Como levar a produção das agricultoras familiares aos pratos dos estudantes é tema de livro

Pedro Biondi, Paula Vianna e Viviane Brochardt

O cruzamento entre equidade de gênero, modos de produção mais sustentáveis e o desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes é o foco de Mulheres, Agroecologia e Alimentação Escolar: Recomendações ao Pnae.

Escrito por Vanessa Schottz com contribuições de Mariana Santarelli, o livro apresenta um conjunto de recomendações com o objetivo de ampliar e qualificar o acesso da produção das agricultoras agroecológicas ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, uma política com quase sete décadas e R$ 5,5 bilhões de orçamento, só em recursos federais, que é responsável pelas refeições de 40 milhões de estudantes das escolas públicas de todo o país. 

“Por sua capilaridade e sua escala, o Pnae representa um mercado institucional com enorme potencial na promoção do acesso à alimentação adequada, ao mesmo tempo que contribui para o fomento à produção de base familiar e agroecológica e a valorização da cultura alimentar local”, observa Schottz. “Mas nesse cenário também se expressam as profundas desigualdades que marcam a sociedade brasileira, o que se reverte em maior dificuldade de serem acolhidos, como fornecedores, as mulheres, jovens, indígenas e povos e comunidades tradicionais [PCTs].”

Lançado nesta sexta (5), Mulheres, Agroecologia e Alimentação Escolar é fruto de parceria entre a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), a FIAN Brasil e o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).

A análise identifica as dificuldades, desafios e oportunidades das compras públicas com base na pesquisa-ação “Comida de verdade nas escolas do campo e da cidade”, que teve a autora no grupo de trabalho de metodologia ao lado de Juliana Casemiro, Morgana Maselli e Flavia Londres.

“Nos nove municípios sobre os quais lançamos esse olhar, em 2019, encontramos experiências emblemáticas de acesso ao Pnae com protagonismo feminino”, conta Maselli. Em Remanso (BA), por exemplo, um grupo de mulheres pescadoras artesanais introduziu na merenda escolar espécies de peixes como pescada, tilápia, tucunaré e cari, ofertados como filé, mas também sob formas que aumentam seu prazo de validade, como conserva [peixe cozido em molho de tomate], linguiça, almôndega e hambúrguer de pescado. “Além de introduzir essas espécies no cardápio, aumentando a variedade nutricional, a movimentação com foco no programa estimulou a estruturação e o fortalecimento das ações desse grupo de mulheres”, explica Maselli.

“Na cota de 30% reservada à agricultura familiar nas suas aquisições, o Pnae deve, por lei, priorizar indígenas, PCTs, assentados e, desde o ano passado, grupos de mulheres”, comenta a assessora da FIAN Brasil e do ÓAÊ Luana Cunha. “Só que há muitos obstáculos para efetivar esse caminho, como mostram nossos estudos de caso em Caarapó [MS] e Tabatinga [AM]. Precisamos enfrentar a falta de estrutura e de vontade política, o racismo institucional e os lobbies para que essa política cumpra seu papel plenamente.”

A publicação integra a coleção do projeto “Equidade e saúde nos sistemas alimentares”, iniciativa focada nas compras públicas, que a FIAN concluiu no fim de 2023.

Sobre a importância do Programa Nacional de Alimentação Escolar

O Pnae é considerado uma das políticas públicas mais centrais e bem-sucedidas da estratégia de soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN), ao prever que ao menos 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) aos estados e municípios sejam utilizados para aquisição de alimentos produzidos pela agricultura familiar. Para se ter uma ideia, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), em escolas públicas localizadas em desertos alimentares, onde o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados é escasso ou impossível, às segundas-feiras, as crianças comem 50% a mais do que nos outros dias da semana”.

Estudo de caso: o Pnae e a cultura alimentar indígena em Caarapó (MS)

Por meio de entrevistas e rodas de conversa com diferentes públicos e instituições realizadas em maio de 2022, a FIAN Brasil produziu um estudo de caso que pretende contribuir para melhorar a oferta de alimentação escolar indígena em Caarapó (MS) e apoiar o fortalecimento da produção agroecológica das etnias Guarani e Kaiowá. Esta página reúne os materiais elaborados:

A adequação das refeições escolares em terras e escolas indígenas é um dos desafios do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que tem entre suas diretrizes o respeito à cultura, às tradições e aos hábitos alimentares saudáveis, ao que se soma a prioridade que deve ser dada às compras de alimentos produzidos por agricultores indígenas.

A regionalização da alimentação escolar é um caminho importante para a garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) dos povos indígenas, que historicamente sofrem violências e a precarização de seus sistemas alimentares, com graves consequências sobre o acesso à alimentos de qualidade e à própria cultura alimentar. O estudo de caso na Aldeia Te’yikue faz parte do projeto “Equidade e saúde nos sistemas alimentares”, com ênfase nas compras públicas.

Acompanhamento

A FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas acompanha a situação dos Guarani e Kaiowá desde 2005, sempre respeitando o protagonismo das organizações representativas das etnias e em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Tem contribuído, assim, para que as denúncias dos dois povos obtenham a devida repercussão nacional e internacional, em espaços como o Supremo Tribunal Federal (STF), o Parlamento Europeu e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh), assim como na imprensa.

Nota técnica encomendada pela FIAN a três pesquisadores em 2021, que abrangeu 12 comunidades, mostrou como a pandemia agravou a insegurança alimentar e nutricional nos territórios guarani e kaiowá. O trabalho reiterou constatação de levantamento concluído cinco anos antes, em que a insegurança alimentar apareceu em 100% dos domicílios de três localidades. Os autores assinalam a centralidade da regularização fundiária e de apoio à produção agroecológica para permitir a construção de uma vida digna e soberana.

No Mato Grosso do Sul, a entidade também tem participado das reuniões da Catrapovos, desdobramento da Mesa Permanente de Diálogo Catrapovos Brasil, composta por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil sob liderança do Ministério Público Federal (MPF) para fomentar a adoção da alimentação tradicional em escolas indígenas e de comunidades quilombolas, extrativistas e caiçaras, entre outras.

Observatório

A FIAN atua no tema, ainda, no âmbito do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), do qual compõe a secretaria executiva ao lado do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

Em 2022, o ÓAÊ engajou dezenas de organizações na campanha pelo reajuste do orçamento do Pnae, necessário para que as escolas consigam servir, como determina a Lei 11.947, refeições adequadas dos pontos de vista de quantitativo, nutricional e cultural – além de apoiar a agricultura familiar.