Nota de posicionamento | O marco temporal e a (não) demarcação das terras indígenas no MS

A FIAN Brasil, organização dedicada à defesa e exigibilidade do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana), expressa sua profunda preocupação com a situação dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, em especial os Guarani e Kaiowá. A falta de demarcação de terras e o debate em torno do marco temporal representam sérias ameaças aos direitos humanos, territoriais e culturais dessas comunidades.

As violações dos direitos dos povos indígenas são históricas e estruturais. No caso dos Guarani e Kaiowá, embora tenham se iniciado com a invasão europeia, a partir do início do século 20 é que elas se agravam de forma crescente e constante, sobretudo a partir de 1915, com a retirada forçada desses povos de seus territórios tradicionais pelo então Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Também durante a ditadura militar, foram retirados à força de seus territórios, além de terem sofrido todo tipo de violência, como está amplamente registrado em relatórios oficiais e de organizações da sociedade civil (Ministério do Interior, 1967; CNV, 2014).

Em 27 de setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do caso de repercussão geral (Tema 1.031 – Definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional) que envolvia a discussão sobre a tese jurídica do marco temporal e que se estendia desde 2009. Esta tese jurídica limitava os direitos de posse dos povos indígenas àquelas áreas em que ocupavam na data da promulgação da Constituição Federal brasileira, ou seja, 5 de outubro de 1988. Pela decisão da maioria dos ministros do STF, a tese jurídica do marco temporal foi considerada inconstitucional e o julgamento abriu caminhos para avançar nas demarcações das terras indígenas. Na fixação das novas teses os ministros do STF incluíram a validade dos atos e negócios jurídicos referentes ao justo título ou posse de boa-fé, circunstâncias que possibilitam o direito de indenização aos fazendeiros, das benfeitorias e até mesmo indenizações correspondentes ao valor da terra nua, o que requer a destinação de volumosos recursos do orçamento público. 

Apesar dos avanços no julgamento do STF e da subsequente jurisprudência estabelecida, consolidando os direitos territoriais indígenas como direitos originários fundamentais, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701, de 20 de outubro de 2023, que regulamenta o art. 231 da Constituição para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas. A nova lei aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro acolhe a tese jurídica outrora superada do marco temporal, limita o direito de consulta das comunidades indígenas para a instalação de empreendimentos públicos em suas terras, insere limitações ao usufruto exclusivo dos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas e permite a celebração de contratos entre indígenas e não indígenas para efetivar atividades econômicas diversas. A divergência estabelecida entre o STF e o Congresso resultou na paralisação das ações do Governo Federal relacionadas às demarcações das terras indígenas no Brasil, incluindo as ações administrativas da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). 

A principal política para os povos indígenas no Brasil é a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, conforme os termos da Constituição Federal de 1988. A exigência de que os indígenas estivessem presentes no local reivindicado em 1988 desconsidera que, ao longo da história, muitos povos foram forçadamente removidos de seus territórios tradicionais, como é o caso dos Guarani e Kaiowá.

Ademais, tramita no Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição 48, de 2023 (PEC 48/23), que altera o §1º do art. 231 para definir o marco temporal de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Conhecida entre esses povos como a “PEC da Morte”, a PEC 48 foi apresentada por um grupo de senadores no mesmo dia em que o Supremo formou maioria para declarar a tese inconstitucional (21 de setembro de 2023).

Para a FIAN Brasil, o marco temporal representa uma tese ruralista e anti-indígena e deve ser imediatamente suspenso pelo STF, pois viola o direito originário dos povos ao seu território ancestral, já reconhecido na Constituição de 1988 e que a PEC 48/23 tenta modificar. Além disso, essa tese desconsidera as violências e perseguições enfrentadas pelos povos indígenas há mais de 500 anos – especialmente durante a ditadura  –, que impediram muitos povos de estar em seus territórios em 1988.

Caso a PEC da Morte seja aprovada, a vida dos povos indígenas estará ainda mais ameaçada. O marco temporal afetaria todas as terras indígenas (TIs) no Brasil, independentemente de sua situação, e incentivaria invasões e violências, como já ocorre nos territórios dos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.

A FIAN atua junto aos Guarani e Kaiowá desde 2005 no acompanhamento, documentação, denúncia das violações e na exigibilidade de seus direitos humanos, em especial no que tange ao direito à alimentação. Em 2013, com o objetivo de reunir dados concretos sobre as violências e violações cometidas pelo Estado brasileiro e por latifundiários contra os Guarani e Kaiowá em territórios de retomadas, conduziu uma pesquisa, com apoio da FIAN Internacional e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que revelou que 100% das famílias entrevistadas em três comunidades (Ypo’i, Guaiviry e Kurusu Ambá) sofriam de insegurança alimentar e nutricional (InSAN). Retomada é a recuperação dos territórios ancestrais diante da falta de providências demarcatórias de responsabilidade do Estado.

Os resultados destacaram a relação direta entre a fome e a privação de acesso às terras tradicionais, mostrando como a não demarcação das terras indígenas perpetua diversas inseguranças e formas de violência, exacerbando os conflitos nas comunidades (Luz et al., 2023). 

Em 2023, a FIAN Brasil, com apoio de parceiros e pesquisadores ligados à Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), realizou uma nova pesquisa em cinco retomadas, sendo três delas as mesmas da pesquisa anterior, além de duas novas:  Apyka’i e Ñanderu Marangatu. A pesquisa apurou que para 94,9% das famílias estudadas, retomar o território ancestral promoveu melhora da alimentação, relacionada ao acesso a matas, rios e plantações, bem como à produção e à troca de alimentos. Para quase 80,0%, a condição de saúde também melhorou. A mudança de moradia da reserva indígena, geralmente superpopulosa, sem espaço para plantio, para o tekoha promoveu o reencontro dos Guarani e Kaiowá com seus modos de ser, viver e produzir saúde (Luz et al., 2023). Tekoha, como os Guarani e Kaiowá referem-se aos seus territórios tradicionais, é “o lugar em que vivemos de acordo com nossos costumes […], [sendo esta] uma instituição divina (tekoha ñe’e pyru jeguangypy) criada por Ñande Ru” (Meliá et al., 2008).

A escassez de sementes, estacas ou mudas está diretamente ligada à expropriação de territórios, à degradação do solo e ao saque dos recursos comuns causados pela expansão agropastoril e pelo uso extensivo de agrotóxicos nas monoculturas de soja e milho. Em várias regiões estudadas foram constatados casos de pulverizações frequentes. Essa problemática é especialmente relevante no Mato Grosso do Sul, onde a monocultura é predominante, resultando em uma intensificação crescente no uso dessas substâncias. Como consequência desse modelo agrícola, a contaminação da terra, dos rios e do ar é uma realidade, afetando diretamente os habitantes locais, suas culturas, águas e a biodiversidade. Esse cenário levanta sérias preocupações quanto aos impactos na saúde das comunidades afetadas.

A insegurança alimentar e nutricional (InSAN) em todos os domicílios foi de 77,0%, sendo que a InSAN moderada (quando a qualidade da alimentação no domicílio já está comprometida e a quantidade começa a ser afetada) estava presente em 22,2% e a grave em 11,4% deles. A InSAN grave indica a insuficiência de alimentos para todas as pessoas da casa. Em ambos os níveis, é possível afirmar que os domicílios vivenciam situação de fome, uma grave violação de direitos humanos que pode afetar a dignidade, a saúde e o bem-estar dessas pessoas. 

Apesar de a condição geral de segurança alimentar e nutricional ter melhorado em dez anos (saindo de 0 para 23%), a porcentagem de famílias vivendo em insegurança alimentar nas retomadas (77%) é inaceitável. Sobretudo no que diz respeito à InSAN moderada, os índices constatados pela pesquisa nas retomadas indígenas, em 2023, foram ainda piores do que o mais grave dos indicadores apresentados pela população brasileira geral, na história do país, desde sua primeira avaliação em 2004, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2004. Se houve redução da fome por um lado, houve também aumento importante na insegurança moderada e leve (quando há preocupação entre os moradores sobre se a alimentação será suficiente), o que, provavelmente, indica uma “migração” das famílias entre os níveis de insegurança alimentar. 

Na perspectiva do direito humano à alimentação, viver livre da fome é apenas uma de suas duas dimensões indivisíveis e interdependentes. A segunda é ter acesso a alimentação e nutrição adequadas, de forma que qualquer nível de insegurança ou medo de faltar comida representa, por si só, uma violação.

O relatório sobre insegurança alimentar e nutricional em retomadas indígenas também mostra que o aumento da violência nos territórios ancestrais prejudica diretamente o modo de vida, a educação e a saúde física e mental das famílias. A insegurança física se relaciona fortemente com a insegurança alimentar, e ambas comprometem sobremaneira a existência de qualquer povo. A única forma justa de cessar esse ciclo de violência é demarcar e proteger os territórios ancestrais dos povos indígenas.

Por fim, garantir a demarcação e a proteção das terras indígenas é fundamental para conter os efeitos das mudanças climáticas. As terras indígenas são áreas de grande biodiversidade e vegetação conservada, protegidas e manejadas pelos povos originários desde tempos remotos. Essa forma de ocupar os solos e conviver com os recursos naturais tem muito a ensinar à humanidade sobre prioridades, sobre como garantir o direito à alimentação, à água e à vida. Aprovar a PEC 48/23 significaria impedir que os verdadeiros defensores dos biomas, os povos originários desta terra, continuem cuidando e preservando o meio ambiente. Significaria uma ameaça não apenas à existência dos povos indígenas, mas à própria existência da humanidade neste planeta.

Referências

CNV. Violações de direitos humanos dos povos indígenas. In: Relatório: textos temáticos/Comissão Nacional
da Verdade
. Textos temáticos. Brasília: CNV, 2014b. (Relatório da Comissão Nacional da Verdade, v. 2).
Disponível em: https://www.memoriaedireitoshumanos.ufsc.br/files/show/347.

LUZ, V. G.; FARIA, L. L. (org.); JOHNSON, F. M.; MACHADO, I. R. et al. Insegurança alimentar e nutricional nas retomadas guarani e kaiowá: um estudo em cinco territórios indígenas do Mato Grosso do Sul. Brasília: FIAN Brasil, 2023. Disponível em: https://fianbrasil.org.br/ssangk.

MELIÁ, B.; GRÜNBERG, G.; GRÜNBERG, F. Los Paĩ-Tavyterã: etnografia guaraní del Paraguay contemporâneo. ed. rev. ampl. Assunção: Cepag, 2008.

MINISTÉRIO DO INTERIOR. Relatório Figueiredo. Brasil doc: Arquivo Digital. Fapemig, 1967. Disponível em: https://www.ufmg.br/brasildoc/temas/5-ditadura-militar-e-populacoes-indigenas/5-1-ministerio-do-interiorrelatorio-figueiredo.