Por Valéria Burity, secretária-geral da FIAN Brasil
Foto: Elson Júnior/Flickr
Desde que apareceu na
China e parecia ser só um conto de um mundo distante, bem distante de nós, a pandemia
da Covid-19 contaminou cerca de 1,5 milhão de pessoas, levando a mais de 85 mil
mortes em todo mundo – número possivelmente subestimado. Cenas como as de
pessoas morrendo distantes de suas famílias e sem direito a ritos funerais, manchetes
sobre sistemas de saúde em colapso, notícias a respeito da difícil decisão de
escolher quem, sob risco de morte, seria ou não atendido por esses sistemas, a
visão dos hospitais de campanha montados pelo mundo e o impactante cenário de
corpos empilhados em Guayaquil (Equador) provocam angústia, medo e sensação de
desamparo. Sentimentos armazenados, cozidos e digeridos em quarentena e
sentidos de forma diferente, como diferente e desigual é o acesso à renda, à educação,
ao saneamento, à moradia e à vida no nosso país. Sim, a calamidade afetará com
mais rigor os grupos que já são historicamente vítimas de violações de
direitos. Sobre isso, vale ler a pesquisa “COVID-19
e desigualdade: a distribuição dos fatores de risco no Brasil”.
A relação da doença com o
processo alimentar é estreita. A pandemia e os sistemas alimentares que
abastecem o planeta se entrelaçam em sua origem e seus impactos.
Embora o aparecimento do surto
tenha sido inicialmente associado ao mercado de Wuhan (China), já há hipóteses
científicas que o ligam à industrialização da produção de carne – a organização
Grain
escreveu recentemente sobre isso. A investigação sobre a origem da pandemia ainda
não é conclusiva. É importante, porém, estarmos atentos aos riscos de novas catástrofes
sanitárias globais em razão dos nossos sistemas alimentares. O agronegócio tem
provocado a devastação ambiental e destruído os últimos refúgios da natureza, um
dos elementos que fazem autores classificarem esta era como o capitaloceno –
uma réplica ao conceito do antropoceno. Com essa supressão caem por terra
barreiras contra microrganismos que podem nos provocar graves doenças. De outro
lado, a criação industrial de animais reduz a sua imunidade. Esses, entre
outros fatores associados, possibilitam que vírus inoculados nesses animais se
manifestem de forma agressiva, em alguns casos afetando humanos. Nas palavras do
pesquisador americano Rob Wallace, grandes fazendas geram grandes gripes.
E há outras externalidades provocadas por esse modelo. Quando alimento é commodity,
um produto padrão que pode ser vendido em qualquer lugar do mundo e a qualquer
custo, o lucro é sempre mais importante do que vidas.
O vírus Sars-Cov-2, o
novo coronavírus, tem imensa capacidade de proliferar. Em alguns casos a doença
que ele provoca, a Covid-19, pode levar à necessidade de internação hospitalar.
É isso que tem gerado caos nos sistemas de saúde mundo afora. A medida
considerada mais efetiva, neste momento em que ainda não há remédio ou vacina
para a doença, é o isolamento social. Exatamente por isso a pandemia tem, para
além dos efeitos sanitários, fortes impactos econômicos e sociais. No que diz
respeito ao processo alimentar, o isolamento social afeta todas as etapas: produção,
troca, comercialização, consumo e aproveitamento de alimentos. Daí surge o
dilema tão em uso pelo atual presidente da República: “Economia rodando e geração
de renda ou isolamento social e fome?”. O capitão reformado, que nem tomou
conhecimento do problema na campanha e pouco tempo atrás negou
a existência de famintos e desnutridos no país,
tem mantido conflitos públicos com o seu ministro da Saúde, que, seguindo as
orientações da OMS sob permanente ameaça de exoneração, recomenda à população
brasileira ficar em casa.
Fome versus exposição ao
contágio é apresentado como dilema em nossas vidas
interrompidas por esta pandemia, mas a questão é menos dilemática e muito mais emblemática
da crise na democracia e na economia vivida no mundo e também no Brasil. Há um processo
de concentração de riquezas que avança a passos largos. Um dos pilares desse fenômeno,
na ordem econômica capitalista, é o prevalecimento do neoliberalismo ao Estado
de bem-estar social, que apesar dos seus limites traz propostas de inclusão e
padrões de justiça social. O fortalecimento do modelo pró-Estado mínimo vem
pondo em xeque o próprio regime democrático, o que tem levado diversas
sociedades a enfrentarem graves crises políticas, a exemplo do que se vê na
América Latina.
Os críticos do neoliberalismo
o descrevem não apenas como uma doutrina econômica, mas como uma racionalidade
pautada em dois princípios: a concorrência e a empresa, esta a única forma de
organização aceita por tal pensamento. O Estado, responsável pela incorporação
desses pilares, abre espaços para grandes corporações obterem mais lucros. Passa
a ser concebido como empresa, rifando seus bens, privatizando direitos e
estimulando a concorrência no interior da sociedade. Há negação do público e da
política, pois a virtude está no mercado. Por isso, parte da sociedade também
se pauta e age pela lógica do cada um por si ou do todos contra todos,
defendendo uma meritocracia miraculosa, que ignora os pontos de partida muito
distintos.
Grande parte da população
se vê como empresária de si mesma, pois quem não se alinha à forma de empresa é
excluído, seja pelo empobrecimento, seja pelo encarceramento ou ainda pelo
extermínio – a nefasta necropolítica. Isso tem afetado especialmente indivíduos
de classes econômicas mais baixas, bem como grupos que se reconhecem por sua
raça e por seu gênero, já que racismo e machismo são estruturantes na geração e
na manutenção da desigualdade. A perversidade ideológica aqui se dá porque
mesmo indivíduos aviltados em seus direitos, muitas vezes, passam a adotar a lógica
dominante, favorecendo os interesses de 1% da população, o topo da pirâmide que
manipula todos que estão abaixo. O neoliberalismo soube bem aproveitar as insatisfações
por ele mesmo geradas.
Medidas neoliberais foram
responsáveis por desmontar as estruturas de Estado criadas para garantir o
direito à alimentação da população aqui no Brasil. Desde 2016 o Sistema
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) e a Política Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional vêm sofrendo profundos ataques. A Emenda
Constitucional 95, que congelou investimento sociais por 20 anos para garantir o
pagamento de juros a bancos, teve um papel central nesse sentido. Agravando
esse quadro, na sua primeira medida provisória (a 870) Jair Bolsonaro extinguiu
o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e desde então
vem minando instituições e programas públicos essenciais para a população.
Se houvesse verdadeira
preocupação com a fome, esse desmonte jamais poderia ter acontecido. A garantia
de alimentação suficiente, adequada e saudável e a construção de sistemas
alimentares sustentáveis demandam políticas intersetoriais, participativas. Em
um momento como o que vivemos agora, fica ainda mais nítida a necessidade de
termos um Estado forte e políticas públicas para atender necessidades básicas
da vida de toda e qualquer pessoa, como… comer. É por isso que o dilema posto
é falso. As instituições que compõem o Estado podem e devem se organizar para
garantir comida de verdade, e devem fazer isso com máxima urgência, especialmente
em um período em que sair o mínimo à rua é crucial para nossa sobrevivência.
Nesta pandemia há uma série de medidas que podem ser adotadas para garantir direitos, para evitar a fome e o sofrimento, sem que as pessoas sejam compelidas a romper o isolamento social. O documento recentemente elaborado por mais de 150 organizações da sociedade civil brasileira Garantir o direito à alimentação e combater a fome em tempos de coronavírus: a vida e a dignidade humana em primeiro lugar! aponta uma série de ações urgentes e emergenciais que podem ser adotadas nesse sentido. Recursos podem ser alcançados sem mais sacrifícios aos setores mais empobrecidos da população, com medidas de justiça fiscal como a taxação de grandes fortunas e dividendos. Se há saídas viáveis em prol da vida, a economia para poucos interessa e serve a quem?
Quando e como sairemos
deste pesadelo, infelizmente não sabemos ao certo. Mas existe a esperança de que até lá haja uma
maior compreensão de que vivemos em sociedade e de que toda vida importa, de
que já ultrapassamos todos os limites na nossa relação com a natureza, que os
sistemas alimentares devem produzir comida para vida e não para o
enriquecimento de poucos, que o Estado é importante e que garantir direitos é
sua maior urgência, que somos plurais e desiguais e que essa diversidade não
pode ser uma sentença de morte.
Se conseguirmos
compreender que alimentação é cultura, é nosso patrimônio e nosso direito, quem
sabe possamos reverter o triste rumo de nossa história e negar, com toda força,
qualquer falso dilema que nos empurre para a morte.