Em contexto de inflação e agravamento da fome, programa fica sem reajuste pelo quinto ano consecutivo; proposta será analisada pelo Congresso, enquanto sociedade civil pressiona por mais recursos
O governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) deixou de prever reajuste ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) ao apresentar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para o Congresso Nacional na quarta-feira (31). A versão enviada ao Legislativo mantém o represamento das verbas destinadas ao Pnae, que não são corrigidas desde 2017. O valor indicado no projeto é inferior a R$ 4 bilhões (R$ 3.961.907.292,00) e muito semelhante ao de 2022. O PLOA ainda será analisado pelos deputados/as e senadores/as. Além disso, organizações da sociedade civil pressionam para que haja mais recursos para o programa.
Essa é a segunda vez que Bolsonaro, em menos de um mês, nega-se a atualizar os recursos destinados para a alimentação escolar. Em uma deliberação anterior, ele vetou em 12 de agosto o reajuste aprovado pelos congressistas no projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023 – uma recomposição de 34% que cobria a defasagem dos últimos cinco anos. Ao justificar, na ocasião, o presidente argumentou que destinar mais recursos à alimentação escolar poderia drenar verbas de outros programas e estourar o “teto de gastos” do Poder Executivo previsto pela Emenda Constitucional nº 95[1]. Dezenas de organizações estão mobilizadas pela derrubada do veto, que depende de apreciação convocada pelo presidente do Congresso Nacional (e do Senado), Rodrigo Pacheco (PSD).
As decisões de Bolsonaro atingem em cheio uma das principais políticas públicas voltadas a garantir o direito humano à alimentação e nutrição adequadas, em um contexto no qual 33,1 milhões de pessoas passam fome diariamente no país, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil[2].
A alimentação escolar adequada é fundamental para um expressivo número de famílias brasileiras nessa situação. Para boa parte delas, as refeições na escola são a principal fonte de comida saudável de seus filhos. Estima-se que quase 40 milhões de estudantes são atendidos atualmente pelo Pnae[3] e que a insegurança alimentar grave, quando não se sabe o que haverá para comer de um dia para o outro, saltou de 9,4% das crianças de até 10 anos de idade em 2020 para 18,1% em 2022[4].
Além disso, a garantia da alimentação e nutrição adequadas está associada ao desenvolvimento cognitivo e permanência na escola para milhões de estudantes.
“Ao conjugar segurança alimentar, acesso à educação, desenvolvimento local e garantia de desenvolvimento biopsicossocial para as próximas gerações, a alimentação escolar é um exemplo de política pública que traz em seu desenho a própria definição de interesse público”, afirma a assessora de Segurança Alimentar do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Gabriele Carvalho, que coordena o projeto Equidade e Saúde nos Sistemas Alimentares, iniciativa da FIAN Brasil com foco nas compras públicas.
O ÓAÊ é uma articulação de organizações da sociedade civil para fiscalizar o cumprimento do Pnae e tem como secretaria executiva a FIAN Brasil e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).
Alimentação saudável
Ao mesmo tempo que protege da fome crianças de adolescentes de famílias mais socialmente vulneráveis, o Pnae é uma importante fonte de renda para a agricultura familiar. A lei que estabelece o programa[5] prevê que 30% do valor repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) deve ser utilizado para a compra direta dessa modalidade de produção rural.
A agricultura familiar é a principal responsável pela produção de boa parte dos principais alimentos in natura consumidos pela população brasileira. Responde por 80% do valor da mandioca produzida, 42% do feijão e algumas frutas, como 69% do abacaxi, de acordo com informações do último Censo Agro realizado pelo IBGE[6].
“O fornecimento de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar garante renda para diversas famílias de agricultoras e agricultores em todo o país. É uma ferramenta essencial para a garantia do direito à alimentação, sobretudo da alimentação saudável, indissociável à garantia de outros direitos, como o próprio direito à educação”, acrescenta Carvalho.
Por que corrigir
O reajuste vetado por Bolsonaro é cerca de 15 vezes inferior ao que foi sancionado para a execução de emendas de relator, também conhecidas como “RP9” ou “orçamento secreto”. Ou mais de 30 vezes inferior ao impacto orçamentário da PEC 1/22, que determina um conjunto de benefícios temporários, ao longo de 2022, e são entendidos pelo governo como necessários em um estado de emergência.
“Se existiu no passado recente a possibilidade de crédito extraordinário para viabilizar o atendimento a situações emergenciais, consideramos pertinente trazer também esta possibilidade para a alimentação escolar – que não é uma inimiga do orçamento público, muito pelo contrário: é um instrumento poderoso de combate a emergências”, afirma o assessor de Advocacy da FIAN Brasil, Pedro Vasconcelos.
“Os e as parlamentares demonstraram sensibilidade para o tema, tanto que o reajuste fez parte de um acordo entre diversos partidos. Acreditamos que vão ouvir a sociedade e derrubar esse veto, evitando que essa vitória do direito à alimentação seja cancelada por uma canetada”, conclui.