Em um país com 33 milhões de pessoas com fome e mais da metade da população com algum nível de insegurança alimentar, medida é fundamental na luta pelo direito à alimentação
Em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, em 28 de fevereiro de 2023, o governo brasileiro, liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reempossou conselheiras e conselheiros do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), após ter sido extinto, em 2019, pelo governo anterior.
Para o presidente Lula, a volta do Consea é uma questão de soberania nacional. “Não há nada mais importante para um país do que garantir que seu povo tenha acesso à alimentação. Não podemos permitir que a fome volte a assombrar o Brasil”, afirmou em discurso.
O Consea exerce o papel de assessorar a presidência da República na elaboração de políticas e planos capazes de garantir que todas as pessoas tenham direito a comida suficiente e de qualidade, além de contribuir para o fortalecimento e a exigibilidade do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana).
No momento em que mais de 33 milhões de pessoas enfrentam a fome, e mais da metade da população passa por algum nível de insegurança alimentar, o Consea foi restaurado com a representação original. São 60 membros, sendo dois terços de representantes da sociedade civil e um terço de indicações governamentais.
Os membros da sociedade civil representam organizações, entidades, academia, movimentos e associações que atuam no campo da segurança alimentar e nutricional em favor de toda a população, porém com um olhar especial para os povos indígenas, quilombolas, povos de matriz africana, povos e comunidades tradicionais, populações do campo, da floresta e das águas, assentadas e assentados da reforma agrária. A FIAN Brasil é representada no Consea pela titular Mariana Santarelli, assessora de direitos humanos e coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e pela suplente Nayara Côrtes, secretária-geral da FIAN Brasil.
Na cerimônia, a doutora em saúde pública e coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da Universidade de Brasília, Elisabetta Recine, foi reconduzida à presidência do Consea, liderado por ela entre 2017 e 2018.
“O Consea é guardião da comida de verdade. Estamos totalmente comprometidas com o fim da fome em nosso país. Aprendemos com o que conquistamos e principalmente com o que perdemos nestes últimos 6 anos, que a erradicação da fome e a garantia da alimentação saudável requer o enfrentamento das desigualdades de gênero e de raça e a produção de “comida de verdade” produzida pela agricultura familiar, por povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, de base agroecológica e que respeite a cultura alimentar e a natureza”, disse Recine.
Ao discursar sobre o Conselho como instrumento fundamental para a formulação de políticas públicas, Recine afirmou que não há mais como adiar a articulação das ações de alívio à emergência da fome e que é essencial aumentar o acesso à uma alimentação saudável. “Transferir renda, gerar emprego e valorizar o salário-mínimo são essenciais e urgentes. Garantir terra e território, financiamento e assistência técnica”, pontuou.
Para Recine, única representante brasileira Painel de Especialistas de Alto Nível do Comitê de Segurança Alimentar Mundial da Organização das Nações Unidas, é fundamental criar com celeridade uma estratégia de abastecimento acessível e com estoques reguladores [leia a íntegra do discurso].
Políticas Públicas – Por meio de propostas do Consea, o direito à alimentação foi incluído na Constituição; foi criado o programa de aquisição de alimentos (PAA); foi fortalecido o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional (Sisan), responsável pela gestão intersetorial de políticas públicas e a articulação entre as três esferas de governo (federal, estadual e municipal); e, entre outras conquistas, houve a determinação de que ao menos 30% do valor repassado pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) para a oferta de refeições nas escolas seja investido na compra direta de alimentos da agricultura familiar.
A respeito do Pnae, Mariana Santarelli alertou que são altas as expectativas em relação ao aumento dos valores per capita para a melhoria da qualidade da alimentação escolar, que em breve deve ser anunciado pelo atual governo.
Santarelli sinalizou que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) anunciou que está por ser assinado um novo acordo de cooperação entre as pastas da Educação, Saúde, Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, para formar uma colaboração interministerial relativa às compras públicas e demais diretrizes do programa. Também comentou que será recriado o Grupo Consultivo do PNAE para reabrir o canal de diálogo com a sociedade civil.
“O que a fala de muitas conselheiras e conselheiros do Consea expressa é a necessidade de adequação do modelo de gestão das compras públicas, para que agricultoras e agricultores menos estruturados, bem como povos indígenas, povos de matriz africana e comunidades tradicionais, possam abastecer as escolas”, finalizou.
Novo cenário – Também no dia 28 de fevereiro, o presidente Lula decretou a nova composição da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), que passou a integrar 24 ministérios com o objetivo de viabilizar o pleno funcionamento da articulação e coordenação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional nos diferentes espaços da União, em diálogo com as recomendações do Consea que serão extraídas e organizadas a partir das próximas reuniões plenárias, agendas de trabalho e conferências.
Na sequência, o governo brasileiro anunciou o lançamento de um pacto nacional contra a fome. Segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) o objetivo é “criar uma plataforma com dados obtidos de representantes do setor privado, organizações sem fins lucrativos e do governo federal sobre as iniciativas já implementadas e que deram certo” e, desta forma, promover a segurança alimentar e nutricional em todo o país, com especial atenção para os grupos mais vulneráveis e em situação de pobreza e exclusão social.
O pacto envolve a articulação de políticas públicas integradas, o fomento à produção de alimentos saudáveis e sustentáveis, a promoção do acesso a alimentos de qualidade, a educação alimentar e nutricional e o fortalecimento da agricultura familiar.
Plenária do Consea – Na tarde do dia 28 de fevereiro, logo após a reinstalação do Consea, foi iniciada a primeira reunião plenária, que seguiu até 2 de março, com ampla participação de diversos setores da sociedade civil e do governo.
As discussões abordaram como principais temas as ações emergenciais e respostas às violações ao direito à alimentação do povo Yanomami – que tem sido vítima de um crescente processo de invasão de suas terras e poluição das águas, gerando grave situação de fome e degradação local. As estratégias para o combate à fome e a realização progressiva do direito à alimentação, por meio do sistema nacional de segurança alimentar e nutricional (Sisan), apresentadas por atores do governo [leia o resumo das falas sobre a estratégia do Sisan para o combate à fome].
Por fim, a presidenta do Consea convocou a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, inicialmente prevista para acontecer entre 12 e 15 de dezembro. Se mantida a data, os municípios terão até 31 de julho para a realização das conferências locais, e os estados devem realizar suas conferências até 30 de setembro.
Percurso – O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi criado em 1993, durante o governo Itamar Franco, com o objetivo de formular e acompanhar a implementação de políticas voltadas para a garantia do direito à alimentação e da segurança alimentar e nutricional da população brasileira.
No governo de Fernando Henrique Cardoso o Consea foi desativado. Em 2003, recriado pelo presidente Lula. Em 2019, Bolsonaro o extinguiu logo no primeiro ato de governo.
Em 1º de janeiro deste ano, o presidente Lula novamente reinstalou a instância de participação social, que se organiza a partir do exercício colaborativo de suas e seus representantes, que atuam junto às conferências, reuniões plenárias, na mesa diretiva, nas comissões permanentes, nos grupos de trabalho, na secretaria geral, secretaria executiva e também na comissão de presidentas/es de conselhos nos estados e no Distrito Federal.
Importante lembrar que a recriação do Consea neste 28 de fevereiro de 2023 não significa um recomeço. Significa continuar o amplo e importante processo de mobilização e controle social que sempre aconteceu. Para se ter uma ideia, durante o período de inatividade do conselho, conselheiras e conselheiros, especialistas, militantes, pesquisadoras e pesquisadores seguiram em luta contra a fome, por meio de movimentos como a Conferência Nacional Popular, por Direitos, Democracia, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Desse movimento surgiram importantes pesquisas, notas públicas, proposições, relatórios, manifestos, além do Tribunal Popular contra a Fome, que em 2021 considerou o governo federal culpado pelo aumento da fome no país.
FIAN Brasil
Fotos de Ricardo Stuckert/Planalto