em particular o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana), com dignidade e autodeterminação.

A FIAN Brasil atua para fortalecer o Dhana por meio de ações de exigibilidade, formação, informação e incidência política. As ações de incidência política e advocacy são construídas em conjunto com diferentes redes da sociedade civil, como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, o Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável e a Plataforma Dhesca. Além disso, a FIAN Brasil coordena a secretaria executiva do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e está representada no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), no  Grupo Consultivo do Comitê Gestor do Pnae e na Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil. 

Objetivo da contratação 

A/o assessor(a) de Advocacy deverá apoiar a execução de ações de incidência política da FIAN Brasil, em especial no Congresso Nacional, contribuindo em temas prioritários.

Atividades previstas

  • Monitorar pautas prioritárias para a FIAN Brasil no Congresso Nacional;
  • Sistematizar e analisar dados e informações para elaboração de pareceres, notas técnicas, planilhas e sínteses voltadas ao trabalho legislativo;
  • Estabelecer diálogo com parlamentares e assessorias parlamentares para a promoção de agendas relativas ao Dhana;
  • Apoiar a execução de ações específicas de incidência política da FIAN Brasil no Congresso Nacional;
  • Participar de reuniões periódicas com a Coordenação de Advocacy, equipes de projetos da FIAN Brasil e redes das quais a FIAN faz parte.

Requisitos obrigatórios

  • Ensino superior completo em Ciência Política, Ciências Sociais, Direito, Economia, Políticas Públicas ou áreas afins;
  • Conhecimento e experiência de atuação em processos legislativos;
  • Capacidade de redação de documentos voltados para a incidência política (planilhas, relatórios, pareceres);
  • Compromisso com direitos humanos e valores éticos relacionados ao trabalho da FIAN Brasil;
  • Compromisso em relação ao cumprimento de prazos; 
  • Habilidades de comunicação, diálogo e trabalho em equipe;
  • Residir em Brasília (DF);
  • Disponibilidade para trabalho híbrido com agendas presenciais semanais no Congresso Nacional.

Requisitos desejáveis

  • Experiência com políticas de segurança alimentar e nutricional;
  • Experiência aplicada de incidência no Congresso Nacional;
  • Experiência de trabalho em/com organizações da sociedade civil, movimentos sociais ou redes.

Processo para candidatura

Currículo, carta de motivação e declaração de conflitos de interesse (baixe aqui para preencher) deverão ser encaminhados para [email protected] com cópia para [email protected] até as 18:00 do dia 31/05/2024. Entrevistas serão agendadas com as pessoas selecionadas. 

Diversidade e inclusão

A FIAN Brasil defende e apoia a ampliação da diversidade na sociedade e, por essa razão, estimula e prioriza a candidatura de mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+ e/ou com deficiência, que cumpram os requisitos estabelecidos. Se você se enquadra nesses grupos, indique em sua carta de motivação.

Consea divulga nota de solidariedade ao RS e chama à ação

Nota Pública Consea

O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) aprovou, em plenária, nota pública em que manifesta o pesar pelas perdas de vidas e sua total solidariedade a todas às pessoas do Rio Grande do Sul diante das consequências trágicas de chuvas torrenciais.

 “Neste momento, é fundamental que todas as ações dos governos federal, estadual e municipal se articulem para que o resgate e a assistência cheguem a quem precisa chegar”, defende o texto, destacando como prioridade “aqueles que já estavam em situação de maior vulnerabilidade em função do racismo ambiental e da injustiça climática, como os povos indígenas, a população negra, os povos e comunidades tradicionais e a população em situação de rua”. Leia a íntegra abaixo.

Nota pública | Solidariedade a todas as pessoas do Rio Grande do Sul e chamamento para ação
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em sua 2ª Plenária de 2024, realizada nos dias 7 e 8 de maio, em Brasília, manifesta o pesar pelas perdas de vidas e sua total solidariedade a todas as pessoas do Rio Grande do Sul que, mais uma vez, estão enfrentando as consequências trágicas de chuvas torrenciais.

Episódios que infelizmente se tornarão cada vez mais frequentes, seja com chuvas, secas, temperaturas extremas. São tragédias anunciadas e por décadas negligenciadas, como se fossem um futuro que não chegaria. O desmantelamento da legislação ambiental – inclusive a recente flexibilização por estados e municípios, o desmonte do sistema de proteção e defesa civil, práticas predatórias de produção de alimentos e de ocupação de terras e territórios que estruturam os sistemas alimentares hegemônicos, não faltam exemplos que expliquem o por que estamos diante de um verdadeiro colapso que ceifa vidas e afeta profundamente as condições de vida.

Neste momento, é fundamental que todas as ações dos governos federal, estadual e municipal se articulem para que o resgate e a assistência cheguem a quem precisa chegar. Todas as comunidades e segmentos populacionais precisam dessas ações, sobretudo aqueles que já estavam em situação de maior vulnerabilidade em função do racismo ambiental e da injustiça climática, como os povos indígenas, a população negra, os povos e comunidades tradicionais e a população em situação de rua, que são afetados de forma desigual pelos desastres socioambientais. Um levantamento de um conjunto de organizações, incluindo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), aponta uma situação crítica em dezenas de comunidades indígenas em todo o estado. Também clamamos para que todo apoio seja prestado às inúmeras organizações da sociedade civil que estão mobilizando pessoas e ações para levar comida, água, roupas e medicamentos às comunidades da região Sul.

Isto é o que precisa ser feito agora, mas é impossível não chamar a atenção para que, passada a emergência, estas famílias e comunidades recebam os serviços e apoio necessários para retomarem suas vidas com dignidade. Com a interrupção nas vias de acesso, é necessário que o poder público se antecipe a um possível comprometimento no abastecimento de alimentos para os municípios. E com o impacto ainda mais amplo, são necessárias medidas públicas de abastecimento que previnam o aumento no preço de alimentos básicos, como o arroz, com a perda de parte da safra e atraso no próximo plantio.  Todos os anúncios de ações de emergência e recuperação após o período crítico a ser superado precisam ser monitorados para que de fato sejam implementados e feito o melhor uso do recurso público. As instâncias do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), notadamente as câmaras intersetoriais de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisans) e os conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (Conseas) são espaços estratégicos para articulação e controle social dessas medidas.

E, coerente ao tema da 2ª Plenária de 2024 do Consea, que trouxe o tema: “Mudanças climáticas, soberania e segurança alimentar e nutricional”, o Conselho, somado a milhões de vozes, alerta: não há mais tempo para adiar a pactuação interfederativa para implementação de uma estratégia ampla de mitigação e adaptação às mudanças climáticas orientada pelos princípios da justiça climática e não pelas falsas soluções vinculadas à financeirização da natureza.

Publicado originalmente na página do Consea

Foto: Ruy Sposati/Cimi

Com pesquisa sobre insegurança alimentar, entidades pedem a Cidh urgência no caso dos Guarani e Kaiowá

Foto: Ruy Sposati/Cimi
Foto: Ruy Sposati/Cimi

A Aty Guasu, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a FIAN Brasil, a FIAN Internacional e a Justiça Global apresentaram novas informações à denúncia oferecida contra o Estado brasileiro no caso envolvendo violações de direitos humanos de cinco comunidades dos povos indígenas Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul: Apyka’i, Guaiviry, Kurusu Ambá, Ñande Ru Marangatu e Ypo’i.

Foram incluídos achados da pesquisa recém-lançada sobre insegurança alimentar e nutricional nesses territórios; o contexto do marco temporal, que ameaça as demarcações; e um relato sobre a morte da xamã Damiana Cavanha, liderança histórica do tekoha Apyka’i.

O memorial entregue no dia 27 de fevereiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh), em Washington (EUA), expõe as violações em especial quanto à soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN) dos dois povos. As peticionárias caracterizam a situação como um quadro de violência estrutural e sistêmica e recorrem ao artigo 29 da instância, que trata de casos de urgência ou gravidade. A Cidh é um órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA).

“Trazemos mais uma vez para o mundo a questão do nosso povo”, diz o líder da comunidade de Kurusu Ambá, Elizeu Lopes, conselheiro da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá. “Estamos cercados. Expulsos dos nossos territórios, baleados à queima-roupa, envenenados por agrotóxicos, atacados com leis no Congresso Nacional. É muito triste trazer essa realidade para fora do país, mas precisamos trazer, porque é o dia a dia que vivemos com nossas crianças, com nossos avós, com nossos anciãos.”

Precariedade e vulnerabilidade

A pesquisa lançada em fevereiro pela FIAN com o Cimi atualiza a situação de três comunidades estudadas em 2013 (Guaiviry, no município de Aral Moreira; Kurusu Ambá, em Coronel Sapucaia; e Ypo’i, em Paranhos) e inclui outras duas (Apyka’i, em Dourados, e Ñande Ru Marangatu, em Antônio João). Os números mostram uma melhora em relação a dez anos atrás, mas também a persistência de um quadro de precariedade e vulnerabilidade.

Enquanto no levantamento de 2013 não houve nenhum domicílio em situação de segurança alimentar e nutricional (SAN), no de agora, naquelas três áreas, esse percentual foi de 15,0% – um dado que reforça a importância das retomadas de terras tradicionais para a alimentação e a promoção da saúde das famílias. Quase 95% dos entrevistados e entrevistadas associaram essa mudança à permanência no tekoha – “lugar onde se é”, ou em que se pode viver plenamente.

Cabe ressaltar que o índice de segurança alimentar e nutricional (SAN) é muito pior que aquele verificado no conjunto da população brasileira em 2022, sob o impacto de dois anos de pandemia.

“Além disso, como alertamos nesta nova ida à comissão, esse elemento de estabilização e melhoria – a demarcação das terras – está totalmente inviabilizado no momento, com a aprovação da lei inconstitucional do marco temporal”, ressalta o membro do Cimi Flávio Vicente Machado. O dispositivo só permite aos indígenas reivindicar áreas que estivessem ocupando quando foi promulgada a atual Constituição Federal, em 1988. Os deputados e senadores votaram a favor da tese mesmo depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) considerá-la inconstitucional, e derrubaram o veto do presidente Lula a ela, inscrevendo-a na Lei 14.701, de 2023, já contestada na Justiça.

Como demonstração do grave cenário, as entidades destacam no memorial o caso da matriarca Damiana Cavanha, de Apyka’i. Ela passou por toda sorte de violações de direitos e violências na vida – como perder vários membros da família em atropelamentos – e morreu aos 84 anos em novembro, em condições a esclarecer, sem ver reconhecido seu tekoha, que no momento está sem moradores e em risco de desaparecer.

“Outro elemento que agregamos é o dos direitos econômicos, sociais e culturais, os Desc”, relata o assessor de Direitos Humanos da FIAN Brasil Adelar Cupsinski, citando como exemplo a total ligação do bem-viver e da espiritualidade das duas etnias com a terra e a produção de alimentos. “Como signatário do pacto internacional que protege essas dimensões da cidadania, o Pidesc, nosso país tem o dever de honrá-lo. Mais um motivo para a admissão e a priorização do caso. Sem a terra demarcada, os Desc não são viabilizados.”

Para o coordenador do programa de Justiça Internacional da Justiça Global, Eduardo Baker, o caso permite ao sistema interamericano aprofundar sua discussão sobre esses direitos no contexto específico dos indígenas no Brasil. “É algo ainda pouco explorado por seus órgãos”, observa. “Vale lembrar que a própria Cidh elegeu os direitos econômicos, sociais e culturais como um de seus três temas prioritários e os povos indígenas como uma população prioritária para os próximos anos. É uma oportunidade para conciliar a agenda do órgão com uma demanda de reversão de um quadro estrutural de violações.”

“A situação das cinco comunidades é emblemática e consegue representar as principais violências que assolam há décadas os Kaiowá e Guarani, então esperamos que a análise e as providências beneficiem as outras 55 retomadas e o povo como um todo”, acrescenta Flávio Vicente Machado, do Cimi.

A Cidh tem uma “fila” de pedidos e, quando decide pela admissibilidade de um deles, abre um processo que pode resultar em recomendações a um Estado nacional. Descumpri-las pode levar a um julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), como aquele em que o governo brasileiro foi condenado a demarcar o território indígena e indenizar o povo Xukuru.

Histórico

A petição inicial submetida à comissão da OEA já completou sete anos. Em dezembro de 2019 o Estado brasileiro apresentou sua resposta e em julho de 2020 as peticionárias fizeram observações a essa manifestação.

“Na prática, não mudou nada, a não ser quando retomamos nossos territórios por conta própria, conseguindo um pedaço de mato, um rio, um mínimo para sobreviver”, pontua Elizeu Lopes, lembrando das visitas de duas relatoras da ONU, comissões do Parlamento Europeu e outras missões internacionais. “Esperamos agora, pelo menos, ter um retorno sobre a denúncia e que ela pressione o governo do estado e o governo brasileiro. Que diminua a perseguição e que sejam punidos os assassinos de Xurite Lopes, Dorvalino Rocha, Nísio Gomes, Ronildo Ramires. Não queremos que esse massacre continue.”

Pesquisa detalha insegurança alimentar e nutricional em retomadas guarani e kaiowá

Agricultora indígena no tekoha Ypo’i. Foto: Ruy Sposati/Cimi

A FIAN Brasil lançou o relatório Insegurança Alimentar e Nutricional em Retomadas Guarani e Kaiowá – Um Estudo em Cinco Territórios Indígenas do Mato Grosso do Sul. A pesquisa atualiza a situação de três comunidades estudadas em 2013 (Guaiviry, no município de Aral Moreira; Kurusu Ambá, em Coronel Sapucaia; e Ypo’i, em Paranhos) e inclui outras duas (Apyka’i, em Dourados, e Ñande Ru Marangatu, em Antônio João). Acesse o livro e veja como foi o lançamento.

“Com esta pesquisa, pudemos avaliar a importância das retomadas das terras tradicionais para a alimentação e a promoção da saúde das famílias”, comenta a secretária-geral da organização, Nayara Côrtes Rocha. “Os números mostram uma melhora em relação a dez anos atrás, mas também a persistência de um quadro de precariedade e vulnerabilidade.”

No levantamento de 2013, não houve nenhum domicílio em situação de segurança alimentar e nutricional (SAN). No de agora, naquelas três áreas, esse percentual foi de 15,0%, Côrtes lembra que 94,9% das famílias associaram essa mudança à permanência no tekoha – “lugar onde se é”, ou em que se pode viver plenamente. A insegurança alimentar e nutricional (InSAN) grave (fome) e a moderada diminuíram, ao passo que a leve subiu.

“Cabe ressaltar que o índice de SAN é muito pior que aquele verificado no conjunto da população brasileira sob o impacto de dois anos de pandemia. Mesmo computando os dados de Ñande Ru Marangatu, que não estava no levantamento anterior e eleva o índice para 23,3%.”

Comparação dos dados das pesquisas realizadas em 2013 e em 2023 pela FIAN Brasil nas áreas de retomada guarani e kaiowá (Mato Grosso do Sul, Brasil)

 “A dimensão alimentar depende de uma série de outros elementos”, comenta a professora Verônica Gronau Luz, uma das coordenadoras do estudo. “Os indicadores socioeconômicos e sanitários constatam a escassez de água, a exposição a agrotóxicos, as limitações de transporte e mobilidade, a falta de acesso a educação e saúde.”

 A docente da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) lembra, ainda, o desafio de um solo empobrecido por desmatamento, monocultura e pastagem ao longo de décadas. “Muitos moradores e moradoras relatam, por exemplo, a dificuldade de capinar a braquiária e o colonião sem equipamentos, bem como a ocorrência fora do comum de formigas e outros animais afugentados pela pulverização intensiva das fazendas no entorno.”

A pesquisa de 2023 mostra tanto o peso de programas assistenciais como o Bolsa Família e as cestas de alimentos – uma expressão das possibilidades limitadas de soberania ou autonomia alimentar – quanto a negação do acesso a esses direitos por racismo institucional.  

Casos emblemáticos

As áreas estudadas têm em comum a luta histórica pela reocupação de seus territórios originários, o processo de demarcação estagnado e as mortes violentas de lideranças ao longo do movimento de retorno e autodemarcação territorial. “Foi difícil, para as lideranças da Aty Guasu, escolher apenas cinco retomadas de um universo de 60 que diariamente registram um quadro de violações generalizadas”, pontua o membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Flávio Vicente Machado. “Foram ao menos dois anos de assessoria jurídica e política especializada, por parte das organizações aliadas, às lideranças. O consenso resultou na identificação de comunidades emblemáticas dessa luta.”

Ele adianta que o retrato atualizado dessa realidade será incorporado à petição encaminhada em 2016 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh), em conjunto também com a FIAN Internacional e a Justiça Global. “Denunciamos ali o quadro histórico de violência e esbulho, ora sob omissão do Estado brasileiro, ora com sua contribuição ativa”, diz. “Esta nova documentação criteriosa aumenta a chance de admissão da petição baseada nas demandas dessas populações quanto a seus direitos territoriais, à vida, à integridade pessoal e às garantias e proteções judiciais, entre outros direitos civis, políticos e sociais. E o seu resultado beneficiará todo o povo Guarani e Kaiowá.”

Para o integrante do Conselho da Aty Guasu Genito Gomes, líder do tekoha de Guaiviry, a parceria dará mais visibilidade ao cenário de massacre. “As falas dos nossos grandes pais e mães trouxeram a voz sagrada para o relatório, que levará o nosso clamor às autoridades e mostrará como a gente vive”, diz. “Não dá mais para os fazendeiros seguirem nos matando, não dá mais para derramar sangue indígena.”

Genito aponta o Marco Temporal como uma lei criada pelos não indígenas para exterminar esses povos. A tese, inscrita na Lei 14.701/2023 pelos deputados e senadores, condiciona o direito territorial indígena à ocupação dos locais na data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que precisará voltar à questão. “Nós não aceitamos essa lei”, enfatiza. “Nossos grandes pais e mães criaram esta terra para a gente viver com saúde, plantar nosso próprio alimento – mandioca, milho, arroz, abóbora, feijão, banana.”

Metodologia mista e protagonismo

O estudo combina dados quantitativos e qualitativos. A parte quantitativa teve como principal instrumento de coleta um questionário construído com o apoio da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). O questionário passou por validação com a população do estudo por meio dos entrevistadores e das entrevistadoras da pesquisa.

“Foram várias etapas de aprimoramento, ouvindo pessoas-chave, até chegar ao aplicativo de celular usado nas entrevistas”, conta o pesquisador Lucas Luis de Faria, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que coordenou o trabalho com Verônica Gronau. “Essa metodologia não foi ao acaso. Ter as comunidades como protagonistas era um pressuposto e foi fundamental tanto em termos de legitimidade quanto de qualidade.” Houve várias devolutivas, conversas para apresentação dos resultados e escuta.

As dimensões qualitativas abrangeram a etnografia colaborativa e multissituada, observações de campo, registros fotográficos e escritos, história oral, descrições realizadas no decorrer das atividades de capacitação e entrevistas.

“Para realizar as entrevistas capacitamos 17 pessoas das próprias comunidades”, conta a pesquisadora Indianara Ramires Machado, mestre pela Universidade de São Paulo (USP). “Muitas delas destacaram a oportunidade de conhecer melhor as condições de vida das famílias ou viram mais a fundo coisas com que tinham contato no atendimento de saúde ou no cotidiano escolar. Algumas se mostraram interessadas no fazer científico. Que esse oguata [caminhada] seja mais um meio de empoderamento indígena”, completa a integrante da Ação dos Jovens Indígenas de Dourados (AJI).

A ideia é que as adaptações do app da Rede Penssan e da Escala de Insegurança Alimentar Indígena sirvam a pesquisas com outras etnias em todas as regiões do país.

Pressão pela garantia de direitos

“Queremos que o material tenha o máximo possível de usos, tanto na academia como na incidência – a pressão para que o poder público cumpra suas obrigações”, diz o antropólogo da Universidade de Lisboa Felipe Mattos Johnson, também da equipe, exemplificando com as manifestações do Abril Indígena em Brasília e em todo o país.

“Tudo o que vimos e ouvimos nesta construção reafirma que as condições para que os Guarani e Kaiowá possam viver de forma plena só estarão garantidas a partir de um conjunto de elementos, cosmológicos e institucionais, fortalecidos com a demarcação dos territórios.”

Insegurança Alimentar e Nutricional nas Retomadas Guarani e Kaiowá

O livro tem como subtítulo Um Estudo em Cinco Territórios Indígenas no Mato Grosso do Sul.

Assista à íntegra do lançamento, em 7 de fevereiro de 2024, e saiba mais sobre a metodologia, o processo e os achados da pesquisa.