A partir de 2003 o governo federal adotou uma política de segurança alimentar e nutricional como carro chefe de suas ações. Apesar das contradições desse período, foram adotados marcos legais e institucionais para a realização do direito à alimentação e foram criados, de maneira participativa, programas como o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa um milhão de cisternas. Essas medidas, aliadas, a outros fatores, permitiram que o Brasil avançasse em alguns indicadores relacionados à pobreza, à desnutrição e à mortalidade infantil. Por essa razão o país se tornou uma referência em políticas de segurança alimentar e nutricional em todo o mundo.
No entanto, principalmente a partir do golpe de 2016, houve, além do enfraquecimento da democracia, graves retrocessos que representaram uma inflexão nas conquistas alcançadas nos anos anteriores e um acentuado desmonte do Estado, essa foi a principal constatação do informe “Da democratização ao golpe: avanços e retrocessos na garantia do DHANA no Brasil”, lançado em 2017.
Em 2019, a Fian Brasil em parceria com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, dando continuidade ao relatório de 2017, apresenta o Informe sobre o Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas 2019: autoritarismo, negação de direitos e fome, lançado no dia 5 de novembro, em audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília.
O Informe é escrito num momento em que, segundo o Estado de Segurança Alimentar e Nutricional do Mundo (SOFI), o número de pessoas que enfrentam a fome no mundo aumentou, já são cerca de 821 milhões de pessoas em todo o mundo. Com a nova inclusão do indicador FIES (Food Insecurity Experience Scale) e uma avaliação da insegurança alimentar moderada, temos números ainda maiores que indicam que aproximadamente 2 bilhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar, numa escala global. O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em agosto deste ano, revela como os sistemas alimentares hegemônicos são responsáveis por gases de efeito estufa e o impacto que o aquecimento global pode ter sobre a segurança alimentar, afetando especialmente países de clima tropical.
O também recente informe da Lancet, seguindo a mesma linha de argumentos, registra que atualmente os sistemas alimentares são responsáveis pelo que especialistas estão considerando como uma “Sindemia Global” a sinergia de três pandemias: obesidade, desnutrição e mudanças climáticas e que estes sistemas geram desigualdades, em muitos casos expulsam de suas terras, em todo o mundo, milhões de pessoas que produzem alimentos diversificados para a própria subsistência ou para o mercado, tornando assim nossa alimentação cada vez mais monótona e menos saudável.
Esses dados são preocupantes, especialmente se considerarmos o contexto global de regressão dos direitos humanos e o crescimento do poder corporativo, bem como do autoritarismo governamental, em diversas partes do mundo, fenômenos que representam grave ameaça e lesões concretas ao Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA), em todo mundo.
O Brasil segue este fluxo, assistimos ao crescimento do autoritarismo e do neoliberalismo e seu nefasto impacto sobre a democracia, sobre os sistemas alimentares e sobre o direito à alimentação. Quando a economia, prevalece sobre direitos, a vida de muitas pessoas está em ameaça.
O Informe DHANA 2019 registra e denuncia as diferentes ações e omissões que retiram do povo brasileiro a possibilidade de produzir e consumir alimentos adequados, saudáveis e sustentáveis. A publicação analisa criticamente as duas dimensões do Dhana: o direito de não sofrer fome e o direito de produzir e consumir alimentos de forma sustentável e saudável, os retrocessos nas áreas de proteção social e combate à fome, de produção e consumo de alimentos sustentáveis.
A publicação apresenta um olhar para a grave crise que se passa no país, desde a perspectiva do Dhana e da soberania alimentar.
“No Brasil estamos cada vez mais caminhando para sistemas alimentares insustentáveis e que não alimentam. Um exemplo disso, é que entre 60% e 70% das compras de uma família são produzidas por dez grandes empresas, entre elas: Unilever, Nestlé, Procter e Gamble, Kraft e Coca-Cola, o que leva a uma alimentação cada vez mais monótona e ultra processada, associada à perda da biodiversidade e aumento de doenças crônicas, simultaneamente”, destacou durante o lançamento, Mariana Santarelli, uma das pesquisadoras responsáveis pela elaboração do Informe e que é relatora especial de Direitos Humanos da Plataforma Dhesca.
Pobreza e desigualdade
Para Francisco Menezes, representante do Fbssan – Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e consultor da Action Aid Brasil, o Informe denuncia também o falso conceito de que na economia só exista uma verdade, um único modelo possível, que é o neoliberalismo. “A crise que acontece no mundo desde 2008 mostra como o receituário desse modelo neoliberal está, inclusive, fazendo com que tenhamos a crise econômica mais longa da história. A parte do relatório que trata sobre economia é muito importante, principalmente porque o aspecto econômico incide muito no direito humano à alimentação”.
Na apresentação, Menezes destacou que os dados de 2018 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD contínua/IBGE), mostram uma trajetória preocupante de crescimento da pobreza e mais ainda da extrema pobreza. “Em 2015 existia uma aplicação de políticas incorretas, mas existia também uma crise política que impedia o governo de governar e, a partir disso tivemos o crescimento da pobreza e extrema pobreza de forma bastante acelerada e é impressionante que até agora não existam quaisquer políticas de reversão dessa tendência. Em quatro anos a pobreza voltou ao nível de 8 anos atrás e a extrema pobreza ao nível de 13, já a desigualdade voltou ao nível de 10 anos atrás, pela renda monetária”.
Autoritarismo e retirada de direitos
“O neoliberalismo, mais do que uma política econômica, é uma racionalidade política que impõe a lógica da livre concorrência e da empresa como única forma de organização possível, essa racionalidade tem sido abraçada pelo Estado, que passa ele próprio a agir como empresa, que passa a privatizar e flexibilizar direitos. O neoliberalismo é um projeto que inverte o fardo da economia, permitindo concentração de renda e, portanto, mais desigualdade. Projetos que retiram direitos e ameaçam a vida não são aprovados se não por medidas autoritárias. No campo da Segurança Alimentar, a primeira Medida Provisória do Presidente já trazia a extinção do Consea e uma proposta para que as organizações não governamentais pudessem ser supervisionadas pelo governo. Embora esse último dispositivo tenha sido retirado da MP, no momento de sua conversão em lei, o que vemos é que a redução de espaços democráticos, não só o Consea, mas também outros conselhos, demonstram um caráter autoritário do Governo, porque a democracia não é representada só pelo voto, é representada também pelo espaço para conflitos, para visões plurais, para a criação e manutenção de direitos. O que temos assistido é que, em vez de reduzir desigualdades, a opção deste governo é de reduzir a democracia”, ressalta a Secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.
Para a procuradora federal dos Direitos dos Cidadãos, Deborah Duprat, as políticas de austeridade que começam com a crise de 2008 “já foram avaliadas no resto do mundo, principalmente na Europa. Vários estudos foram realizados mostrando que essas políticas também são políticas que vão ampliar as desigualdades e que impactam muito fortemente os direitos fundamentais, os direitos sociais. Nós então, aqui no Brasil, já tínhamos como antecipar, de alguma maneira, o que vinha se anunciando em termos de economia, e temos no Brasil um grande exemplo de como essas políticas de austeridade impactam nas políticas públicas, que é Emenda Constitucional 95 que reduz o investimento público por 20 anos, quando se reduz o investimento público não se leva adiante políticas de enfrentamento às desigualdades e aos cenários de fome”.
Extinção do Consea
A extinção do Consea e seus efeitos também foram destacados em diversas falas, entre elas a da ex-presidenta do Conselho, Elisabetta Recine. “Acabar com o Consea não é acabar com um espaço de participação social, é desestruturar todo um processo de fazer política pública, que longe de perfeito, construiu exemplos de uma outra forma de se fazer política pública, como a qualificação do PNAE, todas as modalidades do PAA, a estratégia intersetorial de controle da obesidade, são alguns exemplos construídos no âmbito do Consea que estamos perdendo”.
Representante da coordenação nacional do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Antônia Silva, falou sobre a importância da reforma agrária para a produção de alimentos saudáveis. “Esse governo é uma enxurrada de desgraças para nós, toda essa gravidade, como o aumento da fome, pode se agravar ainda mais quando chegarem os efeitos das mudanças que estão sendo feitas nesse país, como os efeitos da reforma da previdência, o fim da seguridade social, como a flexibilização de leis como bem o relatório mostrou, como o fim e paralisação de acesso à terra para quilombolas, indígenas, sem terra e todos os outros trabalhadores, como o fim da agricultura familiar anunciado pela Ministra. Esses tempos só vão passar com nossa força, com nossa capacidade de lutar”.
ASSISTA AQUI A AUDIÊNCIA PÚBLICA DE LANÇAMENTO DO INFORME DHANA
Conferência Popular
Durante o lançamento, também foi reforçado o chamado para construção e participação da sociedade na Conferência Nacional, Popular, Autônoma: por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional a ser realizada no primeiro semestre de 2020. A realização das Conferências Regionais, Estaduais e da Conferência Popular são uma resposta da sociedade civil à extinção do Consea.
Parlamentares
Presidida pelo Deputado Federal Leonardo Monteiro, a audiência pública de lançamento do Informe Dhana 2019 contou com a participação de outros parlamentares, entre eles: Luiza Erundina, Erika Kokay, Patrus Ananias, Airton Faleiros, Nilto Tatto. Os parlamentares ressaltaram a importância da publicação para subsidiar questões que envolvem a pauta na Câmara dos Deputados.
Lançamentos
Além do lançamento nacional, o informe foi lançado em São Paulo, na Assembléia Legislativa, no dia 31 de outubro. Os próximos lançamentos do Informe Dhana 2019 acontecem no dia 13 de novembro em Teresina (PI) e no dia 20 de novembro em João Pessoa (PB). O Informe Dhana 2019 é uma iniciativa da FIAN Brasil, em parceria com o FBSSAN – Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, e com o apoio de Pão Para o Mundo (PPM), Misereor e Heks/Eper.