Prato do Dia | Alteração do artigo 6º da Constituição Federal (PEC 17/2023): um grave risco ao direito humano à alimentação

Partindo das bases conceituais e jurídicas do direito humano à alimentação adequada, o texto analisa propostas de emenda à Constituição que tramitam no Congresso Nacional, em particular a PEC 17, e como põem em risco essa conquista. É de autoria das diretoras da FIAN Brasil Míriam Balestro e Norma Alberto e do diretor Irio Conti.

Leia o artigo e a recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) no mesmo sentido.

Carta ao governo e ao Congresso propõe melhorias no acesso ao Pnae para indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais

Texto: Assessorias de Comunicação das entidades organizadores do encontro

Foi lançada nesta segunda-feira (8) a carta-proposta “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?”. A carta contém 23 proposições para tornar realidade melhorias discutidas durante encontro homônimo realizado em Brasília. O documento com 18 recomendações ao governo federal e cinco dirigidas ao Congresso Nacional foi entregue a representantes desses poderes, bem como do Judiciário e do Ministério Público.

O objetivo é promover as compras locais e o acesso dessas populações ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) como fornecedoras e adequar o cardápio escolar do ponto de vista cultural, como previsto na lei do Pnae (Lei 11.947, de 2009) e nas resoluções e portarias que a regulamentam. 

“O Pnae é uma política pública de grande dimensão e importância, desempenhando papel fundamental na garantia da segurança alimentar e nutricional [SAN], no apoio à agricultura familiar e na promoção de uma alimentação saudável, cultural e adequada. Porém, é necessário olhar para as diversidades e desigualdades presentes em sua execução, para garantir a concretização de suas determinações legais e a exigibilidade do direito à alimentação escolar”, explica a assessora executiva e de pesquisa do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Luana de Lima Cunha.

Assinam o texto 52 organizações e pessoas, entre entidades da sociedade civil, associações comunitárias, associações e lideranças indígenas, associações quilombolas, grupos informais, nutricionistas, centros de pesquisa, secretarias de Educação e prefeituras.

“Os relatos e debates do encontro destacaram o potencial e os gargalos do programa para atender os modos de vida e de produção de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, tanto como fornecedores quanto como estudantes nas escolas situadas nos territórios”, observa a secretária executiva do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), Laura Souza.

As recomendações cobram a plena execução das diretrizes estabelecidas há 15 anos na Lei da Alimentação Escolar (11.947/2009) – um marco no Pnae. Criado há quase  70 anos e presente em todo o Brasil, o programa é uma política pública consolidada, inspiradora e de enorme alcance. Mas, na prática, ainda são muitos os desafios para que cumpra todos os seus objetivos.

Mais adequações e menos burocracia

A criação de um marco normativo específico para as compras públicas para povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais está entre as 18 recomendações voltadas para o Governo Federal. A ideia é que seja uma resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) orientada pela perspectiva de reconhecimento do autoconsumo, da autodeterminação dos povos e da promoção das economias da sociobiodiversidade.

Isso passaria por uma adequação das chamadas públicas, do cadastro dos agricultores/as e das exigências sanitárias, considerando ainda as necessidades logísticas e de mecanismos de mitigação relativos a eventos climáticos. O primeiro grande entrave é o acesso à documentação exigida. São empecilhos a falta de documentos básicos, como RG e CPF, de cadastro do produtor e a obtenção do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF).

Segundo Vitória Rodrigues da Silva, agricultora da aldeia Lourdes, terra indígena (TI) não demarcada em Boca do Acre (AM), “vender alimentos para o programa significa mais uma oportunidade de renda, mesmo com as dificuldades de logística e demandas de burocracia, que exigem que a gente vá para a cidade”.

A necessidade de se deslocar para a sede do município é um empecilho para esses agricultores/as. Em muitos casos, o trajeto leva um dia inteiro. Por isso, uma das recomendações ao poder público é a “criação de um aplicativo para a automatização dos processos de assinaturas de contratos, emissão de guias de entrega, notas e pagamentos”.

Vitória destaca em sua fala a virtude presente no autoconsumo, “Nós queremos melhorar nosso trabalho, nossa comunidade. E isso também é pelos nossos filhos, porque entregamos nossos produtos na escola deles”.

São muitos os relatos sobre o excesso de burocracia, a escassez de informações e a inadequação das chamadas públicas – processo pelo qual agricultoras e agricultores são chamados para apresentar propostas de venda para o Pnae. Há chamadas que não se adequam à sazonalidade de plantio e cardápios sem adequação à realidade produtiva de cada localidade. “Se não tem nosso alimento no cardápio escolar, não tem demanda e, consequentemente, não tem venda”, descreve Daniel Mendes Vieira.

Ele compõe o Núcleo Pequi, uma rede de associações, cooperativas e instituições voltada à assistência de agricultores e extrativistas do Norte de Minas Gerais. O núcleo realiza capacitações e outras ações para contribuir com o aproveitamento das safras e venda dessa produção do Cerrado.

Para aumentar a aceitação dos alimentos locais na alimentação escolar, acontecem capacitações com os associados para análises de como vender os produtos beneficiados. “Nelas desenvolvemos receitas para inclusão nos cardápios da alimentação escolar”, conta. “Isso é feito junto a uma articulação entre as pontas de cada lado. Nutricionistas da alimentação escolar e associados da agricultura familiar conversam e se articulam.”

Diálogo com o Executivo

As recomendações voltadas ao Executivo federal dirigem-se ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e demais órgãos que fazem parte do Comitê Gestor do Pnae – composto por ministérios e autarquias federais.

Uma das orientações é para que se mantenha ativo e efetivo o Grupo de Trabalho de Povos e Comunidades Tradicionais, no âmbito do Grupo Consultivo, do Comitê Gestor do Pnae.

“A participação de representantes do poder público na mesa do encontro dedicada a esse diálogo trouxe contribuições para o aperfeiçoamento das propostas e reforçou a expectativa de que a carta seja acolhida”, avalia Laura Souza, do ÓSocioBio. “Os avanços no PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] nos últimos dois anos, por exemplo, mostram que é perfeitamente possível.”

Em 2023, algumas importantes medidas foram implementadas pelo Governo Federal. Entre elas, a autodeclaração de renda e de pertencimento étnico indígena e quilombola, em substituição aos documentos de comprovação de propriedade particular, com a retirada da exigência de CPF de todos os membros da família. O Número de Identificação Social (NIS) do Cadastro Único das Políticas Sociais (CadÚnico) também passou a ser aceito como instrumento de comprovação para acesso de povos e comunidades tradicionais (PCTs) ao Pnae e ao PAA. E abriu-se a possibilidade de que povos e comunidades forneçam alimentos diretamente nas escolas de seu território por meio do PAA, com o NIS como referência. Mas ainda há desconhecimento em relação a essas mudanças e como operá-las, tanto por parte de agricultores quanto de gestores.

“Aprendemos no encontro coisas que não sabíamos – leis, estratégias – e vamos voltar para a nossa cidade empoderadas e mais preparadas para lutar pelos nossos direitos”, relata Joelma Meneses da Silva Souza. A agricultora compõe a Associação de Mulheres Produtoras de Polpas de Frutas (AMPPF), que organiza a produção de mais de 60 associadas/os – 80% mulheres – e suas famílias para a venda de polpas de frutas à alimentação escolar em São Félix do Xingu (PA).

Reconhecimento de povos e comunidades tradicionais

Um desafio para o acesso é o não reconhecimento de todos os segmentos de povos e comunidades tradicionais existentes, tanto na Lei do Pnae quanto nos cadastros utilizados para as compras institucionais. Isso dificulta para esses grupos o fornecimento de alimentos ao programa e a exclusão de benefícios e normas que deveriam contemplá-los.

Maria de Jesus, conhecida como Janete, é coordenadora do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) no Piauí. Segundo ela, as quebradeiras beneficiam diversos alimentos a partir do coco babaçu, como a amêndoa; o mesocarpo; o azeite, que vem substituindo o óleo de soja na comunidade; e a farinha, carro-chefe das vendas. Também são agricultoras e produzem diversos outros alimentos.

Apesar de hoje terem acesso ao Pnae dentro dos territórios, “as informações não chegam de um jeito que os produtos estejam dentro das chamadas”. As quebradeiras até apresentam propostas de inclusão de produtos no cardápio, mas não conseguem aceitação na maioria das vezes.  

Para enfrentar esses desafios, entre as recomendações da carta ao Executivo Federal estão: a adequação das diretrizes nutricionais à realidade dos PCTs e o aumento de sua representação nos conselhos de Alimentação Escolar (CAEs); a inclusão de todas as categorias com assento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e no Cadastro Único das Políticas Sociais (CadÚnico); a inclusão no Censo Escolar da identificação de escolas e estudantes de povos e comunidades tradicionais em geral; e a elaboração de um novo modelo de chamada pública específica.

Para o Congresso Nacional também se recomenda a inclusão como prioridade na lei do Pnae de todos os grupos sociais que têm assento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).

Apesar de todas as limitações e da desvalorização dos produtos, Maria de Jesus aponta que as quebradeiras “têm visto que o Pnae e o PAA trazem avanços para as mulheres associadas”.

Costurando caminhos

Na ausência e/ou insuficiência de leis e marcos regulatórios que garantam a devida adequação e execução das diretrizes do Pnae em todos os 5.570 municípios brasileiros, relatos apresentados no encontro mostram caminhos possíveis para inspirar o poder público.

Uma experiência exitosa da adequação do Pnae apresentada no encontro foi o caso de Afuá, município da Ilha de Marajó, no Pará, com o projeto “Açaí direto na escola”. Lá, as cozinhas escolares possuem despolpadeiras. As cozinheiras recebem treinamento de boas práticas para a manipulação no processamento do fruto. E agricultoras e agricultores o entregam diretamente nas escolas, no dia em que o açaí será ofertado no cardápio, obedecendo aos critérios do termo de entrega de alimentos.

O projeto é desenvolvido desde 2022 nas escolas da sede do município, com perspectiva de ampliação para as demais unidades escolares. Exemplo da regionalização do cardápio com a inclusão de alimentos da sociobiodiversidade, a iniciativa nasceu do diálogo entre o Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar da Universidade Federal do Pará (Cecane/Ufpa), a Prefeitura Municipal de Afuá, a população ribeirinha local e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater/PA).

Neri Gemaque de Almeida é agricultor ribeirinho e uma dos produtores de açaí que realiza a entrega diretamente nas escolas do município. Para tal tarefa, ela utiliza uma bicicleta adaptada. Questionado sobre a aceitabilidade do item na alimentação, afirma que “está sendo um sucesso”.

Ele e outros produtores vendem também para o município vizinho, mas o principal destino é a alimentação escolar de Afuá. “Vendemos principalmente o açaí chumbinho. É de muita qualidade. Tem mais polpa e faz sucesso com as crianças. Comem junto com frango, com farinha, na refeição e também como suco”, relata o ribeirinho.

A adequação das cozinhas e capacitação das cozinheiras foi um ponto muito importante neste processo, além do acompanhamento de nutricionistas. São muitos os relatos de como a precarização das cozinhas escolares e das condições de trabalho de cozinheiras e nutricionistas impedem avanços na implementação das diretrizes do Pnae.

Neste sentido, outra recomendação apresentada ao governo federal é a instituição de um plano de carreira para as nutricionistas e cozinheiras. E investimentos para estruturar e equipar as cozinhas escolares.

Outro exemplo do Norte do país está em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. O município, considerado um dos três mais indígenas do Brasil, não teve nenhuma compra para alimentação escolar vinda de agricultores indígenas entre 2016 e 2017.

Em 2019, a partir de nota técnica do Ministério Público Federal (MPF), uma articulação uniu instituições do poder público para fazer visitas aos territórios, em diálogo com as comunidades e organizações locais. Assim se chegou à marca de 130 projetos de venda firmados em 2024. 

“Foi a partir desse momento, de sair do município e adentrar os territórios, que muitos agricultores conseguiram acessar as chamadas”, descreve Beatriz Castro Barbosa, nutricionista da Secretaria de Educação local. “Logo depois entrou a pandemia e esses agricultores já cadastrados puderam entregar nas próprias comunidades. Isso garantiu renda aos agricultores e alimento para as famílias.”

O agricultor indígena Cenaide Pastor Marques Lima também acompanhou esse processo. Ele integra a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e preside o Conselho de Alimentação Escolar (CAE) no município.

Para ele, foi importante começarem a fazer chamadas públicas nas comunidades, aumentando o tempo hábil de chamamento, “para que a mensagem chegasse e para que os agricultores pudessem se organizar”.

A partir desses diálogos, foi-se entendendo a sazonalidade de plantios para a adaptação dos cardápios das diferentes regiões, por ser um território extenso. Ainda existem desafios para incluir mais agricultores, mas estão ocorrendo avanços com normas que simplificam o cadastramento de agricultores individuais – como o uso do NIS e a dispensa de normas sanitárias por se tratar de autoconsumo. “Isso tem sido muito animador para as comunidades”, conta Cenaide. 

“A meta é alcançar mais comunidades para apoiar e ampliar as chamadas”, relata Beatriz. “Tivemos neste ano 128 agricultores participando, entre grupos formais e informais, no valor total de R$ 637.609,60.”

Apesar dos avanços, um problema vivenciado em boa parte dos municípios do Amazonas é o alto gasto logístico da distribuição dos alimentos não perecíveis. Estes, acabam por consumir parte significativa do orçamento destinado à alimentação escolar, a consequência é que, em muitos dias letivos, falta alimento nas escolas.

Analisando as experiências exitosas e os obstáculos existentes, outras recomendações da carta são: a criação de um programa de agentes de apoio ao Pnae e ao PAA; a capacitação de servidores dos órgãos gestores dos territórios tradicionais; a integração das diferentes políticas voltadas à agricultura familiar e aos povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais; e a aceleração e ampliação de políticas complementares, como demarcação das terras indígenas e territórios, assistência técnica e extensão rural (Ater) agroecológica, crédito rural e estruturação de agroindústrias.

Compreendendo a situação de insegurança social que muitas dessas populações vivem, o documento também orienta para se assegurar que o fornecimento ao Pnae não prejudique o acesso a benefícios socioassistenciais como Seguro Defeso e Bolsa Família. Outra recomendação consiste em fomentar a adesão de estados e Distrito Federal ao consórcio nacional Convênio ICMS 139 ou outros que isentem a agricultura familiar da cobrança de impostos no caso de comercialização para os programas nacionais de compras públicas.

Necessidade de reajuste anual

Um ponto muito discutido foi a insuficiência de recursos para o Pnae. Além de representar um risco para a adequada alimentação dos estudantes, a questão se desdobra em diversos entraves para o segmentos da agricultura familiar, da desvalorização de sua produção a atrasos nos pagamentos. “Somos obrigados a entregar sem receber e arcar com todos os custos. Não queremos mais trabalhar dessa forma, pois estamos tendo prejuízo”, relatou uma agricultora durante o debate.

Segundo a Foirn, estudos realizados no estado do Amazonas mostram que o valor da refeição, seguindo as resoluções do FNDE, teria um custo mínimo R$ 3,46. Valor muito acima de R$ 0,86, que é per capita atual do Pnae para estudantes matriculados em escolas de educação básica localizadas em áreas indígenas e remanescentes de quilombos.

Nem todos os municípios destinam o mínimo de 30% estabelecido em lei para as compras da agricultura familiar. E a complementação de recursos por estados e municípios, em muitos casos, é insuficiente ou inexistente.

Para enfrentar essa situação, entre as recomendações ao Governo Federal está o aprimoramento do desenho de financiamento do Pnae para o enfrentamento das desigualdades, e a ampliação do orçamento do programa e também do PAA. Para o Congresso Nacional é proposto que se crie mecanismo de reajuste anual dos valores per capita na lei do Pnae – a exemplo do  PL 2.754/2023.

Por avanços no Congresso

A parte da carta voltada ao Parlamento traz proposições legislativas que possibilitem avanços e evitem retrocessos nos direitos das populações. Entre as recomendações estão: rejeitar projetos de lei que proponham a retirada a prioridade de povos indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária e mulheres nas compras públicas do Pnae; e avançar na proposta de uma Política Nacional de Promoção da Alimentação e dos Produtos da Sociobiodiversidade de Povos e Comunidades Tradicionais, prevista no Projeto de Lei (PL) 880/2021.

“O mesmo Congresso que tem sido desfavorável aos indígenas e permite a tramitação de PLs ruins para a alimentação escolar aprovou, nas últimas legislaturas, medidas de combate à fome e de apoio à agricultura familiar, como o reajuste para o Pnae de 28 a 39%, dependendo da modalidade de ensino”, lembra o assessor de Advocacy do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Pedro Vasconcelos. “Esperamos que, no contexto de necessidade de proteção ambiental e de adaptação à emergência climática, este conjunto de reivindicações sensibilize os e as congressistas.”

Riscos imediatos

No momento em que a carta de recomendações é lançada, surge um novo risco para o acesso de indígenas, quilombolas e PCTs aos mercados institucionais. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) iniciou a consulta pública de uma nova Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) que equipara a agricultura familiar e economia solidária a outros segmentos econômicos.

A consulta pública nº 1.249, de 02 de maio de 2024, propõe uma nova RDC “sobre  a identificação e a classificação do grau de risco das atividades econômicas sujeitas à vigilância sanitária”, revogando a RDC nº 49/2013.

A resolução 49/2013 é considerada um marco ao reconhecer as especificidades dos riscos desses setores da agricultura familiar e da economia solidária. E envolveu, no seu processo de consulta pública, a realização de sete seminários regionais em todos os territórios brasileiros.

Como reação à proposta, uma carta aberta em defesa de normas sanitárias inclusivas será lançada nos próximos dias com, aproximadamente, 130 assinaturas de movimentos, organizações, comunidades, pesquisadores, parlamentares e outros setores da sociedade.

Segundo a carta, a consulta pública da Anvisa representa um retrocesso em termos de normas sanitárias e suas adequações para os segmentos da agricultura familiar e das economias da sociobiodiversidade.

“A nova norma proposta na Consulta Pública reforça a exclusão sanitária (…) Dá também um passo atrás ao restringir a autonomia dos estados e municípios em estabelecerem classificações de risco específicas (…) Outro retrocesso em relação à RDC 49/ 2013 são as exigências relativas ao Responsável Técnico, que podem inviabilizar economicamente a legalização sanitária de pequenos empreendimentos”, destaca o documento.

Para Vanessa Schottz, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), uma contraproposta à medida é manter a Resolução 49 e ampliar a consulta pública. “Deve-se buscar estratégias que viabilizem participação ativa e efetiva dos segmentos atendidos. É fundamental também avançar na implementação do Programa para Inclusão Produtiva e Segurança Sanitária, a Praissan, e na instalação do comitê desse programa, o Cissan”, defende.

Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?”

O encontro que deu origem à carta-proposta foi realizado em 27 e 28 de maio, em Brasília. Ao longo de dois dias de trabalho, representantes de povos do campo, das águas e das florestas, em conjunto com organizações e movimentos sociais, Centros de Colaboração para a Alimentação Escolar (Cecanes), nutricionistas, membros governamentais do Comitê Gestor do Pnae e gestores estaduais e municipais debateram soluções e recomendações para que a compra local de alimentos saudáveis para a alimentação escolar ocorra em terras e territórios tradicionais.

A atividade contou com quase 90 participantes, sendo 60% mulheres e um terço do total composto por indígenas, quilombolas ou representantes de povos e comunidades tradicionais que produzem alimentos para a venda aos mercados institucionais. Além da carta-proposta, as discussões realizadas terão como produto final uma agenda comum em forma de publicação, a ser lançada ainda este ano.

O Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?” foi realizado pelo Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio) e pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), com o apoio de: FIAN Brasil, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Fundo Dema, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), WWF Brasil e Ministério Público Federal (MPF). Também recebeu apoio da Global Health Advocacy Incubator (GHAI) e do projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor, da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, implementado em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).

Consea divulga o relatório final da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Texto: Ascom da Secretaria Geral da Presidência da República

Estão disponíveis, no site Brasil Participativo, todos os materiais resultantes da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que foi realizada de 11 a 14 de dezembro de 2023, em Brasília.

Entre os documentos, é possível conferir o Manifesto da 6ª CNSAN, elaborado colaborativamente durante a Etapa Nacional, que traz uma ampla difusão sobre os significados da agenda de soberania e segurança alimentar e nutricional e os caminhos para a realização do direito humano à alimentação adequada; a Carta de Brasília, com a apresentação de uma agenda estratégica, decolonial e antirracista para a realização do direito humano à alimentação adequada e a transformação dos sistemas alimentares, composta por nove itens; a Revista 6ª CNSAN  com o registro dos principais momentos da conferência; e o relatório final com todas as propostas aprovadas.

Clique aqui e confira!

Encontro reúne indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais e propõe melhorias para acesso ao Pnae

Texo: Assessorias de Comunicação das entidades organizadoras do encontro

Reunidos em Brasília, povos do campo, das águas e das florestas, além de pesquisadores, gestores e organizações da sociedade civil, apresentaram experiências e obstáculos. Foto: Vanessa Eyng/GIZ Brasil

Criado há mais de 60 anos e presente em todo o Brasil, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é uma política pública consolidada, inspiradora e de enorme alcance. Mas, na prática, ainda são muitos os desafios para que ele cumpra todos os seus objetivos. Para promover um diálogo amplo sobre gargalos e possíveis caminhos, foi realizado em Brasília o Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?”.

Ao longo de dois dias de trabalho, representantes dessa populações, em conjunto com organizações e movimentos sociais, Centros de Colaboração para a Alimentação Escolar (Cecanes), nutricionistas, membros governamentais do Comitê Gestor do Pnae e gestores estaduais e municipais debateram soluções e recomendações para que a compra local de alimentos saudáveis para a alimentação escolar ocorra em terras e territórios tradicionais.

Encontro teve maioria de participantes mulheres. Foto: Maíra Miranda/ FIAN Brasil

A atividade contou com quase 90 participantes, sendo 60% mulheres e um terço do total composto por indígenas, quilombolas ou representantes de povos e comunidades tradicionais que produzem alimentos para a venda aos mercados institucionais. O evento, realizado entre os dias 27 e 28 de maio, terá como produto final uma agenda comum em forma de publicação, a ser lançada ainda este ano, além de uma carta de recomendações – aprovada no encontro – para ser apresentada ao poder público para melhorias de acesso ao Pnae.

Diálogos a partir da realidade local

A programação do evento foi organizada para promover a troca de experiências entre as pessoas presentes. Estes diálogos trouxeram pontos relevantes para entender como na prática ainda existem muitos desafios para a implementação do Pnae.

Em seu território, Vitória Rodrigues da Silva conhece muito bem essa realidade. Vitória é moradora da aldeia Lourdes, localizada no município amazonense de Boca do Acre, terra indígena (TI) não demarcada. Mas seu povo, os Jamamadi, segue no processo de organização, inclusive por meio da participação nas vendas para o Pnae. “Trabalhamos em nossas roças com muita dificuldade e enfrentamos pressões de fora. Mas já entregamos 26 produtos, como banana, abacaxi, inhame, cará, açaí, buriti, macaxeira. Quando vinha merenda só da sede do município, faltava muito. Isso dificultava muito para as crianças”, conta Vitória. 

Em Boca do Acre, foi necessária uma articulação de diversas instituições e organizações locais para que os processos de compras de povos indígenas e comunidades tradicionais fossem colocados em prática. Esse processo vem ocorrendo desde 2021, com a mobilização via Organização dos Povos Indígenas Jamamadi e Apurinã de Boca do Acre- AM (Opiajbam) e a Associação Bom Jesus da Resex Arapixi, em articulação com a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), Ministério Público Federal,  Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam).

Experiência de Boca do Acre avançou a partir da articulação local com órgãos públicos. Foto: Vanessa Eyng/GIZ Brasil

Em 2022, foram realizadas oficinas de preparação, compartilhando processos de mapeamento de produção e de realização de chamadas públicas entre estas organizações, povos indígenas, ribeirinhas e ribeirinhos, e gestão pública local.  O esforço rendeu resultados positivos e já em 2023 as primeiras entregas começaram a acontecer.

E essas entregas envolvem grupos diversos: são moradoras e moradores da Reserva Extrativista Arapixi, da Terra Indígena Boca do Acre, e de territórios ainda não demarcados, como aquele onde Vitória vive. “Para nós, acessar o Pnae significa mais uma oportunidade de renda, mesmo com as dificuldades de logística e demandas de burocracia, que exigem que a gente vá para a cidade. Como é o começo, vamos aprendendo e envolvendo mais pessoas. Nós queremos melhorar nosso trabalho, nossa comunidade, e isso também é pelos nossos filhos, porque entregamos nossos produtos na escola deles”, ressalta Vitória.

Com 15 anos de experiência nas vendas ao Pnae, Jorge Henrique Flores participou do encontro representando o Quilombo São Miguel, localizado no município de Maracaju, que fica na região centro-sul de Mato Grosso do Sul. A comunidade possui uma produção de alimentos diversificada e as mais de 60 famílias se organizam para a venda ao Pnae. O carro-chefe é o hortifrúti, com a entrega de verduras, legumes e frutas, incluindo tomate, banana, mamão, melancia, abacaxi, maracujá, entre outros itens. Há também a produção da polpa de frutas, pães, doces, mel, rapadura e farinha de mandioca.

Jorge relatou a experiência do Quilombo São Miguel, com 15 anos de vendas ao programa nacional. Foto: Maíra Miranda/FIAN Brasil

Por semana, as famílias fornecem de 200 a 300 quilos de alimentos para a alimentação escolar das mais de 90 escolas presentes no município. As vendas para o Pnae  impulsionaram o retorno das famílias para a produção local de alimentos. “O Pnae, para o quilombo, veio trazer uma mudança de vida para o nosso produtor. Aqueles que trabalhavam em fazendas e em outras áreas voltaram para a comunidade e começaram a ter a sua própria garantia financeira. Puderam melhorar sua situação, comprar um carro, uma moto, melhorar suas casas”, descreve o agricultor.

As vendas, que começaram em 2009, tiveram obstáculos no caminho. O primeiro impasse foi a adequação às normas da Vigilância Sanitária. Como solução, passaram a beneficiar os alimentos. Então surgiu outro desafio: como facilitar o preparo de alimentos que eram vendidos com a casca, como a mandioca? A resposta foi a implementação de mais uma etapa de beneficiamento, com a entrega das mandiocas já descascadas e picadas. As cozinheiras escolares gostaram tanto que o procedimento começou a ser utilizado também com outros alimentos, como a abóbora.

Para avançar ainda mais na aceitação dos produtos, a comunidade mantém um diálogo permanente com as nutricionistas envolvidas nas compras na alimentação escolar, além de criarem um selo de certificação, o “Sabor de Maracaju”. A comunidade também compõe a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos e se articula com outros povos, como a população indígena local. Porém, ainda hoje, existem desafios no acesso ao Pnae, na adequação às normas sanitárias, emissão de notas fiscais, entre outras burocracias, como explica Jorge. Ele salienta a importância do encontro, trazendo esses desafios para o centro do debate.

“Para mim, foi importante [ter participado do encontro] porque tirou muitas dúvidas do que a gente tem feito lá. Como escoar a produção? Como trabalhar a política pública dentro da comunidade? Como vender esses alimentos? Esclareceu várias ideias para as dificuldades que enfrentamos. Como emitir notas fiscais, entregar produtos de qualidade e se adequar à inspeção sanitária? Isso foi muito debatido aqui e a gente está vencendo lá. Eu acredito que esse encontro vai produzir muitos frutos e vai ter resposta [do poder público]. A nossa comunidade vem fazendo muitas coisas que estão questionando aqui”, relata.

Por onde avançar? 

Em seus dois dias, o encontro promoveu uma troca intensa, o que permitiu apontar os principais pontos de gargalo do Pnae, estimulando a proposição de soluções que atendam aos modos de vida e de produção de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. “Já temos um quadro que prioriza alimentos da agricultura familiar, principalmente de povos indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária. Mas sabemos que, no plano local, os desafios ainda são muitos”, observa a secretária executiva do ÓSocioBio, Laura Souza.

Racismo institucional dificulta acesso de povos e comunidades às políticas públicas. Foto: Maíra Miranda

Ela destaca a necessidade de reconhecer que ainda existem muitos entraves para a implementação desta política. Lembra, nesse sentido, que poucos estados e municípios compram hoje produtos dessas populações, pois há uma burocracia excessiva, como a cobrança de inúmeros documentos e regras. “Cabe ao poder público simplificar esses processos, por meio da adequação das normativas, para facilitar e ampliar o acesso às políticas públicas”, conclui.

Para Mariana Santarelli, coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), ainda são muitos os desafios para que as diretrizes do Pnae sejam plenamente asseguradas. “Em várias escolas indígenas, quilombolas e ribeirinhas a alimentação escolar é insuficiente, ultraprocessada e irregular no decorrer do ano, desconsiderando a diretriz do respeito à cultura alimentar. Além disso, é forte o racismo institucional”, diz.

Ela avalia que as recomendações construídas no encontro constituem uma ferramenta assertiva para influenciar os espaços de tomada de decisão e pressionar órgãos públicos envolvidos na implementação do Pnae. “Precisamos de novas normativas que respeitem o direito à autodeterminação desses povos e comunidades. Nossas políticas universais precisam servir para toda a diversidade de populações, terras e territórios, e isso ainda está longe de ser uma realidade”, acrescenta.

Os pontos trazidos no conjunto de recomendações perpassam por cadastramento, chamadas públicas, vigilância sanitária, operacionalização, alocação de recursos, reajuste anual e período de férias, entre outros eixos. O debate do encontro ressaltou a importância de os processos de compra do Pnae se basearem em diagnósticos e mapeamentos agrícolas que valorizem alimentos locais, tradicionais, respeitando a sazonalidade, com precificação que incorpore custos de logística para entrega de produtos às escolas. E que os procedimentos sejam menos burocráticos e mais adequados às práticas comunitárias e às realidades produtivas locais.

Relatos de diversos estados deram um panorama nacional dos desafios. Foto: Vanessa Eyng/GIZ Brasil

Criada em 2021, a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil é formada por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil, sob a coordenação do Ministério Público Federal (MPF). A Mesa atua em âmbito nacional, com comissões estaduais, discutindo ações e medidas voltadas para viabilizar a compra, pelo poder público, de itens produzidos diretamente pelas populações indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais para a alimentação escolar.

Reconhecendo a alimentação escolar como parte das estratégias de produção, autoconsumo e de controle alimentar inseridos dentro da cultura dos povos indígenas e comunidades tradicionais, em 2020 a Catrapovos lançou a Nota Técnica 3/2020/6ªCCR/MPF. A nota possibilita a dispensa de registro, inspeção e fiscalização dos alimentos produzidos nas aldeias e comunidades tradicionais para a venda à alimentação escolar, respeitando os hábitos e cultura alimentar local.

Porém, a ausência de normativas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) com orientações às entidades executoras sobre os procedimentos operacionais para a sua implementação gera um ambiente de insegurança por parte de gestores e nutricionistas, que, muitas vezes, deixam de comprar alimentos tradicionais e disponíveis localmente – como é o caso do pescado, das farinhas e polpas de fruta. Isso se soma à insuficiente normatização das prioridades asseguradas em lei para as compras públicas, bem como a capacitação dos gestores e agricultores. Esses foram debates centrais ao longo do encontro.

O Encontro “Compras públicas para a alimentação escolar entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais: por onde avançar?” foi realizado pelo Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio) e pelo Observatório da Alimentação Escolar, com o apoio da FIAN Brasil, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Fundo Dema, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), WWF Brasil e Ministério Público Federal. Também recebeu apoio da Global Health Advocacy Incubator e do projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor, da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, implementado em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).

Ao final do encontro, a partir da sistematização das experiências relatadas, uma agenda comum foi firmada, além de uma carta de recomendações que será apresentada ao poder público ainda neste ano.

Foto: Pedro Biondi/Repórter Brasil (2018)

Inconstitucionalidade de isenções para agrotóxicos volta a ser julgada pelo STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) volta a julgar nesta quarta-feira (12) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553, que questiona isenção fiscal para agrotóxicos. O julgamento acontecia em modalidade virtual e, com destaque em abril pelo ministro André Mendonça, a ação passa ser julgada em plenário presencial. A FIAN Brasil é uma das entidades ouvidas no processo como amicus curiae (“amigo da corte”).

“O uso de agrotóxicos interfere diretamente no direito humano à alimentação e à nutrição adequadas do povo brasileiro”, destaca o assessor de Direitos Humanos da entidade, Adelar Cupsinski. “Esse problema vem afetando sobremaneira a vida e a saúde dos povos indígenas, dos povos e comunidades tradicionais e dos trabalhadores rurais, bem como a sua produção agrícola. A alternativa saudável consiste em incentivar a agricultura tradicional e a agricultura agroecológica.”

Ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) em 2016, a ADI 5.553 questiona as cláusulas 1ª e 3ª do Convênio 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e o Decreto 7.660/2011. Esses dispositivos concedem benefícios fiscais aos agrotóxicos, com redução de 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), além da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de determinados tipos dessas substâncias. A medida ficou conhecida em vários setores como “bolsa-agrotóxicos”.  

A isenção dos agrotóxicos ocorre porque o Estado brasileiro aplicou, por meios destes dispositivos, o princípio da seletividade e essencialidade tributárias. Esse princípio determina que o Estado pode selecionar produtos e conferir benefícios fiscais em função da importância social. Isto é, se o produto é essencial para a coletividade pode ter isenções ou reduções tributárias. Desse modo, há 27 anos, o mercado de agrotóxicos é beneficiado com isenção fiscal.   

A medida tem impacto direto na arrecadação fiscal. De acordo com levantamento realizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a estimativa é de que estados e União deixaram de arrecadar R$ 12,9 bilhões, considerando a comercialização de agrotóxicos no ano de 2021. O valor representa, por exemplo, cinco vezes o orçamento reservado pela União em 2024 para prevenção e combate a desastres naturais (R$ 2,6 bilhões).  

Posicionamento dos ministros 

Com ida para plenário, o julgamento – que estava em estágio avançado, já com manifestações de votos de nove ministros – é reiniciado. Ou seja, os ministros deverão se manifestar novamente.  

A retomada do julgamento é compreendida por organizações que incidem como amicus curiae (amigos da corte) como importante oportunidade para ampliar o diálogo com sociedade e Suprema Corte sobre impactos da concessão de benefícios ao mercado de agrotóxicos.  

Relator da ação, o ministro Edson Fachin havia reconhecido em seu voto que a isenção fiscal dos agrotóxicos é inconstitucional. O ministro conclui que as normas questionadas pela ADI 5.553 violam artigos da Constituição brasileira e sugeriu uma série de providências para a cobrança de ICMS e IPI sobre importação, produção e comercialização de agrotóxicos. Também solicitou que órgãos do governo avaliem “a oportunidade e a viabilidade econômica, social e ambiental de utilizar o nível de toxicidade à saúde humana e o potencial de periculosidade ambiental, dentre outros, como critérios na fixação das alíquotas dos tributos” sobre os agrotóxicos.   

Na manifestação do voto, o ministro evocou também o princípio da precaução para destacar as evidências de riscos de uso e consumo dos químicos ao meio ambiente e à saúde. “O uso de produtos nocivos ao meio ambiente ameaça não somente animais e plantas, mas com eles também a existência humana e, em especial, a das gerações posteriores, o que reforça a responsabilidade da coletividade e do Estado de proteger a natureza”, apontou Fachin. O posicionamento do ministro é semelhante ao das organizações sociais que atuam como amicus curiae na ação, como a Terra de Direitos, a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e a FIAN.  

Já o ministro Gilmar Mendes acolheu os argumentos de entidades vinculadas ao agronegócio e se manifestou pela manutenção dos benefícios fiscais aos agrotóxicos. Mendes afirmou em seu voto que os danos à saúde “não devem ser desconsiderados, mas por si próprios são insuficientes para se declarar a inconstitucionalidade dos benefícios, porquanto produtos essenciais não são isentos de causarem malefícios à saúde”. A posição diverge do relator Fachin e de um conjunto de organizações, pesquisadores e órgãos que denunciam os fortes impactos dos agrotóxicos para a saúde e meio ambiente, o que descumpre preceitos constitucionais. Os ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli acompanharam o voto de Gilmar Mendes. Já o ministro André Mendonça reconheceu, parcialmente, a inconstitucionalidade da isenção fiscal e determinou que a União e estados façam uma avaliação do benefício. Organizações e instituições de pesquisa também reivindicam a apresentação de dados que justifique a validade das normativas. 

Com o reinício do julgamento, as organizações têm a expectativa de que os ministros revejam os votos pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do benefício fiscal.  

“Abre-se a oportunidade dos ministros que votaram pela constitucionalidade dos benefícios fiscais reavaliarem seus votos, assim como para os ministros que ainda não julgaram avaliar a matéria com a preocupação constitucional de proteção do meio ambiente e a saúde da população brasileira. A reavaliação das políticas fiscais aos agrotóxicos pelo poder executivo da União e dos Estados relacionando desenvolvimento econômico, proteção ambiental, direito à saúde e à segurança alimentar é essencial para essa ação, para evidenciar a não aplicabilidade do princípio da seletividade tributária sobre os agrotóxicos”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade.   

Benefício para mercado de commodities 

Segundo as organizações, a isenção fiscal beneficia diretamente o mercado de commodities, voltadas para o mercado externo, e não incide no aumento do preço dos alimentos que compõem a cesta básica para os consumidores, como argumenta entidades representativas do agronegócio.  

De acordo com dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), 89% da área total com uso de agrotóxicos em 2022 é voltada para plantio de soja, milho, algodão, cana-de-açúcar e pastagens. Com menos incentivos e pressão do agronegócio, de produção de alimentos para consumo interno sofre seguidas retrações. Enquanto a área de plantio de soja aumento em 187% de 2000 a 2021, no mesmo período o plantio de arroz diminuiu 54%, e o de feijão, 37%.  

Além da manifestação contrária à isenção pelas organizações, a Procuradoria Geral da República (PGR) declarou na mesma ação que os incentivos aos agrotóxicos  não se coadunam com os objetivos do estado democrático de Direito ambiental. Os conselhos nacionais de Saúde (CNS) e de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) recomendaram aos ministros do STF que “rejeitem quaisquer proposições que resultem ou possibilitem a redução ou a isenção fiscal e tributária a agrotóxicos uma vez que estamos diante de perigos graves de saúde pública devido à exposição a essas substâncias nocivas”.

Foto: Ubirajara Machado/Arq. FIAN Brasil

Entrevista | Levando a discussão da saúde para a economia

Por: Comunicação do Instituto Ibirapitanga

A secretária-geral da FIAN Brasil, Nayara Côrtes Rocha.
Foto: Ubirajara Machado/Arq. FIAN Brasil

Desde 2023 estamos vivenciando um novo ciclo de incidência sobre políticas públicas para acesso à alimentação adequada e saudável, aliado à demanda pela implementação de uma agenda regulatória sobre conflito entre interesses públicos e privados, que possibilite, por exemplo, restrição sobre produtos nocivos à saúde, como ultraprocessados e agrotóxicos.

Ouvimos Nayara Côrtes Rocha, secretária-geral da FIAN Brasil, para entender melhor os caminhos tomados pela sociedade civil organizada diante dos desafios e oportunidades que esse contexto apresenta, bem como para entender as lacunas que ainda precisam ser preenchidas na incidência política em torno do acesso à alimentação adequada e saudável.

Nayara Côrtes Rocha é nutricionista pela Universidade Federal de Goiás e mestre em ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Pela FIAN Brasil, compõe o núcleo gestor da Aliança pela alimentação adequada e saudável.  

Ibirapitanga: Este é um período em que a mobilização do campo voltou a se dar dentro do arcabouço institucional, a exemplo do Consea e da participação de organizações da sociedade civil em comissões que vem debatendo a atualização e elaboração de políticas públicas. Ao mesmo tempo, mantém-se a atuação em diferentes frentes de incidência. Considerando essa orquestração, como você tem observado os movimentos da sociedade civil organizada em torno da alimentação?

Nayara Côrtes Rocha: Nos últimos anos, especialmente entre 2019 e 2022, além da expansão de organizações e atores em torno do tema da alimentação, tivemos um cenário muito adverso de suspensão de diálogo com o Governo Federal, em meio a violações intensas e quase cotidianas de direitos humanos e, dentre eles, do direito à alimentação. Essa conjunção de fatores certamente impactou nos movimentos da sociedade civil em torno do tema da alimentação. Entendemos que precisamos nos organizar para além dos espaços institucionais, embora eles sejam fundamentais. Tanto porque eles têm seus limites, como porque precisamos manter certa autonomia enquanto sociedade civil. O retorno  dos espaços institucionais é super bem vindo, tem demandado bastante energia de movimentos, organizações e  coalizões, inclusive da Aliança pela alimentação adequada e saudável.

Ao mesmo tempo em que precisamos nos organizar institucionalmente para contribuir com a reconstrução de políticas públicas, a partir do que aprendemos com nossas experiências anteriores, para que elas sejam cada vez mais eficazes e consolidadas, também precisamos ocupar outros espaços porque algumas lutas partem de fora do âmbito institucional. Inclusive porque alguns temas fundamentais não estão na agenda do governo e é papel da sociedade civil pressionar para que sejam debatidas e entrem nas agendas nacionais.

Eu tenho observado que passamos por esse amadurecimento, desde o período em que o diálogo com o executivo esteve interditado. Compreendemos que precisamos estar prontas para outras formas de incidência para além das que conhecíamos e isso tem sido muito positivo, na minha opinião.

Ibirapitanga: Recentemente, com o avanço da reforma tributária e o decreto presidencial que regulamenta a nova composição da cesta básica, estamos passando por uma intensificação da incidência nesse ciclo. Numa visão geral, quais são as demandas mais prementes deste contexto? Quais são as oportunidades e desafios?

Nayara Côrtes Rocha: As demandas mais prementes neste contexto são ampliar o acesso a alimentos adequados e saudáveis, em sua acepção mais ampla, a todas as pessoas, e tentar conter o aumento no consumo de ultraprocessados que está associado à ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis. 

A nova composição da cesta básica é uma vitória importante pela qual lutamos há muitos anos. A ampliação de itens in natura ou minimamente processados, bem como da variedade desses itens foi um primeiro passo no sentido da maior disponibilidade e acesso a alimentos saudáveis e adequados a pessoas que não podem, por si mesmas, acessar esses alimentos. Avança ainda no sentido de o Estado responsabilizar-se pela promoção da dignidade e da saúde em ações de provimento e ainda, simbolicamente, na construção de um entendimento de que alimentos in natura ou minimamente processados são “básicos” e devem compor a base da alimentação humana.

A essência das demandas em relação à reforma tributária é a mesma: ampliar ou facilitar o acesso, nesse caso acesso financeiro, a alimentos in natura ou minimamente processados e desincentivar o consumo dos ultraprocessados, via composição de preço desses itens.

A oportunidade de fazer esta discussão com o governo, parlamentares e a sociedade em geral é, por si, muito interessante porque leva a discussão da saúde para a economia, deixando evidentes algumas contradições existentes a esse respeito. Percebo como uma boa oportunidade também de divulgação da informação de que ultraprocessados fazem mal à saúde e dos privilégios injustificados que esta indústria recebe.

Os desafios estão relacionados a essas oportunidades, a meu ver, porque estamos colocando em cheque os lucros e interesses de agentes comerciais e, por consequência, de atores públicos e privados relacionados a eles, muito poderosos. Mas toda essa movimentação me parece um excelente começo. 

Ibirapitanga: Tomando como exemplo o advocacy que está sendo realizado para a taxação de ultraprocessados e agrotóxicos na reforma tributária, podemos dizer que ele bebe da fonte de processos mais antigos — como o emblemático caso da indústria do tabaco — e outros mais recentes. Quais contribuições da sociedade civil, em especial de incidência no ciclo anterior de governo federal, podemos identificar como cruciais para a atuação no ciclo atual?

Nayara Côrtes Rocha: Como mencionei no início, aprendemos muito sobre diversidades de lutas e incidências, no ciclo anterior. Aprendemos caminhos antes pouco conhecidos, como o advocacy no poder legislativo, articulação da sociedade civil em torno não só de pautas, mas de atividades, metas, ações concretas e coordenadas em momentos específicos. Sobre a atuação em rede das grandes corporações, sobre o poder dos agentes comerciais, conflitos de interesse, captura corporativa e a comunicação com a sociedade, sobre articulações regionais e internacionais, enfim… Aprendemos muito! Tudo isso tem sido crucial para esse momento em que precisamos lidar com poderes econômicos e políticos imensos e com os conflitos de interesse no interior dessas discussões.

Todo este aprendizado tem contribuído imensamente com a discussão sobre a taxação de ultraprocessados e agrotóxicos que foram colocadas na agenda nacional pela pressão da sociedade civil, porque não são consenso no governo federal. São pautas sensíveis para o governo, mas são também urgentes, precisam estar presentes na discussão sobre a reforma tributária porque têm grande impacto para toda a sociedade brasileira, e por muito tempo. 

Ibirapitanga: Diante do esforço que está sendo realizado agora, quais as lacunas que ainda precisam ser preenchidas na incidência política pelo acesso à alimentação adequada e saudável? Para que direção temos que olhar com mais cuidado?

Nayara Côrtes Rocha: Esta é uma questão interessante porque penso que poderíamos dizer que temos organizações fazendo incidência em praticamente todas as áreas relacionadas ao direito à alimentação. Precisamos olhar com mais cuidado para a questão climática, que é permeada e permeia o sistema alimentar de diversas formas. Na América Latina, parece que não estamos suficientemente dedicados a esta questão, ainda. Além disso, penso que alguns aspectos transversais a toda discussão sobre a alimentação adequada e saudável como o papel de raça, classe e gênero, da economia do cuidado, por exemplo, nos sistemas alimentares e na prática da realização desse direito, muitas vezes ocupam espaços secundários em nossas incidências ainda. Penso que esta também é  uma direção que merece mais atenção.

Publicado originalmente no site do Ibirapitanga

Movimento indígena enfatiza necessidade de derrubar decisão de Gilmar Mendes sobre marco temporal

Texto: Anna Beatriz Anjos/Agência Pública (apublica.org)
Foto: José Cícero/Agência Pública

O movimento indígena elegeu um desafio no encerramento da 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), a maior assembleia dos povos originários no Brasil: derrubar a mais recente decisão de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o marco temporal.

Em 22 de abril, durante o primeiro dia do acampamento, Mendes suspendeu todas as ações sob sua relatoria que tratam da lei que valida o marco temporal. Ela propõe que só sejam demarcadas terras ocupadas pelos indígenas na data de promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. A lei, aprovada no Congresso Nacional em 2023, foi patrocinada pela bancada ruralista.

Gilmar Mendes é relator de três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que pedem a derrubada da lei do marco temporal. Uma delas foi proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizadora do ATL, junto a partidos políticos. As lideranças esperavam que Mendes desse um parecer rejeitando o marco, já que o próprio STF havia declarado, em setembro do ano passado, que a tese é inconstitucional, num ato considerado como uma conquista histórica dos indígenas.

Contudo, Mendes não só manteve a vigência da lei como determinou a criação de uma câmara de conciliação para discutir a tese. Essa câmara será formada por entidades de defesa dos direitos indígenas e do agronegócio, partidos políticos, poderes Executivo e Legislativo, Procuradoria-Geral da República (PGR) e Advocacia-Geral da União (AGU). Cada uma das partes tem 30 dias para apresentar propostas para alcançar um consenso sobre o tema.

Por que isso importa?
A ação do ministro Gilmar Mendes contrariou decisão do próprio STF do ano passado e, segundo as lideranças indígenas, fortalece a tese do marco temporal. O marco é o maior obstáculo à demarcação de novas terras atualmente.

Agora, segundo a Apib, uma das prioridades do movimento nos próximos meses é trabalhar para tentar reverter a medida tomada por Mendes.

Há dois caminhos para isso, segundo Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib. Um deles é convencer outros ministros da Corte a rechaçar a decisão monocrática de Mendes. Ela foi encaminhada para apreciação dos demais via julgamento virtual. A carta final do ATL cobra que os juízes “não se acovardem” e “sejam contrários a essa decisão de morte”.

A segunda alternativa depende de o ministro Edson Fachin decidir pela inconstitucionalidade da lei em uma ação que pede sua derrubada, da qual ele é relator.

Indígenas avaliam que decisão de Gilmar Mendes é retrocesso

“O ministro Gilmar Mendes, acima de tudo, desprestigia o entendimento do colegiado do Supremo que já decidiu pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal”, destaca Terena, da Apib. “Isso traz uma insegurança jurídica enorme para os povos indígenas. A lei ainda está em vigência; os povos indígenas, no limbo jurídico; e a violência nos territórios, aumentando.”

A Apib avaliou a decisão de Mendes como um retrocesso que adiará ainda mais o já prolongado debate sobre o marco temporal, encarado pelos indígenas como a maior ameaça às demarcações. A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, relatou em entrevista à Agência Pública no começo do mês que a lei tem atrapalhado a efetivação de novas demarcações pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Enquanto isso, o presidente da bancada ruralista no Congresso, deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), classificou a decisão de Mendes como “uma vitória”. “Se a Funai a partir de agora quiser demarcar, vai ter que cumprir a lei que nós aprovamos no Congresso”, disse em vídeo postado em suas redes sociais.

O avanço no reconhecimento dos territórios tradicionais pelo Estado é a pauta central do movimento indígena e do Acampamento Terra Livre desde o seu surgimento, em 2003. Embora seja um direito garantido pela Constituição, a demanda segue longe de ser plenamente atendida.

“No ano passado, em setembro, quando o Supremo declarou a inconstitucionalidade da tese, não achamos que não estaríamos aqui, no dia de hoje, novamente falando sobre esse assunto”, afirmou Terena no fim do acampamento.

Em entrevista na Alemanha, assessor da FIAN Brasil comenta lobby e contradições das transnacionais dos agrotóxicos

Entrevista realizada em Berlim, em 20 de outubro, e publicada originalmente em alemão no site da Fundação Heinrich Böll

Brasil: Por que o agro não é pop

Milhões de brasileiros são afetados pela insegurança alimentar. Conversamos com Pedro Vasconcelos Rocha, da FIAN Brasil, sobre a agricultura no Brasil e o lobby brasileiro e alemão dos agrotóxicos.

Por Mareike Bödefeld e Almudena Abascal

O que você espera de uma proibição de exportação de agrotóxicos da Alemanha ou da Europa? Que efeitos positivos tal proibição teria sobre o povo do Brasil, especialmente os trabalhadores rurais e as comunidades indígenas ou quilombolas?

Em primeiro lugar, para nós é um sinal positivo de igualdade de tratamento, porque nós, brasileiros, pegamos doenças dos agrotóxicos assim como os europeus. A afirmação das empresas de que são necessários mais agrotóxicos para uma agricultura bem-sucedida nos países tropicais do que nos países europeus não é eficaz. O solo contaminado acaba por contaminar também os europeus, pois os produtos produzidos no solo são exportados para a Europa. Não é fácil para os europeus determinar quais ingredientes invisíveis acabam em seus pratos. No entanto, foi comprovado que o [queijo] grana padano italiano, por exemplo, contém vestígios de agrotóxicos do Brasil. Os animais de onde vem o presunto espanhol foram alimentados com soja brasileira, para a qual provavelmente foram usados ​​agrotóxicos além da engenharia genética. A decisão de interromper em breve a exportação de agrotóxicos proibidos para outros países, anunciada pelo governo alemão, é, portanto, crucial. Porque as empresas alemãs Bayer e Basf estão na vanguarda do comércio de agrotóxicos. No Brasil, eles simbolizam um comércio eticamente questionável. Um comércio que só funciona com violência e pulverização de agrotóxicos do ar. As pessoas nas proximidades dos campos cultivados com produtos da Bayer ou da Basf sofrem consequências para a saúde, como deformidades genéticas ou câncer. E não são as únicas empresas atuantes no Brasil.

Lobby alemão no Brasil?

No Brasil, o instituto Pensar Agro – com o apoio financeiro de empresas alemãs – promoveu mudanças na legislação ambiental brasileira. A meu ver, os lobistas alemães estão tentando influenciar o pacote de legislação brasileira sobre venenos (PL 6.299). Eu queria obter mais informações sobre isso na Alemanha, mas infelizmente não deu certo.

A FIAN Brasil espera que a Alemanha apresente uma proposta mais ambiciosa para a proibição de exportação de agrotóxicos, uma proposta que sinaliza compromisso e responsabilidade ética. Em geral, pedimos mais transparência em relação às vendas e exportações desses produtos. Alguns produtos não são regulamentados na Alemanha. Precisamos saber quais substâncias não são regulamentadas na Alemanha para poder regulá-las no Brasil, se necessário. Porque não sabemos o que os produtos podem fazer aqui ou como serão usados ​​posteriormente. Gostaríamos de saber dos parlamentares alemães como eles conseguiram regulamentar certos agrotóxicos na Alemanha para aprender com eles para nosso trabalho de lobby no Brasil. O uso de agrotóxicos, a legislação ambiental e a mineração em territórios indígenas estão sendo flexibilizados aqui.

Também é importante para nós se as proibições se aplicam apenas a produtos agrotóxicos acabados ou também a ingredientes ativos individuais. O Brasil tem capacidade de produção própria: ou seja, se apenas os produtos acabados forem proibidos e os ingredientes ativos continuarem sendo exportados, isso não nos ajuda muito. Os problemas ambientais causados ​​pelos produtos também devem receber maior reconhecimento.

Quando há problemas ou danos, as empresas alemãs dizem que os agricultores brasileiros não estão usando seus produtos adequadamente. Mas na realidade eles vendem produtos que são pulverizados do ar como armas químicas em indígenas, por exemplo. Esses ingredientes ativos agora podem ser encontrados em nossos rios e em nossa água potável. Também aqui na Alemanha existem responsáveis ​​que realmente sabem que as substâncias são prejudiciais à saúde e, portanto, foram proibidas aqui.

Também trabalhamos a questão da responsabilidade corporativa, especialmente das empresas transnacionais que atuam no Brasil e no mundo. Junto com a sociedade civil brasileira, estamos trabalhando no Projeto de Lei 572/22, lei da cadeia produtiva brasileira que propõe um acordo entre direitos humanos e negócios, com foco em empresas transnacionais. O lobby empresarial no Brasil é muito poderoso e está tentando barrar o projeto. Fazemos networking com outros latino-americanos e internacionais, por exemplo, atores asiáticos. A União Europeia sinalizou que adotará uma postura de apoio. Uma proposta sobre cadeias de abastecimento livres de desmatamento também está sendo discutida. É importante que as questões de indenização e reparação sejam claramente definidas, não como no caso do Rio Doce, por exemplo, em que os responsáveis ​​ainda são procurados até hoje. Os princípios fundamentais são: prevenção, transparência, reparação e não reincidência. A consulta aos povos indígenas deve ser uma diretriz. Assim, com toda a pressão, o debate sobre a responsabilidade pode ter algum sucesso afinal. As preocupações com a prestação de contas não devem ser apenas uma questão do Sul Global.

Qual é o estágio da implementação de uma política nacional de redução de agrotóxicos no Brasil?

Fizemos uma luta e uma grande coalizão contra a iniciativa legislativa 1.459/22 (o “Pacote do Veneno”, como chamamos) e pedimos apoio internacional. Os relatores especiais da ONU sobre o impacto de substâncias tóxicas e resíduos nos direitos humanos, Marcos Orellana, e sobre o direito à alimentação, Michael Fakhri, viam o projeto com grande preocupação em um comunicado. A lei flexibilizaria a legislação brasileira – ainda que o Brasil já tenha aprovado um número recorde de agrotóxicos nos últimos anos. A informação sobre substâncias cancerígenas e desreguladoras do sistema endócrino deve ser removida do registro e apenas uma categoria de risco deve ser utilizada. O nome “agrotóxico” também deve ser alterado para “produto fitossanitário”. Não há revisão regular dos registros, então existe o risco de que os agrotóxicos sejam liberados indefinidamente. Expressamos repetidamente a nossa preocupação com esse pacote legislativo e, mais recentemente, nós o submetemos à Comissão da Agricultura. Ao mesmo tempo, vemos na Câmara dos Deputados uma redução gradativa do financiamento da agroecologia.

Por que a agroecologia é uma alternativa e como ela pode ser fortalecida?

Com o slogan “O agro é pop”, uma certa visão de como a agricultura deve ser feita é popularizada. Esse modelo agrícola gera renda para poucos no Brasil e certamente não alimenta a população brasileira. Atualmente, 33 milhões de brasileiros vivem em grave situação de insegurança alimentar. Cento e vinte e cinco milhões de brasileiros são afetados por algum tipo de insegurança alimentar. Famílias com filhos são particularmente dependentes do programa de merenda escolar já mencionado. Para muitas crianças brasileiras, a alimentação escolar é a única refeição do dia. Como na escola tem o que comer, conseguimos manter alto o nível de alfabetização e frequência escolar. É claro que é um problema sério quando uma criança vai para a escola só porque está com fome. Agro não é pop. Não alimenta a população brasileira. O agronegócio ganha dinheiro nas costas da população.

A sociedade civil brasileira insiste, portanto, num modelo agrícola diferente: a agroecologia. A agroecologia trata bem a agricultura e o solo e atua de forma ambientalmente responsável. Nas mais diversas regiões do país, as pessoas estão lidando com novos modelos agrícolas e estabelecendo redes. Os povos indígenas estão lutando com a questão da agrofloresta. Vale destacar o movimento Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra [MSTR], que são os maiores produtores de arroz orgânico da América Latina. Seria ótimo se tivéssemos ainda mais apoio nacional e internacional para esse projeto. Porque o Brasil não tem uma política agroecológica forte há muito tempo. Durante os governos do PT houve iniciativas de planos nacionais – mas acabaram falhando na implementação. Em princípio, preferia-se um modelo agrícola diferente, mas algumas medidas a favor dos pequenos produtores poderiam ser implementadas.

Deve haver mais foco no meio ambiente e no envolvimento de quem cuida dele.

Conte-nos um pouco mais sobre a merenda escolar brasileira.

Temos feito muito lobby no Congresso Brasileiro para o programa estadual de alimentação escolar, o Programa Nacional de Alimentação Escolar [Pnae], e como resultado temos conseguido muita atenção da mídia.

O programa existe desde a década de 1960 e é um modelo para muitos outros países. Porque: 40 milhões de crianças e jovens são alimentados em instituições de ensino estaduais com refeições gratuitas que fortalecem seu desenvolvimento biopsicossocial. O programa foi regulamentado pela sociedade civil no passado e tivemos acesso ao Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

O resultado da nossa luta foi, entre outras coisas, que desde 2009 o estado se comprometeu a comprar pelo menos 30% dos alimentos para a merenda escolar dos pequenos produtores. A alimentação entregue nas escolas também deve ter uma ligação cultural com a região, de acordo com a legislação do programa. Os especialistas decidem o que as crianças e os jovens vão comer. Por exemplo, o lobby do leite gostaria de se envolver – isso faz sentido para regiões com muito gado leiteiro, mas não para a região amazônica, porque como o leite deveria ser entregue em grandes quantidades aqui? Não dá para levar comida do sul do Brasil que não tem ligação com uma comunidade indígena da Amazônia.

Os tempos mudaram nos últimos anos, especialmente sob o governo Bolsonaro: o Brasil sofre atualmente com uma inflação alta. A insegurança alimentar é um grande problema. Mesmo antes da guerra na Ucrânia e antes da pandemia, alimentos agroecológicos bons, orgânicos, de alta qualidade e de produção familiar eram caros. Recentemente, faltou dinheiro e vontade política para implementar esse gigantesco programa de merenda escolar. Os alimentos regionais e saudáveis ​​foram então trocados, de modo que hoje nossas crianças e jovens às vezes comem alimentos ultraprocessados ​​ou apenas biscoitos, que podem causar doenças crônicas, entre outras coisas.

Como o senhor vê o acordo UE-Mercosul?

Para nós, é uma prioridade abordar o acordo UE-Mercosul a partir de uma perspectiva de direitos humanos. Tanto quanto sabemos, existe um princípio no direito internacional que diz que os direitos humanos têm precedência sobre outros tipos de tratados. Quando se propõem esses tipos de tratados bilaterais e multilaterais, corre-se o risco de que a ambição envolvida leve ao esquecimento deste princípio. Portanto, no UE-Mercosul, estamos lidando com direitos humanos e padrões ambientais muito baixos. Por exemplo, identificamos a questão da proibição da exportação de agrotóxicos proibidos na União Europeia como uma condição importante para o andamento desse tratado. A tendência do acordo até agora é aumentar ainda mais as exportações de agrotóxicos da Europa para a América Latina, inclusive os proibidos aqui. Este contrato foi feito dentro do atual modelo dominante de agricultura industrial e produção de commodities. O contrato reduz os requisitos ao mínimo. Há uma boa chance de que esse tratado seja ratificado pelo novo governo do Brasil – um governo que tem maior interesse em uma posição internacional privilegiada.

Novo governo Lula da Silva

Nos governos anteriores de Lula [2003-2011] houve um pacote de medidas com propostas econômicas e fiscais, que incluíam também a segurança alimentar e o salário mínimo. Sob Bolsonaro, o único pacote era o subsídio ao gás, que vence no final do ano.

Sob Lula havia um ministério da agricultura de exportação [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa] e um do Desenvolvimento Agrário [MDA], no qual a agroecologia também era promovida. Esse ministério já foi dissolvido no governo Temer. No processo de transição, Lula criou três grupos de trabalho: um sobre povos indígenas e tradicionais; um sobre agricultura, do qual participam representantes do agronegócio, e o terceiro sobre desenvolvimento agrícola, tendo como participantes sindicalistas e movimento sem-terra.

Foto: Pedro Biondi/Repórter Brasil (2018)

FIAN Brasil e PAN lideram apoio de 274 entidades a proibição de exportação de agrotóxicos proibidos pela UE

Comunicado de imprensa publicado originalmente em inglês por Panap

274 grupos da sociedade civil do Sul Global: sim à proibição alemã de exportação de agrotóxicos proibidos pela UE

Em nome de 274 grupos da sociedade civil de 54 países do Sul Global, a PAN Ásia-Pacífico (Panap) e a FIAN Brasil apresentaram uma carta ao ministro da Agricultura alemão, Cem Oezdemir, em apoio à nova legislação planejada pela Alemanha para proibir a exportação de agrotóxicos proibidos pela União Europeia (UE).

As OSCs agradeceram a declaração de Oezdemir “reconhecendo que não é aceitável que a Alemanha continue a produzir e exportar agrotóxicos que foram corretamente proibidos em seu próprio território para proteger a saúde das pessoas e que as pessoas em todo o mundo, incluindo os agricultores, tenham o mesmo direito à saúde”. A elaboração do documento foi resultado das atividades do assessor de Advocacy da FIAN Brasil, Pedro Vasconcelos, na Alemanha.

Os agrotóxicos altamente perigosos (HHPs) que são proibidos na União Europeia podem, no entanto, ser exportados para países fora da UE, ameaçando a saúde e os meios de subsistência das pessoas. Nessas exportações, a Alemanha desempenha um papel relevante, com 8.525 toneladas de substâncias agrotóxicas ativas não autorizadas exportadas apenas em 2021.

“Temos esperado ansiosamente por ações ousadas e decisivas, como esta proposta de proibição de exportação alemã de agrotóxicos proibidos pela UE. Todos os dias, milhões de agricultores estão sendo envenenados desnecessariamente por padrões duplos injustos no comércio de agrotóxicos. Esperamos que os ministros alemães possam atender ao nosso apelo e resistir à pressão da indústria agroquímica”, disse Sarojeni Rengam, diretor executivo da Panap, que enviou a carta em nome dos signatários em 24 de novembro passado.

Um estudo global de intoxicações agudas não intencionais por agrotóxicos mostra que agricultores e trabalhadores rurais no Sul Global estão sofrendo mais com os impactos dos HHPs, com cerca de 180 milhões de agricultores sofrendo de envenenamento por agrotóxicos não fatais no sul da Ásia, seguidos por 55 milhões no Sudeste Asiático e 51 milhões na África Oriental.

Além das intoxicações agudas, os agrotóxicos proibidos pela UE estão ligados a doenças crônicas como o câncer, têm o potencial de perturbar os sistemas endócrinos das pessoas e colocam especialmente em risco os nascituros, as crianças e as mulheres. Alguns desses agrotóxicos também são conhecidos por prejudicar e até eliminar populações de insetos benéficos, o que coloca em risco a biodiversidade, a polinização, o controle natural de pragas e, consequentemente, a segurança alimentar e a saúde das pessoas. Assim, as OSCs instaram a Alemanha a proibir as exportações de agrotóxicos considerados demasiado perigosos não só para a saúde das pessoas, mas também para o ambiente e a biodiversidade.

“Pedimos que proíbam a exportação de todos os agrotóxicos que não são aprovados na União Europeia – não importa se eles são exportados como produtos ou ingredientes ativos. A mera proibição de exportação de produtos agrotóxicos formulados não será suficiente para evitar danos, já que os exportadores poderiam simplesmente mudar para a exportação de ingredientes ativos, que seriam então formulados e usados no país importador”, disse a carta.

“Expressamos nosso apoio e estamos convencidos de que, se a Alemanha mantiver seu compromisso de reduzir os padrões duplos insustentáveis no comércio de agrotóxicos com a nova legislação planejada, estabelecerá um modelo para outros países e regiões seguirem e será um passo importante para reduzir os danos dos agrotóxicos altamente perigosos sofridos por todas as pessoas e pelo planeta, “, concluiu a carta.

Os signatários da carta incluíram parceiros da Panap da Índia, Bangladesh, Vietnã, Filipinas, Camboja, Indonésia, Paquistão, Nepal e Sri Lanka.

Artigo | Construindo conjuntamente o futuro do direito à alimentação no Brasil com raízes profundas em tempos de tormenta

Significado dos avanços e desafios no vigésimo aniversário da FIAN Brasil

Ana María Suárez Franco – representante permanente da FIAN Internacional em Genebra

Com estas palavras quero fazer um breve reconhecimento ao trabalho da FIAN Brasil em seus 20 anos de luta pelo direito à alimentação. Eles certamente não abrangem todo o esforço valioso que colocaram em seu trabalho e os desafios que enfrentam. No entanto, esse olhar de fora visa juntar as vozes de muitas outras pessoas que comemoram esses 20 anos reconhecendo sua valiosa contribuição.

Quando comecei a trabalhar como estagiária na FIAN em 2002, a FIAN Brasília estava em Goiânia. Seu trabalho já era muito relevante, principalmente nas questões de acesso à terra e na defesa do direito à alimentação diante do despejo e do impacto das monoculturas e dos agrocombustíveis. Nesse tempo, se minha memória não me trair, o trabalho foi feito principalmente com os movimentos que lutavam pela terra. A FIAN Brasil também apoiou as comunidades quilombolas.

Mais ou menos entre 2009 e 2011 a FIAN Brasil teve várias mudanças relevantes. Eles passaram a trabalhar sobre o direito à alimentação de uma perspectiva mais abrangente, incluindo discussões sobre Governança Alimentar em nível nacional, participando de discussões em torno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e contribuindo para reuniões internacionais sobre o direito à alimentação e à nutrição do que no período foram organizados em Brasília e no exterior. Isso aconteceu em um momento em que as políticas e instituições públicas brasileiras deram grandes passos que constituíram um exemplo para o mundo no que se refere ao direito à alimentação. A partir dessa época também lembro como mudança relevante a mudança do escritório para Brasília, o que ampliou as possibilidades de interação com as autoridades nacionais.

Também de grande importância foi o início do acompanhamento das Comunidades Guarani e Kaiowá, a documentação de sua situação na perspectiva do direito à alimentação e à nutrição e a apresentação de uma petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual foi admitida e está em andamento. Nesse trabalho, que continua até hoje, a cooperação com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem gerado um grande aprendizado. Este apoio continua. Em estreita colaboração com o Cimi e com o Secretariado Internacional da FIAN, a FIAN Brasil tem contribuído para trazer as vozes que contam as realidades cruéis que vivem os Guarani e Kaiowá, incluindo suas reivindicações pela terra, contra o genocídio e as violações do direito à alimentação, perante o Sistema Internacional de Direitos Humanos da ONU e as autoridades europeias. Nesse contexto, apresentaram o caso ao Comitê Desc, ao Conselho de Direitos Humanos e aos três últimos relatores especiais de Direitos Humanos para o Direito à Alimentação e ao último relator para Pobreza Extrema e Direitos Humanos. Essas autoridades da ONU obtiveram, entre outras, várias recomendações ao Estado brasileiro, defendendo-o para respeitar, proteger e garantir os direitos das comunidades. O trabalho de advocacia no Parlamento Europeu resultou numa resolução de apoio às comunidades. Todas essas recomendações são instrumentos que fortalecem a luta pelo Tekoha dos Guaraní e Kaiowá. Uma luta que ainda representa um imenso desafio.

Em nível regional, nas Américas, a FIAN Brasil tem sido uma das seções-chave na formação da articulação regional, apoiando essa cooperação com suas ideias. Isso também implicou a definição e implementação de estratégias em nosso trabalho perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Eu, como representante permanente da FIAN Internacional em Genebra, valorizo ​​o papel que a FIAN Brasil desempenhou durante o processo de negociação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Zonas Rurais, bem como processos relacionados, incluindo as discussões do Comitê Desc para a adoção de um Comentário Geral sobre a Terra e os Desc [direitos econômicos, sociais e culturais], ou os esforços da sociedade civil para conduzir a transição para um mundo livre de agrotóxicos. Nesse contexto, a FIAN Brasil tem contribuído para manter nossos parceiros no Brasil informados sobre esses processos e para levar as análises e propostas do movimento pelo direito à alimentação no Brasil aos respectivos debates internacionais. Participou de negociações na ONU em Genebra, apoiou a participação de representantes das comunidades de base nesses espaços e liderou a elaboração de um estudo sobre Agrotóxicos e Direito à Alimentação, realizado pelas seções do FIAN na América Latina, que será publicado em breve.

A FIAN Brasil também desempenhou um papel útil e n a conexão entre o processo internacional no âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, para a adoção de um Instrumento Vinculativo (um tratado) sobre Empresas Transnacionais e Outros Negócios em Direitos Humanos, participando dos debates e contribuindo para os debates em nível brasileiro.

Infelizmente os tempos mudaram e o ambiente político que apoiava o direito à alimentação e reconhecia as contribuições da sociedade civil e a importância da participação das comunidades de base na elaboração e monitoramento das políticas no Brasil foi deixado para trás. Hoje a sociedade brasileira vive um regime hostil e autoritário, que ignora os direitos humanos e ataca frontalmente os povos indígenas, as mulheres, a população LGTBI e os defensores dos direitos humanos. O Consea foi desmontado, medidas regressivas de direitos humanos foram adotadas e a militarização da sociedade instigou o pânico naqueles que antes defendiam as agendas dos Desc.

Acho que, nesse novo contexto, a FIAN Brasil tem um trabalho muito importante. Assim como fez quando mobilizou as ações que buscavam impedir o desmantelamento do Consea, infelizmente sem o efeito final pretendido, agora a FIAN Brasil deve continuar seu papel de guardiã atenta e defensora do direito à alimentação e direitos conexos. Isso implica em um grande investimento de energia no fortalecimento de alianças e na ampliação de convergências que permitam à sociedade civil brasileira criar uma massa crítica mais forte em defesa dos avanços que fez nos últimos anos. Um desafio titânico, mas fundamental!!! O trabalho também envolve a denúncia de situações de criminalização de defensores dos direitos humanos, incluindo líderes de comunidades de base que são atacados diretamente.

Embora as medidas regressivas já tenham começado, a Covid-19 acumula-se com as crises existentes e, em muitos casos, é usada pelos governos para justificar novas medidas regressivas. Esta nova crise, que aprofunda outras já existentes, também cria um novo desafio para a FIAN Brasil. Enquanto os olhos do mundo estão voltados para a crise da saúde, nosso trabalho como FIAN no Brasil e no mundo também exigirá chamar a atenção para os impactos que a pandemia está gerando sobre o direito à alimentação e à nutrição. Somos chamados a propor medidas de contenção e recuperação que avancem na transição para sistemas alimentares mais saudáveis, sustentáveis ​​e justos. É fundamental que a FIAN Brasil, junto com seus aliados, proponha e exija medidas que respeitem, protejam e garantam o Dhana, especialmente para as comunidades marginalizadas, incluindo povos indígenas, quilombolas, camponeses e pescadores artesanais, entre outros. Neste contexto, a FIAN Brasil tem o novo desafio de estar alerta, documentar e resistir a novas violações do direito à alimentação, ao mesmo tempo que aprende com as respostas inovadoras e solidárias das comunidades de base e dá-lhes visibilidade. Sem dúvida, para fazer este trabalho sem se colocar em perigo, também neste aspecto é imprescindível o fortalecimento de suas alianças atuais e a ampliação de suas convergências.

Em minha opinião, a FIAN Brasil também poderia se beneficiar com a adoção de abordagens inovadoras que continuam a se enquadrar no conceito holístico de direito à alimentação e apoio à luta dos movimentos sociais e comunidades de base, reconhecendo-os, como sempre fez, como agentes de mudança, titulares dos direitos humanos, que possuem o conhecimento e a força para continuar lutando pela realização do direito à alimentação. Levando em consideração os desafios apresentados pelas atividades das grandes corporações para a efetivação do direito à alimentação e os desafios gerados pela destruição ecológica e pelas mudanças climáticas, acredito que continuar e aprofundar o trabalho dessas lutas seria fundamental para o setor.

Quero também agradecer o excelente trabalho que o Conselho de Administração e a equipe da Secretaria Executiva da FIAN Brasil têm feito para alcançar tudo o que conquistaram até agora. É importante que continuem com o seu compromisso institucional, aproveitando a grande experiência adquirida ao longo destes 20 anos. Além disso, acredito que é fundamental que a FIAN Brasil continue a envolver jovens de diversas disciplinas e regiões do Brasil em sua equipe e a treiná-los em nossos valores fianistas, para garantir que a instituição se mantenha, fortaleça-se e continue a desempenhar um papel relevante no movimento de direitos humanos no Brasil, na região e no mundo. Esse aprendizado e treinamento permanente, no entanto, representa um grande desafio. Garantir a sobrevivência econômica das organizações para as quais trabalhamos um mundo mais justo é difícil em tempos de recessão. Esse desafio é maior também porque os fundos internacionais para organizações de direitos humanos, especialmente na América Latina, diminuem notavelmente. Assim, o trabalho para garantir os recursos que permitam ao setor dar continuidade ao seu trabalho também será essencial para garantir mais 20 anos de trabalho contra as injustiças.

Agradeço muito à FIAN Brasil por esses 20 anos de grande compromisso com o direito à alimentação e à nutrição.

Foto: Alex Del Rey/FIAN Internacional

Texto original (em espanhol)

Co-construyendo el Futuro del Derecho a la Alimentación en Brasil sobre Raíces Profundas en Tiempos Borrascosos: importancia avances y desafíos en el vigésimo aniversario de FIAN Brasil

Ana María Suárez Franco – Representante Permanente de FIAN Internacional en Ginebra

Con estas palabras quiero hacer un corto reconocimiento al trabajo de FIAN Brasil en sus 20 años de lucha por el derecho a la alimentación. Sin duda ellas no abarcan todo el valioso empeño que han puesto en su labor y en los desafíos que confrontan. No obstante, esta mirada desde afuera pretende unirse a las voces de muchas otras personas que celebran estos 20 años reconociendo su valioso aporte.

Cuando yo entré a trabajar como practicante a FIAN en 2002, FIAN Brasilia estaba en Goiânia. Su trabajo ya era muy relevante, especialmente en los temas de acceso a la tierra y la defensa del derecho a la alimentación frente al desalojo y el impacto de los monocultivos y los agro- combustibles. Durante esta época, si mi memoria no me traiciona, el trabajo se hacía principalmente con los movimientos que luchaban por la tierra. FIAN Brasil además apoyaba las comunidades Quilombola.

Más o menos entre 2009 y 2011 FIAN Brasil tuvo varios cambios relevantes. Pasaron a trabajar sobre el derecho a la alimentación desde una perspectiva más integral, incluyendo las discusiones sobre Gobernanza Alimentaria a nivel nacional, participando en las discusiones alrededor del Consea y contribuyendo a las reuniones internacionales sobre el derecho a la alimentación y la nutrición que en la época se organizaron en Brasilia y en el exterior. Esto sucedió en tiempos en los cuales las políticas públicas e instituciones brasileras tuvieron grandes avances que han sido ejemplo para el mundo en materia del derecho a la alimentación. De esta época también recuerdo como un cambio relevante el paso de la oficina a Brasilia, que amplió las posibilidades de interactuar con las autoridades nacionales.

También de gran importancia fue el inicio del acompañamiento a las Comunidades Guarani y Kaiowa, la documentación de su situación desde la perspectiva del derecho a la alimentación y la nutrición y la presentación de una petición ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, que ha sido admitida y se encuentra en curso. En este trabajo, que se extiende hasta hoy, la cooperación con Cimi ha generado un gran aprendizaje. Este apoyo continúa. En estrecha colaboración con Cimi y con el Secretariado Internacional de FIAN, FIAN Brasil ha contribuido a llevar las voces que cuentan las crueles realidades que viven los Guarani & Kaiowá, incluyendo sus demandas por la tierra, contra el genocidio y en cuanto a las violaciones a su derecho a la alimentación, ante el Sistema Internacional de Derechos Humanos de la ONU y las autoridades europeas. En este marco, han presentado el caso ante el Comité Desc, el Consejo de Derechos Humanos y ante los tres últimos Relatores Especiales de Derechos Humanos sobre el Derecho a la Alimentación y el último relator sobre Pobreza Extrema y Derechos Humanos. De estas autoridades de la ONU se han obtenido, entre otras, diversas recomendaciones al estado brasilero, avocándolo a respetar, proteger y garantizar los derechos de las comunidades. El trabajo de incidencia en el Parlamento Europeo dio como fruto una resolución en apoyo a las comunidades. Todas estas recomendaciones son instrumentos que fortalecen la lucha por el Tekoha de los Guaraní y Kaiowá. Una lucha que aún representa un inmenso desafío.

A nivel regional, en las Américas, FIAN Brasil ha sido una de las secciones clave en la conformación de la articulación regional, apoyando con sus ideas a dicha cooperación. Esto ha implicado también la definición e implementación de estrategias sobre nuestro trabajo ante el Sistema Interamericano de Derechos Humanos.

Yo, como representante permanente de FIAN Internacional en Ginebra, valoro el rol que FIAN Brasil jugó durante el proceso de negociación de la Declaración de Naciones Unidas sobre los Derechos de los Campesinos, Campesinas y Otras Personas que Trabajan en áreas Rurales, así como procesos relacionados, incluyendo los debates del Comité Desc hacia la adopción de una Observación General sobre Tierra y Desc, o los esfuerzos de la sociedad civil por impulsar la transición hacia un mundo libre de pesticidas. En este marco FIAN Brasil ha contribuido a mantener informadas a nuestras parceras en Brasil sobre dichos procesos y a llevar el análisis y las propuestas del movimiento del derecho a la alimentación en Brasil a los respectivos debates internacionales. En este marco FIAN Brasil ha participado en negociaciones en la ONU en Ginebra, ha apoyado la participación de representantes de las comunidades de base en esos espacios y ha liderado la elaboración de un estudio sobre Pesticidas y Derecho a la Alimentación, realizado por las secciones de FIAN en América Latina, que será publicado próximamente.

FIAN Brasil también ha jugado un rol útil en la conexión entre el proceso internacional en el marco del Consejo de Derechos Humanos de Naciones Unidas, para la adopción de un Instrumento Vinculante (un tratado) sobre Empresas Transnacionales y Otros Negocios con respecto a los Derechos Humanos, participando en los debates y contribuyendo a los debates a nivel brasilero.

Desafortunadamente los tiempos han cambiado y el ambiente de políticas que apoyaban al derecho a la alimentación y reconocían los aportes de la sociedad civil y la importancia de la participación de las comunidades de base en la elaboración y monitoreo de políticas en Brasil han quedado atrás. Ahora la sociedad brasilera se encuentra bajo un régimen hostil y autoritario, que desconoce los derechos humanos y ataca frontalmente a los pueblos indígenas, las mujeres, la población LGTBI y a las personas defensoras de derechos humanos. Se ha desmantelado el Consea, se han adoptado medidas regresivas en cuanto a los derechos humanos y la militarización de la sociedad ha infundido el pánico en quienes otrora han impulsado las agendas en materia de Desc.

Yo pienso que en este nuevo contexto FIAN Brasil tiene una labor muy importante. Así como lo hizo cuando movilizó las acciones que buscaron impedir el desmantelamiento del Consea, desafortunadamente sin el efecto final buscado, ahora FIAN Brasil deberá continuar con su rol de atenta guardiana y defensora del derecho a la alimentación y los derechos relacionados. Esto implica una gran inversión de energía en el fortalecimiento de alianzas y la ampliación de las convergencias que le permitan a la sociedad civil brasilera crear una masa crítica más fuerte defender los avances que ha logrado en los últimos años. Un desafío titánico, pero fundamental !!! Este trabajo también implica la denuncia de situaciones de criminalización a las personas defensoras de derechos humanos, incluyendo a las personas líderes de las comunidades de base que son directamente atacadas.

Si bien las medidas regresivas ya habían comenzado, el COVID-19 se ha acumulado con las crisis existentes y en muchos casos es utilizado por los gobiernos para justificar medidas regresivas adicionales. Esta nueva crisis, que profundiza otras preexistentes, también genera un nuevo desafío para FIAN Brasil. Mientras los ojos del mundo están enfocados en la crisis sanitaria, nuestro trabajo como FIAN en Brasil y en el mundo, también requerirá llamar la atención sobre los impactos que la pandemia está generando en el derecho a la alimentación y la nutrición. Estamos llamadas a proponer medidas de contención y recuperación que avancen en la transición hacia sistemas alimentarios más saludables, sostenibles y justos. Es fundamental que FIAN Brasil, junto con sus aliadas, proponga y exija medidas que respeten, protejan y garanticen el DHANA, especialmente para las comunidades marginadas, incluyendo los pueblos tradicionales, pueblos indígenas, comunidades quilombolas, campesinas y pescadoras, entre otras.  En este contexto, FIAN Brasil tiene el nuevo desafío de estar alerta documentar y resistir nuevas violaciones del derecho a la alimentación, mientras aprende de las respuestas innovadoras y solidarias de las comunidades de base y les da visibilidad. Sin duda, para hacer este trabajo sin ponerse en peligro, en este aspecto también el fortalecimiento de sus actuales alianzas y la ampliación de sus convergencias resulta fundamental.

En mi opinión FIAN Brasil podría también beneficiarse de la adopción de enfoques innovadores, que se sigan enmarcando dentro del concepto holístico del derecho a la alimentación y el apoyo a la lucha de los movimientos sociales y las comunidades de base, reconociéndolos, como siempre ha hecho, como agentes de cambio, titulares de derechos humanos, que poseen el conocimiento y la fuerza para seguir luchando por la realización del derecho a la alimentación. Teniendo en cuenta los desafíos que presentan las actividades de las grandes corporaciones para la realización del derecho a la alimentación y los desafíos que generan la destrucción ecológica y el cambio climático, creo que continuar y profundizar el trabajo desde estas luchas sería fundamental para la sección.

También quiero reconocer el gran trabajo que la Junta Directiva y el equipo del Secretariado Ejecutivo de FIAN Brasil ha hecho para alcanzar todo lo que han logrado hasta ahora. Es importante que sigan con su compromiso institucional, aprovechando la gran experiencia que han ganado durante estos 20 años. Más allá, creo que es fundamental que FIAN Brasil siga involucrando gente joven de diversas disciplinas y regiones de Brasil en su equipo y formándola en nuestros valores FIANistas, para asegurar que la institución permanezca, se fortalezca y siga jugando un rol relevante en el movimiento de derechos humanos en Brasil, en la región y en el mundo. Este permanente aprendizaje y capacitación, sin embargo, representan un gran desafío. Asegurar la supervivencia económica de las organizaciones que trabajamos por un mundo más justo se dificulta en tiempos de recesión. Este desafío es mayor, también porque los que los fondos internacionales para las organizaciones de derechos humanos, especialmente en América Latina, disminuyen notablemente. Así, el trabajo por asegurar los recursos que permitan a la sección continuar con su labor también será fundamental para asegurar otros 20 años de trabajo contra la injusticia.

Mil gracias FIAN Brasil por estos 20 años de gran compromiso por el derecho a la alimentación y la nutrición.