Mensagem de fim de ano da FIAN Brasil

O ano de 2023 abre novas perspectivas para a realização do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (#Dhana) no nosso país. Nós, que integramos a FIAN Brasil, esperamos que o quadro de desigualdades de classe, raça e gênero nos sistemas alimentares e de crise ambiental no país volte a ser combatido.

Não vamos nos esquecer dos 33 milhões de brasileiros e brasileiras que passam fome, ou dos 125 milhões de pessoas vivendo sob insegurança alimentar – mais da metade da população. E que é urgente olhar para os grupos como mulheres negras e povos indígenas, que são os mais afetados. Chamam atenção a violência contra os Guarani e Kaiowá e a fome extrema que afeta o povo Yanomami.

Mas também não nos esqueceremos de seguir a nossa luta ancorados nos diálogos ampliados, na retomada da democracia, impulsionados pela potência do nosso povo e pela força da nossa participação e mobilização social. Não nos esqueceremos, especialmente, de trabalhar por um Brasil sem fome.

Agradecemos, celebramos as conquistas democráticas e desejamos um 2023 leve e especial para cada uma e cada um de vocês. A máxima da vida é a renovação.

Ida à Alemanha intensifica articulações internacionais contra os agrotóxicos

Pedro Vasconcelos (2o à esq.) no Parlamento alemão com Almudena Abascal (FIAN Alemanha), Silke Bollmohr (PAN Alemanha) e Marian Henn (FIAN Alemanha)

O assessor de Advocacy da FIAN Brasil, Pedro Vasconcelos, esteve na Alemanha em outubro para atividades de incidência internacional no tema dos agrotóxicos. Participou de articulações e expôs a situação brasileira, com ênfase nas contradições entre a postura dos fabricantes europeus em seus países e em outros mercados – o chamado “duplo padrão” (double standards).

Ao lado da seção Ásia e Pacífico da Pesticides Action Network (PAN) – principal rede mundial da área –, a FIAN Brasil liderou a elaboração de carta de 274 entidades do Sul global em apoio à proposta alemã de proibir a exportação de “agrotóxicos altamente perigosos” (hazardous pesticides).

Chama-se de incidência o conjunto de ações dirigidas pela sociedade civil ao Estado para que cumpra suas obrigações em relação a direitos. A viagem foi apoiada pela FIAN Alemanha.

“Além de apoiar a proposição legislativa, as atividades em Berlim tiveram como principais objetivos apresentar o estado do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas [Dhana] no Brasil, com ênfase nessa questão, para parlamentares, membros do governo federal e organizações parceiras; e estreitar as relações com essas entidades”, explica Vasconcelos. Leia entrevista à Fundação Heinrich Böll.

Com membros da FIAN Alemanha, da PAN Alemanha e da Inkotta Netzwerk, o assessor participou de reunião no Parlamento alemão com parlamentares e assessorias dos Partido Socila-Democrata (SPD) e dos Verdes, que compõem a atual coalizão governamental.

“Apresentei preocupações relatadas no Brasil com as violações de direitos humanos associadas ao uso indiscriminado de agrotóxicos”, conta Vasconcelos. “Ressaltei o peso político ruralista e os efeitos disso para leis e políticas públicas, incluindo o lobby que exercem, com o apoio de empresas alemãs, por meio de institutos e confederações.” Os interlocutores e interlocutoras comprometeram-se a pressionar por uma maior transparência da atuação de suas transacionais no Brasil, bem como uma contestação pública do projeto de lei conhecido como “Pacote do Veneno” (PL 1.459/2022).

A resistência à proposição, encabeçada pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, conseguiu evitar a votação no plenário do Senado este ano. O PL foi aprovado na Câmara dos Deputados e pelos senadores/as da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA).

Agenda com ministérios

Pedro Vasconcelos também se reuniu com representantes de três ministérios alemães: Agricultura (BMEL), Relações Exteriores (AA) e Cooperação e Desenvolvimento (BMZ).

Aproveitando a presença de responsável pelo Brasil na pasta alemã de Relações Exteriores, o representante abordou o estado do direito à alimentação e à nutrição adequadas e os impactos dos agrotóxicos altamente perigosos no país.

“Fomos questionados sobre eventuais aplicações errôneas das substâncias tóxicas e sobre a necessidade de regular isso. Argumentamos que estamos em processo de regular práticas como a pulverização aérea, mas que a responsabilidade também é de quem exporta substâncias perigosas sabendo como elas são utilizadas”, relata o assessor.

“Ressaltamos que o problema geral está relacionado ao modelo agroexportador, exigente em insumos e com impactos severos no meio ambiente e na saúde. Este modelo gera benefícios e prejuízos desiguais entre Norte e Sul global, levantando questões fundamentais de justiça e responsabilidade. Desta constatação reafirmamos a importância de levar adiante e incentivar transições justas nos sistemas alimentares.”

Regulação das transnacionais

O assessor de Advocacy também participou, na Suíca, de discussões voltadas à criação de um instrumento legalmente vinculante (LBI) que regule internacionalmente as relações entre empresas, principalmente transnacionais, e os direitos humanos. Leia mais.

FIAN contribui em discussão de tratado sobre empresas e direitos humanos

De 22 a 29 de outubro, a FIAN Internacional, a FIAN Brasil e outras seções nacionais participaram de discussões voltadas à criação de um instrumento legalmente vinculante (LBI) que regule internacionalmente as relações entre empresas, principalmente transnacionais, e os direitos humanos. As atividades foram realizadas em Genebra, Suíça.

A proposta é discutida desde 2014 no Grupo de Trabalho (GT) para um Tratado Internacional Vinculante para Empresas e Direitos Humanos, instância intergovernamental atualmente presidida por uma delegação do Equador, em que a FIAN Internacional tem status consultivo. 

Dezenas de organizações da sociedade civil estiveram presentes e ativas na 8ª sessão de negociação do GT. Debates e acordos de definição da incidência das diferentes coalizões ocorreram previamente, com encontros presenciais nos dias 22 e 23. 

Sucessivos abusos e violações de direitos humanos ocorrem em todo o mundo pela ação de empresas transnacionais. Abarcando diversas atividades em extensas cadeias de valor, a responsabilização dessas corporações e a resposta às demandas de comunidades afetadas representam desafios de regulação nos planos nacional e internacional.

“O principal instrumento internacional vigente para prevenir e reparar este tipo de violação são os Princípios Orientadores da ONU para Empresas e Direitos Humanos [UNGPs], balizados pelo mote de ’proteger, respeitar e reparar’”, explica o assessor de Advocacy Pedro Vasconcelos, que representou a FIAN Brasil. “Em sentido semelhante, alguns Estados têm implementado medidas orientadoras no âmbito da responsabilidade corporativa, como exemplificam o surgimento de cada vez mais leis nacionais de devida diligência – due diligence. Entretanto, entende-se em diferentes contextos que o fato de muitas destas regulações serem apenas orientadoras e não vinculantes dificulta sua efetiva implementação.”

Durante a 8ª sessão, ao lado de representantes de outras seções da FIAN, Vasconcelos trabalhou na elaboração de pareceres para declarações em cada discussão de acordo com decisões internas e deliberações das três redes de que a entidade participa: Global Campaign, Treaty Alliance e Escr-Net. Participou também de eventos paralelos temáticos (side events) e de reuniões com cada rede.

O assessor também leu uma declaração de contribuição para o preâmbulo do instrumento vinculante, ressaltando a primazia dos direitos humanos sobre outros acordos internacionais. A manifestação também defendeu a inclusão da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Camponeses (Undrop, na sigla em inglês) como exemplo de parâmetro de legislação internacional democraticamente adotada. Enfatizou, ainda, a importância da cooperação internacional no tema, citando como exemplo a atuação de empresas produtoras de agrotóxicos que afetam comunidades em outros países. 

“Articulei, pela FIAN Brasil, uma declaração conjunta com Cimi [Conselho Indigenista Missionário], FIAN Internacional, Apib [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil], Red Iglesias y Mineria e Campanha Global para o Artigo 6º”, acrescenta Vasconcelos. “A declaração afirma a importância de incorporar a aplicação do princípio da precaução como chave na relação entre Estados, empresas e direitos humanos, atentando principalmente para povos indígenas, povos e comunidades tradicionais [PCTs], camponeses e riscos de degradação ambiental.”

Agrotóxicos

O assessor de Advocacy também esteve na Alemanha para atividades de incidência internacional no tema dos agrotóxicos. Participou de articulações e expôs a situação brasileira, com ênfase nas contradições entre a postura dos fabricantes europeus em seus países e em outros mercados. Leia mais.

FIAN Brasil solicita ao MPF e à DPU medidas em favor do povo indígena Yanomami, que sofre situação de fome, desnutrição e grave violação de direitos

Na última quinta-feira (15), a FIAN Brasil encaminhou petição ao Ministério Público Federal (MPF) e à Defensoria Pública da União (DPU) em que solicita providências urgentes quanto ao cumprimento das obrigações do Estado brasileiro para com o povo indígena Yanomami, que enfrenta o aumento da desnutrição e da fome na maior reserva indígena brasileira, situada na Floresta Amazônica. São aproximadamente 30 mil indígenas e 300 comunidades na região.

A petição, assinada pela secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, e pelos assessores de direitos humanos Adelar Cupsinski e Nayara Côrtes, alerta que informações da Hutukara Associação Yanomami e do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) do Distrito Sanitário Especial Yanomami e Ye’kuana (Dsei-Y), e que estão no noticiário, evidenciam “um quadro inaceitável de intenso sofrimento destas comunidades”, em situação de desnutrição (e de outras doenças desenvolvidas/agravadas a partir dela), mortalidade infantil, contaminação dos alimentos e das pessoas por metais pesados em razão da mineração, e total falta de proteção ao território e as formas de sobrevivência e de alimentação tradicional. O documento também registra a inadequação dos serviços públicos de atendimento aos povos indígenas.

A partir de ampla fundamentação jurídica, base e marcos legais, e de um arcabouço normativo nacional e internacional relacionado à promoção e proteção do Dhana – Constituição Federal de 1988, Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Lei 11.346/2006, Comentário Geral 12/1999, Diretrizes Voluntárias 2004, dentre outros mecanismos –, e da observação dos aspectos que fundamentam a realização do direito à alimentação (disponibilidade, acessibilidade, adequação e sustentabilidade), a FIAN Brasil apresenta apontamentos sobre em quais aspectos o Dhana da comunidade Yanomami tem sido violado.

O documento também faz uma abordagem sobre a relação entre o acesso ao território ancestral e a realização do direito à alimentação dessas populações indígenas, “pois é através da terra, considerada sagrada, que estes povos garantem sua subsistência. Considerando a interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos, o grave estado de insegurança alimentar e nutricional enfrentado por estas comunidades Yanomami pode estar associado à falta de proteção real ao seu território tradicional”.

Reivindicações

A petição pede ao MPF e à DPU o retorno sobre três pontos. No primeiro deles, solicita informações sobre possíveis ações já adotadas no enfrentamento da situação descrita, incluindo aspectos relacionados à garantia da proteção ao território e ao direito à alimentação.

Solicita a adoção de medidas e exigências junto ao Poder Executivo, capazes de efetivar a “apuração e a superação do quadro de violações de direitos como garantia de proteção ao território, às formas tradicionais de acesso aos alimentos e ações emergenciais para enfrentamento da desnutrição do Povo Yanomami”, levando em conta os ritos e a alimentação tradicional local.

Por fim, o documento exige das autoridades competentes a realização de uma agenda de estudos profissionais das diferentes áreas atuantes no tema (nutrição, antropologia, saúde, entre outras), “sobre os fatores multicausais da situação de fome e outras formas de má nutrição do povo Yanomami com propostas de soluções de curto, médio e longo prazo”. A petição recomenda que estes estudos abordem uma metodologia que atenda a diversidade da situação de saúde e de insegurança alimentar e nutricional dos Yanomami.

Outras manifestações

Durante a II Plenária da Área de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e do Direito Humano à Alimentação, também na quinta (15), a coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (Opsan/UnB) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Elisabetta Recine, apresentou um alerta sobre a situação “absurdamente desesperadora e terrível que o povo Yanomami está vivendo”, ao falar sobre o enfrentamento ao racismo institucional e seus efeitos na vida de povos indígenas, populações negras e demais povos e comunidades tradicionais no campo da soberania e segurança alimentar.

“A questão do enfrentamento de todo o nível de violência contra o povo Yanomami é absolutamente urgente. Dentre todas as urgências ligadas aos povos originários, talvez o povo Yanomami seja o povo que precise neste momento de uma atenção principal e prioritária”, disse Recine.

Relatório anual do Cimi, publicado em agosto deste ano, retrata agravamento das violências contra os povos indígenas no Brasil, com ataques a direitos e desmonte dos órgãos de fiscalização e assistência.

Sobre nós

A FIAN Brasil é a seção brasileira da FIAN Internacional, organização não governamental de direitos humanos que trabalha há 30 anos pela realização do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). No Brasil, acompanha, desde 2000, situações de violações ao Dhana que afetam povos indígenas e outras comunidades tradicionais, além de outros grupos em situação de vulnerabilidade.

FIAN Brasil

Foto: Carsten ten Brink. Disponível em flickr.com

Congresso derruba veto e abre caminho para reajustar alimentação escolar

Parlamentares derrubaram canetada do presidente Jair Bolsonaro contra o reajuste do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) na LDO. Decisão deve garantir R$ 1,5 bilhão a mais em 2023

Em votação nesta quinta-feira (15), o Congresso Nacional derrubou o veto do presidente Jair Bolsonaro à emenda que tinha incorporado o reajuste do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A decisão abre caminho para que o programa receba, em 2023, ao menos R$ 1,5 bilhão a mais, totalizando R$ 5,5 bilhões.

“É uma vitória coletiva, resultado da mobilização de dezenas de organizações ligadas ao Observatório da Alimentação Escolar [ÓAÊ]”, comenta o assessor de Advocacy da FIAN Brasil, Pedro Vasconcelos. “Também confirma a sensibilidade da maioria dos e das parlamentares à prioridade absoluta para as crianças e adolescentes expressa na nossa Constituição. Comida de verdade na escola é indispensável para a saúde e o pleno desenvolvimento dos indivíduos.”

O ÓAÊ conduziu, ao longo do ano, a campanha “Derruba Veto, Reajusta Pnae” para confirmar a reposição dos 34% de perda inflacionária desde 2017 que o projeto aprovado pela LDO contemplava. Agora, como a possibilidade foi acenada pelos parlamentares e pela equipe de transição, a ideia é buscar a ampliação da verba.

“Importante celebrar esta conquista, sem esquecer que o valor ainda não é suficiente para recompor o poder de compra que o Pnae tinha em 2010, quando viveu seu melhor momento”, pontua a coordenadora do observatório, Mariana Santarelli. “Só para acompanhar a inflação dos alimentos precisaríamos de um total de R$ 7,9 bilhões. Está em tempo de o novo governo e o Congresso Nacional darem ao enfrentamento da fome seu devido lugar com mais recursos para a alimentação escolar.”

Nota técnica do ÓAÊ e da FIAN mostra que, sem o reajuste, cada estado perderia de R$ 2 milhões a 247 milhões, e a agricultura familiar deixaria de receber R$ 398 milhões, por ano.

Ato, petição e reforço no Orçamento 2023

O relator-geral do Orçamento 2023, senador Marcelo Castro (MDB-PI), divulgou na terça relatório que registra acréscimo de R$ 1,5 bilhão à verba do Pnae para o ano que vem.

Castro recebeu ontem as 7.390 assinaturas registradas em petição pública pela derrubada do veto de Bolsonaro e pelo aumento na verba da alimentação escolar. O senador ouviu representantes da FIAN Brasil, da Ação da Cidadania, da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e do Instituto Alana. Ele entregou o documento da sociedade civil ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Há a expectativa de que a Proposta de Emenda Constitucional da Transição (PEC 32/2022) traga novo reforço para essa política. A PEC garante recursos para áreas sensíveis que estavam a descoberto no Orçamento 2023.

Sobre o observatório

Lançado oficialmente em fevereiro de 2021, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) é resultado da ação coletiva de organizações da sociedade civil e movimentos sociais engajados na defesa do direito à alimentação escolar.

O ÓAÊ visa ampliar a visibilidade e mobilização e promover o monitoramento do Pnae a partir da formação de uma ampla rede de ação compartilhada que atualmente conta com 18 organizações da sociedade civil, movimentos sociais e redes de pesquisa. Tem hoje, em sua secretaria executiva, a FIAN Brasil e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

FIAN Brasil

CNDH realiza Ato pelo Dia Internacional dos Direitos Humanos e dá posse à nova composição

Na última quarta-feira (7), o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) realizou o Ato pelo Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro), com o tema “Justiça e paz para fortalecer a democracia, respeitar a diversidade e promover os direitos humanos”. O encontro reuniu conselheiras e conselheiros de dois mandatos do colegiado – o que atuou no Biênio 2020-2022 e o que tomou posse para atuar nos próximos dois anos.

A servidora e assessora da Secretaria-Executiva do CNDH, Ana Claudia Macedo, apresentou em sua fala um agradecimento público pela atuação da FIAN Brasil, que integra duas comissões do Conselho: a Comissão de Direito à Alimentação Adequada do Conselho, representada pela assessora de direitos humanos Nayara Côrtes; e a Comissão Permanente de Monitoramento e Ações na Implementação das Obrigações Internacionais em Matéria de Direitos Humanos (Comissão Internacional), por meio do assessor de direitos humanos Adelar Cupsinski.  

Para Côrtes, o CNDH sempre desenvolveu importante papel na construção de uma cultura de direitos no Brasil. Ela explica que “nos últimos anos – em que o ataque e a violação aos direitos humanos foi uma tônica e os espaços de participação social quase totalmente extintos no governo atual – o Conselho se tornou um espaço de resistência elementar no país”.

A assessora reforça o quanto “é fundamental fortalecer e estruturar o CNDH para que o país, de fato, avance no entendimento e na promoção de uma cultura de direitos e não volte a viver esse terror que é a criminalização de direitos humanos”.

O Ato pelo Dia Internacional dos Direitos Humanos está disponível no canal do CNDH  no YouTube.

FIAN Brasil

Ato no Congresso pressiona por reajuste para alimentação escolar

Mobilização desta quarta (14) em Brasília reúne entidades ligadas ao Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) para sensibilizar os/as parlamentares

As entidades que compõem o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) marcaram para a manhã desta quarta-feira (14) um ato em Brasília pelo reajuste do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

A manifestação no Congresso Nacional reafirma a importância de que as refeições escolares, com valor congelado há cinco anos, tenham reforço no orçamento para 2023. Embora o presidente eleito Lula e a equipe de transição tenham defendido enfaticamente a necessidade de mais recursos para o programa, nenhuma proposta foi formalizada até agora em relatórios setoriais ou gerais do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA).

O relatório divulgado hoje pelo relator-geral do Orçamento, o senador Marcelo Castro (MDB-PI), incorporou um acréscimo de R$ 1,5 bilhão à verba do Pnae para o ano que vem, totalizando R$ 5,4 bilhões. As entidades mantêm a manifestação desta quarta para buscar garantir que o montante permaneça ao longo da tramitação do projeto de lei.

Embora seja uma conquista, para recompor o poder de compra o orçamento deveria ser na casa dos R$ 7,9 bilhões, tendo em vista que o último reajuste nos valores do programa que acompanhou a inflação ocorreu em 2010.  

Desde 2017, o governo federal repassa aos estados e municípios R$ 0,36 por aluna/o por dia, no ensino fundamental e médio.

Aprovação e veto

Como resultado de forte pressão da sociedade civil, e do compromisso de parlamentares de diferentes partidos, a Câmara dos Deputados aprovou a reposição dessas perdas inflacionárias no fim do primeiro semestre, mas o presidente Jair Bolsonaro vetou o trecho ao sancionar o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) em agosto. Assim, a rubrica orçamentária voltou ao montante do ano anterior, R$ 4 bilhões, para atender mais de 40 milhões de alunos em todo o ano letivo.

As organizações integrantes e parceiras do ÓAÊ lançaram, então, a campanha “Derruba Veto, Reajusta Pnae”, que incluiu uma petição pública pela derrubada da canetada presidencial. “A apreciação do veto acabou não entrando na agenda do Congresso, e com isso a disputa ficou para o próprio PLOA”, explica o assessor de Advocacy da FIAN Brasil, Pedro Vasconcelos. “A Proposta de Emenda Constitucional da Transição [PEC 32/2022] garante recursos para áreas sensíveis que estavam a descoberto no Orçamento 2023, e a segurança alimentar e nutricional de crianças e adolescentes certamente está entre as de caráter fundamental e emergencial.”

Perdas

Nota técnica do observatório e da entidade mostra que, sem o reajuste, cada estado perderia de R$ 2 milhões a 247 milhões, e a agricultura familiar deixaria de receber R$ 398 milhões, por ano.

“Isso é ainda mais absurdo num cenário em que 33 milhões de brasileiras e brasileiros passam fome, e em que a insegurança alimentar grave subiu de 9,4% em 2020 para 18,1% nos lares com crianças menores de 10 anos”, denuncia o assessor de Política Agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), Décio Sieb. “Está sendo negada uma das mais importantes refeições do dia – e com isso o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas [Dhana] – na etapa crucial do desenvolvimento físico e intelectual.”

O Pnae responde pelas refeições servidas nas quase 150 mil escolas da rede pública do ensino básico no país.

FIAN Brasil

Participação em GT de transição combina propostas emergenciais e estruturantes

A secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, e a assessora de Políticas Públicas, Mariana Santarelli, participaram da plenária do Grupo de Técnico (GT) de Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo de transição. Em suas falas, destacaram propostas emergenciais e estruturantes.

Burity trouxe elementos do contexto, como a escalada da fome, o aumento do consumo de produtos ultraprocessados – associado ao crescimento de doenças não transmissíveis –, a inflação dos alimentos e o colapso ambiental. “O caráter intersetorial da política de SAN [segurança alimentar e nutricional] deve nortear as estrutura de governança de modo que busque dar conta de todas as pontas dos sistemas alimentares, com todos os seus sujeitos”, comenta. “Destaquei ainda a importância de a Caisan [Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional] ter uma efetiva capacidade de convocação dos diversos ministérios e  dialogar com o Legislativo e o Judiciário.”

Outro assunto abordado pela secretária-geral são as proposições legislativas no Congresso Nacional que representam esperança ou ameaça para o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). “É  importante que os órgãos de controle não criminalizem os programas de agricultura familiar e segurança hídrica, como o das cisternas.”

Santarelli, por sua vez, defendeu a reativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) no primeiro dia de governo, com a composição de quando teve seu funcionamento interrompido pelo presidente Jair Bolsonaro. “A ideia seria atualizar essa representação adiante, de forma a garantir uma abordagem enfaticamente antirracista e incorporar atores do campo que surgiram nos últimos anos”, explica a assessora, que participou como integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

A FIAN apoia a proposta de criação da Secretaria Especial de Segurança Alimentar e Nutricional e Enfrentamento da Fome, ligada à Presidência da República e abrigando a Caisan e o Consea. “Também seria interessante, na recomposição do que será o futuro Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social e Combate à Fome, criar uma secretaria voltada ao acesso à alimentação, com foco em programas como os de cisternas e equipamentos de alimentação e nutrição”, pontua Santarelli. Ela propôs o fortalecimento de uma rede de cozinhas solidárias, que criam os caminhos entre o que é produzido pela agricultura familiar e as pessoas que passam fome na cidade, e lembrou a proposta que vem sendo defendida pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) de reajuste do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Entre os e as integrantes do GT estão o ex-presidente do Consea Renato Maluf, a culinarista Bela Gil, a senadora Simone Tebet e as ex-ministras Tereza Campello e Márcia Lopes. O grupo tem nova plenária marcada para quinta-feira (15).

Em entrevista na Alemanha, assessor da FIAN Brasil comenta lobby e contradições das transnacionais dos agrotóxicos

Entrevista realizada em Berlim, em 20 de outubro, e publicada originalmente em alemão no site da Fundação Heinrich Böll

Brasil: Por que o agro não é pop

Milhões de brasileiros são afetados pela insegurança alimentar. Conversamos com Pedro Vasconcelos Rocha, da FIAN Brasil, sobre a agricultura no Brasil e o lobby brasileiro e alemão dos agrotóxicos.

Por Mareike Bödefeld e Almudena Abascal

O que você espera de uma proibição de exportação de agrotóxicos da Alemanha ou da Europa? Que efeitos positivos tal proibição teria sobre o povo do Brasil, especialmente os trabalhadores rurais e as comunidades indígenas ou quilombolas?

Em primeiro lugar, para nós é um sinal positivo de igualdade de tratamento, porque nós, brasileiros, pegamos doenças dos agrotóxicos assim como os europeus. A afirmação das empresas de que são necessários mais agrotóxicos para uma agricultura bem-sucedida nos países tropicais do que nos países europeus não é eficaz. O solo contaminado acaba por contaminar também os europeus, pois os produtos produzidos no solo são exportados para a Europa. Não é fácil para os europeus determinar quais ingredientes invisíveis acabam em seus pratos. No entanto, foi comprovado que o [queijo] grana padano italiano, por exemplo, contém vestígios de agrotóxicos do Brasil. Os animais de onde vem o presunto espanhol foram alimentados com soja brasileira, para a qual provavelmente foram usados ​​agrotóxicos além da engenharia genética. A decisão de interromper em breve a exportação de agrotóxicos proibidos para outros países, anunciada pelo governo alemão, é, portanto, crucial. Porque as empresas alemãs Bayer e Basf estão na vanguarda do comércio de agrotóxicos. No Brasil, eles simbolizam um comércio eticamente questionável. Um comércio que só funciona com violência e pulverização de agrotóxicos do ar. As pessoas nas proximidades dos campos cultivados com produtos da Bayer ou da Basf sofrem consequências para a saúde, como deformidades genéticas ou câncer. E não são as únicas empresas atuantes no Brasil.

Lobby alemão no Brasil?

No Brasil, o instituto Pensar Agro – com o apoio financeiro de empresas alemãs – promoveu mudanças na legislação ambiental brasileira. A meu ver, os lobistas alemães estão tentando influenciar o pacote de legislação brasileira sobre venenos (PL 6.299). Eu queria obter mais informações sobre isso na Alemanha, mas infelizmente não deu certo.

A FIAN Brasil espera que a Alemanha apresente uma proposta mais ambiciosa para a proibição de exportação de agrotóxicos, uma proposta que sinaliza compromisso e responsabilidade ética. Em geral, pedimos mais transparência em relação às vendas e exportações desses produtos. Alguns produtos não são regulamentados na Alemanha. Precisamos saber quais substâncias não são regulamentadas na Alemanha para poder regulá-las no Brasil, se necessário. Porque não sabemos o que os produtos podem fazer aqui ou como serão usados ​​posteriormente. Gostaríamos de saber dos parlamentares alemães como eles conseguiram regulamentar certos agrotóxicos na Alemanha para aprender com eles para nosso trabalho de lobby no Brasil. O uso de agrotóxicos, a legislação ambiental e a mineração em territórios indígenas estão sendo flexibilizados aqui.

Também é importante para nós se as proibições se aplicam apenas a produtos agrotóxicos acabados ou também a ingredientes ativos individuais. O Brasil tem capacidade de produção própria: ou seja, se apenas os produtos acabados forem proibidos e os ingredientes ativos continuarem sendo exportados, isso não nos ajuda muito. Os problemas ambientais causados ​​pelos produtos também devem receber maior reconhecimento.

Quando há problemas ou danos, as empresas alemãs dizem que os agricultores brasileiros não estão usando seus produtos adequadamente. Mas na realidade eles vendem produtos que são pulverizados do ar como armas químicas em indígenas, por exemplo. Esses ingredientes ativos agora podem ser encontrados em nossos rios e em nossa água potável. Também aqui na Alemanha existem responsáveis ​​que realmente sabem que as substâncias são prejudiciais à saúde e, portanto, foram proibidas aqui.

Também trabalhamos a questão da responsabilidade corporativa, especialmente das empresas transnacionais que atuam no Brasil e no mundo. Junto com a sociedade civil brasileira, estamos trabalhando no Projeto de Lei 572/22, lei da cadeia produtiva brasileira que propõe um acordo entre direitos humanos e negócios, com foco em empresas transnacionais. O lobby empresarial no Brasil é muito poderoso e está tentando barrar o projeto. Fazemos networking com outros latino-americanos e internacionais, por exemplo, atores asiáticos. A União Europeia sinalizou que adotará uma postura de apoio. Uma proposta sobre cadeias de abastecimento livres de desmatamento também está sendo discutida. É importante que as questões de indenização e reparação sejam claramente definidas, não como no caso do Rio Doce, por exemplo, em que os responsáveis ​​ainda são procurados até hoje. Os princípios fundamentais são: prevenção, transparência, reparação e não reincidência. A consulta aos povos indígenas deve ser uma diretriz. Assim, com toda a pressão, o debate sobre a responsabilidade pode ter algum sucesso afinal. As preocupações com a prestação de contas não devem ser apenas uma questão do Sul Global.

Qual é o estágio da implementação de uma política nacional de redução de agrotóxicos no Brasil?

Fizemos uma luta e uma grande coalizão contra a iniciativa legislativa 1.459/22 (o “Pacote do Veneno”, como chamamos) e pedimos apoio internacional. Os relatores especiais da ONU sobre o impacto de substâncias tóxicas e resíduos nos direitos humanos, Marcos Orellana, e sobre o direito à alimentação, Michael Fakhri, viam o projeto com grande preocupação em um comunicado. A lei flexibilizaria a legislação brasileira – ainda que o Brasil já tenha aprovado um número recorde de agrotóxicos nos últimos anos. A informação sobre substâncias cancerígenas e desreguladoras do sistema endócrino deve ser removida do registro e apenas uma categoria de risco deve ser utilizada. O nome “agrotóxico” também deve ser alterado para “produto fitossanitário”. Não há revisão regular dos registros, então existe o risco de que os agrotóxicos sejam liberados indefinidamente. Expressamos repetidamente a nossa preocupação com esse pacote legislativo e, mais recentemente, nós o submetemos à Comissão da Agricultura. Ao mesmo tempo, vemos na Câmara dos Deputados uma redução gradativa do financiamento da agroecologia.

Por que a agroecologia é uma alternativa e como ela pode ser fortalecida?

Com o slogan “O agro é pop”, uma certa visão de como a agricultura deve ser feita é popularizada. Esse modelo agrícola gera renda para poucos no Brasil e certamente não alimenta a população brasileira. Atualmente, 33 milhões de brasileiros vivem em grave situação de insegurança alimentar. Cento e vinte e cinco milhões de brasileiros são afetados por algum tipo de insegurança alimentar. Famílias com filhos são particularmente dependentes do programa de merenda escolar já mencionado. Para muitas crianças brasileiras, a alimentação escolar é a única refeição do dia. Como na escola tem o que comer, conseguimos manter alto o nível de alfabetização e frequência escolar. É claro que é um problema sério quando uma criança vai para a escola só porque está com fome. Agro não é pop. Não alimenta a população brasileira. O agronegócio ganha dinheiro nas costas da população.

A sociedade civil brasileira insiste, portanto, num modelo agrícola diferente: a agroecologia. A agroecologia trata bem a agricultura e o solo e atua de forma ambientalmente responsável. Nas mais diversas regiões do país, as pessoas estão lidando com novos modelos agrícolas e estabelecendo redes. Os povos indígenas estão lutando com a questão da agrofloresta. Vale destacar o movimento Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra [MSTR], que são os maiores produtores de arroz orgânico da América Latina. Seria ótimo se tivéssemos ainda mais apoio nacional e internacional para esse projeto. Porque o Brasil não tem uma política agroecológica forte há muito tempo. Durante os governos do PT houve iniciativas de planos nacionais – mas acabaram falhando na implementação. Em princípio, preferia-se um modelo agrícola diferente, mas algumas medidas a favor dos pequenos produtores poderiam ser implementadas.

Deve haver mais foco no meio ambiente e no envolvimento de quem cuida dele.

Conte-nos um pouco mais sobre a merenda escolar brasileira.

Temos feito muito lobby no Congresso Brasileiro para o programa estadual de alimentação escolar, o Programa Nacional de Alimentação Escolar [Pnae], e como resultado temos conseguido muita atenção da mídia.

O programa existe desde a década de 1960 e é um modelo para muitos outros países. Porque: 40 milhões de crianças e jovens são alimentados em instituições de ensino estaduais com refeições gratuitas que fortalecem seu desenvolvimento biopsicossocial. O programa foi regulamentado pela sociedade civil no passado e tivemos acesso ao Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

O resultado da nossa luta foi, entre outras coisas, que desde 2009 o estado se comprometeu a comprar pelo menos 30% dos alimentos para a merenda escolar dos pequenos produtores. A alimentação entregue nas escolas também deve ter uma ligação cultural com a região, de acordo com a legislação do programa. Os especialistas decidem o que as crianças e os jovens vão comer. Por exemplo, o lobby do leite gostaria de se envolver – isso faz sentido para regiões com muito gado leiteiro, mas não para a região amazônica, porque como o leite deveria ser entregue em grandes quantidades aqui? Não dá para levar comida do sul do Brasil que não tem ligação com uma comunidade indígena da Amazônia.

Os tempos mudaram nos últimos anos, especialmente sob o governo Bolsonaro: o Brasil sofre atualmente com uma inflação alta. A insegurança alimentar é um grande problema. Mesmo antes da guerra na Ucrânia e antes da pandemia, alimentos agroecológicos bons, orgânicos, de alta qualidade e de produção familiar eram caros. Recentemente, faltou dinheiro e vontade política para implementar esse gigantesco programa de merenda escolar. Os alimentos regionais e saudáveis ​​foram então trocados, de modo que hoje nossas crianças e jovens às vezes comem alimentos ultraprocessados ​​ou apenas biscoitos, que podem causar doenças crônicas, entre outras coisas.

Como o senhor vê o acordo UE-Mercosul?

Para nós, é uma prioridade abordar o acordo UE-Mercosul a partir de uma perspectiva de direitos humanos. Tanto quanto sabemos, existe um princípio no direito internacional que diz que os direitos humanos têm precedência sobre outros tipos de tratados. Quando se propõem esses tipos de tratados bilaterais e multilaterais, corre-se o risco de que a ambição envolvida leve ao esquecimento deste princípio. Portanto, no UE-Mercosul, estamos lidando com direitos humanos e padrões ambientais muito baixos. Por exemplo, identificamos a questão da proibição da exportação de agrotóxicos proibidos na União Europeia como uma condição importante para o andamento desse tratado. A tendência do acordo até agora é aumentar ainda mais as exportações de agrotóxicos da Europa para a América Latina, inclusive os proibidos aqui. Este contrato foi feito dentro do atual modelo dominante de agricultura industrial e produção de commodities. O contrato reduz os requisitos ao mínimo. Há uma boa chance de que esse tratado seja ratificado pelo novo governo do Brasil – um governo que tem maior interesse em uma posição internacional privilegiada.

Novo governo Lula da Silva

Nos governos anteriores de Lula [2003-2011] houve um pacote de medidas com propostas econômicas e fiscais, que incluíam também a segurança alimentar e o salário mínimo. Sob Bolsonaro, o único pacote era o subsídio ao gás, que vence no final do ano.

Sob Lula havia um ministério da agricultura de exportação [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa] e um do Desenvolvimento Agrário [MDA], no qual a agroecologia também era promovida. Esse ministério já foi dissolvido no governo Temer. No processo de transição, Lula criou três grupos de trabalho: um sobre povos indígenas e tradicionais; um sobre agricultura, do qual participam representantes do agronegócio, e o terceiro sobre desenvolvimento agrícola, tendo como participantes sindicalistas e movimento sem-terra.

Foto: Pedro Biondi/Repórter Brasil (2018)

FIAN Brasil e PAN lideram apoio de 274 entidades a proibição de exportação de agrotóxicos proibidos pela UE

Comunicado de imprensa publicado originalmente em inglês por Panap

274 grupos da sociedade civil do Sul Global: sim à proibição alemã de exportação de agrotóxicos proibidos pela UE

Em nome de 274 grupos da sociedade civil de 54 países do Sul Global, a PAN Ásia-Pacífico (Panap) e a FIAN Brasil apresentaram uma carta ao ministro da Agricultura alemão, Cem Oezdemir, em apoio à nova legislação planejada pela Alemanha para proibir a exportação de agrotóxicos proibidos pela União Europeia (UE).

As OSCs agradeceram a declaração de Oezdemir “reconhecendo que não é aceitável que a Alemanha continue a produzir e exportar agrotóxicos que foram corretamente proibidos em seu próprio território para proteger a saúde das pessoas e que as pessoas em todo o mundo, incluindo os agricultores, tenham o mesmo direito à saúde”. A elaboração do documento foi resultado das atividades do assessor de Advocacy da FIAN Brasil, Pedro Vasconcelos, na Alemanha.

Os agrotóxicos altamente perigosos (HHPs) que são proibidos na União Europeia podem, no entanto, ser exportados para países fora da UE, ameaçando a saúde e os meios de subsistência das pessoas. Nessas exportações, a Alemanha desempenha um papel relevante, com 8.525 toneladas de substâncias agrotóxicas ativas não autorizadas exportadas apenas em 2021.

“Temos esperado ansiosamente por ações ousadas e decisivas, como esta proposta de proibição de exportação alemã de agrotóxicos proibidos pela UE. Todos os dias, milhões de agricultores estão sendo envenenados desnecessariamente por padrões duplos injustos no comércio de agrotóxicos. Esperamos que os ministros alemães possam atender ao nosso apelo e resistir à pressão da indústria agroquímica”, disse Sarojeni Rengam, diretor executivo da Panap, que enviou a carta em nome dos signatários em 24 de novembro passado.

Um estudo global de intoxicações agudas não intencionais por agrotóxicos mostra que agricultores e trabalhadores rurais no Sul Global estão sofrendo mais com os impactos dos HHPs, com cerca de 180 milhões de agricultores sofrendo de envenenamento por agrotóxicos não fatais no sul da Ásia, seguidos por 55 milhões no Sudeste Asiático e 51 milhões na África Oriental.

Além das intoxicações agudas, os agrotóxicos proibidos pela UE estão ligados a doenças crônicas como o câncer, têm o potencial de perturbar os sistemas endócrinos das pessoas e colocam especialmente em risco os nascituros, as crianças e as mulheres. Alguns desses agrotóxicos também são conhecidos por prejudicar e até eliminar populações de insetos benéficos, o que coloca em risco a biodiversidade, a polinização, o controle natural de pragas e, consequentemente, a segurança alimentar e a saúde das pessoas. Assim, as OSCs instaram a Alemanha a proibir as exportações de agrotóxicos considerados demasiado perigosos não só para a saúde das pessoas, mas também para o ambiente e a biodiversidade.

“Pedimos que proíbam a exportação de todos os agrotóxicos que não são aprovados na União Europeia – não importa se eles são exportados como produtos ou ingredientes ativos. A mera proibição de exportação de produtos agrotóxicos formulados não será suficiente para evitar danos, já que os exportadores poderiam simplesmente mudar para a exportação de ingredientes ativos, que seriam então formulados e usados no país importador”, disse a carta.

“Expressamos nosso apoio e estamos convencidos de que, se a Alemanha mantiver seu compromisso de reduzir os padrões duplos insustentáveis no comércio de agrotóxicos com a nova legislação planejada, estabelecerá um modelo para outros países e regiões seguirem e será um passo importante para reduzir os danos dos agrotóxicos altamente perigosos sofridos por todas as pessoas e pelo planeta, “, concluiu a carta.

Os signatários da carta incluíram parceiros da Panap da Índia, Bangladesh, Vietnã, Filipinas, Camboja, Indonésia, Paquistão, Nepal e Sri Lanka.

FIAN Brasil contrata para atuação no Observatório da Alimentação Escolar

A FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas – contrata dois profissionais: i) assessoria de comunicação ii) assessoria executiva e de pesquisa, para atuar no Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).  

A FIAN está comprometida em dar oportunidade igual a todas as candidatas e candidatos, a partir de critérios que valorizam a diversidade, incentivando particularmente mulheres, negras e negros, quilombolas, indígenas, juventude e pessoas de comunidades tradicionais e LGBTQI+ a se candidatarem aos processos seletivos da entidade. 

As candidatas e  candidatos interessados deverão enviar seu currículo e carta de apresentação (não mais que uma página) até  17 de novembro de 2022, para o e-mail [email protected], indicando para qual das duas vagas está aplicando.

  1. Assessoria de Comunicação

A/O  profissional será responsável por elaborar e executar uma estratégia de comunicação para o ÓAÊ, de planejamento anual, com foco em redes sociais e website.

Contratação:  Pessoa jurídica. Contrato de 12 meses. Trabalho a distância. 

Atividades a serem realizadas

  • Elaborar planejamento de comunicação anual, com foco em redes sociais e website;
  • Produzir conteúdos e gerir website e redes sociais do ÓAÊ (Instagram e Facebook);
  • Apoiar o grupo de comunicadoras/es das organizações que compõem o Comitê Consultivo do ÓAÊ;
  • Produzir matérias e releases sobre o tema da alimentação escolar; 
  • Apoiar a elaboração e revisão de notas técnicas, publicações e anuário do ÓAÊ;
  • Apoiar campanhas de mobilização e advocacy;
  • Realizar ações de imprensa e atendimento a jornalistas em linha com a equipe de comunicação da FIAN Brasil;
  • Participar de reuniões semanais e manter contato permanente com a secretaria executiva do ÓAÊ e a equipe de comunicação da FIAN Brasil.

Perfil

Graduação em comunicação social, com experiência profissional de no mínimo 3 anos. Desejável experiência em organizações sem fins lucrativos e movimentos sociais, e/ou com temáticas relacionadas aos direitos humanos. Comunicador(a) com bom texto e desenvoltura em mídias sociais.

  1. Assessoria executiva e de pesquisa

A/O profissional será responsável por assessorar a secretaria executiva, participar do processo de elaboração da  estratégia permanente de monitoramento do Pnae e das atividades de produção de campanhas, relatórios, publicações e capacitações a ela associadas. Ficará também responsável pelo mapeamento e pela atualização do acervo do ÓAÊ.

Contratação:  Pessoa jurídica. Contrato de 12 meses. Trabalho a distância.

Atividades a serem realizadas

  • Assessorar a secretaria executiva do ÓAÊ;
  • Apoiar o processo de elaboração e implementação da estratégia permanente de monitoramento do Pnae, pela perspectiva do direito humano à alimentação e á nutrição adequadas (Dhana), com aplicabilidade nas três esferas de governo; 
  • Assessorar a elaboração de relatórios de monitoramento, cartilhas, notas técnicas e outras publicações associadas à estratégia de monitoramento do Pnae, em parceria com consultoras/es especializadas/os;
  • Apoiar a realização de pesquisa e campanhas de mobilização para o engajamento de conselheiras/os de alimentação escolar e segurança alimentar e nutricional no monitoramento do Pnae;
  • Apoiar a realização de oficinas de capacitação de conselheiras/os;
  • Organizar e atualizar o acervo de materiais de referência sobre o Pnae no website do ÓAÊ;
  • Participar de reuniões semanais e manter contato permanente com a secretaria executiva do ÓAÊ e a equipe de pesquisa e advocacy da FIAN Brasil.

Perfil

Graduação em ciências sociais, políticas públicas, administração, nutrição, economia e afins, com conhecimento em políticas públicas. Experiência profissional mínima de 3 anos. Desejável conhecimento sobre o Pnae e/ou políticas de segurança alimentar e nutricional. Facilidade de escrita e conhecimento de bases de dados e indicadores sociais e de segurança alimentar e nutricional, assim como participação em processos coletivos e espaços de participação social, são diferenciais. 

7° Encontro da Juventude Guarani Kaiowá discute cultura alimentar indígena em oficina “Comer pra quê?”

“Nós somos a continuação dos nossos ancestrais”. O tekoha Panambi Lagoa Rica, de Douradina (MS), recebeu entre os dias 12 e 15 de outubro o 7° Encontro da Juventude Guarani Kaiowá, iniciativa da Retomada Aty Jovem (RAJ) em que cerca de 470 jovens guarani e kaiowá estiveram reunidos para debater educação indígena, saúde e território; e para diálogos sobre liderança jovem, mecanismos de organização da luta indígena em favor dos direitos coletivos, conjuntura política, acesso e preservação dos ritos ancestrais e autonomia indígena, entre outros assuntos.

Para falar sobre cultura alimentar indígena à luz do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) a FIAN Brasil realizou, durante o 7º Encontro, a oficina “Comer pra quê?”. A atividade, conduzida pelos assessores de direitos humanos Nayara Côrtes e Adelar Cupsinski, buscou dialogar, por meio de rodas de conversa, sobre os modos de viver e de comer guarani e kaiowá (produzir, preparar, acessar e se alimentar coletivamente) e como eles se relacionam com os grandes desafios, como a luta pelo acesso ao território original, pela proteção das águas e por terras livres de contaminantes químicos. Os jovens produziram cartazes ilustrando as conversas em grupo e se viram como parte desses processos.

Côrtes considera que encontros como esses são importantes mecanismos de valorização da cultura indígena, porque incentivam o olhar afetuoso sobre os ritos e tradições alimentares. Segundo explica, “em um contexto de lutas tão duras como a que esses jovens vivem, é importante retomar o sentido do cuidado, do prazer, da simbologia que envolve a alimentação dentro do modo de ser guarani e kaiowá. Reafirmar porque se luta e se sentir parte dela é também promover saúde aos jovens guarani e kaiowá”.

Fotos de Adelar Cupsinski, Nayara Côrtes e colaboração da Retomada Aty Jovem (RAJ)

FIAN Brasil

Judiciário na exigibilidade do Dhana

A Conferência Popular por Direitos, Democracia, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional realizou no último dia 19 o encontro “Fome de Direitos e Sede de Justiça: o papel do judiciário na garantia do direito humano à alimentação“, em que reuniu profissionais do sistema judiciário e integrantes de organizações sociais para refletir sobre a atuação da Justiça brasileira no enfrentamento da fome, observando gargalos, omissões e argumentos que têm impactado no avanço das ações de exigibilidade do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana).

“O Brasil tem um dos marcos legais mais fortes e mais completos em termos do direito humano à alimentação. O que falta é a implementação da garantia desse direito por parte dos três poderes, que vêm cometendo graves violações”, comenta o pesquisador associado do Departamento de Nutrição da UFPE, Flavio Valente.

Além do marco normativo que existe no Brasil, a secretária geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, apresentou decisões do Sistema Americano de Proteção de Direitos Humanos que deveriam ser observadas pelos poderes públicos de todos os países da Região.

Segundo explica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o caso de comunidades indígenas membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Vs. Argentina, entendeu que o direito à alimentação, dentre outros direitos, foi violado, por não adotar medidas efetivas para deter atividades que se mostraram lesivas a estes direitos. “Neste caso, a corte deixou explícita a estreita relação entre a relação do direito à alimentação, com o direito ao território e com direito ao meio ambiente, porque é através do território que as populações tradicionais conseguem todos os meios necessários para a obtenção dos alimentos”, diz Burity.

Em sua fala, a secretária geral também destaca a necessidade de olhar para a questão do racismo, visto que a população negra é a que mais sofre violações relacionadas ao Dhana.

Assista a íntegra do encontro nos canais da Conferência Popular SSAN, ou acesse o link: https://youtu.be/3TwIH8PX9_I

FIAN Brasil

Direito à alimentação: qual o papel do Poder Judiciário?

Duas ações que tratam da fome ainda não foram analisadas pelo STF

O papel do Poder Judiciário na garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) será debatido em um evento online que a Conferência Popular por Direitos, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional promoverá nesta quarta, 19 de outubro. O encontro “Fome de Direitos e Sede de Justiça: o papel do Judiciário na garantia do direito humano à alimentação” reunirá especialistas que vão apresentar casos sobre a atuação do sistema judiciário e debater os marcos conceituais.

“O papel do Judiciário é ser o guardião da Constituição. Ele é provocado a atuar quando há omissão do Poder Executivo, quando o Executivo não implementa o que está previsto como direito na Constituição, quando não implementa uma política de segurança alimentar”, explica Leonardo Ribas, da Conferência Popular.

Leonardo, que será um dos palestrantes do evento, acrescenta que cabe também ao Judiciário garantir aos cidadãos o exercício da soberania alimentar. “A soberania alimentar é o cidadão ter poder de participar do processo que determina como se produz os alimentos, como se distribui, como se consome e como se acessa porque hoje esse processo é totalmente controlado pelo sistema alimentar agroindustrial brasileiro”.

Duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) – a 831, protocolada pelo PT, e a 885, protocolada pela OAB – estão no Supremo Tribunal Federal (STF) e aguardam análise.  Essas ADPF tratam da questão da fome no Brasil e estão sob as relatorias dos ministros Luiz Fux e Dias Toffoli. A expectativa das entidades que compõem a Conferência Popular é que sejam analisadas após as eleições.

A defensora pública do Estado do Rio de Janeiro, Andrea Sepúlveda, explica que o evento vai procurar encontrar formas de sensibilizar e mobilizar não somente o Supremo, mas todo o sistema de Justiça no Brasil para a questão da fome. “Nós entendemos que o Judiciário pode e deve interferir nas políticas públicas que são baseadas em direitos constitucionais”, diz. “O grande debate é pensarmos como a gente vai avançar para que de fato o Judiciário passe a ser um pouco mais atuante. O nós demandamos é que simplesmente cumpra o seu papel de monitorar as políticas públicas e de declarar violações coletivas de direitos quando as políticas públicas não são cumpridas, como no caso da fome”, acrescenta.

Trinta e três milhões de pessoas passam fome no Brasil. O aumento da fome se deu num cenário de desmonte de políticas públicas que garantiam a segurança alimentar. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2019, endossa o cenário.  “Quando você extingue o Consea, você tira a sociedade civil desse debate. E eu acredito que a partir da extinção do Consea todas as outras estruturas foram fragilizadas”, ressalta Andrea.

O encontro “Fome de Direitos e Sede de Justiça: o papel do Judiciário na garantia do direito humano à alimentação” poderá ser acompanhado pelo canal da Conferência Popular no Youtube: https://www.youtube.com/c/conferenciapopularssan. Um documento sobre a atuação do Judiciário será produzido a partir do encontro.

DHANA

Sobre a Conferência Popular 

A Conferência Popular por Direitos, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional é um movimento permanente de resistência à fome e à extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Contesta as violações de direitos, racismo estrutural e ameaças à vida. Criada em 2019, é formada por um conjunto de movimentos sociais, organizações da sociedade civil e coletivos.

Para mais informações, acesse o site conferenciassan.org.br.

DHANA

Serviço:

Evento: “Fome de Direitos e Sede de Justiça: o papel do Judiciário na garantia do direito humano à alimentação”

Data: 19/10, das 17h às 19h

Transmissão online: https://www.youtube.com/c/conferenciapopularssan

DHANA

Programação:

Parte 1 – Casos

17h – Abertura – Andrea Sepúlveda, Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro

17h05 – Marcos Legais/Dhana – Flávio Valente, pesquisador associado do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco

17h15 – ADPFs no STF e ações no Rio de Janeiro – Rodrigo Azambuja, Defensor Público do Rio de Janeiro

17h25 – “Caso da luta por direitos da Comunidade Sururu do Capote” – Alexandra Beurlen, promotora de Justiça de Alagoas

17h35 – Jurisprudências internacionais e controle da convencionalidade – Miriam Balestro, doutora em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas, Promotora de Justiça Aposentada do MPRS e diretora de articulação da FIAN Brasil

17h45 – Roda de Debate – Andrea Sepúlveda (mediação)

Parte 2 – Marcos Conceituais

18h15 – Economia fiscal e direitos humanos – Livi Gerbase, assessora política do INESC

18h25 – Dhana em regime de recuperação fiscal – Leonardo Ribas, doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional

18h35 – Roda de Debate e encerramento – mediação: André Luzzi, Conferência Popular por Direitos, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional

DHANA

Informações para imprensa

Fabiana Novello – [email protected] – (11) 97149-2324

Marcela Coimbra – [email protected] – (11) 99812-5545

Conferência SSAN

Em aldeia do MS, alimentação escolar expõe desafios enfrentados pelos Guarani e Kaiowá

Ko’anga ñande jakaru karai kuera xa avei. Umin ha’e kuera hemityn ome’en mba’asyvai ñande rehe. Heta oin hese ome’eva mba’asy.

Na preleção do professor Nilton Ferreira Lima à turma do 9º ano, palavras como “salgadinho”, “refrigerante”, “diabetes”, “hipertensão”, “cálculo renal” e “AVC” vão se entremeando ao idioma indígena. Uma passagem que conta muito da transição alimentar em curso entre os povos Guarani e Kaiowá, e que a FIAN Brasil busca conhecer melhor por meio de estudo de caso com foco no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Em sua aula, Lima expõe a entrada em cena de problemas de saúde que os moradores e moradoras da Aldeia Te’yikue não costumavam ter e sua relação com o sedentarismo e o aumento do consumo de produtos alimentícios ultraprocessados. Realidade essa, de Caarapó (MS), que se repete em comunidades de todo o país.

“Muitas pessoas buscam seu sustento com trabalho assalariado e, com o dinheiro que ganham, compram alimentos da cidade, que são alimentos contaminados, que têm muita química”, conta o professor da Escola Municipal Indígena Ñandejara. “Com essa mudança no hábito alimentar a gente vê que entra muita doença e as pessoas adoecem muito cedo.” Os ultraprocessados passam por diversas etapas de fabricação e recebem muitos aditivos para ficarem atraentes – verdadeiras fórmulas industriais. Costumam ter alto teor de açúcar, sal e gordura.

Estabelecimentos de ensino como a Ñandejara, com 1.400 estudantes, são palco central desse quadro e do seu enfrentamento. O Pnae garante, para todas e todos estudantes da rede pública, ao menos uma refeição completa – às vezes, a única do dia. No entanto, em 2021, como parte do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade, a FIAN ouviu relatos de crianças de aldeias do Mato Grosso do Sul chegando à sala de aula em grave situação de insegurança alimentar. 

Essa política constitui-se também em caminho para a promoção da saúde por meio da educação alimentar e nutricional (EAN). Representa, ainda, uma oportunidade para fortalecer a agricultura familiar local.  

“O programa poderia estar comprando do pequeno produtor”, diz o cacique Jorginho  Soares Martins. “Temos dificuldade de ter acesso à inscrição estadual e à DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf]. Ajudaria muito o pequeno agricultor, conforme é garantido na Lei.” A DAP está em substituição pelo Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF).

Os dados mais recentes disponibilizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), referentes a 2018, mostram que 54,25% (R$ 298 mil) dos repasses anuais da autarquia do Ministério da Educação (MEC) ao município foram usados na compra direta da agricultura familiar. Trata-se de um percentual bem acima do exigido (30%). Porém, ainda não há agricultores indígenas fornecendo alimentos às escolas, o que fere as determinações legais, que estabelecem que, nas compras diretas, deve-se dar prioridade aos assentamentos da reforma agrária e às comunidades indígenas e quilombolas.

“É uma discussão antiga na comunidade”, reforça o diretor da Escola Ñandejara, Lidio Cavanha Ramires. “Se tiver uma família produtora de arroz, de feijão, pega aqui dentro mesmo para a escola. Orgânico, sem produto químico.” Ele menciona a possibilidade de reunir a produção de agricultores/as que cultivam uma extensão pequena – 0,5 hectare de mandioca, por exemplo, para ficar numa situação comum na Te’yikue – e não teriam condição de fornecer à escola por um período maior.

Questões como essas motivaram, em nível nacional, a criação da Mesa Permanente de Diálogo Catrapovos Brasil, composta por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil, pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2021, para fomentar a adoção da alimentação tradicional em escolas indígenas e de comunidades quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e caiçaras, entre outras. Ligada à Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR), a instância discute os entraves, desafios e formas de viabilizar as compras públicas da produção desses grupos sociais. Além de garantir o cumprimento da cota da agricultura familiar, pauta-se pelo direito à alimentação escolar adequada à cultura de cada população.

A Catrapovos Brasil atua para replicar em todo o país a boa prática desenvolvida pela Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), que conseguiu inserir mais de 60 alimentos produzidos de forma tradicional no cardápio escolar.

A FIAN tem participado das reuniões da Catrapovos do Mato Grosso do Sul.

Salada, abacaxi, pizza, churrasco

Divididos em rodas, os adolescentes anotam aquilo de que gostam e não gostam, e o que gostariam que tivesse, nas refeições servidas na instituição de ensino. Nas preferências escritas em cartelas na oficina organizada pela FIAN, não são raras as respostas mencionando frutas, ou pratos de um almoço comum na maioria das cidades brasileiras. Elas misturam-se a sobremesas e opções como pizza e churrasco. O que pouco aparece são comidas tradicionais guarani e kaiowá.

Ao implementar em 2020 a Resolução 6 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a escola passou a servir pratos típicos às sextas-feiras. A resolução, que regulamentou a lei do Pnae (11.947), reforçou as diretrizes de alimentação adequada, entre elas o respeito à cultura da comunidade e a valorização dos ingredientes regionais. Ao detalhar a aplicação da lei de 2009, reduziu o uso de açúcar, estabeleceu limites para certos itens (como salsicha e demais cárneos) e excluiu outros (refrescos artificiais, biscoitos recheados etc.).

Embora em muitas regiões o apelido merenda permaneça, ao longo dos últimos anos, especialmente após a publicação da lei em 2009, a prioridade é para oferta de refeições cada vez mais completas, do ponto de vista nutricional, e de melhor qualidade, que contemplem frutas, legumes e/ou verduras.  

 Em Caarapó, a entrada de alimentos como a batata-doce no lugar de pão francês e afins repercutiu em grupos de WhatsApp de mães e pais de alunos, em especial de parte das famílias mais acostumadas ao cardápio urbano. A adaptação atravessou os semestres seguintes.

“É difícil de acertar o cardápio que a nutricionista da prefeitura colocou”, relata a cozinheira Jurema Marques, uma das mais antigas da instituição. “Tem as crianças que aceitam e crianças que não aceitam. Do nosso cardápio tradicional que a gente prepara uma vez na semana, não reclamam é do guisado que a gente faz com mandioca e carne. E aquele mbaipy, que é polenta com frango. Esses, eles comem tudo. A chicha [refresco natural de milho fermentado e caldo de cana] também. O que não aceitam é o locro [prato com milho e carne, originalmente de caça].” Além disso, nem sempre as verduras, frutas e carnes dão para a semana toda, assim como acontece de faltarem os ingredientes do preparo mais cultural da sexta. Muitos estudantes relatam que a quantidade servida é insuficiente.

Quem ainda soca milho e arroz?

Foi para valorizar a conexão do alimento com a religião e a cultura guarani e kaiowá que duas professoras criaram, há mais de 20 anos, o projeto Sabor da Terra. A iniciativa começou com duas professoras da Escola Loide Bonfim Andrade – uma das quatro extensões (unidades subordinadas à polo) da Ñandejara – e hoje envolve toda a comunidade escolar. Cresceu ano a ano até permear todas as matérias, de todos os anos – um projeto mobilizador, no jargão da Educação.  

“Quando a gente perguntava: ‘Quem ainda ñembiso? Quem soca ainda milho, arroz?’ Respondiam: ‘Isso é coisa dos antigos… A gente tem pilão em casa, professora, mas é mais fácil ir ao mercado’”, narra uma das fundadoras, Rosileide Barbosa de Carvalho. 

“O Sabor da Terra é para incentivar as famílias a plantar, e valorizar aquele tipo de semente que hoje quase não é plantada. Por exemplo, se você chegar nas casas, hoje quase não tem cará.” Valoriza-se o cultivo viável ao redor das casas, ainda que o espaço seja limitado.

O projeto trabalha desde elementos clássicos de disciplinas curriculares até o cuidado com a saúde. “Por que antigamente os homens não eram muito gordos, não tinham barriga, não tinham doença? A alimentação. Agora você vê pessoas de 13, 14, 15 anos com obesidade, problema de pressão alta, de coração”, enumera a professora. As salas mergulham nos temas desde o primeiro bimestre, e o ciclo culmina numa exposição no meio do ano em que são servidas comidas tradicionais e não indígenas.

Nessa ocasião, cada família leva o seu prato – por exemplo, pira mbichy (peixe assado), mandio mbichy (mandioca assada). Quem conseguir caçar tatu vai levar carne do animal.

“A gente ouve eles falarem: ‘Nossa, isso eu comia quando era criança… Como hoje não tem mais?’”

As atividades na Unidade Experimental Poty Reñoi (“desabrochar da flor”), chácara de 2,6 hectares (ha) vizinha à escola polo, complementam o que é realizado no Sabor da Terra. Conforme a idade, alunas e alunos lidam com sementes, adubagem, rega, trato dos animais.

“A gente começa do começo”, explica o professor Nilton Ferreira Lima. “Fala da importância de cultivar… De ter autonomia também. Em relação ao processo de produzir. Fazer a compostagem, biofertilizantes, as mudas, a época certa do plantio.”

“Dá para ver avanços”, comenta. “Hoje você sai e vê canteirinho de cheiro verde, alface…” Nicole Veron Martins, 14 anos, confirma: “Comecei a levar para minha casa e falar para os meus pais da importância de a gente ter um pouco mais de cuidado com as plantas, com o meio ambiente”.

Sob pressão

Ainda que longe dos extremos enfrentados por seus povos no estado – como o confinamento na Reserva de Dourados –, a Reserva Te’yikue (ou Reserva Indígena de Caarapó) se insere num cenário complexo. Situado a menos de 20 quilômetros do Centro da cidade, o território de 3.594 ha (cada hectare corresponde a um campo de futebol) e habitado por 1.500 famílias não conta com ônibus de linha, embora grande parte dos moradores e moradoras trabalhem em chácaras, fazendas, armazéns e usinas do agronegócio. Os capões de mata destoam dos “mares” de milho, soja e cana do caminho, mas a cobertura vegetal não se compara à de décadas atrás. “Era muito rico de natureza”, descreve o inspetor escolar Agripino Benites. “Muito perobal, muita erva-mate nativa. O mato era mais fechado. Achava ainda caça.”

Homologada há três décadas, a área é circundada por um território reivindicado como tradicional 15 vezes maior e disputado por 87 fazendeiros e chacareiros, a Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipegua 1. A demarcação do perímetro, em 2016, foi retaliada com o ataque que matou o agente de saúde Clodiodi de Souza e feriu outros indígenas, conhecido como Massacre de Caarapó. Em resposta, os Guarani e Kaiowá retomaram 11 localidades (tekoha – “lugar onde se é”) dentro da TI.

Embora se trate de área declarada como de ocupação tradicional por laudo antropológico, a condição de em litígio da TI implica mais barreiras para os indígenas – com todo tipo de dificuldade para acessar políticas públicas – que para os fazendeiros.  A equipe da FIAN Brasil ouviu de um gestor da área agrícola que as retomadas “não são área de ninguém, nem da União”. No caso da Te’yikue, o entorno abriga muito mais cobertura vegetal, fauna e áreas agricultáveis, porém não escapa das limitações do limbo fundiário. Essa fronteira invisível favorece o avanço dos arrendamentos, “parcerias” em que pessoas externas à comunidade exploram terras para monocultura, quase sempre pagando valores baixos ou irrisórios.

Nota técnica encomendada pela FIAN a três pesquisadores em 2021, que abrangeu 12 comunidades, mostrou como a pandemia agravou a insegurança alimentar e nutricional. O trabalho reiterou constatação de levantamento concluído cinco anos antes, em que a insegurança alimentar apareceu em 100% dos domicílios de três localidades. Os autores assinalam a centralidade da regularização fundiária e de apoio à produção agroecológica para permitir a construção de uma vida digna e soberana.

Nos últimos quatro meses, três indígenas foram assassinados na região – um deles em Coronel Sapucaia, a cerca de 140 km dali, e dois em Amambai, a cerca de 95 km. Se nas áreas rurais há o risco de emboscadas, nas urbanas a hostilidade e a discriminação desenham um mapa não oficial.

“Sabemos que muitos lugares da cidade não são para nós”, comenta o pesquisador Elemir Guarani Kaiowá, que cursa doutorado em Geografia e leciona para as turmas do 6° ao 9° ano da Ñandejara.

“A miséria começou com os madeireiros, que retiraram toda a madeira de lei, e continuou nos ciclos econômicos seguintes – mate, gado, cana, soja.”

Sistemas alimentares e desigualdades

O estudo de caso (acesse os materiais produzidos) faz parte do projeto Equidade e Saúde nos Sistemas Alimentares, que a FIAN Brasil executa neste ano e no primeiro semestre de 2023 com o objetivo de contribuir para o entendimento dos impactos dos sistemas alimentares nas desigualdades (e vice-versa) no Brasil, bem como para seu enfrentamento.

A ideia é que o conhecimento produzido embase estratégias para incidir nas compras públicas (de instituições do Estado). O chamado mercado institucional movimenta um orçamento bilionário e pode dar lastro a uma série de políticas – por exemplo, adquirindo a produção agrícola de segmentos sociais mais vulnerabilizados, como indígenas, quilombolas e assentados/as.

A atuação se dará em conjunto com um grupo de entidades – ACT Promoção da Saúde, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto Desiderata e Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) – com apoio da Global Health Advocacy Incubator (GHAI). Outras parcerias serão estabelecidas ao longo do processo.

O projeto inclui um mapeamento das iniquidades nos sistemas alimentares, com um olhar específico para as dimensões de raça, gênero e classe social. Os dois estudos de caso – além de Caarapó, a equipe fez trabalho de campo em Belém do Solimões (AM) – aprofundarão a compreensão dos dilemas, soluções e barreiras enfrentadas pelas comunidades. A equipe participou também da elaboração de documentos políticos coletivos buscando a adesão de candidatos e candidatas à plataforma da comida de verdade, baseada na agricultura familiar, na agroecologia, no comércio justo e nos alimentos frescos. Outra frente tem sido a incidência no Congresso Nacional. Também serão produzidos variados conteúdos de comunicação.

Continuaremos a dedicar atenção especial ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que em 2021 foi o foco do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade. “Poder realizar ações de exigibilidade para fortalecimento do Pnae, especialmente das compras públicas da agricultura familiar no ambiente escolar, em um contexto de retrocesso e aumento da fome, parece-nos fundamental e urgente”, comenta a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.

“A intenção é aprofundar as análises relacionadas à alimentação escolar, sobretudo à alimentação escolar indígena, considerando que essa segue como uma política central na garantia do Dhana”, diz a coordenadora do projeto, Gabriele Carvalho. “Pretendemos ajudar a construir caminhos para que essa população possa, de fato, não só comercializar o que é produzido localmente, mas inserir esses alimentos no cardápio escolar. A soberania e segurança alimentar e nutricional passa necessariamente pelo respeito à cultura e aos hábitos alimentares locais.”

Países latino-americanos discutem estratégias legais em alimentação e saúde à luz do controle do tabaco

Entre 28 de setembro e 1º de outubro, a Cidade do México reuniu advogadas, advogados e ativistas de entidades da América Latina, que atuam nos campos do direito à alimentação e do controle do tabaco, para discutir estratégias legais para a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis. O evento teve em sua composição os encontros: “V Encuentro Latinoamericano: Estrategias Legales en Alimentación y Salud” e o “XII Taller Legal: Control de Tabaco en América Latina”.

A partir de afinidades temáticas, vivências e enfrentamentos jurídicos comuns ao coletivo, a troca de conhecimento e articulação teve como fio condutor um quadro de análises sobre a realização progressiva de direitos econômicos, sociais e culturais, nos campos do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) e do controle do tabaco.

“Esse quadro tem um olhar para a política econômica, para a política fiscal, para o orçamento, para identificar quais atores enfrentam uma carga tributária maior, ou quais são os grupos beneficiados pelas políticas econômicas e fiscais”, explica a secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity.

Valéria e o assessor de direitos humanos da FIAN Brasil, Adelar Cupsinski, contribuíram com as atividades do evento a partir de um chamamento ao debate de propostas que possam potencializar a relação entre a econômica, os aspectos jurídicos e o direito à alimentação. 

Para a secretária-geral, “essa relação é muito importante porque, no Brasil, as políticas econômicas têm um impacto muito severo na garantia do direito à alimentação, seja aumentando a fome e facilitando o aumento da obesidade, seja apresentando aspectos racistas, ou acentuando desigualdades”.

A iniciativa é do Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad (Dejusticia), Campaign for Tobacco Free Kids (TFK), Global Health Advocacy Incubator (GHAI), Global Center for Legal Innovation on Food Environments (por meio do O’Neill Institute for National and Global Health Law) e Unión Internacional Contra la Tuberculosis y Enfermedades Respiratorias (THE UNION).

Leia a publicação: O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: Enunciados Jurídicos

Tabaco e alimentação – Antes, nos dias 26 e 27 de setembro, também na Cidade do México, o encontro “Fortalecimiento de Habilidades Estratégicas para el Trabajo Legal”, buscou fortalecer as habilidades de pensamento estratégico, destacando sua centralidade ao trabalho jurídico; construir conhecimento além das áreas do direito que geralmente são exploradas em profundidade em contextos específicos; e gerar um espaço seguro para a inovação, permitindo explorar ideias desafiadoras do ponto de vista jurídico.

Iniciativa do Global Center for Legal Innovation on Food Environments por meio do O’Neill Institute, o workshop se dedicou ao tema de evidências e observou estudos de casos de países da América Latina, como o Brasil. “Foi importante ouvir e conhecer a experiência dos vários países. A partir do compartilhamento das estratégias locais, o grupo pôde fazer comparativos e pensar sobre quais tipos de ações judiciais, estratégias de litigância e de incidência, no campo do tabaco, podem ser adotadas no campo da alimentação”, finalizou Valéria.

FIAN Brasil

Foto: Adelar Cupsinski

Artigo | A fome e a dor dos outros

Nayara Côrtes Rocha

Publicado originalmente no acervo online do Le Monde Diplomatic Brasil, em 19 de setembro

“As violações ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas nunca deixaram de existir no Brasil. A pobreza, a miséria e a concentração de renda, causas da fome, assim como o poder desproporcional e desregulamentado do agronegócio e da indústria de alimentos, sempre se fizeram presentes no complexo cenário brasileiro relacionado à soberania e segurança alimentar e nutricional”.

A reflexão abre o artigo “A fome e a dor dos outros” de Nayara Côrtes Rocha, assessora de direitos humanos da FIAN Brasil ao Le Monde Diplomatique Brasil, veiculado no acervo online do último dia 19.

A partir de um viés científico, político e histórico, Nayara traz em destaque a defesa à dignidade humana e aos direitos fundamentais por meio do acesso ao alimento adequado, saudável e sustentável; e rechaça a omissão e o posicionamento negacionista do governo Bolsonaro diante do aumento da fome e da insegurança alimentar e nutricional em todos os níveis.

Leia o artigo.

Entidades lançam campanha para derrubar veto de Bolsonaro contra alimentação escolar

Integrantes e parceiras do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) pedem que Congresso reveja canetada do presidente que cancelou reajuste de 34% para o Pnae, primeiro desde 2017

“Derruba veto, reajusta Pnae”. Esse é o mote da campanha lançada na terça-feira (6) pela sociedade civil para que o Congresso Nacional aprecie – e rejeite – a medida do presidente Jair Bolsonaro (PL) que cancelou a primeira recomposição do orçamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Os 34% representam a inflação acumulada desde 2017.

A mobilização organizada pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) pede que o presidente do Senado (e do Congresso), Rodrigo Pacheco (PSD), convoque a sessão que pode restabelecer o texto aprovado pelos próprios deputados/as e senadores/as na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

“O Parlamento mostrou sensibilidade diante dessa que é a principal política de segurança alimentar e nutricional para crianças e adolescentes, e agora as lideranças precisam acionar suas bancadas de novo para que a votação de agosto não se torne página virada”, diz a consultora técnica do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Giorgia Russo. “Dezenas de organizações estão com a gente para reivindicar isso. É importante a comunidade escolar como um todo – estudantes, familiares, educadoras e educadores, merendeiras e merendeiros – se mobilizar, além de assinar a petição que está aberta.”

A nutricionista lembra que, para grande parte dos estudantes da educação básica pública, o programa garante o prato mais adequado e saudável do dia, e que, com a inflação defasando os valores per capita repassados pelo governo federal – que já eram insuficientes –, muitas escolas podem tirar ou reduzir do cardápio os alimentos in natura ou minimamente processados, recomendados como base da alimentação saudável pelo Guia Alimentar para a População Brasileira.

Ao justificar seu veto, o presidente argumentou que destinar mais recursos ao Pnae poderia drenar verbas de outros programas e estourar o “teto de gastos” do Poder Executivo previsto pela Emenda Constitucional 95. Ele repetiu essa negligência com os pratos de 40 milhões de estudantes ao enviar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) em 31 de agosto, com um valor para o Pnae inferior a R$ 4 bilhões (R$ 3.961.907.292,00), praticamente o mesmo de 2022 e da LDO depois do corte. 

“Esse argumento da ‘rigidez orçamentária’ e da ‘contrariedade ao interesse público’ não para em pé”, comenta o analista de Políticas da ActionAid, Francisco Menezes. “O equilíbrio fiscal não deve ser feito à custa das pessoas mais vulneráveis, e é isso que temos visto acontecer nos últimos anos”, aponta Menezes, que presidiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

O economista ressalta que o contexto da fome só se agrava: “O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil [VigiSAN] mostra que, de 2020 para 2022, a insegurança alimentar grave em domicílios com crianças menores de 10 anos praticamente dobrou, subindo de 9,4% para 18,1%.”

Sobre o observatório

Fundado em fevereiro de 2021, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) resulta de uma ação conjunta entre organizações da sociedade civil e movimentos sociais para monitorar e mobilizar a sociedade sobre a importância do Pnae. Sua secretaria executiva é hoje formada pela FIAN Brasil e pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

O comitê consultivo reúne 16 entidades. Ao lado da ActionAid e do Idec, é composto por: ACT Promoção da Saúde, Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Comissão de Presidentes de Conseas Estaduais (CPCE), Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Fase – Solidariedade e Educação, Federação Nacional dos Estudantes do Ensino Técnico (Fenet), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), Rede de Mulheres Negras para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Redessan) e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme).

FIAN Brasil

Oficinas avançam na criação do Protocolo de Consulta das Comunidades Geraizeiras

Instrumento ajuda a promover a proteção a costumes socioculturais, modos de vida e a efetivação dos direitos fundamentais de populações tradicionais

As populações do Território Tradicional Geraizeiro do Vale das Cancelas, compreendido entre os municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis, no norte de Minas Gerais, têm o direito de ser consultadas quando empresas de mineração ou monocultura, entre outros atores, desejam operar na região. Em torno do tema a FIAN Brasil, com apoio de parceiros, realizou três oficinas temáticas nos dias 20 e 21 de agosto.

O direito à consulta prévia, livre e informada é um mecanismo de participação previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificado pelo Estado brasileiro por meio do Decreto Legislativo 143, em vigor desde 2003, e internalizado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 5.051/2004 (substituído em 2019 pelo Decreto 10.088).

Significa que, por meio de um protocolo de consulta, é promovido um ambiente de escuta seguro, capaz de conformar a proteção de costumes socioculturais, dos modos de vida tradicionais e que busque respeitar direitos sociais de populações indígenas e povos e comunidades tradicionais – neste caso, de geraizeiras e geraizeiros detentoras/es do território do Vale das Cancelas há pelo menos 150 anos segundo estudos antropológicos feitos na região.

No entanto, na contramão do que o tratado de direitos humanos prevê, os povos geraizeiros têm sofrido constantes e importantes impactos provocados por empresas de mineração e de monocultura de eucalipto e pínus, que por meio da exploração desordenada prejudicam o solo, as águas e os mais variados recursos naturais da região, causando recorrentes violações aos direitos fundamentais dessas comunidades, como o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Além de não respeitarem a consulta às comunidades locais ou oferecerem a devida compensação pelos danos causados por seus projetos, as empresas atuam com anuência do Estado.

Nesse cenário, participaram das oficinas cerca de 50 geraizeiras e geraizeiros, representantes das comunidades Barreiro de Dentro e Manda Saia, localizadas no núcleo territorial do município de Josenópolis. Os diálogos buscaram oportunizar momentos de formação e informação para que se possa avançar na criação do Protocolo de Consulta das Comunidades Geraizeiras; e a partir do compromisso primeiro da FIAN, contribuir para o empoderamento e a melhoria das condições de vida na perspectiva da indivisibilidade dos direitos humanos, da autonomia e do protagonismo.

Paulo Asafe, assessor de direitos humanos da FIAN Brasil, explica que a construção desse documento é de extrema relevância e, ao lado da regularização fundiária, que também está em andamento no Território Geraizeiro do Vale das Cancelas, será instrumento central para a exigibilidade dos direitos das comunidades.

“Vejamos, por exemplo, que está em juízo uma Ação Civil Pública da DPE-MG e DPU pedindo que o licenciamento do empreendimento de mineração Bloco 8 seja suspenso enquanto a devida consulta não for realizada, o que requer a elaboração da criação do protocolo de consulta da comunidade. O mesmo deveria ocorrer com os demais projetos licenciados no território”, relata o assessor.

O protocolo é um documento com força de lei em que descreve a forma como as comunidades querem ser consultadas sobre todas as atividades que afetem o território tradicional e o modo de vida local. 

O mecanismo reforça a proteção destas populações que seguem em luta pela defesa do território, do seu modo de vida tradicional, da proteção ambiental, da permanência em suas terras e da retomada das áreas de onde foram expulsas e expulsos por ocasião da ação e invasão de fazendeiros, empresas e mineradoras nacionais e estrangeiras.

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Agrotóxicos

As populações tradicionais também participaram de uma oficina com facilitação do advogado Leonardo Pillon, especialista em mecanismos de denúncia a violações relacionadas ao uso de agrotóxicos. Visando a defesa do direito à saúde, ao meio ambiente e à promoção Dhana, o objetivo do encontro foi oferecer instruções sobre como registrar e realizar denúncias em caso de intoxicação por agrotóxicos aplicados por fazendeiros e empresas que atuam na região.

As oficinas foram realizadas pela FIAN Brasil, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Norte de Minas, o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Josenópolis, além de lideranças e membros do conselho e das diversas associações de geraizeiras e geraizeiros que vivem na região norte de Minas Gerais.

FIAN Brasil

Fotos: Leonardo Pillon 

Pela segunda vez, Bolsonaro negligencia alimentação escolar no orçamento federal

Em contexto de inflação e agravamento da fome, programa fica sem reajuste pelo quinto ano consecutivo; proposta será analisada pelo Congresso, enquanto sociedade civil pressiona por mais recursos

O governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) deixou de prever reajuste ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) ao apresentar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para o Congresso Nacional na quarta-feira (31). A versão enviada ao Legislativo mantém o represamento das verbas destinadas ao Pnae, que não são corrigidas desde 2017. O valor indicado no projeto é inferior a R$ 4 bilhões (R$ 3.961.907.292,00) e muito semelhante ao de 2022. O PLOA ainda será analisado pelos deputados/as e senadores/as. Além disso, organizações da sociedade civil pressionam para que haja mais recursos para o programa.

Essa é a segunda vez que Bolsonaro, em menos de um mês, nega-se a atualizar os recursos destinados para a alimentação escolar. Em uma deliberação anterior, ele vetou em 12 de agosto o reajuste aprovado pelos congressistas no projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023 – uma recomposição de 34% que cobria a defasagem dos últimos cinco anos. Ao justificar, na ocasião, o presidente argumentou que destinar mais recursos à alimentação escolar poderia drenar verbas de outros programas e estourar o “teto de gastos” do Poder Executivo previsto pela Emenda Constitucional nº 95[1]. Dezenas de organizações estão mobilizadas pela derrubada do veto, que depende de apreciação convocada pelo presidente do Congresso Nacional (e do Senado), Rodrigo Pacheco (PSD).

As decisões de Bolsonaro atingem em cheio uma das principais políticas públicas voltadas a garantir o direito humano à alimentação e nutrição adequadas, em um contexto no qual 33,1 milhões de pessoas passam fome diariamente no país, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil[2].

A alimentação escolar adequada é fundamental para um expressivo número de famílias brasileiras nessa situação. Para boa parte delas, as refeições na escola são a principal fonte de comida saudável de seus filhos. Estima-se que quase 40 milhões de estudantes são atendidos atualmente pelo Pnae[3] e que a insegurança alimentar grave, quando não se sabe o que haverá para comer de um dia para o outro, saltou de 9,4% das crianças de até 10 anos de idade em 2020 para 18,1% em 2022[4].

Além disso, a garantia da alimentação e nutrição adequadas está associada ao desenvolvimento cognitivo e permanência na escola para milhões de estudantes.

“Ao conjugar segurança alimentar, acesso à educação, desenvolvimento local e garantia de desenvolvimento biopsicossocial para as próximas gerações, a alimentação escolar é um exemplo de política pública que traz em seu desenho a própria definição de interesse público”, afirma a assessora de Segurança Alimentar do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Gabriele Carvalho, que coordena o projeto Equidade e Saúde nos Sistemas Alimentares, iniciativa da FIAN Brasil com foco nas compras públicas.

O ÓAÊ é uma articulação de organizações da sociedade civil para fiscalizar o cumprimento do Pnae e tem como secretaria executiva a FIAN Brasil e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

Alimentação saudável

Ao mesmo tempo que protege da fome crianças de adolescentes de famílias mais socialmente vulneráveis, o Pnae é uma importante fonte de renda para a agricultura familiar. A lei que estabelece o programa[5] prevê que 30% do valor repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) deve ser utilizado para a compra direta dessa modalidade de produção rural.

A agricultura familiar é a principal responsável pela produção de boa parte dos principais alimentos in natura consumidos pela população brasileira. Responde por 80% do valor da mandioca produzida, 42% do feijão e algumas frutas, como 69% do abacaxi, de acordo com informações do último Censo Agro realizado pelo IBGE[6].

“O fornecimento de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar garante renda para diversas famílias de agricultoras e agricultores em todo o país. É uma ferramenta essencial para a garantia do direito à alimentação, sobretudo da alimentação saudável, indissociável à garantia de outros direitos, como o próprio direito à educação”, acrescenta Carvalho.

Por que corrigir

O reajuste vetado por Bolsonaro é cerca de 15 vezes inferior ao que foi sancionado para a execução de emendas de relator, também conhecidas como “RP9” ou “orçamento secreto”. Ou mais de 30 vezes inferior ao impacto orçamentário da PEC 1/22, que determina um conjunto de benefícios temporários, ao longo de 2022, e são entendidos pelo governo como necessários em um estado de emergência.

“Se existiu no passado recente a possibilidade de crédito extraordinário para viabilizar o atendimento a situações emergenciais, consideramos pertinente trazer também esta possibilidade para a alimentação escolar – que não é uma inimiga do orçamento público, muito pelo contrário: é um instrumento poderoso de combate a emergências”, afirma o assessor de Advocacy da FIAN Brasil, Pedro Vasconcelos.

“Os e as parlamentares demonstraram sensibilidade para o tema, tanto que o reajuste fez parte de um acordo entre diversos partidos. Acreditamos que vão ouvir a sociedade e derrubar esse veto, evitando que essa vitória do direito à alimentação seja cancelada por uma canetada”, conclui.

Aliança lança carta com contribuições às candidaturas para que Brasil saia do mapa da fome com alimentação adequada e saudável

Em um contexto de aumento da fome, da inflação de alimentos e de agravamento de doenças crônicas associadas à má-alimentação, a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável acaba de lançar uma carta com propostas para que candidaturas às eleições 2022 garantam o direito humano à alimentação adequada para todos e todas. O documento pode ser acessado – e enviado para as candidaturas à presidência – pelo site: http://www.alimentacaosaudavel.org.br/candidata-e-candidato-o-que-tem-no-seu-prato

“O objetivo é contribuir para a reconstrução de um Brasil sem fome e com comida de verdade para todas, todos e todes, humana, equitativa, sustentável e democrática, onde a segurança alimentar e nutricional seja tratada como prioridade absoluta nas políticas públicas”, afirma a carta.

As propostas estão organizadas em quatro eixos: promoção, proteção e apoio à amamentação e à alimentação complementar saudável nos primeiros anos de vida; implementação de medidas regulatórias, incluindo fiscais, que desestimulem o consumo de alimentos não saudáveis para possibilitar escolhas e práticas alimentares saudáveis pela população; incentivos e apoio à produção e comercialização locais e à democratização do acesso a alimentos adequados e saudáveis, priorizando a agricultura familiar e a produção de base agroecológica como instrumentos para combate à fome no Brasil, e garantia do acesso à água como direito humano e bem comum com proteção do meio ambiente.

Como recomendação geral está o fortalecimento de políticas já implementadas como a Política Nacional de Alimentação e Nutrição e as demais políticas e planos de ação do setor saúde, educação, agricultura, entre outras, que se relacionam com a agenda de alimentação e nutrição. “É, sobretudo, urgente que seja retomada a implementação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), nas bases originais da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. É necessário que o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Nacional (CONSEA) seja reinstalado, assim como a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) e que seja realizada a 6ª Conferência Nacional de SAN de maneira a definir as prioridades para o 3º Plano Nacional de SAN”, afirma o documento.

Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável

Insegurança alimentar é o tema do VII Concurso de Redação da DPU

Com o tema “Prato feito: alimentação de qualidade é sinal de dignidade”, a Defensoria Pública da União (DPU) lançou nesta quinta-feira (18), a 7ª edição do concurso de redação. O torneio é promovido pela DPU em parceria com a FIAN Brasil, a Fundação Pitágoras e o Departamento Penitenciário Nacional, entre outras instituições.

Podem participar do concurso alunos do ensino fundamental e médio, incluindo estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação e os adultos privados de liberdade em instituições estaduais, desde que estejam devidamente matriculados em escola da rede pública ou de ensino técnico. Os internos das penitenciárias federais também podem participar.

As inscrições para participar da iniciativa vão de 19 de setembro a 28 de outubro. Todos os trabalhos devem ser inéditos, feitos individualmente e enviados no formulário de redação que será disponibilizado no site do VII Concurso da DPU. Também precisam estar identificados e não fugirem do tema proposto. Entre as premiações estão videogames, smartphones e tablets.

A alimentação adequada é um direito humano fundamental para que a população viva com saúde e dignidade. O defensor público-geral federal, Daniel Macedo, pontua que a educação é emancipatória. “A gente já fica imaginando uma criança, adolescente ou adulto redigindo uma redação sobre esse tema atual e importante na vida das pessoas. Nós abraçamos esse projeto e a educação é um trabalho de conscientização cidadã”, ressaltou.

A presidente da Fundação Pitágoras, Helena Neiva, reforçou em seu discurso a importância de somar formas com instituições de diferentes áreas. “É importante caminharmos na mesma direção para incluirmos pessoas e promovermos a esperança. Especialmente a área prisional é um lugar de profundo sofrimento e exclusão. Fazer isso por meio da redação é uma oportunidade incrível”, pontua.

O defensor público federal e secretário-geral de articulação institucional da DPU, Gabriel Travassos, reforça que o concurso de redação é uma forma de exercitar a criatividade e falar sobre direitos humanos. “Vamos receber redações de todos os estados do Brasil. Acreditamos na importância de discutir política pública de maneira efetiva e usamos a educação como estratégia”, afirmou.

Acordo

No lançamento do projeto, a DPU assinou um acordo de cooperação técnica com a Fundação Pitágoras, responsável por indicar parte da banca examinadora do concurso. Ao todo, cerca de 200 estudantes de Direito irão ler os textos dos participantes e selecionar os vencedores. Os critérios utilizados serão a criatividade, o conteúdo, a originalidade, a pertinência temática, a clareza no desenvolvimento das ideias, e a correção ortográfica e gramatical do texto.

Cronograma completo do concurso

• Início das inscrições do concurso de redações: 19/9/2022
• Fim das inscrições e do prazo de envio das redações: 28/10/2022
• Início das correções: 31/10/2022
• Fim das correções: 02/12/2022
• Publicação e divulgação do resultado: 24/01/2023

Defensoria Pública da União

Foto: Pedro Vasconcelos/FIAN Brasil

Veto comprova que Bolsonaro é inimigo da alimentação escolar, afirma observatório

ÓAÊ critica veto à LDO que barrou reajuste de 34% e pede que Congresso derrube decisão

O Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) publicou manifestação em que lamenta profundamente o veto do presidente da República, Jair Bolsonaro, ao reajuste de 34% aprovado pelo Congresso Nacional para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). A entidade pede que os e as parlamentares derrubem essa decisão – a análise dos vetos presidenciais é uma prerrogativa do Poder Legislativo.

Em seu artigo 25, parágrafo 3°, o projeto para a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), na redação votada pelos deputados/as e senadores/as, reajusta os valores per capita do Pnae pela inflação (IPCA) acumulada desde a última atualização (2017).

“A aprovação desse artigo pelo Congresso Nacional foi resultado de forte pressão da sociedade civil, e do compromisso de parlamentares de diferentes partidos, mobilizados em função da perda do poder de compra do Pnae, diante da crescente inflação dos alimentos”, ressalta o documento.

O texto acrescenta que, num cenário em que 33 milhões de brasileiros/as passam fome, a medida demonstra a total falta de compromisso desse governo com estudantes e famílias em todo o país. “A insegurança alimentar grave (fome), em domicílios com crianças menores de 10 anos, subiu de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. A essas crianças, que têm na alimentação escolar uma das mais importantes refeições do dia, está sendo negado o direito à alimentação.”

Saiba mais em nota técnica elaborada com a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).

Para saber o quanto seu estado ou município deixará de receber caso o veto de Bolsonaro não seja derrubado, multiplique por 0,34 o valor transferido, em 2022, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Escola (FNDE).

Essa informação você encontra aqui: https://www.fnde.gov.br/sigefweb/index.php/liberacoes

Sobre o observatório

Fundado em fevereiro de 2021, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) resulta de uma ação conjunta entre organizações da sociedade civil e movimentos sociais para monitorar e mobilizar a sociedade sobre a importância do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Sua secretaria executiva é hoje formada pela FIAN Brasil e pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

O comitê consultivo reúne 12 entidades: ActionAid, Aliança por uma Alimentação Adequada e Saudável, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Comissão de Presidentes de Conseas Estaduais (CPCE), Federação Nacional dos Estudantes do Ensino Técnico (Fenet), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), Rede de Mulheres Negras para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme).

Parlamento Europeu reitera a importância de “garantir os direitos dos povos indígenas à terra, territórios e seus meios de subsistência tradicionais”

No dia 7 deste mês, o Parlamento Europeu aprovou resolução em que condena veementemente o estarrecedor assassinato dos povos indígenas no Brasil e de defensores indígenas e ambientalistas, a exemplo do que ocorreu com o ativista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. Sobre o caso, os eurodeputados destacaram a necessidade de investigação imediata, exaustiva, imparcial e independente por parte das autoridades brasileiras.

A resolução, debatida em caráter de urgência (assista a votação), traz ampla fundamentação legislativa, jurídica e histórica, além de acordos internacionais, para exigir medidas urgentes e adequadas do Estado brasileiro para prevenir novas violações aos direitos humanos dos povos indígenas que vivem no país. 

Segundo o documento, o Parlamento reitera a importância de “garantir os direitos dos povos indígenas à terra, territórios e seus meios de subsistência tradicionais, bem como para protegê-los de todas as formas de violência e discriminação”, além de “tomar medidas para acabar com a perseguição, a criminalização e a estigmatização dos povos originários e comunidades tradicionais”.

Na resolução, os representantes parlamentares estabelecem um elo entre o aumento da violência, o aumento das taxas de desmatamento e as políticas de Bolsonaro e as condenam de forma clara e inequívoca. Citam o grave desmonte de órgãos governamentais como a Funai e o Ibama, promovido pelo governo atual, e registram profunda preocupação com “os potenciais efeitos do projeto de lei PL 191/2020, conhecido como ‘projeto de lei da devastação’, e do projeto de lei PL 490/2007 sobre a demarcação de terras indígenas (…) que possam levar ao aumento do desmatamento e à destruição dos meios de subsistência dos povos indígenas”.

Guarani e Kaiowá

Em 29 de junho, a FIAN Internacional e a FIAN Brasil, com apoio de entidades-membro da Rede Global pelo Direito à Alimentação e Nutrição, registraram por meio de carta ao Estado Brasileiro e governo de Mato Grosso do Sul o pedido de imediata apuração da operação de despejo ilegal e violenta promovida cinco dias antes (24/7) pela Polícia Militar do Mato Grosso do Sul contra os povos Guarani e Kaiowá, do tekoha Guapo’y, em Amambai. Na ocasião, os povos tradicionais haviam retomado parte de seu território e a ação policial culminou no assassinato de Vitor Guarani Kaiowá, além de deixar outras 10 pessoas feridas.

Cabe ressaltar que, no episódio, a força pública agiu sem autorização judicial e à revelia do ordenamento jurídico brasileiro, contexto que espelha o fracasso do Estado brasileiro por não cumprir o dever de regular, proteger e demarcar as terras indígenas, cujo arcabouço legal registrado na Constituição de 88 consagra o direito original dos povos indígenas às suas terras ancestrais, sem qualquer tipo de limitação de tempo para o reconhecimento desse direito.

Poucos dias depois, em 4 de julho, uma segunda carta relatou às autoridades um novo episódio de violência contra os povos originários, na mesma região do MS, em que outro indígena foi morto, Márcio Pereira. O documento reitera o pedido de medidas legais para o fim imediato das constantes violações aos direitos dos tekoha Guapo’y, Kurupi/Santiago Kue, Dourados-Amambai Pegua II e povos indígenas Guarani e Kaiowá em geral.

As cartas também foram encaminhadas em cópia para entidades relevantes dos sistemas de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Interamericano de Direitos Humanos e da União Europeia. Em resposta à FIAN Internacional, a assessoria de eurodeputada Anna Cavazzini reafirmou o interesse e compromisso do Parlamento Europeu em acompanhar de perto a questão. 

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Carta exige apuração imediata e responsabilização civil e penal sobre ação violenta de policiais dirigida a povos indígenas do tekoha Guapo’y

Agrava-se a situação dos povos Guarani e Kaiowá que sofrem com mais um líder indígena assassinado e persistente omissão do Estado

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Parlamento Europeu condena mortes no AM e falas de Bolsonaro

Publicação: O Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição do povo Guarani e Kaiowá

FIAN Brasil

Foto: Genevieve Engel/European Union 2022

Agrava-se a situação dos povos Guarani e Kaiowá que sofrem com mais um líder indígena assassinado e persistente omissão do Estado

Desde a retomada de parte do território Guapo’y pelos povos indígenas ante a omissão do Estado em demarcar os territórios tradicionais, a cada dia tem se agravado a situação dos Guarani e Kaiowá que vivem em Amambai, no Mato Grosso do Sul. Eles sofrem severo quadro de violência e discriminação, o que os leva a viver em condições precárias, muitas vezes desumanas, em que seus direitos são sistematicamente violados.

Dessa vez, a violência contra a comunidade Guapo’y Mirim Tujury e o tekoha Kurupi/São Lucas culminou na morte do líder indígena Márcio Pereira, na última quinta-feira (14), segundo denúncia da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh). Esta é a mesma comunidade na qual Vitor Guarani Kaiowá foi assassinado há menos de um mês, em operação de despejo ilegal e violenta realizada pela Polícia Militar do MS.

Em 29 de junho, a FIAN Internacional e a FIAN Brasil, com apoio de entidades de diversas regiões do mundo, integrantes da Rede Global pelo Direito à Alimentação e Nutrição, formalizam carta a autoridades públicas do Brasil e do MS para exigir que sejam imediatamente cessadas e apuradas as violentas ações dirigidas a tekoha Guapo’y e ao povo indígena Guarani e Kaiowá.

No último dia 4, uma nova carta relata às autoridades novos episódios de violências contra os povos originários e reitera o pedido de medidas legais para que sejam imediatamente cessadas as constantes violações aos direitos dos tekoha Guapo’y, Kurupi/Santiago Kue, Dourados-Amambai Pegua II e povos indígenas Guarani e Kaiowá em geral.

A carta também reivindica investigação e responsabilização civil e criminal dos responsáveis pelos ataques, uma abordagem em prol do fim da violência estrutural e da discriminação contra os povos Guarani e Kaiowá, e que se assegure a demarcação dos territórios tradicionais.

Atuação pública

Recentemente, o juiz federal do caso negou a reintegração de posse aos fazendeiros. Ele usou um dos argumentos defendidos pela FIAN Brasil, de que é responsabilidade da União, e não do estado do MS, intervir na histórica luta pela ocupação e demarcação de terras indígenas pelos povos originários. 

“Tratando-se de conflito coletivo de disputa indígena pelas terras tradicionalmente ocupadas por seus povos, a competência federal se impõe e afasta qualquer margem de atuação de órgãos de segurança pública local por conta própria. A Polícia Federal é a autoridade policial judiciária e ostensiva neste tipo de situação, de modo que não se pode admitir que as forças locais atuem sem a liderança dela, ou sem ordens judiciais. Esse tipo de atuação apenas agrava o conflito e parece acelerar as urgências para concessão de liminares, com pressões populares, midiáticas e de autoridades”, registra o magistrado.

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Indígena Guarani Kaiowá é morto em área de conflito de terra, semanas após morte durante ação policial no local

Indígenas guarani-kaiowá denunciam novos ataques a tiros em MS

Publicação: O Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição do povo Guarani e Kaiowá

FIAN Brasil 

Foto: Povos Guarani e Kaiowá, gentilmente cedida ao Cimi.

Série de vídeos de animação promove alimentação saudável na escola e na comunidade

Neste 13 de julho, dia do aniversário do Estatuto da Criança e Adolescente, a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável tem a honra de lançar a série de vídeos “Promovendo a alimentação saudável na escola e na comunidade”. A série aborda a amamentação, alimentação saudável, hortas nas escolas, agroecologia, consumo consciente e direito humano à água, com conteúdo voltado ao público infanto-juvenil. Cada um dos vídeos, que está disponível no Youtube, também conta com um guia de conversa com o público, confira em https://bit.ly/WebserieAlimentacaoSaudavel

A série “Promovendo a alimentação saudável na escola e na comunidade” tem concepção e realização do Núcleo Rio Grande do Sul da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, que reúne educadoras, profissionais da saúde, nutricionistas, agrônomos e ativistas do direito à alimentação do estado do RS.

O objetivo dos vídeos é promover uma alimentação adequada e saudável, contribuindo para redução dos índices de obesidade infantil e doenças crônicas não transmissíveis e melhorando o panorama da segurança alimentar e nutricional. Pedro e Bia são os personagens principais que, a partir dos temas propostos pela professora, tecem reflexões, circulam pelo ambiente da escola e da comunidade, e participam ativamente buscando soluções para os problemas que identificam.

Os vídeos educativos possuem cerca de 2 minutos de duração e abordam cada um dos temas valorizando a diversidade de raça, gênero e povos. E podem ser utilizados por profissionais da nutrição ou educação como recurso de educação alimentar e nutricional em escolas, ou em diferentes espaços e atividades, como semana do meio ambiente, semana da alimentação, colônias de férias, em espaços de formação popular, entre outros. 

A websérie “Promovendo a alimentação saudável na escola e na comunidade” e os guias de conversa são uma ação ativista de integrantes do Núcleo Rio Grande do Sul da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável e colaboradores convidados, e conta com o apoio da ACT Promoção da Saúde e do Instituto Ibirapitanga.

Fonte: Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável

Painéis trazem explicações de relatores da ONU sobre problemas nos sistemas alimentares

Para uso por comunidades, movimentos e organizações, a FIAN Internacional sintetizou em perguntas e respostas algumas das principais mensagens de documentos de três relatores especiais de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU): Michael Fakhri, David Boyd e Marcos Orellana. Cada seção da entidade criou materiais visuais pensando na realidade do seu país, sem esquecer o quadro global. E nós, da FIAN Brasil, montamos com a designer Patrícia Nardini dois painéis que você pode imprimir ou compartilhar, como carrosséis de redes sociais, no Facebook e no Instagram.

Baixe aqui os dois painéis. Cada um pode ser impresso como um A3 frente e verso, para dobrar em seis, ou como dois A3, para fixar como cartazes, ou, ainda, montado como um pôster A2 (formato maior) vertical.

São conteúdos que tratam dos problemas nos sistemas alimentares hegemônicos (ou seja, que predominam hoje), chamados industriais ou corporativos, pela abordagem do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Muitas dessas questões você já deve conhecer ou desconfiar, e é muito possível que sua comunidade já pratique os caminhos aqui descritos.

Estamos falando de práticas ligadas à agroecologia, à comida de verdade e à regeneração dos ecossistemas, que deveriam receber apoio dos governantes, legisladores e operadores da Justiça para estar no centro, e não nas bordas, dos modos de produzir, processar, comercializar, preparar e consumir alimentos, que deveriam ser condizentes com as necessidades das atuais e das futuras gerações. Temos que fazer pressão para uma transição com esse horizonte.

Sobre os/as especialistas

Os relatores e relatoras especiais são especialistas independentes a quem o Conselho de Direitos Humanos da ONU concede um mandato para vigiar, aconselhar, examinar e informar publicamente sobre uma questão específica (relatorias temáticas) ou sobre questões de direitos humanos em um determinado país (relatorias por países).

Eles/as visitam países para investigar denúncias de violações de direitos humanos e podem se dirigir aos Estados para pedir informações e formalizar recomendações. Também atuam na conscientização da população. Apresentam relatórios anuais ao Conselho de Direitos Humanos e, muitas vezes, à Assembleia Geral da ONU.

Michael Fakhri é o atual relator sobre o Direito à Alimentação; David Boyd, do Direito a um Ambiente Seguro, Limpo, Saudável e Sustentável; e Marcos Orellana acompanha o tema das Substâncias Tóxicas.

Para mergulhar mais no tema  

Leia abaixo as perguntas e respostas preparadas pela FIAN Internacional, que aprofundam o assunto sem complicar a linguagem. E saiba mais sobre o poder das grandes empresas na história em quadrinhos A Captura Corporativa de Sistemas Alimentares.

O problema com o sistema alimentar industrial
e como “consertá-lo”

O sistema alimentar industrial (ou corporativo) prejudica as pessoas e o planeta e afeta nossa capacidade de alimentar a nós mesmos, nossas famílias e nossas comunidades de maneira saudável, sustentável e digna.

Os relatores especiais da ONU sobre o Direito à Alimentação, sobre o Direito a um Ambiente Seguro, Limpo, Saudável e Sustentável e sobre Substâncias Tóxicas descreveram os principais problemas com o sistema alimentar industrial (ou corporativo), em particular no que diz respeito à destruição ambiental e violações de direitos humanos relacionadas. Eles também delinearam o que os governos devem fazer para avançar em direção a práticas agroecológicas sustentáveis, saudáveis ​​e justas que apoiem o direito à alimentação e nutrição e os direitos humanos de forma mais ampla.

I
Qual é o problema com o sistema alimentar industrial?

“O mundo tem sido dominado por corporações em sistemas alimentares que usam a riqueza para gerar mais riqueza, em vez de usar a vida para gerar mais vida.” (Fakhri, p. 9)

Existem muitos problemas com a forma como os alimentos são produzidos, processados, distribuídos, preparados e consumidos em nossos sistemas alimentares. Estes incluem a destruição de ecossistemas, exploração de trabalhadores e alimentação e dietas insalubres.

O sistema alimentar industrial é dominado por corporações e é um dos principais contribuintes para a emergência climática, perda de biodiversidade, degradação do solo, esgotamento da água e poluição.

Esse sistema depende fortemente de produtos químicos e combustíveis fósseis e desloca e marginaliza as práticas agrícolas das comunidades camponesas que foram desenvolvidas ao longo de gerações e funcionam em harmonia com a natureza. Por meio de uma combinação de incentivos e políticas públicas e privadas, os pequenos produtores de alimentos estão cada vez mais dependentes de sementes comerciais, pesticidas e fertilizantes controlados por empresas poderosas. Essas empresas podem ditar preços e empurrar os camponeses para um sistema de “agricultura por contrato”, no qual perdem o poder de decisão sobre o que e como produzem. O sistema alimentar industrial também promove a apropriação de terras e recursos naturais, minando a capacidade das comunidades de se alimentarem.

Trabalhadores agrícolas e de alimentos são frequentemente explorados e expostos a pesticidas nocivos, e não são raros os casos de trabalho escravo e infantil.

O sistema alimentar industrial deixa as pessoas doentes com produtos alimentícios ultraprocessados agressivamente promovidos pela publicidade. Dietas não saudáveis ​​são responsáveis ​​por 10 milhões de mortes anualmente. Além disso, o uso indevido de antibióticos na pecuária e na aquicultura reduz o efeito desses medicamentos quando necessários para tratar humanos.

A cada dia, a indústria de alimentos ganha mais poder para moldar mercados e pesquisas e influenciar governos e políticas públicas a seu favor. Pode fazer isso com os bilhões que ganha com a exploração de recursos naturais e mão de obra barata.

Como o sistema alimentar industrial danifica nosso planeta?

O sistema alimentar industrial é um dos principais contribuintes para as mudanças climáticas, desde as emissões e a destruição de sumidouros de carbono (por exemplo, plantas que podem armazenar carbono para que ele não entre na atmosfera). É responsável por até 37% das emissões globais de gases de efeito estufa que aumentam a temperatura do nosso planeta e levam a catástrofes, como pragas, inundações e secas. Muito disso acontece por meio do desmatamento, quando as agroindústrias convertem florestas em terras para a agricultura produzir commodities de exportação, como carne bovina, soja e óleo de palma.

A intensificação industrial da agricultura é uma “prática extrativa” que perturba as bases de nossos ecossistemas com impactos duradouros para nossos filhos e seus filhos. Isso inclui o uso excessivo de água doce, em particular pela indústria pecuária, e a poluição da água potável por meio de pesticidas, fertilizantes e dejetos animais. A agricultura industrial também é responsável pela poluição do ar e pela degradação e erosão do solo – ameaçando a própria base de nossa alimentação.

O sistema alimentar industrial destrói a diversidade biológica promovendo monoculturas (o cultivo de uma única cultura em um campo de cada vez), ameaçando os sistemas de sementes crioulas e promovendo dietas baseadas em uma gama muito estreita de culturas. A superexploração, a poluição e a destruição de áreas de pesca resultaram em um terço dos peixes de água doce ameaçados de extinção. O uso de agrotóxicos causou uma perda maciça de insetos e aves que se alimentam deles, desequilibrando o funcionamento da natureza.

O sistema alimentar industrial e a poluição, a destruição ambiental e o desmatamento que o acompanham forneceram um terreno fértil perfeito para doenças zoonóticas – doenças que passam de animais para humanos – como a Covid-19. As más condições de trabalho e os abusos ambientais na indústria alimentar também contribuíram para a sua propagação.

O que isso significa para o direito das pessoas à alimentação e direitos conexos?

Os impactos ambientais do sistema alimentar industrial aprofundam as desigualdades existentes e causam múltiplas violações dos direitos humanos.

A poluição da água, do ar, do solo e dos alimentos com produtos químicos tóxicos usados ​​na agricultura industrial tem efeitos de longo alcance na saúde de camponeses, trabalhadores, comunidades vizinhas e consumidores, podendo causar mortes prematuras.

Os agrotóxicos envenenam regularmente trabalhadores e camponeses. São responsáveis ​​por cerca de 200 mil mortes por envenenamento agudo a cada ano. Eles têm sido associados a doenças graves, incluindo câncer, derrames, anomalias congênitas e distúrbios neurodegenerativos, como a doença de Parkinson, e são particularmente prejudiciais para mulheres e crianças. As crianças expostas a agrotóxicos – por exemplo, quando trabalham em fazendas, brincam em solo contaminado ou bebem água contaminada – podem sofrer danos graves em seu desenvolvimento cognitivo e físico.

A poluição da água e o uso excessivo de água pela agricultura industrial também levam à escassez de água para as comunidades locais. Isso tem impactos diretos em seus direitos à água e à saúde. Também afeta seu direito à alimentação e nutrição, pois prejudica sua capacidade de cultivar e preparar alimentos e pode levar a doenças transmitidas pela água que afetam sua nutrição e saúde. A capacidade das comunidades de cultivar alimentos para si mesmas e ganhar a vida também é severamente prejudicada por sua exposição a mudanças e condições climáticas severas, desastres naturais e destruição do meio ambiente, incluindo a degradação do solo.

II
Como os sistemas alimentares devem ser transformados para garantir o direito à alimentação e à nutrição?

“(…) transformar os sistemas alimentares que exploram milhões de trabalhadores, prejudicam a saúde de bilhões de pessoas e infligem trilhões de dólares em danos ambientais é moral e legalmente imperativo para respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos.” (Boyd, 2021, p. 26)

Não podemos mais confiar no foco no crescimento econômico para superar a fome e a desnutrição. O direito a um ambiente saudável é protegido por lei na grande maioria dos países. Sistemas alimentares saudáveis ​​e sustentáveis ​​são um componente central desse direito, conforme confirmado por vários tribunais e instituições nacionais de direitos humanos em todas as regiões. Transformar os sistemas alimentares para se tornarem saudáveis, sustentáveis ​​e justos é essencial para enfrentar a crise ambiental global.

A agroecologia aborda muitas fraquezas do sistema alimentar industrial. Questiona as dinâmicas de poder (incluindo aquelas entre mulheres e homens), destaca a importância do acesso e controle das pessoas sobre o conhecimento e os recursos e leva a melhorias concretas no Dhana.

Essa abordagem imita processos ecológicos e interações biológicas. Muitas vezes produz rendimentos mais elevados do que a agricultura industrial. Como menos produtos químicos são usados, causa menos danos ao meio ambiente. Também corrige danos causados ​​pelo sistema alimentar industrial: reduz as emissões de gases de efeito estufa, recupera a saúde do solo, protege a diversidade biológica e diminui o risco de pandemias. Além disso, apoia a construção coletiva do conhecimento, aproxima consumidores e produtores, garante meios de vida dignos para as pessoas que trabalham nos sistemas alimentares e promove a equidade social.

O que os governos devem fazer para transformar os sistemas alimentares?

“Os efeitos ambientais devastadores dos sistemas alimentares industriais e as dietas não saudáveis ​​associadas ao gozo de uma ampla gama de direitos humanos dão origem a amplos deveres dos Estados de prevenir esses danos. Os Estados devem aplicar uma abordagem baseada em direitos a todas as leis, regulamentos, políticas e ações relacionadas à alimentação, a fim de minimizar os impactos negativos sobre o meio ambiente e os direitos humanos”. (Boyd, 2021, p. 17)

Os governos devem reduzir o uso de agroquímicos e banir os mais perigosos. Eles deveriam parar de exportar agroquímicos proibidos em seus próprios países. Eles devem introduzir regulamentações mais fortes e impostos mais altos sobre agroquímicos. O dinheiro desses impostos deve ser usado para apoiar os produtores na redução de agrotóxicos e na transição para a agroecologia. Os países precisam monitorar cuidadosamente a poluição por agroquímicos e seus impactos na saúde das pessoas.

Antibióticos devem ser permitidos apenas para tratamento veterinário individual de animais. A pecuária intensiva precisa acabar. É preciso haver regulamentações mais fortes para a agricultura industrial para evitar a propagação de doenças zoonóticas.

Os governos devem fornecer apoio técnico para práticas agrícolas que restaurem a saúde do solo, incluindo o uso de fertilizantes orgânicos, rotação diversificada de culturas e compostagem.

Eles devem adotar e fazer cumprir as leis para impedir o desmatamento e a conversão em terras agrícolas, ao mesmo tempo em que fazem isenções apropriadas para produtores de pequena escala. Devem estimular a diversificação de cultivos e torná-la obrigatória em grandes monoculturas. Os sistemas alimentares devem fazer parte das estratégias de biodiversidade.

Os governos devem proteger os sistemas de sementes dos camponeses (os direitos dos camponeses de salvar, usar e trocar sementes e raças de gado adaptadas localmente) e garantir que as leis nacionais e internacionais não os prejudiquem. Eles devem reviver e apoiar as variedades tradicionais e os conhecimentos e práticas ancestrais relacionados. Da mesma forma, devem proteger e restaurar a biodiversidade do mar.

As regras do comércio internacional precisam ser reformadas e os acordos agrícolas injustos devem ser encerrados. Novas regras comerciais devem ser baseadas na lei de direitos humanos, garantir a equidade e apoiar a transição para sistemas alimentares sustentáveis ​​e agroecologia.

Os governos devem investir na infraestrutura dos mercados territoriais nos níveis local, nacional e regional. Devem também apoiar cooperativas de produtores e consumidores que facilitem a troca de conhecimento e a adoção de práticas agroecológicas. Eles devem corrigir qualquer viés existente nas políticas que privilegiam os supermercados sobre os mercados informais de agricultores.

Os governos devem proteger e melhorar os produtores de alimentos de pequena escala, especialmente as mulheres, o direito à terra e outros recursos naturais – inclusive por meio da reforma agrária.

Eles devem desenvolver diretrizes sobre nutrição que integrem preocupações de saúde e sustentabilidade e implementar programas nacionais de refeições escolares gratuitas que forneçam alimentos saudáveis ​​a todas as crianças. Os alimentos para essas e outras instituições públicas (como hospitais) devem ser comprados de produtores locais e preparados nas cozinhas das escolas.

Os governos devem proibir a promoção de produtos alimentícios e bebidas ultraprocessadas para crianças e impor impostos e etiquetas de advertência para que as pessoas consumam menos.

A governança dos sistemas alimentares precisa mudar fundamentalmente. Os direitos e meios de subsistência dos mais desfavorecidos – incluindo aqueles que não têm acesso à terra e alimentos saudáveis ​​e sustentáveis, ou cujo direito a um ambiente saudável é ameaçado ou violado – precisam ser priorizados. Eles devem ser capazes de participar quando os governos fazem novas políticas sobre alimentos. Especialmente a participação das mulheres precisa ser fortalecida. A transformação dos sistemas alimentares deve ser baseada nas próprias soluções das pessoas, e não imposta de cima por “especialistas”.

Os governos devem incorporar o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) e o direito a um ambiente saudável e sustentável nas leis nacionais com mecanismos para responsabilizar autoridades e empresas.

As declarações das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses (Undrop) e sobre os Direitos dos Povos Indígenas (Undrip) devem ser aplicadas quando os governos adotam novas leis e políticas. Da mesma forma, eles devem aplicar as Diretrizes sobre Posse e Pesca Sustentável em Pequena Escala para evitar a apropriação de terras, água e recursos naturais. Eles também devem garantir que os trabalhadores agrícolas e de alimentos sejam protegidos pelas leis trabalhistas.

O poder corporativo nos sistemas alimentares precisa ser reduzido, inclusive por meio de legislação que reverta a concentração excessiva. A conclusão das negociações de um acordo internacional para regular as corporações transnacionais também é fundamental para isso.

Os governos devem restringir o lobby corporativo e as doações da indústria de alimentos e suas associações empresariais, e outras tentativas de influenciar as políticas relacionadas aos sistemas alimentares.

Povos tradicionais pedem revogação de regulamentação estadual de consulta prévia ao Governo de MG

Povos e comunidades tradicionais, movimentos sociais, organizações e coletivos de direitos humanos junto a Frente Parlamentar em Defesa dos povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, enviaram um ofício às Secretarias de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) e de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), pedindo a revogação urgente da recente Resolução Conjunta 01/2022, que regulamenta a consulta prévia, livre e informada no Estado.

Na avaliação coletiva, a proposta de resolução foi construída sem participação popular e viola diretamente diversos aspectos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao criar diretrizes de como a consulta deve ser realizada aos povos tradicionais, quando houver medidas públicas e privadas que impactem seus modos de vida e territórios. 

A Convenção 169 da OIT é um tratado de direitos humanos que foi ratificado pelo Estado brasileiro por meio do Decreto Legislativo 143, em vigor desde 2003 e internalizado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 5.051/2004, revogado pelo Decreto 10.088/2019. A Convenção garante a proteção e salvaguarda dos direitos de povos e comunidades tradicionais, garantindo-lhes, dentre outros, o direito à autoatribuição, o direito à consulta e à participação na tomada de decisões que possam trazer impactos ao seu modo de vida, às suas terras e territórios. 

Em avaliação coletiva, a sociedade civil divulgou nota técnica que destacam as principais violações da resolução conjunta, e um manifesto solicitando a revogação da norma. Após audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, na qual representantes da sociedade civil se posicionaram, em unanimidade, pela revogação da medida, foi aberto em nome do Governo de MG uma consulta pública virtual para revisão da Resolução.

Para a assessora jurídica da Terra de Direitos, Alessandra Jacobovski, “essa consulta pública é um verdadeiro golpe aos setores sociais, uma vez que procura legitimar uma norma elaborada sem a participação dos povos e comunidades tradicionais do Estado de Minas Gerais, e repudiada pelos próprios interessados. Além do mais, a assessora destaca que “uma consulta pública virtual para consultar povos tradicionais não abarca as necessidades de comunidades que vivem em regiões afastadas do estado e também fere diretamente a Convenção 169 da OIT, ao delimitar ao formato virtual a consulta dos impactados pela resolução.” 

Para a deputada Leninha (PT/MG) que integra a Frente parlamentar em Defesa dos povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, que assina o ofício, “a Resolução, em seu cerne, viola brutalmente o direito dos povos e comunidades tradicionais à Consulta Livre, Prévia e Informada, na medida que ela dita um regimento autoritário, excludente e tendencioso para a escuta das populações tradicionais. Nossa crítica à Resolução vai além da violação à Convenção 169, pois ela retira obrigações, responsabilidades do Estado, a quem compete zelar pelos direitos coletivos, e declina-os para os interesses privados de grandes empreendimentos, colocando em risco não só os direitos dos povos mas a própria democracia.” Também assinam o documento os deputados(as), André Quintão (PT/MG), Ana Paula Siqueira (Rede/MG), Andréia de Jesus (PT/MG), Beatriz Cerqueira (PT/MG). 

Atualmente segue no âmbito do Ministério Público Federal (MPF) um procedimento administrativo para apuração dos fatos em volta da resolução conjunta.

Irregularidades

A proposta do governo de Minas foi apresentada em abril deste ano sem nenhum tipo de diálogo com a sociedade civil e pegou de surpresa povos e comunidades tradicionais do estado, diretamente interessados na consulta prévia, livre e informada. Em nota técnica assinada por mais organizações, movimentos sociais e  povos tradicionais são apresentadas uma série de irregularidades existentes na Resolução Conjunta. Entre os principais direitos dos povos tradicionais violados estão:

1. Quando delimita que somente os povos tradicionais certificados pela Fundação Cultural Palmares, Funai e CEPCT/MG devem ser consultados;

A autoatribuição e a autodeterminação dos povos, prevista no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU), na Convenção 169 da OIT, na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da ONU e na Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da OEA; 

2.  Quando garante ao empreendedor privado de contratar, com recursos próprios, assessoria técnica especializada para realização da consulta;

O direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado, de acordo com a Convenção 169, as Declarações sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da ONU e OEA e a jurisprudência da Corte IDH, sobretudo ao dispor sobre a transferência da obrigação e competência exclusiva do Estado para o empreendedor privado; 

3. Quando estabelece prazos para realização da consulta prévia, livre e informada; 

A garantia da liberdade religiosa, por ignorar o calendário religioso específico de cada povo e comunidade tradicional, conforme o artigo 5º, VI e VIII da Constituição Federal;

4. Quando estabelece métodos para realização da consulta prévia, livre e informada;

Os direitos dos povos indígenas garante à organização social própria, usos, costumes, crenças e tradições, previstos no artigo 231 da Constituição Federal; A Convenção 169 da OIT garante que os métodos da consulta devem ser delimitados pelos povos tradicionais impactados. 

Na avaliação da apanhadora de flores sempre-viva e coordenadora da Comissão em Defesa dos Direitos da Comunidades Extrativistas (Codecex), Tatinha Alves, “embora a medida seja apresentada pelo estado como uma alternativa para garantir a consulta aos povos e comunidades tradicionais, as organizações e comunidades tradicionais destacam que o objetivo central da Resolução é facilitar o estabelecimento de empreendimentos nos territórios tradicionais do estado, atendendo aos interesses de empresas do ramo da mineração, agronegócio, entre outros.”

Impactos aos Povos Tradicionais

O mecanismo da consulta prévia apesar de garantido pela legislação brasileira, frequentemente é violado por empresas e pelo próprio estado. Em Minas Gerais, diversos empreendimentos já foram autorizados sem a realização de consulta prévia aos povos tradicionais. 

Na Serra do Curral foi dada à empresa Taquaril Mineração S.A. (Tamisa) pelo Governo de Minas a permissão para que se instalasse na região sem a consulta à comunidade quilombola Manzo Ngunzo Kaiango, que fica em Belo Horizonte e é atualmente integrada por 37 famílias. Este caso teve ação ajuizada contra o estado pelo MPF no dia 20/06 pela falta de consulta à comunidade atingida. 

Para a liderança da comunidade quilombola, Makota Kidolaie, “não consultar os povos tradicionais, é um ato violento que ignora a nossa existência. O estado de Minas Gerais, não pode falar por nós e não pode fazer acordos absurdos de medidas compensatórias, em que uma violação legítima a outra. Somos contra esse modelo de consulta, e exigimos respeito e gerência sobre tudo que se diz respeito aos povos tradicionais.” 

Na comunidade quilombola Vargem do Inhaí, a cerca de 70km da cidade de Diamantina (MG), cerca de 28 famílias seguem ameaçadas pela perda de seu território pela sobreposição de um parque de conservação ambiental. O território comunitário está inserido na zona de amortecimento do Parque Nacional das Sempre-Vivas, com área de sobreposição de cerca de 6 mil hectares. A medida também foi apresentada sem consulta prévia à comunidade. 

Na avaliação da advogada popular do Coletivo Margarida Alves, Layza Queiroz, “a resolução limita o alcance do direito de consulta e chega ao absurdo de dizer que em  determinados casos se confia na boa fé do empreendedor para dizer se na área de impacto do empreendimento tem ou não povo tradicional. Como que a empresa, maior interessada no empreendimento, é também aquela legitimada a dizer se tem povo a ser consultado ou não? É visível como ela facilita pro empreendedor em detrimento do direito das comunidades.”

Fonte: Terra de Direitos

Foto: Ricardo Barbosa

Carta exige apuração imediata e responsabilização civil e penal sobre ação violenta de policiais dirigida a povos indígenas do tekoha Guapo’y

Nesta quarta-feira (29) a FIAN Internacional e a FIAN Brasil, com apoio de entidades de diversas regiões do mundo, integrantes da Rede Global pelo Direito à Alimentação e Nutrição, formalizam denúncia ao Estado brasileiro e ao governo de Mato Grosso do Sul sobre operação de despejo ilegal e violenta, realizada na última sexta-feira (24) pela polícia militar do Mato Grosso do Sul (MS) contra os povos Guarani e Kaiowá, do tekoha Guapo’y, localizado no município de Amambai.

Importante lembrar que com a promulgação da Constituição Federal em 1988, compete à União proteger as populações indígenas, assim como garantir a demarcação de seus territórios tradicionais. No entanto, segundo relato de indígenas e entidades indigenistas, após a retomada de parte do território Guapo’y pelos povos originários ante a omissão do Estado em demarcar as terras indígenas, forças policiais atuaram na expulsão dos Guarani e Kaiowá, acampados no local, sem que houvesse autorização judicial e à revelia do ordenamento jurídico brasileiro.

“O número de pessoas mortas e feridas ainda está sendo apurado, porém, de acordo com as últimas informações obtidas, há registro da morte de uma pessoa e de outras 10 pessoas feridas como resultado dessa ação”, registra o documento, que reúne subsídios da Grande Assembleia da Aty Guasu Guarani e Kaiowá, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), do Ministério Público Federal de Ponta Porã e de veículo de comunicação.

A carta aponta outros pontos de atenção, como declaração do secretário estadual de justiça e segurança pública do MS, em que culpabiliza e incrimina com argumentos insustentáveis os indígenas atacados pelas forças de segurança pública; e a tentativa das autoridades policiais de dificultar o atendimento prestado pelo serviço público de saúde local a indígenas feridos.

Na carta – encaminhada em cópia para entidades relevantes dos sistemas de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Interamericano de Direitos Humanos e da União Europeia – a FIAN Internacional e a FIAN Brasil reivindicam investigação e providências imediatas por parte das autoridades públicas brasileiras. “Exigimos ao Estado Brasileiro que sejam imediatamente cessadas e apuradas as violentas ações dirigidas a tekoha Guapo’y e ao povo indígena Guarani e Kaiowá (…). Exigimos que sejam responsabilizadas civil e penalmente as pessoas que comandaram e/ou realizaram essas ações, com a maior brevidade possível”.

Por fim, o documento exige “o avanço na demarcação dos territórios indígenas e na adoção de outras ações de enfrentamento à violência e à discriminação que afetam, há décadas, o povo Guarani e Kaiowá”.

Leia a íntegra da Carta.

A FIAN Internacional atua há 35 anos pela realização do direito à alimentação e nutrição. Juntamente com a FIAN Brasil, acompanha a luta dos povos Guarani e Kaiowá há mais de uma década. Para saber mais, acesse a publicação “O Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição do povo Guarani e Kaiowá”.

FIAN Brasil

Foto: Povos Guarani e Kaiowá, gentilmente cedida ao Cimi

Observatório faz propostas sobre sociobiodiversidade para novo governo e denuncia desmonte ambiental

Organizações e movimentos sociais que integram o ÓSócioBio, entre eles a FIAN Brasil, participaram de audiência na Comissão de Meio Ambiente do Senado, nesta quarta (22)

Em audiência na Comissão de Meio Ambiente do Senado, nesta quarta (22), organizações da sociedade civil e movimentos sociais que integram o Observatório da Economia da Sociobiodiversidade (ÓSócioBio) denunciaram os impactos negativos para os povos e comunidades tradicionais do desmonte ambiental do governo de Jair Bolsonaro e a falta de políticas públicas para ampliar a produção econômica dessas populações.

Integrado pela FIAN Brasil, Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Contag, Slow Food Brasil, entre outras organizações, o ÓSócioBio também apresentou um documento com recomendações para o próximo presidente eleito para estimular a economia da sociobiodiversidade. Até agora, está confirmada a entrega do documento à coordenação de programa de governo de Luís Inácio Lula da Silva.

“A economia da sociobiodiversidade é um dos caminhos para encarar o recrudescimento dos cenários de mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a insegurança hídrica e alimentar, e o aumento das desigualdades sociais”, afirma o texto.

Proteção de territórios

“Infelizmente, o contexto em que estamos vivendo não demonstra um momento muito favorável para essa agenda socioambiental no país”, lamentou na audiência Dione do Nascimento Torquato, secretário-executivo do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).

Ele frisou que a economia dos produtos da floresta depende da oficialização e proteção de Terras Indígenas e Reservas Extrativistas – o que não vem sendo feito na gestão Bolsonaro. “O maior reflexo dessa triste realidade são os inúmeros casos de conflitos territoriais e fundiários, a morte de lideranças ativistas no campo e a invasão massiva dos nossos territórios tradicionais de uso coletivo”, continuou.

Torquato defendeu ainda a retomada de políticas desmanteladas pela administração federal que apoiaram a produção de povos e comunidades tradicionais no passado, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e à Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio).

“As comunidades tradicionais, comunidades quilombolas, comunidades indígenas que são verdadeiros defensores do meio ambiente, eles estão fazendo o papel do Estado, mas estão sendo dizimados. Não tem outra palavra. Estão sendo dizimados com políticas antiambientalistas, antivida”, reforçou o senador Fabiano Cantarato (PT-ES), que conduziu a audiência.

Torquato, Cantarato, indígenas e outras pessoas que falaram na audiência lamentaram os assassinatos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, associando-os ao contexto de invasões de áreas protegidas, conflitos de terra e violência fruto do governo Bolsonaro.

Políticas públicas

“[É preciso apoio em] tudo que envolve a parte de orientação para que as coisas aconteçam como tem que ser. Porque é muita legislação, é muita burocracia, são muitos entraves. Ter pessoas, ter equipe, ter política pública que permita que pessoas apoiem os empreendimentos é de suma importância”, defendeu Dionete Figueiredo, da Cooperativa de Agricultura Familiar Sustentável com Base em Economia Solidária (Copabase), de Arinos (MG), em entrevista ao ISA.

“Além do segundo e não menos importante [apoio] que é o acesso a crédito. Sem crédito não é possível desenvolver esses trabalhos”, continuou. “O mercado é cruel, não dá espaço para erro. Nos nossos empreendimentos não temos acesso a política pública de crédito. Entregamos tudo para o banco, que dá uma resposta não favorável. Assim é nossa realidade”, disse. Ela cobrou a retomada de iniciativas oficiais de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater).

Na audiência, o facilitador de Diversidade Socioambiental do ISA, Jeferson Camarão Straatmann, argumentou que os produtos da sociobiodiversidade não podem ser tratados apenas como insumos e matérias-primas, mas devem ser considerados em seu potencial de geração de conhecimento e inovação e demandam regulamentação e estímulos diferenciados e adaptados.

“Precisamos sair dessa lógica de provedores de insumos para uma lógica de economias que inovam a partir do conhecimento tradicional, são desenvolvedoras de tecnologias e soluções para saúde, moda, alimentação, governança, modelos econômicos, manejo e são prestadoras de serviços que entregam benefícios ecossistêmicos para todo o planeta”, defendeu (veja vídeo abaixo).

“Os arranjos locais e territoriais e sua gestão devem ter políticas e programas específicos de gestão e regulamentação, que enxerguem esses arranjos com um prisma diferente do prisma das regulamentações do setor privado”, comentou.

‘Apagão de informação’

A professora e pesquisadora da Universidade de Brasília Mônica Nogueira chamou a atenção para a dificuldade provocada pela ausência de dados sistematizados sobre os povos e comunidades tradicionais.

“Nós temos uma fragmentação, uma dispersão das informações relativas a povos e comunidades tradicionais no Brasil, seus territórios, os conflitos a que estão submetidos. E, ainda mais, sobre o que produzem, como a sua produção circula, como ela dinamiza a economia local”, apontou.

“O apagão de informação naturalmente dificulta a elaboração de políticas públicas apropriadas que considerem as especificidades da economia da sociobiodiversidade. E pior, marginaliza essa economia e os seus sujeitos”, completou.

O pesquisador e professor da USP Ricardo Abramovay reiterou que faltam pesquisas e dados sobre a bioeconomia para a Amazônia e o Cerrado, apesar da importância econômica e socioambiental do setor. Ele informou que, segundo dados disponíveis, o setor corresponde a 5% do PIB dos EUA, algo em torno de US$ 1 trilhão.

“O Brasil pratica, sobretudo na Amazônia, uma economia da destruição da natureza. Nós precisamos de uma economia do conhecimento da natureza”, ressaltou. “A economia da destruição da natureza não propiciou desenvolvimento na Amazônia. A Amazônia hoje é a parte do Brasil onde estão seus piores indicadores sociais, onde a lei é sistematicamente desrespeitada, as instituições não conseguem exercer o seu papel, sobretudo num governo de fanáticos fundamentalistas que estimula a violência e o desrespeito à lei e a invasão de áreas protegidas”, comentou.

O que é sociobiodiversidade?

O conceito de sociobiodiversidade foi desenvolvido em linhas de pesquisa que confirmaram o papel dos pequenos agricultores, camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais na preservação e promoção da biodiversidade dos ecossistemas. Trata-se de uma noção que abarca as relações entre essa diversidade biológica e os conhecimentos, informações e práticas sobre seu uso e conservação desenvolvidos por essas populações, ao longo de séculos e até milênios.

Em geral, a economia da sociobiodiversidade refere-se a produtos não madeireiros gerados a partir da exploração sustentável dos vários biomas. Alguns exemplos mais conhecidos no Brasil são: o açaí, castanha-do-pará, o pequi, babaçu, carnaúba, andiroba, copaíba, piaçava e produtos derivados (alimentos, medicamentos, cosméticos, essências, óleos etc).

Biodiversidade

A diversidade biológica ou biodiversidade é a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, entre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos, outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte. Abarca, ainda, a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.

Povos e comunidades tradicionais

A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais conceitua essas populações como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

Além de índios e quilombolas, podem ser assim considerados seringueiros, ribeirinhos, caiçaras, ciganos, beradeiros, quebradeiras de coco babaçu, geraizeiros, sertanejos, comunidades de fundos e fechos de pasto, entre outros, parte fundamental da diversidade sociocultural da sociedade brasileira. Há, pelo menos, 27 segmentos diferentes reconhecidos pelo Estado, conforme o Decreto nº 8.750/2016, que institui o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais. Clique para saber mais.

Oswaldo Souza e Roberto Almeida, do ISA, com informações da Agência Senado

Foto: Oswaldo Souza – ISA

ÓSocioBio apresenta recomendações a presidenciáveis sobre economia sustentável

Organizações socioambientalistas e movimentos sociais do campo, das florestas e das águas, reunidos no Observatório da Economia da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), em parceria com a Frente Parlamentar Ambientalista, apresentam, nesta quarta-feira (22), a partir das 9h, em audiência da Comissão de Meio Ambiente do Senado, documento com recomendações ao próximo governo eleito.

O objetivo do evento é fortalecer a economia da sociobiodiversidade e estabelecer o desenvolvimento sustentável como eixo do modelo de desenvolvimento brasileiro em alternativa aos modos de produção da monocultura nociva. A construção das recomendações ateve-se a diretrizes que prezam simultaneamente pela conservação dos ecossistemas, geração de renda, respeito aos modos de vida tradicionais, garantia de direitos territoriais e segurança alimentar das populações.

O ÓSócioBio pretende promover uma economia que se assenta no respeito à vida e na valorização do uso sustentável da biodiversidade, em particular aquelas praticadas por povos e comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas, extrativistas ribeirinhos e agricultores familiares. “A economia da sociobiodiversidade é um dos caminhos para encarar o recrudescimento dos cenários de mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a insegurança hídrica e alimentar, e o aumento das desigualdades sociais”, afirma o documento. [Leia a íntegra.]

As recomendações abordam a organização socioprodutiva e a gestão de empreendimentos; o fortalecimento da produção e beneficiamento; a comercialização e o acesso a mercados. O ÓSocioBio chama atenção para a importância da integração dos dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) no Sistema Nacional (SICAR), que não acontece atualmente e que ameaça territórios tradicionais. O coletivo ainda aponta a necessidade de assistência técnica e extensão rural às populações do campo, além do acesso a crédito diferenciado para povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Incentivos fiscais, capacitação e pesquisas na área da economia da sociobiodiversidade são reivindicados.

Políticas insuficientes e inadequadas

As organizações e movimentos sociais que compõem o observatório pedem políticas públicas que capacitem as lideranças locais, deem apoio às comunidades para concorrência em editais de fomento, desburocratizem impostos, garantam participação social e o pagamento por serviços ambientais.

“O que se viu no período recente foi exatamente o oposto. Não apenas cessaram as ações governamentais em prol do atendimento dessa demanda, como os conflitos territoriais se acentuaram demasiadamente. O desenvolvimento da economia da sociobiodiversidade depende crucialmente da garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares”, aponta o observatório.

Estudos sobre a economia da sociobiodiversidade mostram que o mercado de produtos sustentáveis nativos é mais rentável do que o das commodities. Analisando apenas o cultivo do açaí, por exemplo, sua rentabilidade é estimada em aproximadamente US$ 1,5 mil por cada hectare manejado. Em comparação, a soja tem valor mais de sete vezes menor: US$ 200 por hectare. De acordo com resultados da Produção da Extração Vegetal e da Silvicultura (PEVS) divulgados pelo IBGE, só em 2020 o açaí movimentou R$ 694 milhões; a erva-mate, R$ 559 milhões; a castanha-do-pará, R$ 98 milhões; e o pequi, R$ 45 milhões.

Não é novidade na ciência o potencial econômico do meio ambiente conservado. O aproveitamento racional e sustentável da Amazônia, do Cerrado e dos demais biomas brasileiros vale, em sua totalidade, centenas de bilhões de dólares. Os números ainda são subquantificados, já que as cadeias da sociobiodiversidade são, na maioria das vezes, informais e não entram na conta oficial. O investimento em pesquisa, nesse sentido, recomendado aos presidenciáveis pelo ÓSocioBio, é necessário para que o país tenha concretude sobre os valores da sua própria diversidade natural.

Sobre o ÓSocioBio

O Observatório da Economia da Sociobiodiversidade reúne ONGs ambientalistas, movimentos sociais do campo e populações indígenas e tradicionais no Brasil, como FIAN Brasil, ISA, ISPN, WWF-Brasil, Contag, CNS, Memorial Chico Mendes, Articulação Pacari e outras (veja lista completa na carta de criação). Lançada no último 1º de junho, a iniciativa ancora-se sobre um tripé que alia Economia, Pessoas e Biodiversidade. O objetivo é influenciar projetos no Congresso Nacional e no Poder Executivo para garantir a sustentabilidade no desenvolvimento econômico e social brasileiro, com valorização dos povos e comunidades tradicionais.

Com informações do Instituto Socioambiental (ISA)

Foto: Instituto Socioambiental (ISA)

Encontro sobre fome e crise alimentar discute ações políticas e políticas públicas no Brasil

Na última semana (6 e 10 de junho), a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA) realizaram o 5º Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (V ENPSSAN), com o tema “Muitas fomes e crises sistêmicas: contribuições desde a soberania e a segurança alimentar e nutricional”.

O encontro apresentou os resultados alarmantes do 2º Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), revelando que atualmente 33,1 milhões de brasileiras e brasileiros convivem com a fome; e 6 a cada 10 pessoas, ou 125,2 milhões de indivíduos, passam os dias com algum grau de insegurança alimentar. Assista neste link.

O assunto dialoga com uma das mesas temáticas do 5º Encontro, “Ações políticas e políticas públicas no Brasil: análises e prospecção de caminhos”, em que a secretária geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, explicou que o impacto no acesso à alimentação tem relação direta com as medidas de austeridade do governo atual e que, desde o golpe de 2016, o Brasil passa por um processo acelerado de desmonte das instituições de participação e controle social, cortes e enfraquecimento dos programas de proteção social e de segurança alimentar e nutricional e, como consequência, sente o aumento da pobreza e da pobreza extrema.

“O desmonte mostrou a fragilidade desses programas, então para avançar é preciso conciliar os programas que já conhecemos e defendemos com reformas populares importantes, como as reformas trabalhista, previdenciária, tributária, agrária”, disse a secretária geral.

Para Burity, a racionalidade neoliberal para além do mercado, a lógica da competição e da meritocracia, a negação das obrigações relacionadas à política de segurança alimentar e nutricional, o uso da violência e da criminalização para conter lutas sociais e as escolhas relacionadas à política econômica estão entre os fatores que desencadearam impactos contundentes e constantes nas violações ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana).

Para saber mais sobre o assunto, leia o Informe Dhana 2021 – pandemia, desigualdade e fome. A publicação detalha o esvaziamento orçamentário e institucional das políticas que permitiriam conter parcialmente o impacto da calamidade e pavimentar o caminho para uma recuperação com justiça social. Também mostra a relação desse quadro com as opções macroeconômicas dos últimos anos e com a ditadura da austeridade fiscal – marcada a ferro e fogo pelo Teto dos Gastos Sociais.

No diálogo, mediado por Tereza Campello (Cátedra Josué de Castro) e participação de Ladislau Dowbor (PUC-SP), Elisabetta Recine (Conferência Popular de SAN) e Cátia Grisa (UFRGS), Valéria Burity apresentou um panorama sobre as ações políticas e políticas públicas no Brasil desde a democratização até os dias atuais e discutiu prospecções, dilemas, enfrentamentos e desafios da agenda, como novas possibilidades de organização e mobilização social, reforma tributária progressiva e uma economia que concilie crescimento com redução de desigualdades de raça, etnia, classe e gênero.

Burity explicou que é necessário retomar e aperfeiçoar programas de fomento e proteção à agricultura familiar, agroecologia e proteção ambiental, pensar políticas de abastecimento alimentar, retomar programas que garantam a produção e o consumo saudável de alimentos, ampliar os recursos financeiros destinados às crianças e jovens assistidos pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar.

Para ela, também é importante seguir fortalecendo estratégias de combate à fome, obesidade e doenças crônicas não transmissíveis; e promover o acesso à terra, visto que há um quadro de profundas desigualdades na estrutura fundiária brasileira. “A defesa do território e a proteção dos povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais é fundamental. Há uma violência histórica dirigida a esses povos, que tem sido agravada pelas falas perversas do presidente da República. É fundamental resgatar a dívida com essas populações”, explicou.

Burity falou sobre a importância de retomar os componentes nacionais do sistema nacional de segurança alimentar e nutricional (Sisan), que foi proposto pela sociedade civil garantindo um mecanismo de articulação, participação e construção de pactos federativos muito importantes.

“É necessário ter a força social como base e construir um projeto de soberania e segurança alimentar e nutricional, de garantia do direito à alimentação, a partir dessa força. Governabilidade não pode ser sinônimo de governabilidade parlamentar apenas. A luta pela soberania e segurança alimentar pelos povos e pela natureza deve estar no centro dos sistemas alimentares”. Acrescentou, por fim, que qualquer projeto que queira reverter o acentuado quadro de desigualdade e concentração de renda deve ser anticolonial, antirracista e feminista.

FIAN Brasil

Fortalecimento da participação social na construção de políticas para a alimentação é tema de seminário internacional

Compartilhar vivências, saberes e gerar reflexões coletivas que indiquem respostas à crise alimentar para avançar nos caminhos que conduzem a garantia do direito à alimentação e à soberania alimentar.

Este foi o eixo temático do “Seminario Internacional: La Soberanía Alimentaria y el Derecho a la Alimentación, alternativas a la crisis alimentaria”, realizado em Bogotá, nos dias 7 e 8 de junho, por iniciativa da FIAN Colômbia, FIAN Internacional e Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Nacional da Colômbia.

A experiência da sociedade civil brasileira na promoção do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana), por meio da formulação e consolidação do sistema, da política e do plano de segurança alimentar e nutricional, foi apresentada pela secretária geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, ao falar sobre participação social na construção de políticas públicas com enfoque na alimentação, fio condutor do último painel do seminário internacional.

Burity explicou que as pautas sobre segurança alimentar e combate à fome ganharam centralidade política entre 2003 e 2018, e o protagonismo da sociedade civil foi essencial para as conquistas alcançadas. “A trajetória muito antiga da sociedade civil passou a ser um fundamento importante e decisivo dessa construção, uma energia social muito forte se conectou com este momento”.

A secretária geral destacou o processo de formulação e implementação do sistema nacional de segurança alimentar e nutricional (Sisan). Falou sobre os marcos legais, instrumentos e mecanismos de participação social, como os conselhos e as conferências populares que pautaram a agenda do Sisan junto ao Estado brasileiro.

Burity mencionou os limites e desafios vivenciados pela sociedade civil na conjuntura política da época; e apresentou resultados alcançados ao longo de 10 anos de concertação social, como diminuição das desigualdades sociais e da pobreza extrema e aumento do poder de compra da população. “Em 2014 o Brasil saiu do Mapa da Fome e ficou conhecido mundialmente como referência por vários de seus programas e por resultados muito concretos, como por exemplo, a redução muito significativa da mortalidade infantil”.

No entanto, a secretaria geral alertou que a realidade do Brasil atual é muito diferente. “O país está diante de um governo autoritário e austero, que promove restrições à atuação da sociedade civil desde 2016, quando houve o golpe, seguido do desmonte das instâncias de participação social e do evidente enfraquecimento de políticas públicas essenciais para garantir a alimentação e outros direitos fundamentais”, esclareceu.

Enquanto o seminário internacional acontecia, o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN) revelava que 33,1 milhões de pessoas convivem com a fome no Brasil, situação que só se agrava, já que no fim de 2020 o número alarmante de 19,1 milhões de brasileiras e brasileiros já não tinham o que comer.

Para saber mais, a FIAN Colômbia disponibilizou a íntegra do seminário internacional. Assista em:

Dia 1, veiculado em 07/06: https://youtu.be/jBwNuM_W46k

Dia 2, veiculado em 08/06: https://youtu.be/XAFzzmACFdk

Fian Brasil

Alimentação escolar: 22 entidades assinam carta contendo propostas às candidatas e candidatos

Mais de 40 milhões de alunas e alunos da educação básica pública, em todos os municípios do país, têm acesso a pelo menos um prato de refeição por dia, que deve seguir as diretrizes de uma alimentação adequada e saudável. Para muitos desses estudantes a refeição feita na escola é a única ou a mais importante do dia.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é a principal política pública para a garantia dessas refeições, especialmente para crianças e adolescentes. Porém, além do expressivo aumento da fome no Brasil e da gravidade da situação alimentar das famílias, o valor do repasse de recursos para a alimentação escolar é insuficiente e não garante a proteção do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana).

Atualmente, 33 milhões de pessoas passam fome no país, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado nesta quarta-feira (8) pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Os dados mostram que a insegurança alimentar grave em domicílios com crianças menores de 10 anos subiu de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022; e a fome está presente em 22,3% dos domicílios que tiveram acesso ao Pnae.

Diante desse contexto, o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) apresenta nesta quinta-feira (9) carta destinada a eleitoras/es e candidatas/os nos âmbitos federal e estadual, contendo propostas que podem ser implantadas para garantir o direito de toda e todo estudante a se alimentar adequadamente.

A assessora de políticas públicas da FIAN Brasil e coordenadora do ÓAÊ, Mariana Santarelli, explica que a carta foi elaborada com a participação de representantes das organizações e movimentos que compõem o comitê consultivo do observatório. Tem como base “posições que vem sendo amadurecidas a partir do acompanhamento e monitoramento da implementação do Pnae, de estudos realizados pelo ÓAÊ em 2021 que buscaram escutar a opinião de estudantes e agricultores que fornecem alimentos ao Pnae e de estudos técnicos”.

Santarelli comenta parceria com a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), a partir da qual foi desenvolvida a proposta de ampliar o valor per capita destinado ao Pnae para recompor as expressivas perdas inflacionárias acumuladas entre 2010 e 2021, ajustando-o às necessidades das/dos estudantes para a oferta universal de alimentação de qualidade, em que reivindica reajuste de R$ 3,9 bi para R$ 7,8 bi.

A carta também traz como propostas: a compra de mais alimentos provenientes da agricultura familiar, priorizando a produção dos assentados da reforma agrária, povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, buscando, por exemplo, superar o mínimo de 30% estabelecido em lei das metas estaduais de aquisição de produtos da agricultura familiar, além de assegurar a inclusão de grupos informais e pequenas associações nos processos de compra;

A restrição da oferta de produtos alimentícios ultraprocessados e a ampliação da oferta de alimentos saudáveis, pautados na cultura alimentar do território, na sazonalidade e diversificação, preferencialmente adquiridos da agricultura familiar local e produzidos de forma agroecológica;

E o fortalecimento da gestão pública e da participação social, fundamentais para o cumprimento das diretrizes do Pnae, em detrimento à terceirização de serviços fundamentais como a compra e o preparo dos alimentos, além da importância de reconhecer a participação popular na formulação e controle social desta política.

“Esperamos que nossos futuros governantes, presidente, governadores e legisladores, se sensibilizem com o aumento da fome, e percebam que a melhor estratégia que podem adotar para enfrentá-la é investir recursos e esforços pela melhoria da alimentação escolar, que chega a boa parte das crianças e adolescentes do país por meio das escolas públicas”, finaliza Santarelli.

Jornal Folha de S.Paulo repercute a Carta do ÓAÊ. Leia a matéria: Governo federal ignora inflação e repassa menos de R$ 1 para alimentação de aluno

Mobilização

A secretaria executiva do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) é coordenada pela FIAN Brasil junto com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). Conta com um comitê consultivo, formado pela ActionAid, Aliança por uma Alimentação Adequada e Saudável, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Comissão de Presidentes de Conseas Estaduais (CPCE), Federação Nacional dos Estudantes do Ensino Técnico (Fenet), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), Rede de Mulheres Negras para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME).

Além dessas 14 organizações, a carta é assinada pela ACT Promoção da Saúde, Associação Brasileira de Nutrição (Asbran), Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e União Nacional das Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes).

Leia a carta na íntegra aqui.

FIAN Brasil, com o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)

ÓSocioBio intensifica incidência política no Congresso em projetos sobre sociobiodiversidade

Devido à urgência em pensar a conservação ambiental conectada ao desenvolvimento da bioeconomia, a FIAN Brasil e um grupo de parceiros que reúne organizações ambientalistas, movimentos sociais do campo e populações indígenas e tradicionais no Brasil, formalizaram nesta quarta-feira (1º), na Câmara dos Deputados, em Brasília, a criação do Observatório da Economia da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio).

Tendo na condução o Instituto Socioambiental (ISA); o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN); e o WWF-Brasil, o lançamento aconteceu em parceria com a Frente Parlamentar Ambientalista, com participação de parlamentares, gestores públicos, organizações da sociedade civil, pesquisadores e jornalistas especializados.

O desenho da iniciativa teve início há cerca de seis meses, quando organizações que atuam diretamente na incidência política no Congresso Nacional, em defesa dos direitos de agricultoras/es familiares, de povos indígenas e de povos e comunidades tradicionais, identificaram a necessidade de intensificação da incidência, diante do desvirtuamento da temática em muitas matérias legislativas relacionadas à economia da sociobiodiversidade, gerando confusão sobre o tema no Parlamento e na sociedade.

O Observatório coloca-se neste contexto como um conjunto de atores relevantes e qualificados para enriquecer a discussão sobre desenvolvimento econômico com igualdade social e equilíbrio ambiental ancorado no respeito aos direitos territoriais dos povos. As questões relacionadas à garantia de direitos territoriais e de acesso a conhecimentos tradicionais, possuem uma transversalidade bastante relevante na abordagem do Observatório. Em ano eleitoral, o coletivo busca ser referência no tema às candidaturas presidenciais e regionais, além de fonte às legislaturas e executivos estaduais eleitos.

Assista cerimônia de lançamento.

Leia carta sobre a criação do Observatório.

Com informações do ISA, ISPN e WWF-Brasil

Entidades pedem audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre agrotóxicos no Brasil

Um grupo de organizações, entre elas a FIAN Brasil, pede que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh) faça uma audiência temática sobre os agrotóxicos no Brasil e as violações de direitos associadas ao uso dessas substâncias.

Requerimento nesse sentido foi apresentado pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida com a FIAN, a Via Campesina Brasil, a Terra de Direitos, a Rede Irerê de Proteção à Ciência, a Fase – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional e o MAM. O pedido dirige-se ao 184º Período de Sessões, marcado para 13 a 24 de junho. 

As organizações alertam que a aplicação de agrotóxicos, assim como a liberação desses produtos no Brasil, nunca foi tão volumosa e acelerada. Também chamam atenção para a expansão dos conflitos agrários e socioambientais, decorrentes, inclusive, do uso desses venenos como arma química contra comunidades rurais.

Pela proposta, a audiência partiria da documentação de casos concretos para apresentar evidências de abusos perpetrados por entidades privadas e violações cometidas pelo Estado brasileiro em matéria de soberania alimentar, direito a uma alimentação adequada, à água, a um ambiente equilibrado e à saúde, entre outros, em prejuízo, particularmente, de povos originários, comunidades tradicionais e agricultores/as familiares.

As organizações também pretendem apresentar recomendações à Cidh e a diferentes instâncias do Estado brasileiro para o enfrentamento do problema.

FIAN internacional repercute documento sobre o uso de agrotóxicos na América Latina

O Relatório anual internacional da FIAN 2021, lançado no último dia 12, dedica seção à defesa dos sistemas alimentares sem o uso de agrotóxicos, em que destaca o informe regional Agrotóxicos na América Latina: violações contra o direito à alimentação e à nutrição adequadas, publicado em 2021 pelo Brasil e mais sete países (Colômbia, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México e Paraguai), além da FIAN Internacional.

O informe regional aponta como os agrotóxicos impactam a saúde humana e o meio ambiente, e com isso impedem a realização plena do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) nesses países latino-americanos e caribenhos onde estão presentes coordenações e grupos da FIAN. 

A secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, explica que o trabalho é fruto do esforço coletivo desses países e se tornou um importante instrumento de advocacy e denúncia. “Considerando a dificuldade de acesso às informações nas plataformas oficiais e coleta de dados dos diversos países, a atuação das coordenações da FIAN na América Latina foi fundamental. Elas disponibilizaram as informações tanto por meio de seus próprios bancos de dados quanto pela literatura especializada”, diz.

Além de enfatizar as causas e consequências das violações de direitos humanos que resultam do uso indiscriminado de agrotóxicos na região, o documento fornece recomendações sobre o que ainda precisa ser feito, como as ações de resistência aos agrotóxicos e ao modelo que os sustenta, ou a necessidade de que os países latino-americanos deixem de fornecer condições econômicas ou regulatórias favoráveis às empresas multinacionais de pesticidas.

O Relatório anual internacional registra que além de fornecer apoio técnico e coordenar a elaboração do informe regional, o Brasil subsidiou denúncia formal ao relator especial das Nações Unidas para substâncias tóxicas e direitos humanos sobre os efeitos nocivos dos agrotóxicos na América Latina, como o caso brasileiro em que a pulverização aérea foi usada como arma contra comunidades camponesas da Zona da Mata Sul de Pernambuco.

O Relatório anual internacional da FIAN 2021 está disponível neste link:

https://www.fian.org/files/annual-report-final-2021-finalpdf.pdf

O informe regional Agrotóxicos na América Latina: violações contra o direito à alimentação e à nutrição adequadas pode ser acessado neste endereço eletrônico:

https://fianbrasil.org.br/wp-content/uploads/2021/04/Agrotoxicos-na-America-Latina-Portugues.pdf

FIAN Brasil, com informações da FIAN Internacional

Parceria com a DPU buscará fortalecer a exigibilidade e a realização do Dhana

A FIAN Brasil e a Defensoria Pública da União (DPU) assinaram em março acordo de cooperação técnica para promover os direitos de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional no Brasil. 

A parceria permite maior articulação para projetos de lei relacionados ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) que tramitem no Congresso Nacional, prevê a realização de audiências públicas, oficinas e cursos para defensoras e defensores públicos, além de reuniões com a sociedade civil sobre o tema. 

A secretária-geral da FIAN Brasil, Valéria Burity, explica que a atuação conjunta potencializa ações que podem contribuir para a exigibilidade e a realização do Dhana e reconhece a importância do acordo. “Sabemos do trabalho sério que a DPU desenvolve e para nós é uma alegria trabalharmos juntos, especialmente no momento em que estamos vivendo”, diz.

A exigibilidade costuma ser definida como o exercício do direito a exigir a realização de um direito. Para isso, cada governo tem a obrigação de criar e disponibilizar mecanismos para que os indivíduos possam se manifestar nesse sentido.

Segundo Burity, a parceria permite amplificar a incidência sobre situações que causam insegurança alimentar leve, moderada ou grave, influenciadas por fatores como falta de emprego, pobreza, preços elevados ou a própria condição de vida das pessoas. 

A secretária-geral destaca que “o Brasil é um dos países que mais concentra riqueza. Quando falamos em insegurança alimentar, também estamos falando de quem tem pelo menos medo de passar fome. E esse medo é provocado por condições concretas de sobrevivência, como emprego informal e situação de despejo. Além do amplo acesso a alimentos ultraprocessados”.

Para o defensor público-geral federal da DPU, Daniel Macedo, o acordo é relevante visto que “a insegurança alimentar é uma situação de risco que alcança mais de 116 milhões de pessoas no Brasil. Desse total, aproximadamente 19 milhões de pessoas estão passando fome”.

Além de Valéria Burity e Daniel Macedo, participaram da cerimônia de assinatura o secretário-geral de articulação institucional da DPU, Gabriel Saad; e o membro do Grupo de Trabalho à Garantia à Segurança Alimentar e Nutricional da DPU, Ricardo Russel Brandão.

Para saber mais, acesse a matéria e o vídeo produzidos pela DPU.

FIAN Brasil, com informações da Ascom DPU

Audiência com ministro Toffoli trata de ação no STF contra a fome

A FIAN Brasil participou de audiência no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 885, que trata do combate à fome e à insegurança alimentar em geral.

A reunião, na terça-feira (26), foi com o ministro Dias Toffoli, relator da ação.

Representaram a FIAN a diretora de Articulação, Míriam Balestro, e o assessor de Direitos Humanos Adelar Cupsinski. Participaram, ainda, Sílvia Souza, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autora da ação; Rodrigo Azambuja, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro; Paulo Freire, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); Leonardo Ribas, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN); e Daniel Souza, da Ação da Cidadania.

“Expus que, dentre todos os direitos integrantes do Sistema Internacional dos Direitos Humanos, estar livre da fome era o único gravado literalmente como fundamental, dada a urgência que a fome impõe”, relata Balestro, integrante da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) e promotora de Justiça aposentada. Ela acrescenta que o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc, de 1966, ao qual o Brasil aderiu) traz obrigações aos três poderes de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) em relação ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). “Quando o Poder Judiciário atua na ausência ou na ineficiência da política pública, está cumprindo o seu dever de garantia do Dhana. Não há que se falar em violação da tripartição dos poderes nessas circunstâncias.”

Para a diretora, sem a alimentação adequada não se pode falar na realização dos demais direitos. “No caso da fome há uma clara violação do pacto internacional por parte do Estado brasileiro”, afirma.

Segundo a representante da FIAN, foi argumentado ainda que o desmonte das políticas públicas de segurança alimentar representa um retrocesso de um direito social, o que é vedado pelo Sistema Internacional dos Direitos Humanos, que somente se admite a situação depois de o Estado demonstrar que envidou todos os esforços para evitar tais casos, pedindo, se necessário, cooperação internacional.

“Ao final foi feito um apelo ao ministro para que lhe viessem à mente os milhares de homens, mulheres, crianças, indígenas, população das vilas, as pessoas nas frentes dos mercados e nas ruas que estão a clamar por alimentos. Que levasse em consideração a sensibilidade e a empatia, dentro da melhor técnica jurídica.”

Orçamento inviabilizando direitos

“O ministro mostrou sensibilidade com a questão da fome, além de demonstrar conhecer o problema”, avalia Adelar Cupsinski. “Disse que a sociedade deveria se mobilizar mais sobre o tema e, embora as políticas públicas sejam de responsabilidade do Executivo, o STF não pode deixar de apreciar a demanda considerando a gravidade do tema.”

O assessor aponta a responsabilidade das restrições orçamentárias relativas às políticas públicas no governo Temer e os retrocessos nas políticas do governo Bolsonaro pelo quadro de vulnerabilidade social e a volta da fome no Brasil.

“Os direitos à terra e ao território destinados aos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares estão assegurados na Constituição Federal de 1988”, lembra. “Nas últimas três décadas, os governos democráticos inseriram na agenda a implementação da reforma agrária e a demarcação de terras para esses grupos. Concomitantemente, uma malha de outras políticas públicas foi implementada, no campo e na cidade, visando distribuir renda e combater a fome.” Ele conclui que esse contexto beneficiou milhões de brasileiros, resultando em melhorias na qualidade de vida e a superação da fome em 2014.

“Para mim, que fui uma criança em situação de rua, com um pai preso pela ditadura, vítima da insegurança alimentar e hoje advogado, foi a realização de um sonho defender este direito na Suprema Corte do país”, conta o integrante do FBSSAN Leonardo Ribas. “O ministro Toffoli afirmou que levará a questão para o plenário. Ou seja, vai refutar o pedido de arquivamento feito pelo Aras [procurador-geral da República] e irá colocar para os demais ministros do STF a questão. Estou muito esperançoso e creio que dará tudo certo.”

Sobre a ação

Protocolada em 10 de dezembro de 2021, a ADPF 885 destaca que o enfraquecimento dos mecanismos de monitoramento da fome no país se soma ao desmonte da política de segurança alimentar.

O documento, produzido pela OAB a partir de provocação da Ação da Cidadania, sublinha o agravamento das condições econômicas, sociais e sanitárias enfrentadas ao menos desde 2014, pontuando que a explosão do número de casos e mortes pela Covid-19 chegou a colocar o país no epicentro da pandemia mundial. Ao examinar as estatísticas, constata a cor e o rosto da fome no Brasil, com os índices mais agudos nos domicílios chefiados por mulheres pretas ou pardas e de baixa escolaridade, bem como a concentração no Norte e no Nordeste.

Como contribuições da atual gestão federal para o cenário de miséria, a OAB destaca a má condução do Programa Bolsa Família e o corte severo em programas como o de cisternas para convivência com a seca.

Entre outras medidas, a OAB pede que o STF determine a retomada e a ampliação do auxílio emergencial no valor de R$ 600; o retorno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); destinação de R$ 1 bilhão para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); e recomposição dos estoques públicos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), com ações de controle de preços para evitar a inflação descompensada.

Leia mais.

Entrevistas: o Pnae, o Brasil e o mundo

Leia aqui conversas que partem da alimentação escolar para os grandes desafios relacionados a soberania e segurança alimentar e nutricional – e à defesa da democracia.

Elas também podem ser conferidas (algumas, em versão resumida) no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.

Entrevista | TEREZA CAMPELLO: “O desmonte das políticas é difícil de medir, mas parte da resistência virá das pessoas que elas envolveram”

Publicada, em versão resumida, no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

Para a economista Tereza Campello, a perda com a quebra nos circuitos curtos (locais ou microrregionais) de fornecimento e com a interrupção de diálogos setoriais e federativos em políticas como o Pnae é intangível, ou seja, não dá sequer para estimar. No entanto, ela usa o mesmo adjetivo para descrever a transformação das pessoas envolvidas pela construção conjunta – e diz que o enraizamento dessas experiências pode vir do agricultor, da merendeira, da diretora escolar que participaram de tais processos. 

Campello afirma que a integração exige caminhos mais longos, mas traz resultados melhores e mais duradouros. Como ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Dilma, ela esteve à frente do Plano Brasil Sem Miséria, que reuniu programas voltados a famílias com renda per capita de até R$ 70, de documentação a cozinhas comunitárias e bancos de alimentos.

Ela aponta a alimentação escolar com prioridade para a agricultura familiar como exemplo perfeito da transversalidade, com potencial para contribuir no enfrentamento tanto da escalada da insegurança alimentar e da obesidade quanto das mudanças climáticas.

Escolhida a professora titular da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Universidade de São Paulo (USP) em seu ano de lançamento, Campello cita a volta ao Mapa da Fome e as pessoas em postos de saúde por falta de comida como um retorno à realidade decifrada e denunciada pelo brasileiro, três vezes indicado ao Prêmio Nobel.

FIAN: Nas últimas décadas, as políticas de combate à fome e à miséria foram sendo integradas a outras políticas de desenvolvimento social, não é? Um exemplo está no Brasil Sem Miséria. Eu queria que a senhora explicasse como essas políticas interagem, dependem umas das outras, e como está essa engrenagem hoje.

Tereza Campello: Esse debate da integração é interessante porque virou uma onda, não só no Brasil, mas em tudo quanto é lugar, essa discussão de como integrar políticas públicas, políticas públicas integradas. Então isso tem um apelo enorme e a palavra é uma palavra muito positiva. Parece óbvio, “Vamos integrar políticas”. É óbvio mesmo porque na verdade o ser humano é integrado, quem é encaixotado ou quem é fragmentado é o Estado, não é? O cidadão tem necessidades múltiplas e é um ser uno. O Estado que diz “Tem aqui a caixinha da Saúde, a caixinha da Educação”, e separa as caixinhas por questões de funcionalidade, e muitas vezes faz isso de forma equivocada.

É praticamente natural você falar “Tem que integrar política”, só que fazer isso é um desafio gigantesco, eu diria que está na fronteira do conhecimento e das políticas públicas no mundo, e o Brasil de fato se diferenciou conseguindo avançar bastante nesse sentido. Então muito dos nossos programas que são conhecidos tem sucesso tem na essência da sua eficiência exatamente ter avançado no sentido da integração de política pública.

Agora, a integração não se faz nem por lei, nem por decreto, nem por comando, nem por ordem, não tem como fazer isso se não for uma determinação, um processo de construção coletiva e que aconteça por anos e anos a fio. Você decide integrar hoje e a integração só vai se fazer efetiva daqui a dez, 15 ou 20 anos, então é um processo, não é uma decisão política. Logicamente necessita dessa decisão, mas ele tem um processo continuado, ele tem de certa forma por traz dele tem dois grandes princípios, um é esse que o cidadão é integral, é a grande sacada, as políticas tem que se organizar para chegar nesse cidadão e quem é pobre de renda provavelmente é pobre de renda, é pobre de água, é pobre de saneamento, é pobre de educação, é pobre de saúde. Então você tem que garantir as proteções múltiplas, no caso da pobreza isso é mais evidente, mas em todos os outros casos deveria ser assim também, mesmo das políticas que não são de combate à pobreza e a fome, mas nessas muito mais porque o ser humano é muito mais vulnerável.

Mas o segundo grande princípio que eu acho que é uma questão estratégica para a gente poder continuar a conversa é o seguinte, diferentes olhares na mesa constroem políticas melhores, não é? Mas isso não é fácil, você falar “Vamos integrar e coisa e tal”, vai sentar todo mundo na mesa e vai ser superbacana? Não vai, vai ser superdifícil. Você senta na mesa, quem é da área de saúde tem um conjunto de metas, o povo acha que o difícil é porque tem as corporações, a coisa coorporativa e não é, as pessoas têm formações diferentes, têm metas a cumprir diferenciadas como servidores públicos inclusive serão cobradas pelas suas metas e não pelas metas dos outros. Então tem todo um processo de aprendizagem também do que é esse outro olhar, então o caminho é mais demorado, mais difícil você ofertar o Pnae por exemplo, é muito mais difícil você organizar a escola, a escola ir atrás do agricultor familiar, olhar o seu relatório, tentar pensar quais são os alimentos adequados, isso é muito mais difícil do que fazer uma licitação e comprar um monte de merenda e distribuir aquela merenda já industrializada, já pronta, é fácil, não precisa de merendeira, não precisa de cozinha, não precisa ir atrás do agricultor. Então seria muito mais rápido e fácil, mas muito menos efetivo nos resultados. O caminho para que você construa isso é um caminho longo, portanto ele tem que ser cuidado, ele tem que ser adubado permanentemente, ele tem que ser lembrado permanentemente, ele tem que ser valorizado permanentemente. Essa é uma política muito mais efetiva, com resultados muito mais estruturais e de longo prazo, mas difícil. Não adianta que achar que com grito, com decreto, com constituições, é um processo permanente e tem que acontecer em todos os níveis, tem que ser lembrado e valorizado, portanto é um processo muito complexo.

Então o Pnae, vou pegar o Pnae, é um exemplo talvez o melhor de todos, porque você chegar na criança talvez seja a forma mais eficiente de transformar alimentação e esse é o público mais vulnerável. Então você está chegando no público mais vulnerável que é a criança, chegando no público que mais teria capacidade de transformar a família e o cidadão, a gente tem vários exemplos de que capturar essa criança para uma boa ideia, ela acaba sendo um vetor de transformação da família, com a história do cinto de segurança, a história do tabagismo, a questão de como separar lixo, todas elas quando você conquista a criança você consegue efeitos muito duradouros na sociedade. Então a criança, se você ganha para essa ideia da comida de verdade é um feito, você não faz isso com aula, a melhor forma de fazer isso é ela comendo a coisa certa no ambiente certo, que é o ambiente escolar.

A educação e a escola é regulada pelo Estado, é diferente de outros ambientes, esse ambiente é um ambiente de concessão pública, mesmo quando a escola é privada ela é uma concessão pública. O Estado tem uma capacidade de intervir no ambiente escolar como em poucos outros lugares. Ele tem condições de intervir, de regular. Segundo, a criança passa a maior parte do dia dela na escola. Mesmo que esteja só um turno, ela está na escola quatro horas por dia, então, se naquele momento você conseguir proteger essa criança garantindo que ela tenha uma alimentação adequada, você está chegando no público mais estratégico, no momento mais estratégico da vida, onde você garante que os efeitos dessa aprendizagem sejam duradouros. Essa criança vai carregar isso por toda vida tendo comido direito. Essa lembrança, essa memória, esse aprendizado vai se estender e você, quando você fala “Bom, vamos garantir comida de verdade para essa criança em um ambiente que eu tenho regulação, em um ambiente onde essa criança passa um período enorme do tempo, onde garantindo alimentação eu garanto inclusive educação melhor” – porque as crianças chegavam na escola um tempo atrás e não conseguiam, o que voltou a acontecer, a menina desmaiar em sala de aula…

A criança chega muitas vezes – imaginando uma família que está passando fome  –, ela come na escola, digamos que ela almoce na escola e vá para casa, talvez seja a última refeição dela no dia, ela só vai comer de novo quando ela voltar na escola no outro dia, ou seja, essa criança chega na escola completamente desassistida do ponto de vista do direito dela a alimentação. Se ela comer de novo quando ela chegar na escola, é a única forma dela poder aprender alguma coisa, senão ela não vai conseguir nem chegar na escola e cumprir o direito dela, o segundo direito dela, que é o direito à educação. Então quando você se dá conta de que garantir comida de verdade em um ambiente escolar é talvez a ação mais fácil para o Estado executar, ele tem o poder de regulação enorme, talvez seja o mais eficiente porque ele chega em um público mais vulnerável que é a criança, e a criança pobre, e ele com isso garante um conjunto de outros direitos, não é? Inclusive o próprio direito à educação.

Então essa integração da educação com alimentação, e que acaba sendo com saúde e nutrição, é um casamento excelente, excepcional, mas não é fácil, não é fácil. Como eu disse, é muito mais fácil você fazer uma licitação e comprar, para ter comida de verdade na escola tem um conjunto de coisas que tem que acontecer, a escola tem que ter dinheiro, a escola tem que ter uma merendeira, a escola tem que ter comprado comida não pronta, então tem que ter comprado comida de verdade e não comida industrializada ou não comida ultraprocessada, ela tem que ter uma cozinha, ela tem que ter uma orientação nutricional, então você tem um conjunto de pré-requisitos para que isso aconteça, para que essa ideia linda chegue na mesa da criança, seja na hora do lanche dela, ela ter uma fruta por exemplo, a fruta tem que ter sido comprada, tem que ter sido lavada, higienizada, então tem todo um processo que acontece antes.

FIAN: O atual governo tinha aquele programa de governo que era um arremendo de Power Point e fazia parte, não deixava de ser estratégico esse nível baixo de proposição e a história do discurso de “menos Brasília e mais Brasil”. No fim das contas, em relação ao enfrentamento da pandemia deixou os estados e municípios à própria sorte e muitas vezes sabotando aquilo que as soluções mais coletivas.

Campello: No território mesmo, não é?

FIAN: No território. O governo federal se esforçou pouquíssimo para resolver, você não teve um programa por exemplo de equipar as cozinhas das escolas ou depois da pandemia, esforço nenhum de viabilizar. O Congresso chegou a algumas soluções, a sociedade civil, de garantir uma logística melhor nesse momento de calamidade, de exceção. No fim das contas, por exemplo, houve muito pouco apoio à agricultura familiar. Há coisa de uma ou duas semanas o governo celebrou essa coisa do aumento do valor permitido para a venda ao Pnae individual ou por cooperativas, só que não aumentou o orçamento do programa, no fim das contas é o mesmo dinheiro, ou menos, e vai ser repartido por menos produtores.

Campello: Deixa eu só retomar uma coisa para eu explicar e chegar nesse ponto da pandemia. Por que são anos? O Pnae, que existe desde a década de 50, ele na verdade ganhou essa dimensão de comprar da agricultura familiar só em 2009. Quando você olha o processo de construção, o que é o Pnae com essa vertente da agricultura familiar? Trinta por cento dos recursos federais destinados à compra ao Pnae têm que ser compras locais, de preferência da agricultura familiar, de preferência produtos frescos ou pouco processados, minimamente processados etc., seguindo aí o Guia alimentar da população brasileira e toda uma valorização. Agora não basta você fazer essa lei ou esse decreto, por quê? Porque a escola não está preparada para fazer isso, então você tinha uma parte da escola do Brasil que tinha cozinha, mas não compravam na agricultura familiar, você tem que ter todo um processo de construção e de montagem dos circuitos, os circuitos curtos, não é? Identificar o agricultor – no primeiro momento inclusive a própria escola entendia que aquilo era uma sobrecarga, quer dizer: a minha tarefa é educar, a minha tarefa não é comprar da agricultura familiar, isso vai me gerar um outro trabalho, vai me gerar uma outra dificuldade, vai me desviar da minha função.

Então tem toda uma questão que exigia uma transformação no conteúdo do trabalho cotidiano da escola, e isso demora um tempo para ser feito. Então identificar a rede de agricultores que poderia fazer esse fornecimento de forma regular, eu não posso comprar de um agricultor hoje e mês que vem não ter o mesmo produto, eu coloco em risco a alimentação da criança. Então eu tenho que ter para garantir a merenda funcionando, a alimentação escolar regular, eu tenho que ter regularidade de fornecimento, então eu tenho que ter tomate, tem todo um planejamento que é muito mais difícil você comprar da agricultura familiar do que você comprar de uma megarrede de fornecedor. A vantagem de comprar da agricultura familiar é que você tem muitas vantagens, a chance de esse produto chegar fresco na cozinha da sua escola é muito maior, você reduz emissões de carbono, você reduz desperdícios no transporte, isso tudo não é ganho para a escola, é ganho para a sociedade, a escola está fazendo isso, ela está gerando benefícios que não têm nada a ver com a alimentação escolar, reduzir a emissão de carbono, não tem nada a ver com alimentação escolar, reduzir desperdício não tem nada a ver com alimentação escolar, no entanto o programa como um todo está integrando esse conjunto de efeitos colaterais positivos. Mas ela tem que escolher esses agricultores, criar regularidade, o agricultor se comprometer, ter contratos que deem essa regularidade.

É um conjunto de mecanismos que só o tempo permite que sejam processados, as pessoas não conseguem entender isso, a dificuldade. Imagina isso em um pequeno município, tem toda uma dificuldade da regularidade, mas tem mais a facilidade territorial, agora imagina isso em uma cidade média, uma escola ter que ir atrás do agricultor familiar, se é orgânico ou se não é. Então tem toda uma complexidade nessa construção que só o tempo permite que seja operada, e só insistência, fiscalização, ir atrás, exigir. Então essa montagem de circuitos foi muito demorada e é um montagem também cultural, a merendeira se dar conta de que ela comprar… É diferente você fazer uma comida em casa de você fazer uma comida para 300 crianças, você tem que comprar peixe, eu não tenho refrigerador para guardar esse peixe de forme adequada, tem toda uma modificação que foi feita ao longo desses dez anos de Pnae, de 2009 até agora em 2020 na pandemia, que permitiu uma evolução muitas vezes marginal, pequena. Eu comecei a fazer peixe quando eu adquiri o refrigerador, eu demorei cinco anos para comprar um refrigerador, então tudo isso veio se transformando para dar conta não só da comida de verdade, mas de respeitar a cultura, por exemplo, a criança e o jovem comer na escola no Norte açaí, castanha-do-Brasil, peixe. Do mesmo jeito que no Rio Grande do Sul poder comer morango na época do morango, então tudo isso começou a acontecer, comer coisas da temporada, aprender a comer coisa que ela nunca teria comido e continuar comendo coisas que ela sempre comeu em casa, então respeitando essa questão cultural.

Quando veio a pandemia o governo federal deixou ao deus-dará, não cumpriu o seu papel de coordenador, de orquestrar essas milhares e milhares de escolas no Brasil, 5.570 municípios com milhares de escolas. Quem tinha que ter orquestrado isso? O governo federal, não dando ordem, “tem que ser assim ou tem que ser assado”, mas chamando os municípios para tentar entender essas diferentes realidades. Porque tem muita gente que dizia assim, logo que começou dizia assim, “Tem que obrigar a comprar da agricultura familiar e distribuir na escola”. Tem lugar onde não é a melhor opção, tem lugar, por exemplo, pegar as escolas ali no Plano Piloto de Brasília, as mães moram na periferia, a criança vai para a escola junto com a mãe quando a mãe ia trabalhar, então a escola da não é na cidade em que ela mora. A escola é no Plano Piloto e ela mora em Taguatinga, ela mora no Cruzeiro, e vinha com a mãe quando a mãe ia trabalhar. A mãe não estava mais indo trabalhar, obrigar a mãe a ir na escola buscar a comida significaria colocar a mãe no auge da pandemia em um transporte público provavelmente para se infectar. Então talvez em Brasília ou em outra cidade não fosse o adequado, ou numa das escolas em Brasília não fosse adequado, então o governo federal não pode sair obrigando a fazer isso ou fazer aquilo sem ouvir as realidades.

Em Melgaço [no Arquipélago do Marajó, Pará] como é? Aqui em Heliópolis [maior favela de São Paulo], como é? Então, assim, pensar essas diferenças alternativas para não interromper totalmente os circuitos, mas ao mesmo tempo respeitar o direito da criança e respeitar a realidade da família. Não era uma equação simples, eu tenho que tentar proteger essa família para que ela se movimente o mínimo possível para não ser contaminada, eu tenho que ouvir essa escola porque tem escola e eu tenho que evitar perder os circuitos da agricultura familiar, então você tem toda uma equação que tinha que ser olhada.

O governo federal simplesmente não fez isso, foi fazer isso três meses depois, mais uma vez sem ouvir os municípios, baixou uma regra e as coisas já estavam feitas porque onde tinha interrompido o circuito da agricultura familiar não tinha com refazer, tinha escola que construiu uma solução boa, teve escola que construiu uma péssima solução, teve escola que o prefeito se aproveitou da situação para tentar fazer, teve de tudo, por quê? Porque quem tinha que estar regulando, organizando, pensando e fazendo isso coletivamente não fez, então o governo federal cumpriu um péssimo papel e quando tentou intervir interveio da pior forma possível. Esse é um ponto. A pandemia, por isso que eu estou comentando agora, pela delicadeza que é o Pnae, o Pnae são milhares de diferentes operações acontecendo ao longo do dia, são milhares de microcircuitos acontecendo ao longo do dia, é uma operação muito refinada, muito qualificada, ela não é uma coisa simples de ser feita e ao mesmo tempo é uma ideia simples que é: a escola é quem melhor sabe, conhece esses alunos, e a escola que melhor pode identificar. Então a ideia é uma ideia simples, mas ela exige toda uma operação complexa que tem que ser respeitada, que tem que ser construída.

A pandemia interrompeu esses circuitos, o governo não se preocupou em recompô-los, em garantir que, agora que as escolas voltaram a funcionar, como isso deveria ser feito. E na minha avaliação e está tirando vantagem disso. Por quê? Como esses circuitos foram interrompidos e como não existe ninguém mais cuidando, olhando, fiscalizando, identificando problemas, tentando cobrar os municípios, vai ser muito fácil ele impor um outro modelo daqui a um tempo. É um modelo que não favorece a escola, não favorece a cultura escolar, não favorece a alimentação da criança, não ajuda a crescer, não ajuda a aprender, não ajuda a nada e favorece única e exclusivamente quem? Os grandes.

Aí eu chamo atenção especial que não é o agronegócio que é beneficiado, hoje é muito difícil a gente separar o agronegócio da grande indústria, quem opera diretamente no Parlamento, inclusive atuando de forma subterrânea para destruir o Pnae de certa forma, é uma parcela da bancada do agronegócio, mas está defendendo o interesse da grande indústria. Que o agronegócio não vende para a escola, você não vende soja, você não vende o milho diretamente da fazenda, você vende o composto que, sei lá, as latas e latas daqueles, nem sei como chama esse negócio que é processado, que não é leite, parece leite, mistura com água, a coisa mais fácil do mundo, você compra uma lata enorme daquele pó, mistura com agua e dá para as crianças um pó colorido cheio de açúcar com corante e tal. Superfácil, quem vai ganhar com isso? Somente a grande indústria, porque a criança perde, a escola perde, a cultura perde, a agricultura familiar perde, todo mundo perde.

FIAN: Quando a senhora fala de uma construção que é mais rica na medida em que ela é mais complexa, mais demorada, porque tem vários conhecimentos, vários pontos de vista, vários interesses e também na necessidade de coordenar essas reações mais emergenciais, mais diante de situações graves ou até extremas… Nesses dois sentidos faz muita falta uma instância como o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], não é?

Campello: Com certeza, o Consea e as câmeras intersetoriais. Porque o Consea é esse olhar da sociedade civil tensionando o Estado, dizendo “Olha, o Pnae está piorando, a agricultura familiar isso e aquilo” – isso o Consea e os Conseas, porque tem o Consea federal que era orquestrado com os Consea estaduais e muitos municípios e tudo mais –, mas a intersetorialidade era garantida também pelo Sisan, o Consea era a cabeça do Sisan. O Sisan, Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, é o sistema que organizava o governo federal, estados e municípios, e ele organizava também a integração nos mesmos níveis.

Então, por exemplo, tinha a Caisan [Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional], que também não funciona mais, que tinha 18 ministérios, então tinha lá o MDS [Ministério do Desenvolvimento Social, extinto] dizendo “Gente, olha só, não está funcionando, o MEC [Ministério da Educação] não está garantindo tal coisa, o dinheiro está indo e tem poucas escolas, caiu a compra da agricultura familiar”, aí tinha o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário, extinto] dizendo “Olha, tem tal coisa, quem sabe a gente mudai isso, muda aquilo”, discutindo as regras, não é? Você comentava essa regra do aumento do valor por agricultor para a venda, aparentemente parece uma coisa interessante, “Ah, o agricultor vai poder vender mais”, tem que discutir isso, não só porque não aumentou o valor da merenda, mas por quê? Então pode ser que tenha menos agricultor vendendo? E se aumentar a faixa? Será que não vai pegar os médios?

Eu fico me perguntando se ao invés do pequenininho vender para o Pnae, se eles não estão de olho que o médio venda. Isso a gente vai ter que ir atrás. Se eles não estão aumentando a faixa para não pegar o mais pobre, para pegar o médio, que é um setor hoje muito mais fácil de ser capturado por esse discurso do agronegócio do que o pequenininho, do que o camponês, o agricultor familiar tradicional. Será se eles não estão aí no caminho de excluir os pequenos e incluir os médios produtores? Isso nós vamos ficar de olho, agora que não tem ninguém fiscalizando não tem.

Então, assim, quando você senta na mesa e propõe uma coisa dessa vai ter gente dizendo: “Mas será que isso vai render mesmo”? Porque pode ser, não estou partindo do princípio que é uma má ideia, quando você tem uma câmara multidimensional intersetorial com todo mundo sentado na mesa, alguém vem com uma ideia e essa ideia é debatida, discutida, os pontos a favor, os pontos contra vêm para a mesa e você tem um debate rico que permite que você construa a melhor solução e que você identifique quais são os problemas. “Não, eu acho que você precisa mesmo aumentar, mas a gente tem que inventar que com isso o pequeno seja excluído, então como fazer isso?” Às vezes você precisa de duas medidas ao mesmo tempo, entendeu?

É isso quando você está em um espaço como era a Caisan, você tem esses diferentes olhares, “Se fizer isso vai acabar favorecer tal setor, não é isso que a gente quer, mas ao mesmo tempo tem que fazer”. Então quais são as medidas justas para que você vá construindo a melhor regra? Eles não perguntaram para os municípios, eles não perguntaram para as merendeiras, eles não estão nem aí para o que o Consea pensa, então eles têm lá uma ideia que pode até ser uma ideia bem-intencionada, coisa que nesse governo é muito difícil você imaginar, mas digamos que seja e na prática vai gerar mais concentração, vai gerar mais exclusão de agricultor familiar, vai desmontar mais ainda o programa, por quê? Porque eles não escutam ninguém, porque eles não escutam os municípios, porque eles não escutam a rede de assistência social, porque eles não escutam a agricultura familiar, então é impossível você fazer um programa bem feito com esse nível de complexidade sem escutar os atores que estão operando lá na ponta, a chance de fazer uma coisa errada é gigantesca e eles não estão nem aí para fazer a coisa certa, não é?

 Então quanto mais diz isso, que eu acho que está no fim do túnel, eles não estão nem aí com essa delicadeza, com essa construção coletiva, por essa integração no sistema, a gente está construindo um sistema, o que é o sistema? É como o SUS [Sistema Único de Saúde], o Sisan seria como o SUS, tem o governo federal, tem os estados, tem os municípios, cada um tem uma atribuição nesse processo, não é todo mundo que faz as mesmas coisas, não é cada um por si e Deus por todos, você tem toda uma integração e orquestração no processo, isto foi destruído, nunca mais o sistema sentou junto, nunca mais os órgãos dos demais entes federados foram ouvidos. Esta destruição é a verdadeira destruição da integração, porque a integração não é somente entre diferentes áreas, também é entre diferentes níveis, e aí você não escuta a merendeira, você não sabe quais os problemas delas.

É isso, essa construção que não foi uma construção simples, a coisa mais fácil é a merendeira receber uma coisa pronta, misturar com agua e distribuir para as crianças, isso é mais fácil, dá menos trabalho do que cortar cebola, do que cozinhar para 300 crianças, dá muito menos trabalho, agora, é muito pior. Em todos os sentidos, do ponto de vista cultural, do ponto de vista ambiental, do ponto de vista da educação para o futuro, do ponto de vista de fortalecer a renda no campo, no ponto de vista de dinamizar a economia local, tudo isso.

FIAN: O que a alimentação escolar tem a ver com o que vem sendo chamado de sindemia global, conceito que a senhora abordou em sua aula magna na Cátedra Josué de Castro?

Campello: Só lembrando aqui os nossos leitores, na verdade a gente já vivia uma pandemia – três pandemias: a pandemia da obesidade, a pandemia da fome e uma pandemia da emergência climática, que vai impactar a fome e todas as outras questões. Então a gente já vivia essas três pandemias juntas, que é o que a gente chamava de sindemia global, a articulação entre essas três pandemias que têm tudo a ver.

FIAN: E que ainda se cruzam com o colapso anunciado da biodiversidade, não é?

Campello: Exatamente, essas três pandemias se retroalimentam com impactos generalizados. Então o impacto das mudanças climáticas acaba impactando perda de diversidade, que piora e gera outros problemas como é o próprio coronavírus. As últimas grandes pandemias, as últimas grandes viroses no mundo foram originadas exatamente da devastação sobre ambientes protegidos como as florestas, não é?

Então o ebola, várias outras doenças que ganharam uma dimensão, ganharam amplitude, território, ameaçaram a humanidade, como é o caso do coronavírus da Covid-19, eles têm muito a ver com o impacto de sistemas alimentares devastando florestas.

Então quando essas três pandemias se somam na sindemia global, os efeitos são vários e isso se soma essa tragédia que foi a Covid-19 que acelerou a sindemia. Por quê? As pessoas passaram – é uma tragédia o que está acontecendo, a gente vai ver, eu vi a apresentação umas duas semanas atrás de um colega, Paulo Castro. Ele faz o estudo mostrando que estava previsto que os alimentos, com esse aumento dos preços gerados por toda essa crise, o aumento de preços de produtos pouco processados e produtos naturais – que são os mais impactados pelo aumento de preços que nós estamos vivendo –, provavelmente a gente vai ter os produtos ultraprocessados mais baratos, que isso ia acontecer em um horizonte de dez anos e já está acontecendo agora.

Então assim, o resultado dessa tragédia toda é que as pessoas ainda estão se alimentando pior, não só estão mais pobres, estão com mais fome, e quando buscam produtos estão prioritariamente tendo acesso a produtos ultraprocessados. Então a gente vai ter como uma saída da pandemia da Covid, que está sendo muito mais demorado do que qualquer um de nós imaginávamos, uma ampliação da sindemia ao contrário do que a gente achava, não é?

 Aumentou a fome, aumentou a obesidade, aumentaram os impactos, como, no caso do Brasil, o colapso sobre a natureza, então aumentaram as queimadas, aumentou a devastação da Amazônia, de outros biomas do Brasil e o que a merenda escolar tem a ver com isso? Tudo, a merenda escolar talvez seja um microcosmos mostrando para o mundo que é possível enfrentar essas três pandemias simultaneamente com uma alimentação escolar, com compras públicas feitas de forma correta, não é? Porque é um alimento de qualidade. Então a educação, a criança está protegida pelo menos uma parte do dia, então impacto sobre a fome, no caso do Brasil são 43 milhões de crianças.

É difícil imaginar qualquer outra política mais eficiente do que essa no acesso à alimentação e no direito à alimentação, com comida de verdade, ou seja, comida que respeita não só a quantidade, a qualidade, a variedade, a questão cultural como estabelece a legislação Brasileira. Faz isso fortalecendo os circuitos curtos, comprando da agricultura familiar, gerando renda no campo, dinamizando a economia local e regional, reduzindo as emissões de carbono, reduzindo desperdício, porque quando a comida viaja, a maior perda de produtos na agricultura acontece no transporte – a comida já chega estragada naquele lugar. Então quando a gente viaja menos com a comida não só emite menos carbono, como perde menos, estraga menos o produto.

O Pnae é um microcosmo que pode ser macro, imagina: 5.570 municípios, milhares de escolas, 43 milhões de crianças, então o impacto que isso tem é enorme, só que está sendo um impacto escola a escola e local a local. Acho que é um exemplo perfeito, educativo para o gestor entender como uma política integrada, bem pensada, bem articulada tem impactos gerais. Não só ela é integrada como os seus impactos são integrais. Ela não só impacta a criança a aprender e comer melhor, protege essa criança não só do risco de estar com fome, mas ter sobrepeso e obesidade, diabete, hipertensão e assim por diante.

FIAN:  A gente vê como importante nesse quadro a noção da captura corporativa. A humanidade está em crises que exigem uma intervenção muito rápida e não tem como ser de cima para baixo simplesmente. Como conseguir operar essa transformação, por exemplo, colocar a agroecologia no centro da agenda com a oposição das grandes empresas?

Campello: A questão da captura corporativa é que acontece inclusive nesse nível micro. Por que as escolas distribuíam esse pó para misturar com água? Porque eles iam lá e falavam: “Muito mais fácil você fazer isso, é muito mais nutritivo etc. do que você fazer. Em vez de vocês fazerem por exemplo uma canjica na escola, distribuir esse flan aqui que é muito mais fácil”.

FIAN: “E que é enriquecido…”

Campello: “E que é enriquecido por vitaminas e não sei o quê.” Ai, bom, dá muito menos trabalho. Então tem essa coisa corporativa até lá na beirada, a escola vai lá e dá um brinde para a diretora, tudo isso continua acontecendo e portanto o processo de resistência é um processo que você tem que convencer a merendeira que o que ela está fazendo foi salvar essa criança, ela tem que entender que dar o flan para a criança ou dar não sei o quê é ruim para essa criança, ela tem que aprender a comer canjica, ela tem que gostar de canjica, de arroz doce, dá muito mais trabalho fazer arroz doce do que distribuir e não sei o quê.

Arroz doce faz parte da nossa cultura e tal, não estou nem falando do arroz e do feijão, peguei algumas coisas porque fica parecendo que sobremesa é ruim, e não é, criança gosta de comer uma sobremesa, agora tem que comer um arroz doce, tem que comer uma canjica, tem que comer um pé de moleque. Ai, para as nutricionistas não me matarem: além do arroz, do feijão, da verdura.

É muito mais fácil você dar um suco açucarado do que espremer a laranja, então tudo isso tem essa corporação micro, mas tem a grande briga, quem mais resistiu às compras públicas quando a gente tentou implantar foi a grande indústria. Por quê? Porque era ela que ia perder violentamente, imagina um mercado de 43 milhões de crianças, é um mercado da Argentina, é como se elas perdessem uma Argentina que estava no bolso delas. Tinha uma Argentina no bolso vendendo bolacha, biscoito, suco açucarado, porcariíto, tudo isso, e eles perderam. Uma parcela desse mercado, nem é todo o mercado, mas perderam uma parte grande desse mercado.

Aí eu falei daquela história do agro porque indiretamente é o agro que atua muito fortemente, e quando você olha as emendas que estão sendo feitas para mudar o Pnae são da bancada do agronegócio, mas na verdade o grande interessado e o grande diretamente prejudicado com isso é quem? O multimilionário, a grande indústria de alimentos mundial que hoje não é mais uma indústria nacional, ela é mundial, ela financia uma parte gigantesca dos parlamentares. Não só a indústria de refrigerante.

FIAN: A senhora falou um pouco no dia a dia, o convencimento dos profissionais na ponta, mas também em relação a esse enfrentamento, sabendo da força que esses setores têm na balança comercial e da força que eles têm, do tanto que eles estão enraizados no Parlamento, como estão representados no governo, então tem toda essa urgência tem essas forças operando de um jeito cada vez mais. Agora entrando muito forte no conteúdo escolar, elegeram como uma prioridade, “Vamos contar do nosso jeito aqui”.

Campello: Exatamente. Aí eu vou pegar para fechar um outro lado da história porque assim, isso que a gente começou falando que pelo que eu entendo é o centro da minha ideia, já que vão ser várias entrevistas a minha está cuidando da integração. A integração talvez seja a parte mais difícil, intangível de ser medida no desmonte, eu consigo medir quanto eu diminuí a agricultura familiar por exemplo, ou pelo menos eu consigo dizer “Eu nem estou mais medindo”, eu consigo avaliar essa perda nessa fiscalização. Eu consigo medir um conjunto de questões envolvendo gasto público, mas eu não consigo medir o desmonte da integração, isso é intangível.

Do mesmo jeito que eu demorei dez anos para construir, está sendo desmontado e não tem como medir porque isso é um valor intangível, da merendeira, da diretora da escola, município a município, e isso está acontecendo de forma pulverizada no Brasil, então esse desmonte intangível é o mais dramático porque em alguns outros, aumentar o valor, o nosso presidente volta a aumentar o valor, volta a ter essa orientação, agora esses circuitos curtos, o agricultor que se perdeu, o agricultor que vendia para a escola e que teve esse circuito interrompido provavelmente faliu, não é? Para reconstruir esse circuito talvez nem seja mais com ele, talvez seja um outro circuito.

FIAN: Alguém comprou a terra dele.

Campello: Alguém comprou a terra dele, ele foi para a cidade, então tem todo um desmonte que a gente não consegue medir, até porque quem deveria estar fazendo isso, que é o governo federal, não só não tem essa preocupação como tem a preocupação de esconder o que está acontecendo. Mas tem o intangível disso que é o processo de construção que aconteceu com cada gestor, a capacitação que nós demos para as merendeiras, a capacitação que nós demos para os professores, a capacitação que nós demos para os nutricionistas, a capacitação que se foi feita conjuntamente com eles. Todo esse blablablá dos Conseas municipais chamando, indo atrás, fazendo palestra, fazendo curso, a situação do filme, tudo isso parou, foi interrompido, é difícil de ser medido porque é intangível.

Agora, também talvez seja a nossa principal força de resistência, porque você capturou uma diretora de escola para a ideia da comida de verdade, quando alguém chegar e disser “Olha, isso aqui é muito mais fácil”, ela vai falar “Não, mas isso não é apropriado para a nossa criança”. Essa diretora de escola – que na verdade quando ela estudou ela aprendeu educação, ela não aprendeu merenda escolar, com esse processo de construção coletiva, sentando na mesa, discutindo com nutricionista –, ela fala “Não, esse modelo que vocês estão me vendendo centralizado não é legal, é muito melhor comprar do agricultor familiar porque tem a educação também do agricultor familiar”.

Esse agricultor familiar quando começa a vender para a escola é lindo o que acontece, porque ele se dá conta de que o que ele está fazendo vai transformar a vida dessa criança, então ele se dá conta de que aquele produto dele não está indo para uma prateleira, está indo para o lanchinho das crianças, ele chega na escola e ver as crianças tudo correndo, feliz, bonita, rosadinha, esse processo de educação é um processo que acaba extrapolando a escola, captura o agricultor familiar, que se sente comprometido e fala “Gente, eu estou fazendo uma coisa linda, que não só eu estou melhorando a renda da minha família, eu estou colocando comida na escola”.

Quando você vai conversar com esse povo você sente eles falando, é lindo. Isso também será um elemento de resistência porque eles também não conseguem tirar isso da professora que aprendeu a usar o quilo de feijão para fazer conta de matemática, ele não vai tirar da diretora de escola esse conhecimento que ela passou a ter que essa criança vai ficar mais protegida, vai estar protegida para diabetes, para a hipertensão, ela aprendeu um monte de coisa, esses dez anos ensinaram um monte de coisa.

Isto é um elemento, na minha avaliação, de resistência, a diretora só vai resistir, um dia ela vai se aposentar, se esse processo continua por muito tempo é logico que ele vai perder, mas hoje ele é um dos elementos de resistência, a merendeira comprometida em fazer canjica, ele é um elemento de resistência na cozinha, dizendo “Não, esse suco açucarado é uma porcaria, vamos bater aqui no liquidificador, nós temos liquidificador”. Então esse é um elemento de resistência, a integração das políticas públicas é também um elemento de resistência à destruição do Pnae e do Estado e da comida de verdade.

FIAN: Houve também as iniciativas de solidariedade que também criaram ou aumentaram redes, muitas ligadas ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e à conferência popular da área…

Campello: Essa parte é fundamental, em grande medida foi o que segurou mesmo. Não só a parcela da população carente, mas iniciativas vindas das próprias escolas de como organizar cestas, nós temos exemplos maravilhosos no Brasil todo. Agora, o tempo todo a gente tem que lembrar que essas ações de solidariedade, que não vieram das grandes corporações, vieram da própria periferia, solidariedade entre iguais, essas medidas não podem substituir o Estado, não é? É a política pública que garantirá que essas crianças possam ter acesso à comida de verdade de forma a garantir o seu direito, o direito à alimentação adequada.

FIAN: A Cátedra Josué de Castro organizou um extenso seminário sobre os 75 anos de Geografia da fome. Não é chocante ver mais de metade da população privada do que ele chamou de “o primeiro direito”?  

Campello: Setenta e cinco anos depois a gente volta a falar das mesmas coisas que o Josué falava. Segunda-feira, quando a gente teve aquele episódio dramático das pessoas indo para posto de saúde porque estavam doentes, não, estavam com fome na verdade. É a mesma história de Josué, ele conta no seu livro que quando ele começou a trabalhar ele descobriu que operários estavam doentes e a doença dos operários era fome. Em 1940, aí o povo volta a ter uma doença que chama fome, não é doença fome, fome é uma questão econômica e política.

O professor [Ladislau] Dowbor, vale muito a pena assistir à palestra dele ontem, pega a renda do Brasil e divide pelo número de pessoas, dá R$ 11 mil por mês, e fala “Bom, a gente tem R$ 11 mil por mês, não tem justificativa para as pessoas passarem fome, o Brasil produz 3 quilos de comida por dia por habitante, não tem motivo”. Quando você traduz para per capita, esses milhões e milhões caem no nosso ano.

Então 75 anos depois a gente está repetindo a mesma coisa que o Josué falou, não é? E chamando de direito e dizendo que o problema não é biológico, que o problema não é na natureza, que o problema é econômico e político e ontem o Dowbor disse: é um problema ético, moral, um país conviver com uma situação dessa podendo ter outro caminho e já tendo vivido outro caminho, não é? Porque nós mostramos que é possível sair do Mapa da Fome, estamos voltando ao Mapa da Fome, não por conta da pandemia – já tínhamos voltado antes por conta da destruição das políticas públicas. E a questão da renda, não é?

A destruição do Bolsa Família é uma tragédia, mas a gente não pode discutir só a renda. O Brasil saiu do Mapa da Fome por um conjunto de políticas, a valorização do salário mínimo, o aumento de empregos formais, o Bolsa Família, a aposentadoria rural e o aumento da aposentadoria do Brasil – que é algo que aconteceu graças ao aumento do salário mínimo –, a política de combate a preço alto e regulação de preço para produtos básicos, fortalecimento da agricultura familiar, o Pnae, o Consea, o Sisan. Então nós temos aí um pacote de políticas que nos tiraram do Mapa da Fome e uma delas que é estratégica e é básica, que é proteção de renda.

O programa que eles estão criando [Auxílio Brasil] acabou com o Bolsa Família e não o substitui porque é o oposto do Bolsa Família, ele destrói as bases que organizaram o Bolsa Família no Brasil, que são o quê? Exatamente essa questão da integração de políticas públicas, o alívio à fome e à pobreza que é articulado com educação e com saúde. Ele destrói a base da construção coletiva com municípios, ele não trabalha junto com assistência social, então trabalha via aplicativo então tudo que eles estão colocando no lugar é oposto daquilo que a gente tinha, exatamente na essência que é integração de políticas públicas.

FIAN: Um programa de renda básica – como aprovado em lei e determinado pelo STF – não deveria estar no centro do enfrentamento dos impactos da pandemia e da trilha para a recuperação nos próximos anos?

Campello: A construção rumo a uma renda básica, que todos recebam uma renda, eu acho que é uma construção, eu particularmente não defendo isso agora, por exemplo eu ou você devemos receber um valor e a pessoa pobre que está passando fome deveria receber a mesma coisa? Eu não defendo isso hoje, eu acho que nós temos um caminho ainda longo de redução de desigualdade antes de ter uma renda para todos e nesse momento eu acho que nós temos que olhar do drama da situação que é a população vulnerável, não só a que está em extrema pobreza, a que está em pobreza, mas aqueles que têm uma renda que hoje recebe e amanhã não, então tem uma parcela da população enorme que é metade dos Brasileiros.

Então em vez de dar renda para os 220 milhões, eu acho que nós temos que olhar os 100 milhões hoje que não têm renda, que têm uma renda vulnerável ou que não sabem se vão comer mês que vem, ou daqui a três meses o que vai estar acontecendo com eles. Assim, a destruição do Bolsa Família foi um passo, o Bolsa Família era um passo rumo à renda de cidadania, a destruição é um passo atrás para que a gente não tenha um programa de renda básica nunca no Brasil. Então nós retrocedemos 20 anos.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, José Graziano, Maria Emília Pacheco e Sofía Monsalve.

Entrevista | SOFÍA MONSALVE: “A alimentação escolar pode contribuir para o enfrentamento ou o agravamento das crises sistêmicas do nosso tempo”

Publicada no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

A secretária-geral da FIAN Internacional, Sofía Monsalve, resalta que o colapso ecológico e climático, as pandemias e a ascensão de forças antidemocráticas se se cruzam e afetam a todas e todos – de diferentes maneiras, mas em todos os espaços sociais. No que diz respeito ao alimento das e dos estudantes, ela lembra que muitas cantinas e refeitórios têm seu cardápio ditado por corporações globais que acostumam as crianças com doces, refrigerantes e produtos alimentícios ultraprocessados em geral, criando ou reforçando hábitos alimentares responsáveis pelo aumento das taxas de obesidade.

Uma produção, acrescenta, ligada ao desmatamento e à expansão das monoculturas de cana e palma com uso intensivo de agrotóxicos (o dendê ou óleo de palma é usado em inúmeros ultraprocessados, como biscoitos, margarina e pasta de avelã com chocolate; o plantio da palmeira ocupou enormes extensões de florestas no Sudeste Asiático e agora avança na Amazônia).

“Reconectar comunidades humanas com a natureza através da comida é uma questão essencial para nossa sobrevivência”, defende Monsalve, responsável por mais de 15 anos pelo programa de terra e recursos naturais da FIAN. A seu ver, um programa como o Pnae aborda causas estruturais de fome e desnutrição, por prover alimentos frescos e saudáveis a crianças e jovens fortalecendo a agricultura familiar camponesa e indígena, assim como a agroecologia. Ela coloca políticas nessa linha como verdadeiras soluções, em oposição à dita “agricultura de precisão”, altamente mecanizada e baseada em pulverizações aéreas.

Integrante do Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (Ipes-Food, na sigla em inglês), a entrevistada critica a abordagem da cúpula da ONU sobre o tema no ano passado e diz que o Brasil abandonou a política de segurança alimentar e nutricional baseada em direitos humanos que impactou as relações internacionais nesse campo.

FIAN Brasil: O que a alimentação escolar tem a ver com as grandes crises da nossa época e com a responsabilidade das grandes corporações nela?

Sofía Monsalve: Vivemos num tempo marcado por crises simultâneas, que se cruzam: colapso ecológico e climático; pandemias, tanto Covid-19 quanto obesidade; bem como crises políticas causadas por forças autoritárias, racistas, misóginas e antidemocráticas. Essas crises são sistêmicas e não estão localizadas em uma determinada região ou país, ou em um determinado setor social ou população.  Eles afetam a todes nós, de diferentes maneiras, mas afetam a todes nós em todos os espaços de interação social. Nesse sentido, essas múltiplas crises também afetam a alimentação escolar.

Lembremos que, durante as medidas de confinamento para conter o coronavírus, as escolas foram fechadas e milhões de crianças no mundo perderam o acesso à comida escolar. Para as mais pobres entre elas, esse alimento é vital para o seu bem-estar. Lembremos também que em muitos países as cantinas e refeitórios escolares ainda são dominados por junk food: doces, refrigerantes açucarados, batatas fritas e outros lanches são oferecidos às alunas e alunos em abundância. Essas cantinas e refeitórios são o ponto de contato diário entre corporações globais como Coca-Cola, Unilever ou PepsiCo e milhões de crianças. É ali que maus hábitos alimentares responsáveis pelo aumento das taxas de obesidade em menores são formados ou reforçados.

Indiretamente, esse tipo de cantinas e refeitórios escolares também contribui para a destruição ecológica e a emissão de gases de efeito estufa. Como? Apoiando o modelo de produção agrícola industrial favorecido por essas transnacionais e que é responsável pelo desmatamento e pela expansão das monoculturas de cana-de-açúcar e palma com uso intensivo de agrotóxicos. Estas são algumas das conexões que vejo entre a alimentação escolar e as crises que estamos passando.

FIAN: Que novos elementos as discussões no Ipes-Food trazem para sua visão sobre o tema e sobre o multilateralismo, e como o acompanhamento da Cúpula de Sistemas Alimentares a impactou?

Monsalve: As discussões no Ipes-Food têm sido muito estimulantes. É um espaço de aprendizado incrível por causa da diversidade de seus membros. Participei do desenvolvimento de uma nota informativa que discute o papel da ciência e do conhecimento na governança dos sistemas alimentares.

Foi um tema controverso no contexto da Cúpula de Sistemas Alimentares, uma vez que o grupo científico da cúpula tinha uma abordagem muito tendenciosa  da ciência: privilegiava a participação de economistas e representantes das ciências naturais, marginalizava especialistas em direitos humanos, não reconhecia o conhecimento ancestral dos povos indígenas e de outras comunidades rurais,  e não tinha uma atitude crítica e pensativa que fosse capaz de questionar os limites e a legitimidade da pesquisa e da ciência financiadas por corporações e empresas.

A acumulação capitalista contemporânea depende cada vez mais da capacidade das corporações de monopolizar o acesso ao conhecimento.  Nesse sentido, a defesa da pluralidade do conhecimento no campo alimentar, o diálogo de saberes e a governança popular e democrática dos alimentos tornam-se questões essenciais em nossa agenda. Essas são as novas perspectivas que a participação no Ipes-Food me traz.

FIAN: Como a experiência brasileira das últimas décadas em soberania e segurança alimentar e nutricional era enxergada no plano internacional e como a situação atual é vista?

Monsalve: O programa brasileiro Fome Zero foi um programa que tinha um componente de política externa e política internacional. Foi assim que o Brasil, em meio à crise alimentar de 2007-2008, assumiu um claro papel de liderança em nível internacional, defendendo políticas públicas baseadas em direitos humanos para combater a fome.

Não é exagero dizer que o Brasil foi fundamental para a reforma do Comitê de Segurança Alimentar (CFS, na sigla em inglês) das Nações Unidas em 2009: essa reforma abriu um comitê da ONU para a participação real e efetiva dos setores sociais mais afetados pela fome e pela desnutrição. Em outras palavras, ela o democratizou. Foi assim que esse comitê se tornou o epicentro dos debates para o avanço de políticas públicas baseadas em direitos humanos e no âmbito da soberania alimentar: fortaleceu o direito à terra, à água, à pesca e às florestas, bem como à agricultura familiar camponesa e à pesca artesanal e de pequena escala, desenvolveu o conceito de mercados territoriais e sua importância para o fornecimento de alimentos.

Infelizmente, o atual governo do Brasil desmontou grande parte da política alimentar baseada em direitos humanos, com sérias consequências para a população brasileira. Os números dizem isso: houve um aumento dramático de pessoas que sofrem de insegurança alimentar. As consequências dessa política também são percebidas em nível internacional porque não temos mais governos que defendam a democratização da ONU, nem os direitos humanos como a bússola fundamental que norteia as políticas públicas. Assim, também enfrentamos um desmonte do CFS e uma privatização da governança alimentar internacional no sentido de que agora as corporações e suas iniciativas desempenham um papel de liderança na definição de políticas públicas.

FIAN: O que são as “falsas soluções” que as organizações do nosso campo têm denunciado sistematicamente?

Monsalve: Deixe-me dar um exemplo de soluções falsas: todos sabemos que o uso intensivo de agrotóxicos na agricultura causa sérios danos à saúde dos trabalhadores agrícolas e comunidades rurais expostas à pulverização aérea; assim como os danos ao meio ambiente, por exemplo, pela água poluidora. Qual é a falsa solução que as corporações propõem a esses problemas? Em vez de abandonar o uso de agrotóxicos, as corporações do setor vendem a solução chamada “agricultura de precisão”, ou seja, a ideia de que robôs ou drones aplicarão as quantidades exatas de agrotóxicos que são necessários sem causar danos. 

É uma manobra de distração. Brinque com a ilusão de que a tecnologia é limpa, precisa e resolve todos os problemas. Os agrotóxicos não desaparecerão do ambiente porque são aplicadas em doses precisas. Somados, milhões de doses precisas continuam sendo um problema. A agricultura industrial é baseada na produção em larga escala. Uma grande plantação continuará a precisar de uma quantidade de agrotóxicos prejudicial à saúde humana e planetária. Sem mencionar que, para proteger a saúde dos trabalhadores agrícolas, a solução não pode ser substituí-los por robôs e deixá-los sem emprego.

FIAN: Um programa como o Pnae, que atende crianças e adolescentes, prioriza a agroecologia, fortalece a agricultura familiar, reconhece a diversidade cultural, respeita a regionalidade e a temporalidade da produção, apoia indígenas e povos e comunidades tradicionais, valoriza o conhecimento técnico e tradicional, respalda a autonomia local… não estaria bem no cruzamento daquilo de que realmente se precisa?

Monsalve: Sem dúvida, um programa como o Pnae é uma solução real no sentido de que aborda causas estruturais de fome e desnutrição. O fortalecimento da agricultura familiar camponesa e indígena, bem como da agroecologia, é essencial para garantir o acesso das crianças e jovens a alimentos frescos, saudáveis, sazonais e minimamente processados. Apoiar essa forma de produzir alimentos é fundamental tanto para resfriar o planeta e recuperar a biodiversidade quanto para fortalecer a saúde das comunidades.

Reconectar comunidades humanas com a natureza através da comida é uma questão essencial para nossa sobrevivência. O Pnae desempenha um papel muito importante nesse sentido.  A FIAN Colômbia vem desenvolvendo iniciativas muito interessantes com crianças, adolescentes e jovens para revalorizar seus territórios/ecossistemas, bem como seus laços com seus ancestrais e sua cultura. Esse exercício de aplicabilidade do direito à alimentação e à nutrição adequadas fortaleceu a capacidade dos jovens de exigir das autoridades municipais programas de escolas de alimentação firmemente ancorados em uma abordagem de direitos e soberania alimentar.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, José Graziano, Maria Emília Pacheco e Tereza Campello.

Entrevista | JOSÉ GRAZIANO: “O Pnae com compras da agricultura familiar junta tudo de bom”

Publicada no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

Como ministro extraordinário de Combate à Fome, José Graziano foi responsável, em 2003, pela implementação do Programa Fome Zero, depois englobado no Bolsa Família. Os resultados das políticas de segurança alimentar e nutricional e de cooperação internacional do Brasil o levaram ao comando da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que levou essa experiência a vários países. O entrevistado conta que o Pnae, em sua versão com compra das/os agricultores familiares, foi a iniciativa mais requisitada.

“Essa modalidade combina criança na escola, comida saudável, desenvolvimento local, participação social e programas de vizinhança”, elogia o hoje diretor-geral do Instituto Fome Zero (IFZ), uma organização civil.

Para o agrônomo, com a volta ao Mapa da Fome nosso país demonstra que se, por um lado, é possível romper esse ciclo com vontade política, por outro é fácil recair nele abandonando as medidas que funcionaram. O entrevistado também alerta para a piora no padrão alimentar brasileiro e latino-americano e para a dificuldade de mostrar às pessoas que a obesidade é um problema de saúde pública.

Graziano ressalta a importância que a política de valorização do salário mínimo teve na garantia da alimentação adequada e diz que o problema hoje não está na competição da exportação de commodities agrícolas com a produção de alimentos, e sim na falta de poder aquisitivo de grande parte da população. Ele defende que nenhum governante poderia substituir o modelo agroexportador num horizonte próximo e precisaremos dos dólares do saldo comercial do próprio setor para financiar uma transição nesse sentido.  

FIAN Brasil: Por que, dentre programas brasileiros tão replicados mundo afora, o Pnae foi aquele que mais encontrou interesse dos países?

José Graziano: Na verdade, é a versão do Pnae com compras da agricultura familiar, que garante produtos frescos e saudáveis para as crianças, além de reduzir muito o custo de transporte dos alimentos. Esse é um item muito importante em alguns países que têm um custo alto de transporte.

Tem aquilo que eu chamo tudo de bom junto: criança na escola; comida saudável; circuitos curtos de produção e consumo, o que favorece o desenvolvimento local; uma participação social dos pais, envolvidos na alimentação dos seus filhos; programas de vizinhança, já que parte da comida é comprada de pais dos alunos ou pequenos produtores no entorno da escola, como ovos, leite, frutas e verduras.

Então isso que tornou muito atraente, mas devo dizer que não é um programa fácil de implementar, porque passamos de uma situação praticamente onde temos produtores de subsistência ou com pouca presença no mercado para produtores de agricultura familiar que têm de ter uma oferta regular, e isso implica políticas públicas, a prefeitura tem de estar envolvida. Não é só dizer que vai comprar, precisa ter uma oferta e uma oferta de qualidade desses produtos para garantir esse mercado do Pnae.

FIAN: No último Sofi da sua gestão, a obesidade apareceu pela primeira vez como um problema mundial da envergadura da fome [Sofi é a sigla pela qual ficou conhecido o relatório anual O Estado da Insegurança Alimentar e da Nutrição no Mundo]. Para muitas pessoas, é uma ideia estranha, embora, estatisticamente, provavelmente tenham hoje um dos problemas ou ambos em casa ou na porta ao lado. Pode comentar esse quadro, com destaque para a situação das crianças?

Graziano: É verdade, o problema é que as pessoas ainda acreditam que a obesidade é sinônimo de comer bem, de comer muito. Não é. A obesidade é sinônimo de comer mal, de comer produtos de qualidade inferior, como, por exemplo, os ultraprocessados – você troca o consumo de carne e passa a consumir salsicha. Isso faz uma enorme diferença porque, como já dizia o [Otto von] Bismarck, chanceler da Alemanha, “se as pessoas soubessem o que tem dentro de uma salsicha, haveria uma revolução”. Nós não sabemos os aditivos e toda forma de processamento da maioria dos produtos processados e principalmente dos ultraprocessados, que são os fatores fundamentais de aumento da obesidade.

Vou contar uma história: quando eu fui ajudar a implantar o programa de combate à fome na Argentina no ano anterior à pandemia, 2019, o ministro encarregado me contava a dificuldade que ele tinha na região noroeste da Argentina, que é uma região açucareira onde se ingere muito açúcar e derivados de farinha de trigo – a pão branco, mingaus, tortas, pizzas etc. As mães se orgulhavam dos pibes [crianças] gordinhos, com claros sintomas já de obesidade e uma situação de saúde muito precária, porque você sabe que a obesidade abre a porta de uma série de comorbidades, como nós vimos agora durante a pandemia – os quadros mais graves de infecção da Covid são nas pessoas com sobrepeso ou obesas.

Os últimos dados para a América Latina são aterradores. Uma publicação que saiu semana passada da FAO regional da América Latina, com sede em Santiago, mostra que o sobrepeso em menores de 5 anos aumentou muito nos últimos anos. A média da América Latina é de 7,5% de crianças com menos de 5 anos com sobrepeso e obesidade. E isso está muito longe da meta do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável, que é reduzir o sobrepeso das crianças para 3%.

A América Latina está mais de 2 pontos percentuais acima da média mundial e devo dizer que a pandemia agravou muito esse quadro. Um indicador preciso disso são os dados da pesquisa VigiSAN e os dados do Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] que mostram que em quase 50% dos domicílios com crianças houve uma redução significativa do consumo de frutas, verduras e legumes, portanto, dos produtos frescos e saudáveis. Isso leva a um aumento do que se chama insegurança alimentar leve, aquela em que as pessoas, para poderem continuar comendo com o dinheiro que têm, têm de sacrificar qualidade – como eu disse, troca carne por salsicha, deixa de comer frutas, verduras e legumes.

Para ter uma ideia, quando a gente compara a segurança alimentar no Brasil entre 2004 e 2020 – portanto, um período longo –, vamos ver que em 2004 nós tínhamos 65% da população em situação de segurança alimentar, e essa proporção cai para 45% em 2020. Pela primeira vez, o Brasil passa a ter mais da metade da sua população em situação de insegurança alimentar, e dessa segurança alimentar, a proporção dela de insegurança alimentar grave, 10%, permanece mais ou menos estável entre 2004 e 2020, da mesma forma a insegurança alimentar moderada, em 12% em 2004, também 12% em 2020. Ou seja, há uma volta daqueles números que nós tínhamos em 2004 de insegurança alimentar grave e moderada, que são as formas mais preocupantes e é o indicador de fome usado no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 2. Mas quando a gente olha o indicador de insegurança alimentar leve, vai ver que ele saltou de 14% em 2004 para 35% em 2020, ou seja, em 2020, mais de um terço da população brasileira estava comendo mal, comendo de uma forma que substituía os produtos de maior qualidade por produtos de menor qualidade – como diz o outro, comendo miojo e Coca-Cola, refrigerantes açucarados. Esse é o caminho para a obesidade, então não será de se estranhar que nós tenhamos um aumento muito forte da obesidade durante a pandemia assim que os dados de 2021 tornarem-se disponíveis.

FIAN: O que seus interlocutores de fora do país comentam sobre os rumos da segurança alimentar e nutricional do Brasil nos últimos dois governos, em especial neste?

Graziano: Bem, é difícil explicar para eles, a maioria pergunta o que está acontecendo, meio incrédulos com as estatísticas que divulgam. Outro dia, um dos coordenadores da Cúpula Mundial da Alimentação me ligou de Bruxelas para saber se era verdade os números que estavam sendo divulgados, que apontavam que apenas 45% da população brasileira tinha segurança alimentar, ou seja, mais da metade não tinha. As pessoas custam a acreditar em tamanho retrocesso de um país que saiu do Mapa da Fome tão recentemente, em 2014. Nós estamos falando de cinco anos passados.

Na verdade, o Brasil passou a ser um exemplo didático de duas coisas. Primeiro, como é possível acabar com a fome quando se dá prioridade política a isso, o que significa ter recursos orçamentários e uma ação coordenada do governo, sociedade civil, setor privado, foi o que o Brasil fez entre 2003 e 2013 para sair do Mapa da Fome em 2014. A segunda coisa do exemplo didático do Brasil é como se pode voltar rapidamente ao Mapa da Fome se a gente desmontar o sistema de proteção social e as políticas de segurança alimentar em momentos de crise econômica. É esse o exemplo que o Brasil está mostrando para o mundo.

Queria destacar aqui um ponto importante: o que acaba com a fome não são as políticas sociais e a política de segurança alimentar, essas políticas ajudam principalmente aquela parte da população mais pobre a sair da situação de insegurança alimentar, mas o que realmente acaba com a fome é o modelo econômico de crescimento do país: inclusivo, de crescimento rápido, que faz gerar empregos de qualidade e salários razoáveis. E nesse sentido queria destacar que, na minha opinião, a política mais importante que levou o Brasil a sair do Mapa da Fome, política implementada pelos governos Lula e Dilma, foi a valorização do salário mínimo. O aumento do salário mínimo, que é um dos componentes do programa Fome Zero.

O salário mínimo serve de farol para todo o setor informal, então, por exemplo, a faxineira, aquele cara que faz bico de encanador, de pedreiro. Ele, quando vai calcular o valor do seu trabalho prestado, ele tem por referência o salário mínimo vigente. Então o salário mínimo, a valorização do salário mínimo, puxa para cima os salários pagos, mesmo nos setores informais, que é um dos grandes problemas do aumento, agravamento da concentração da renda na América Latina, em particular no Brasil. Brasil teve uma subida fortíssima do Índice de Gini [que mede a desigualdade] nos últimos anos em função da redução dos salários pagos e aumento do desemprego.

FIAN: Precisaremos novamente de um ministério extraordinário de combate à fome?

Graziano: Eu diria que, infelizmente, nós vamos precisar começar tudo de novo, porque o governo atual, além de cortar os recursos do Orçamento, os parcos recursos que ainda resistiram ao governo Temer, o governo Bolsonaro está desmontando as políticas existentes. E tem se dedicado nos últimos meses – antes, digamos, de entrar em modo eleitoral full [total}, se já não está – a maquiar alguns programas, tirar a paternidade deles. É o caso do Bolsa Família, transformado em Auxílio Brasil, mas mantido basicamente com a mesma estrutura; o PAA, Programa de Aquisição de Alimentos, que também mudou de nome, o Comida no Prato, que é um programa dos bancos de alimentos, estatizou o programa Comida no Prato: agora as doações feitas por você, por qualquer pessoa, vão aparecer contabilizadas como do governo.

Então essas maquiagens que têm sido feitas não só eliminam o controle social dos programas, tiram a participação social, como abrem espaço para manipulações eleitoreiras. O que o governo Bolsonaro está fazendo é adaptar o que sobrou dos programas existentes porque cortar, acabar não pode, porque são programas previstos em lei ou causariam uma reação popular ainda maior contra o governo. O governo está transformando os programas de segurança alimentar e nutricional em um festival de cesta básica. Isso que eu vejo que vai acontecer em 2022.

FIAN: Em falas recentes, o senhor apontou o agronegócio como agravador das desigualdades. Porém, em entrevista de 2020, defendeu a inviabilidade de rever o peso dos canais exportadores do setor – o que me pareceu ser uma proposição conjuntural, algo para o momento. Em que medida um modelo agroecológico e redistributivo pode conviver com a monocultura e seu entrelaçamento com a grande indústria de produtos alimentícios, e com o capital financeiro e seu apetite por terras?  

Graziano: Bem, essa é uma pergunta complicada, não dá para responder isso rapidamente. Eu vou dar algumas indicações e me colocar à disposição para discutir um dia. Eu acho um erro muito grande a gente pensar, qualquer governo que entre em 2023, que vai poder mudar esse modelo baseado no agronegócio exportador do dia para a noite. Não dá para fazer isso.

Você tem de, para começar, por exemplo, investir muito em pesquisa agroecológica na Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], que não vai ser fácil convencer a Embrapa a mudar da sua prioridade de pesquisa em técnicas da revolução verde [conjunto de inovações tecnológicas que aumentou substancialmente a produção agrícola], mudar isso da noite para o dia. Nós vamos precisar mudar a cabeça de pesquisadores que acham que estão fazendo o melhor de si desenvolvendo o uso das tecnologias da revolução verde, principalmente o uso de químicos e maquinário.

Também tem de se levar em consideração que o novo governo vai precisar de muitos dólares para financiar essa mudança de modelo. Nós vamos ter de usar os recursos internalizados pelo agronegócio, de exportações do agronegócio, para ir financiando gradativamente os programas sociais, os programas de segurança alimentar, a própria agricultura familiar etc. Então eu já acho que vamos fazer muito se conseguirmos fazer com que, em 2023, o agronegócio comece a pagar impostos. Por exemplo, hoje eles estão isentos dos impostos de exportações pela Lei Kandir; também são isentos os principais insumos que o agronegócio usa, como máquinas e equipamentos, como os defensivos químicos etc. Se nós botarmos esses setores a pagarem o imposto devido, já vai ser uma fonte de recurso importante para poder apoiar a produção de produtos saudáveis da agricultura familiar.

O que eu quero dizer com isso é que o problema não é exportação de commodities agrícolas no Brasil. A gente tende a ficar sob a aparência dos fatos. Nós não temos falta de produto, nós temos falta de dinheiro para comprar os produtos. Os pobres não comem bem no Brasil – ou não comem, passam fome – não é porque não tem produto para comprar. Eles não têm dinheiro para pagar os produtos. Não vamos nos iludir aí… o problema verdadeiro é baixo nível dos salários. Não é o preço dos alimentos que é caro, são salários que são muito baixos. Por que a gente não pensa em aumentar os salários? Por que pensa sempre em reduzir o valor dos produtos agrícolas?

A ideia do Ford quando ele desenvolveu o modelo fordista de produção era que seus próprios trabalhadores pudessem comprar o carro Ford T que eles iriam produzir, senão não haveria demanda suficiente para comprar os carros. Então essa ideia de pagar salários melhores é uma ideia que faz parte do sistema capitalista. Não é nenhuma ideia socialista, nenhuma ideia comunista, ter salários dignos para os trabalhadores poderem comprar os produtos que produzem. Isso deveria valer para os nossos trabalhadores rurais, trabalhadores do agronegócio, aumentar os seus salários, aumentar o nível de salários em geral do Brasil. Volto a insistir: nós estamos confundindo o verdadeiro problema. O verdadeiro problema não é falta de alimentos. O verdadeiro problema é a falta de poder aquisitivo da população brasileira.

FIAN: Como o enfrentamento à pandemia poderia ter sido diferente no que refere à segurança alimentar e nutricional?

Graziano: Bom, eu diria que em tudo o enfrentamento da pandemia poderia ter sido diferente se nós não tivéssemos um governo que desde o início negou a existência do processo, não reconheceu a pandemia como um problema grave, eu diria um dos mais graves que o mundo já enfrentou na sua história. Podia ser diferente na política de saúde, por exemplo: nós podíamos ter começado a vacinação muito antes, já que tínhamos disponibilidade aqui de vacinas do Butantan. Podíamos ter fortalecido o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional]. Em vez de extinguir o Consea, fortalecer, revitalizá-lo para que ele fosse o articulador de uma verdadeira campanha brasileira como houve na época do programa Fome Zero, de arrecadação de alimentos, de distribuição às entidades sociais.

Podíamos ter apoiado a agricultura familiar, aumentado os recursos do PAA, por exemplo, em vez de reduzir os recursos do PAA, aumentado os recursos para o programa de cisterna no Semiárido em plena seca e crise econômica – nós cortamos praticamente a zero o programa de cisternas e passamos a distribuir cisterna de plástico que só beneficia, na verdade, os produtores de plástico no Brasil. Podíamos dar mais recursos ao Pnae para evitar o que houve: o corte da merenda escolar com compra da agricultura familiar em boa parte das escolas que tiveram de fechar pela pandemia. Então, em resumo, podia ter sido tudo diferente. Há alternativas de políticas, sim, que não foram seguidas. Se há uma riqueza que o Brasil tem, é essa expertise em políticas de segurança alimentar e nutricional e em políticas sociais. Podia ter sido tudo diferente.

FIAN: No plano mundial, como está a sua esperança em relação ao que chamou de um great reset, uma retomada em bases substancialmente novas? O que seria necessário por parte dos países dos organismos da ONU?

Graziano: Eu diria que a ONU perdeu duas grandes oportunidades este ano para começar a mudar o problema e produzir alimentos saudáveis de forma sustentável. Primeira oportunidade perdida foi na Cúpula dos Sistemas Alimentares, que terminou em Nova York no dia 23 de setembro. Embora houvesse uma grande presença e um grande número de promessas, de concreto não se exibiu nada. Nenhum acordo efetivo, nem mesmo um fundo mundial de combate à fome, que era o que estava desenhado desde o início, conseguiu-se. Então, de concreto não se avançou nada, mais promessa, mais blablablá.

Alguma coisa similar aconteceu na COP26 [Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021], que foi a segunda oportunidade perdida. Infelizmente, nós vimos na COP26 mais do mesmo, nenhum apetite para mudar de fato a ideia de que nós estamos a caminho da extinção. Nem mesmo aquele anúncio do tiranossauro lá [que a ONU usou para alertar sobre o risco de extinção] surtiu efeito, e a perda da liderança do presidente [Joe] Biden nos últimos meses, os americanos estão cada vez mais preocupados com os chineses, e muito menos com o futuro do mundo. Os americanos não apoiaram, por exemplo, banir o uso do carvão entre os combustíveis fósseis. Continuamos subsidiando aqueles produtos que nos levam ao caminho da extinção.

Os dois produtos que mais recebem subsídios no mundo hoje continuam sendo os combustíveis fósseis, entre eles o petróleo e o carvão, e no campo dos alimentos o trigo, que também é um produto hoje claramente na lista dos produtos que ajudam a obesidade, essa epidemia de obesidade.

Agora, eu ainda tenho esperanças porque, como todos dizemos, a esperança é a última que morre. Nós vimos na COP26 e na Cúpula dos Sistemas Alimentares uma grande participação da sociedade civil, uma grande mobilização social de setores organizados da sociedade civil. Na COP26 nós vimos também a presença de vários governadores do Brasil para contra-arrestar a ausência do governo federal, e isso abre caminho para pensar, primeiro, na descentralização das políticas públicas, que é um passo importante, e no fortalecimento da participação social nessas políticas, tanto na sua elaboração, concepção, como também na implementação.

O problema é que, infelizmente, esse caminho é longo e demorado, e se nós continuarmos só pensando nas coisas a longo prazo, podemos estar acelerando para concretizar aquela preocupação do Lord Keynes [o economista John Maynard Keynes], quando disse que a longo prazo estaremos todos mortos. Espero que a gente consiga, a tempo, evitar o caminho da extinção.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, Maria Emília Pacheco, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

Entrevista | MARIA EMÍLIA PACHECO: “Precisamos pensar as políticas a partir do princípio da emancipação”

Publicada, em versão resumida, no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae. Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

Primeira mulher a presidir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Maria Emília Pacheco conta das mediações para aprimorar o Pnae – que ela aponta como estratégico – e .para garantir aquilo que as diretrizes do programa determinam, reduzindo, por exemplo, a burocracia para o fornecimento por agricultores e agricultoras familiares e impondo limites ao “deixa fazer” das terceirizações.

Ela lembra também as mobilizações ligadas ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) e à conferência popular da área (CPSSAN) pelo enfrentamento da fome e do desmonte das políticas que ajudariam a combatê-la, a começar pela extinção do próprio colegiado.

Na entrevista, a antropóloga explica ainda a ideia do direito ao gosto, em oposição à comida de laboratório, e defende o modelo agroecológico, a importância dos bens comuns e a conexão com outras lutas sociais.  

Para Maria Emília, os desafios desta curva da história passam por desvendar e traduzir os mecanismos de dominação e opressão e controlar o poder das empresas transnacionais. Confira a conversa de quase duas horas com a assessora da Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase) e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

FIAN Brasil: Gostaria de começar pelos cinco anos em que a senhora presidiu o Consea. Pode comentar como apareceram e quais foram as principais disputas em torno da alimentação escolar que a senhora presenciou?

Maria Emília Pacheco: Naquele tempo estava em debate lá no FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação] uma resolução de número 26. Essas resoluções do FNDE sempre buscaram aperfeiçoar, detalhar mais os mecanismos de execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Naquele tempo funcionava um conselho consultivo, um comitê consultivo, com representação do Consea, da sociedade civil e também de movimentos sociais, e isso foi muito importante. Exatamente em dezembro de 2014, nós estávamos no Consea, a partir de um grupo de trabalho, debatendo o significado dessas iniciativas que iriam conter essa resolução 26. E foi bem interessante, porque se manteve um período de duração da chamada pública, que é esse mecanismo importantíssimo e inovador, que dispensa aquela providência licitatória. E nós insistimos que era importante, que a chamada pública fosse anunciada das formas mais diversas possíveis, que ela tivesse um número de dias com possibilidade dos movimentos sociais tomarem conhecimento, e isso era uma das nossas propostas.

Nós também insistimos que era importante reduzir a burocracia para a venda dos alimentos por parte dos agricultores familiares para o Estado. Naquele momento, por exemplo, se retirou a exigência que havia de consulta técnica aos extensionistas, da chamada Assistência Técnica e Extensão Rural [Ater], e responsabilizando apenas o profissional da nutrição, uma avaliação do alimento comprado e também, se necessário, uma consulta aos conselhos de Alimentação Escolar, os CAEs. Também naquele tempo discutíamos a necessidade de aumentar o prazo de validade das chamadas declarações de aptidão, a data sempre foi uma dificuldade para muitos movimentos conseguirem. Houve momentos em que, inclusive no Consea, nós propusemos que em lugar da exigência da DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf], como acesso às políticas públicas, que se trabalhasse com cadastros existentes, especialmente em se tratando dos povos indígenas, das comunidades quilombolas.

Bom, mas naquele momento, pelo menos nós estávamos insistindo que a DAP tivesse vigência por um período de tempo maior. E também, algo muito importante, que se mantivesse a possibilidade de compra de grupos informais, desde que alguma organização reconhecida publicamente desse um apoio para que grupos informais participassem. Então, são exemplos do que nós debatíamos na época do FNDE, e eu me lembro de ter sugerido aos colegas que representavam o Consea nesse comitê consultivo que não deixassem de valorizar a iniciativa do FNDE de nos consultar, ou seja, consultar os grupos de trabalho do Consea sobre as mudanças que iam imprimindo através das resoluções.

Eu queria ressaltar isso porque, a meu ver, isso tem um significado prático do que é a participação social, o controle social no escopo democrático, que é exatamente o que não temos hoje. Mas queria dar um exemplo do que você na sua pergunta chamou de disputas, que foram necessidades de mediação, isso em 2014, 2015. Em Santa Catarina nós estávamos, de fato, com problema, que chegou inclusive à necessidade da construção de um termo de compromisso e ajustamento de conduta, um TAC. Havia uma dificuldade muito grande por parte do governo de aplicar os recursos alocados pelo FNDE, destinados para a alimentação escolar, porque o recurso que era destinado, ele vinha um pouco misturado com outros itens de compra para escolas.

Então, eu até registrei aqui para lembrar que o TAC dizia que era preciso aplicar os recursos do Pnae exclusivamente na aquisição de gêneros alimentícios, desenvolvendo um processo de aquisição desvinculado de outras compras, porque, se não me falha a memória, era exatamente isso, a chamada pública era para a alimentação escolar, mas também para outros produtos destinados ao ambiente escolar. Isso trazia uma complicação na execução desse programa. Então, o TAC era para insistir que houvesse a destinação de pelo menos 30% e que seguisse os trâmites que a própria legislação reconhece.

Eu estou me referindo exatamente à legislação de 2009. Então, veja que nós estávamos no tempo histórico curto ainda, a Lei 11.947, que aperfeiçoou esse programa, é de 2009 e eu estou falando de algo acontecendo entre 2014 e 2015, que era um período em que a gente recebia, de fato, muitas queixas de não cumprimento por parte das prefeituras, daquilo que era estabelecido pela lei, porque a chamada pública não é colocada como instrumento obrigatório, mas é estimulado que seja aplicada. Por outro lado, esse momento de tensionamento, de ver como encaminhar, eu até acompanhei representantes do Consea e também do chamado Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar, o Cecane. Acompanhei pessoas representantes dessas entidades no diálogo com o FNDE para ver como mediar essa situação lá com o governo de Santa Catarina. Porque um dos aspectos contidos nestas dificuldades é que, em muitos lugares no Brasil e lá mesmo em Santa Catarina, havia a terceirização da alimentação escolar.

Eu quero insistir nesse aspecto, porque esta proposta contra a terceirização da alimentação escolar era parte de nossa pauta de propostas quando se decidiu sobre essa lei 11.947, mas não fomos vitoriosos. Eu digo “nós” me referindo especificamente ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, mas também de outras organizações que estavam mais engajadas, através do Consea, no debate sobre a formulação das propostas dessa lei. Mas nós não concluímos, não conseguimos que lá se incluísse a proibição da terceirização. Mas o debate em Santa Catarina, através das conferências estaduais e municipais, chamava a atenção para a necessidade de um processo de desterceirização, entendendo que, mesmo que ela não seja proibida na lei, a lei chama a atenção para, pelo menos os 30% de compra da agricultura familiar, [a prioridade para] povos indígenas, comunidades tradicionais. Então, esse foi um exemplo que também esteve acompanhado de outros, que a gente recebia cartas, às vezes, dos conselhos municipais, como eu disse, chamando a atenção para o fato de que não estavam sendo cumpridos esses princípios estabelecidos na própria lei.

Mas quero dar mais um exemplo, que foi em 2015, quando nós fizemos uma recomendação, pelo Consea, ao Ministério da Educação. Foi exatamente insistir naquilo que a própria lei estabelecia. Vocês vejam que esse é um processo de construção, e eu vou dizer permanente, que nos tempos atuais, sobre os quais falarei depois, temos outros desafios diante de retrocessos. Mas, naquele momento, em março de 2015, nós falávamos exatamente da necessidade de ampliação de medidas que estimulassem tanto a compra da agricultura familiar como também o controle social para que este programa tivesse a sua plena execução.

Mas, entre as medidas que são disseminadoras de práticas alimentares e sustentáveis, também chamávamos a atenção para a necessidade de reduzir, de colocar barreiras a esse domínio das empresas sobre a alimentação escolar. Falávamos disso, que é preciso restringir a presença da indústria alimentícia e também nas cantinas, mas era nesse sentido de recomendação, como eu lhe disse, não havia proibição clara. E também chamávamos a atenção para a importância de fortalecer este comitê consultivo a que eu me referi no plano federal, e também nos municípios e estados que houvesse cada vez mais uma atenção para a constituição dos conselhos de Alimentação Escolar, os CAEs. Então, insistimos também nesse fortalecimento do controle social do programa. E ainda chamávamos a atenção para esse risco muito claro, que já vinha ocorrendo e infelizmente permanece no Brasil, com a mudança da transição nutricional, com o aumento da obesidade, e por isso chamando novamente a atenção para aquilo que a lei estabelece, que é a valorização dos alimentos in natura, de acordo com a estação do ano também, em locais, regionais. Fazendo, portanto, um chamamento para o impacto que têm os ultraprocessados sobre as doenças crônicas não transmissíveis, obesidade. E também incluímos a necessidade de fazer um reajuste per capita do valor atribuído para alimentação escolar.

Nós tínhamos tido uma atualização anos antes, na primeira gestão, foi até na gestão do Francisco, do Chico Menezes. Já dizíamos novamente, que era importante um reajuste, mas também não chegamos a fazer uma proposta de quanto. Nesse momento tem esse debate novamente sobre o reajuste. Então, são exemplos de procedimentos que fomos adotando. E é preciso também reforçar que na conferência nacional – que foi a última que se realizou –, em 2015 [5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], houve um lugar de proeminência também de propostas em relação ao Pnae, nessa linha do que eu estou dizendo, de aperfeiçoamento, de redução de burocracias, de reajustes de per capita etc. Esse programa sempre teve um caráter estratégico para nós.

FIAN: Antes de a gente passar para a próxima, eu queria só confirmar se a questão foi com o governo de Santa Catarina, não municípios catarinenses.

Maria Emília: É, governo estadual, vou até confirmar. A terceirização do alimento escolar no estado, o debate estava exatamente nesse escopo da proposta de desterceirização da política de alimentação [escolar]. Eu salientei este exemplo porque ele é bem significativo, por que Santa Catarina, eu me lembro de ter participado de debate lá, tinha um Cecane, que era esse centro de colaborador em alimentação e nutrição escolar extremamente ativo, com pesquisas, com estudos muito atualizados e também um Consea [estadual] muito ativo. E um estado em que há uma produção muito significativa também da agricultura familiar, inclusive com iniciativas de valorização de frutos nativos, que passaram a ser transformados e gerar sucos de frutas nativas, geleias. Eu me lembro aqui do butiá, por exemplo, um fruto pouquíssimo conhecido, talvez, da Mata Atlântica, um fruto nativo. Então, tinha uma dinâmica muito forte com a presença da Rede Ecovida também, que articula um conjunto enorme de associações, cooperativas, muito engajados também na produção para a alimentação escolar, enfim. Acho que esse exemplo de uma reivindicação tão explícita, tão enfática de lá, advém também desse ambiente de construção, de busca de construção na prática da política. Isso é bastante interessante, por isso que eu dei esse exemplo.

Mas eu me lembro também de uma carta que nós recebemos lá de Pelotas, no Rio Grande do Sul, também carta do Consea municipal, de organizações sociais, que também chamava a atenção para essas dificuldades que eu dei exemplo. Dificuldade da DAP de umas associações, para dificuldade de muitas prefeituras praticarem em alguns lugares uma chamada pública. Eram sempre questões dessa natureza, e nós fomos vivendo e procurando sempre dialogar através de propostas, através destas resoluções também do FNDE. Essas normativas infralegais – acho que o nome é esse, não é? –, elas são muito importantes, porque é lá que você encontra os mecanismos que favorecem ou criam barreiras, às vezes, para a execução de propostas, porque, às vezes, os programas públicos têm uma definição geral extremamente valiosa, objetivos muito bem formulados, densos. E quando você chega nos mecanismos, nos instrumentos, aí criam-se barreiras, muitas vezes intransponíveis para certos segmentos do campesinato.

FIAN: Certo. Pensando que a entrevista é um pouco para quem já acompanha essas discussões, mas também buscando chegar a um público que não tem tanto contato – o Pnae e outras políticas públicas têm uma certa translucidez, muita gente que é beneficiária não sabe da existência daquele programa de quase 70 anos – a senhora pode só comentar o que a terceirização implica? Por que desterceirizar ou evitar que esse modelo se espraiasse era uma prioridade?

Maria Emília: Então, porque historicamente, no Brasil… Esse programa é bem antigo mesmo, como você acabou de dizer, é da década de 50 e ele passou por muitas transformações, mas teve um caráter muito assistencialista, inclusive da ajuda alimentar, que chegava aqui. E as empresas sempre estiveram com total liberdade para participar dos editais. Empresa alimentícia participando dos editais, que alimentos são oferecidos? Será que também podemos falar de alimento propriamente dito, ou são fórmulas, formulações dos produtos alimentícios? É muito importante você fazer essa pergunta, porque há depoimentos, tem um artigo que eu fiz, que vai ser publicado agora, eu acho. Que é um pouco uma leitura de alguns depoimentos de quilombolas e indígenas sobre o tipo de alimentação que chegava ou chega nas escolas.

E havia e há uma queixa: por que as escolas oferecem um biscoito recheado e não oferecem um alimento tradicional daquelas culturas alimentares? Eu vou tomar a liberdade de ler o depoimento aqui, para ficar bem claro o que eu quero dizer, vou ver se eu encontro aqui, porque eu anotei isso. Eu ia falar que os indígenas lá em São Paulo disseram uma vez. Quilombolas lá em Oriximiná, por exemplo, no Pará, eles fizeram uma reivindicação para a prefeitura para aumentar a compra de alimentos tradicionais como farinha de tapioca, biju, banana, jerimum, cará e outros, e faziam críticas à oferta de bolachas, porque esse é o termo usado lá na Amazônia para biscoito. E também para outros produtos industrializados, porque não faziam parte da cultura alimentar e nem eram saudáveis. Então, tem registro de reivindicações, de protestos.

Em São Paulo, os indígenas, dizem em um estudo que eu fui ler. “É tudo enlatado”, questionam. “A gente quer a comida tradicional, mas ainda não tem na escola. No meu conhecimento, o ideal era servir biju, banana com peixe, que é da tradição, o nosso bolo de milho índio, gostoso, que serve para comer com peixe e com o que tiver.” Isso, da Terra Indígena Vanuire. Assim disse uma liderança. Bom, há a liberdade de as empresas participarem das chamadas públicas, então significa a presença exatamente desses produtos alimentícios que quilombolas e indígenas e camponeses nos lugares recusam, eles querem insistir nos alimentos, e com muita justeza, no alimento saudável, tradicional. Por isso é importante, eu vou pular um pouco o tempo da história.

FIAN: Seria, no caso, essas empresas assumindo o fornecimento a uma escola?

Maria Emília: Isso, são as empresas participando de editais e entregando esses alimentos na escola. E isto é muito comum ainda pelo país. Nós não podemos dizer que todas as prefeituras nos estados do país cumprem esses 30% [da agricultura familiar]. Então, quando nós, na proposta a qual estava sendo discutida no Congresso Nacional esta lei, a que eu me referi, de 2009, nós dizíamos “Vamos proibir terceirização, vamos colocar: O alimento tem que ser o alimento saudável e o alimento tem que vir da agricultura familiar, o Estado precisa se comprometer com esta proposta que os alimentos devem ser fornecidos pela agricultura familiar”, porque daí vem o alimento saudável, e por que também sempre associamos a ideia de que é preciso fortalecer a agricultura familiar, não só através de um programa como o Pnae, mas é preciso que haja fomento, crédito, haja iniciativas e outros campos da política que favoreçam a produção de alimentos saudáveis. Então, não dá para pensar na agricultura familiar dissociando programas, que são fundamentais para fortalecê-la.

Mas, nós dizíamos, do jeito que estava, era preciso ter pelo menos ter um controle da terceirização, da presença do fornecimento de produtos ultraprocessados pelas empresas nas escolas, precisava ter um controle sobre isso. Na verdade, até chegamos a dizer: se não vai ser proibido, tem que ter um controle, é o que essa recomendação nossa do Consea, também em algum momento insistiu, é preciso controlar. E por que isso? Porque a escola é muitas vezes, no Brasil, um local por excelência onde as crianças têm o alimento. Por isso que na pandemia se aprofundou muito também a fome na situação das crianças, que provavelmente os inquéritos, as análises que serão feitas por agora, daqui para a frente, seguramente vão mostrar uma alteração no estado nutricional das crianças, no peso delas, enfim. Porque a fome é acompanhada também da desnutrição e também da obesidade. Bom, e nesse tempo de pandemia, em muitos lugares não houve oferta do alimento, ou quando houve, em muitos lugares foi através do voucher, para as famílias comprarem exatamente ultraprocessados em mercados, nos supermercados, em grandes cadeias. Então, essa é a ideia. Por isso que, quando a lei fala em conta da agricultura familiar, teve que adequar também o instrumento. Por isso se fala da chamada pública, que é um instrumento que favorece a participação dos agricultores, não sei se ficou claro agora.

FIAN: Ficou, sim, obrigado. Então, a próxima pergunta é sobre o seu discurso no encerramento do mandato no Consea. Ali, a senhora listava avanços que foram possíveis, alguns desafios ainda e ameaças, riscos iminentes. Eu queria saber em que pé nós estamos em relação àquele momento.

Maria Emília: Naquele momento eu salientava, eu destacava a saída do Brasil do Mapa da Fome, falava da importância da conjugação de iniciativas, como valorização do salário mínimo, aquele quadro de empregabilidade no Brasil muito mais favorável, dava o exemplo, também, desses programas que representaram uma inovação na nossa história, esses programas como o programa de alimentação escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos [PAA], que vinculam política social com segurança alimentar e nutricional, instrumentos da política agrícola. Enfim, essa foi uma inovação, uma nova geração de políticas que estavam sendo implantadas no país. Chamava a atenção também para a importância dos programas de convivência com o Semiárido. Mas, ao mesmo tempo já mostrava os riscos. Eu vou sublinhar principalmente esses riscos, porque este é o quadro em que se aprofundou no caminho mais do que do retrocesso, mas também da destruição de políticas que estavam sendo construídas para dar um sentido ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional [Sisan] e à Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. É importante dizer isso, porque isso ocorreu nesse período, a política veio lá de 2007, se não me engano, mas também em 2012 criou-se o decreto da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [Pnapo]. Então, um caminho virtuoso vinha sendo trilhado e este caminho foi interrompido. E mais do que interrompido, a destruição é bastante grave.

É importante dizer que eu também falava como risco naquele momento da volta do país ao Mapa da Fome e lamentava que exatamente naquele ano, em que se completavam 70 anos da Geografia da fome, do grande Josué de Castro, nós já prevíamos a volta para o Mapa da Fome, que se concretizou e sabemos o quanto se agravou. Agora, com cerca de 10% da população brasileira em uma situação de fome, e a metade da população brasileira com algum grau de insegurança alimentar e nutricional. Já chamava a atenção também para a proposta que estava sendo debatida no Congresso, que era a emenda constitucional do teto de gastos públicos, a chamada PEC 55. E nós tínhamos enviado, naquele período, um manifesto para o Senado Federal, chamando a atenção sobre as implicações da votação da emenda constitucional para as políticas sociais. E isso foi se concretizando, mas veja só que nós já estávamos naquele momento, eu estou falando exatamente de 2016, já havia sido extinto o Ministério do Desenvolvimento Agrário [MDA], secretarias voltadas para os direitos humanos, igualdade racial, política pública para as mulheres, o que mostrava um total descompromisso, já naquele momento, já estávamos aí pós-golpe no governo Temer. Um descompromisso com os sujeitos de direito, podemos dizer assim.

E quero também dizer, porque essa é uma situação que está se agravando cada vez mais, a situação dos povos indígenas. Nós havíamos feito uma comitiva para a região das etnias Guarani e Kaiowá, no cone sul do Mato Grosso do Sul, havíamos constatado um quadro de violência, com mortes por assassinato, preconceito, violação do direito humano à alimentação, uma verdadeira tragédia humana. Assim que eu sintetizei a gravidade daquele quadro, eu até me reportei ao discurso de posse. Quando eu disse que os indígenas estavam gritando: Vare’á!, V, A, R, E, apóstrofo, A, com acento agudo no A. Isso, em 2012, uma expressão que quer falar da ausência do broto da semente para exprimir a fome. Essa foi uma expressão, também de uma indígena, uma liderança guarani que participava lá no Consea, na verdade, este quadro só se acentuou com essa negação do que os indígenas Guarani chamam os seus tekoha, que são os lugares de pertencimento, eles produzem sua cultura, seus alimentos, cultivam a solidariedade, enfim, sintetizam o seu modo de ser. E essa situação dos povos indígenas se agravou, tem agravado profundamente, porque, além de se manter, já falávamos, naquele  momento, na nossa luta, através do Consea, era a favor do arquivamento da PEC que é a Proposta de Emenda à Constituição 215, sobre a demarcação, intitulação das terras indígenas, o risco de serem terras para extração mineral.

E hoje, o que nós vemos, com a expansão do garimpo, da mineração, esse debate ainda inconcluso sobre o marco temporal, que é um absurdo, e que seja reconhecida pelas terras indígenas que, a partir da Constituição de 88, isso é uma afronta a esses povos originários, que viviam sob a tutela do Estado, que não tinham o direito sequer de reclamar sobre seus próprios direitos. A Constituição de 88, que dá esse impulso, supera essa relação de tutela, mesmo assim, ainda no Brasil essa dificuldade de se referir aos povos indígenas como povos que são, enfim. Então, também naquele momento, como eu disse, essa situação está só se agravando. Agora, é importantíssimo ver a capacidade de resistência desses povos, como vimos agora, recentemente um acampamento em Brasília, na formação também das brigadas contra os incêndios criminosos, capacidade de resistência que a sociedade precisa reconhecer e entender e apoiar.

Mas, também, naquele momento chamava a atenção para a realização do encontro da Articulação Do Semiárido, era o Enconasa naquele período, com aquele lema tão importante, tão significativo, e se diz lá na Caatinga que o Semiárido é o lugar onde a vida pulsa e o povo resiste – é muito interessante. Eu quero chamar a atenção para aquela conquista que vinha sendo construída, que é bastante profunda, significa a mudança de um paradigma, a convivência com o Semiárido se baseia na noção de estoque. Estoque de terra, estoque de alimentos, estoque de sementes, estoque de alimento para as cabras, para o gado. Enfim, é uma mudança de paradigma, porque veio para combater aquela visão de seca e também do clientelismo que sustentava esse fornecimento de água, de carro-pipa etc.

E, lamentavelmente, em 2016 já questionávamos a redução do orçamento. E agora, tanto naquele programa Um Milhão de Cisternas, como também do P1+2, que é o Uma Terra, Duas Águas, e também apoio a casas de semente. Mas esse programa Uma Terra, Duas Águas é muito importante, porque significa água para produção. Imagine agora, praticamente inexistem no orçamento recursos para a continuidade desses programas. Então, é uma situação de um retrocesso inominável, o descompromisso do Estado, embora nossa Constituição tenha lá escrito o artigo 6º, que responsabiliza o Estado pelo direito humano à alimentação adequada. Nós vivemos tempos de permanente violação desses direitos, como eu disse, os dados atuais neste inquérito sobre a situação alimentar e de segurança alimentar no país revelam que não está mais na pauta de uma forma enfática, a defesa desse direito e com políticas e programas que sustentem a realização desse direito.

FIAN: E bem no primeiro ato, formado o governo Bolsonaro, teve aquela medida provisória, a MP 870, que extinguiu os colegiados, se não me engano, os não regidos por lei própria, mas colocou mesmo os que tinham lei própria no limbo. Então, no campo de soberania e segurança alimentar, que reorganização, rearticulação foi possível e foi necessária? Como isso caminhou desde então?

Maria Emília: Eu também quero lembrar que, no discurso de final de mandato, chamei atenção para a importância de uma iniciativa, que também nós estávamos constituindo, que era a interação cada vez maior entre o Consea, mas também com a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [Cnapo], com o Conselho Nacional de Saúde [CNS], o de Assistência Social [Cnass], que é aquele princípio da intersetorialidade que rege, que regeu a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e é muito importante, muito significativo. E nós vínhamos, já naquele período pré-golpe, fazendo algumas manifestações conjuntas de debate e também de audiência pública junto com a Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional, com participação de integrantes da Frente da Agricultura Familiar. Então, eu quis chamar a atenção para isso, quase chamando atenção para um novo passo e veja só o que acontece, pouco tempo depois o próprio Consea é extinto. Bom, nós tivemos muitas manifestações no Brasil extremamente significativas, como o Banquetaço, que se irradiou pelo país e teve sentido também de protestar contra a extinção do Consea. E me lembro de uma ação, de uma manifestação que tivemos aqui no Rio, com a Ação da Cidadania, um quilômetro de mesas com pratos vazios, que era exatamente o inverso do Banquetaço, exatamente como uma expressão de denúncia. E depois fizemos também um banquetaço. Mas, quero atribuir aí um papel nesse período muito importante ao Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, porque, ao realizar, em 2018, o oitavo encontro nacional dos fóruns, nós exatamente fizemos com a pergunta: como não falar – o “não” entre parênteses  – de comida de verdade se a fome está de volta? E nos manifestávamos, com os nossos quase 20 anos de ativismo e resistência.

E nesse encontro, exatamente problematizando já esses desafios, esses retrocessos. Até que chegamos a propor uma oficina, porque veja, com a extinção também do Consea, antes mesmo, já havia ficado no limbo a realização da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. E nós vimos que não podíamos impedir, barrar, frear esse processo, pelo contrário, exatamente porque mantivemos a nossa firmeza na defesa da Constituição, no que concerne aos direitos e também com esta ênfase em não retroceder na história e tentar avançar. Nós, então fizemos uma oficina de mobilização em defesa da cidadania, da segurança alimentar e nutricional, e nós retomamos uma leitura crítica, evidente sobre conjuntura e questionando  essa Medida Provisória 870 etc. e tal. Dissemos que era importante convocar por nós mesmos, por nossas forças, como sociedade civil, uma Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. E é bom que se diga que nós o fizemos num contexto em que muitas manifestações também estavam ocorrendo no Brasil, já tinha ocorrido a 6ª Marcha das Margaridas, que as mulheres trabalhadoras do campo, da floresta e das águas, com o lema “Na luta pelo Brasil, soberania popular, democracia, justiça e igualdade, livre da violência”. Tinha havido a Marcha das Mulheres Indígenas também. Tinha acontecido o Acampamento Terra Livre, que tinha sido realizado em abril, pelo movimento indígena. Enfim, essas manifestações também foram atravessadas, nelas se incorporou também a luta pela continuidade desses programas e pelo direito humano à alimentação, e tudo isso.

Portanto, quando nós concluímos pela importância de realizar uma conferência popular, nós o fizemos buscando realizar uma conexão entre dois processos, porque as conferências estaduais e municipais já haviam sido realizadas. Então, nós dissemos: “Vamos fazer um processo virtuoso, vamos relacionar esse processo institucional”, porque os Conseas estaduais – é claro que mais em alguns lugares, mais em uns estados do que em outros – estavam ativos. E também conselhos municipais, não tantos, mas vários conselhos municipais pelo país. Dissemos: vamos juntar isso como uma iniciativa de mobilização de movimentos sociais, ONGs, articulações etc. no caminho de uma conferência popular, autônoma, com direitos, democracia, soberania e segurança alimentar e nutricional. E assim fizemos e construímos uma comissão organizadora, com mais de 20 organizações, entre elas a FIAN, o fórum, evidentemente, a Fase, entidade em que trabalho, foi indicada para essa comissão organizadora.

E nós seguimos então este período, tomando iniciativas que tiveram vários sentidos, não só fizemos debates virtuais sobre o impacto da pandemia na situação de segurança alimentar e nutricional do país, como fazemos debates da importância de comitês emergenciais para enfrentar esta situação na pandemia, aplaudimos e debatemos também o incentivo dos comitês e das iniciativas de solidariedade cidadã, realizada pelos movimentos sociais nos bairros populares, nas periferias, assim como articulações outras. Mais recentemente, tomamos a iniciativa de fazer o Tribunal Popular sobre a Fome e concluímos já o nosso ano agora com essa jornada de debate, com tribunal popular e também com uma sistematização de uma agenda de mobilização que vai permanecer. E essa agenda também foi construída a partir dos debates que nós realizamos nas várias regiões do país, com a presença muito ativa dos Conseas estaduais, de movimentos populares etc. Então, veja que, nesse contexto de destruição de políticas, de retrocesso e de medidas autoritárias, antidemocráticas, nós conseguimos manter acesa esta causa, que tem relações com várias políticas e com vários atores sociais, enfim.

FIAN: E o tribunal, em um julgamento político…

Maria Emília: O tribunal tem uma sentença, nós buscamos a colaboração, evidentemente na expertise dos profissionais na área, e ele se realizou mesmo simbolicamente como um tribunal e com uma sentença, que acusa o Estado brasileiro de violador dos direitos. E a nossa perspectiva é dar continuidade, fazer chegar essa sentença onde ela precisa chegar, no sistema de justiça, porque também é bom lembrar que lá no Supremo Tribunal Federal tem uma ADPF [arguição de descumprimento de preceito fundamental], que é a 871, e tem agora a 883, da Ação da Cidadania. E que nós, ex-presidentes de Consea, entramos como amicus curiae, também o Conselho Nacional de Direitos Humanos entrou, a FIAN… E nós queremos também, com essa sentença do tribunal popular, reforçar a importância do julgamento dessas ADPFs. E queremos manter esta agenda de mobilização no contexto eleitoral.

Sim, eu queria acrescentar também que nossa mobilização na conferência popular ecoou também em um debate sobre a Cúpula dos Sistemas Alimentares [da ONU] e fizemos parte aqui de uma articulação latino-americana, que se manifestou com documento que também introduziu debate. E tanto é que nós temos essa perspectiva, através da conferência, de dar uma continuidade nesse debate sobre os impactos dos resultados da Cúpula de Sistemas Alimentares. E inclusive, relacionar com os impactos agora da COP 26 [conferência das Nações Unidas] que acabou de ser realizada sobre o clima. E também queremos analisar o que será a COP sobre biodiversidade no próximo ano. Compreender a crise alimentar em suas várias manifestações significa fazer uma análise comparativa do que é a questão climática e ambiental hoje, como também o que significa o avanço do domínio das corporações nesses vários terrenos.

Na verdade, a Cúpula de Sistemas Alimentares foi uma cúpula de captura corporativa no sistema alimentar. Por isso que nós nos mantivemos com a firme decisão de que, para contrapor a esse domínio de corporações, é preciso que a gente mantenha no centro o direito humano à alimentação, que nem constava nos debates da cúpula e depois entrou marginalmente. Mas no centro, para nós, está a questão dos direitos humanos, a soberania alimentar – que por sinal também acaba de fazer 25 anos agora este ano, a construção histórica desse conceito –, e articular com a agroecologia, com os princípios da agroecologia, não como alternativa, mas como um imperativo para enfrentar a crise alimentar nos seus vários sentidos.

É preciso que a gente aposte nos sistemas alimentares com sua diversidade, de acordo com os princípios da agroecologia, que nos recoloca na relação com a natureza e nos traz também a valorização dos saberes tradicionais, em diálogo com saberes técnicos, e sobretudo a diversidade dos alimentos e da alimentação é cada vez mais uma necessidade, porque os nossos padrões alimentares vão ficando cada vez mais restritos, monótonos, com a imposição desses ultraprocessados, da indústria alimentícia. Por isso que precisa também combinar com regulação do Estado, que sempre foi um tema de debate nosso, no Consea.

A todo tempo nós trazemos, não só como eu exemplifiquei, uma problematização do que oferecem as cantinas alimentares, as cantinas nas escolas, mas também o que representa o peso do ultraprocessado na alimentação escolar. Mas, também, insistindo que precisa haver uma regulação da publicidade de alimentos, que atinge muito as crianças, tanto é que o Conanda [Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente] chegou a se manifestar a respeito, também sempre defendendo, nós defendemos a rotulagem para anunciar o que são os transgênicos, e a rotulagem nutricional. Finalmente, no ano passado, o Brasil acabou adotando uma rotulagem frontal, mas não exatamente como a gente propunha, como é no Chile, que representa mais uma atitude de prevenção – tem mais nitidez o símbolo adotado lá para chamar a atenção de consumidores sobre o que representam os riscos para a saúde humana desses produtos químicos que entram na composição desses ultraprocessados.

FIAN: Certo. Então, em um evento recente nosso, da FIAN, a senhora participou e passou por vários elementos, como agora está tecendo esse cenário, essa conjuntura e deu ênfase a uma ideia que é a do direito ao gosto. Pode explicar o que essa expressão significa e como ela se relaciona com esses elementos?

Maria Emília: Bom, é que na atualidade, de fato, nós vemos crescer para alguns segmentos da sociedade – isso infelizmente não é traduzido, como eu já disse, nas políticas e programas  –, que cresce o debate dos sistemas alimentares e sua relação com a saúde, com meio ambiente. Fala-se também da necessidade de dietas sustentáveis, saudáveis. E eu costumo acrescentar que é preciso incluir o direito ao gosto. Por que eu digo isso? Por várias razões, primeiro porque, falar do direito ao gosto, significa a gente se remeter aos hábitos alimentares, que são tão distintos historicamente no país. Eu me lembro, lá em São Paulo, em dado momento em que queriam defender a proposta da chamada farinata, que nós acabamos chamando de ração humana para os pobres. Naquele momento, alguns políticos diziam que o pobre não tem hábitos alimentares.

Então, é extremamente grave você negar a humanidade ao humano e falar do direito ao gosto, significa, portanto, a meu ver é uma conjugação de questões, porque se relaciona com a visão que nós temos da comida de verdade como um patrimônio e não uma mercadoria. E isso é defendido pelo fórum, o fórum tem uma campanha que vai entrar agora na sua quarta etapa, que fala da comida como um patrimônio, porque isso remete à variedade de culturas alimentares, a memória alimentar, que presidem essa visão. E, ao mesmo tempo, quando a gente fala da crise alimentar, essa crise combina o aumento da fome com o processo de financeirização, de artificialização da natureza, porque nós temos uma destruição, a gente chama de uma erosão da nossa biodiversidade, contaminação de alimentos, dos solos, ao mesmo tempo que cresce essa indústria e consumo de ultraprocessados e tecnologias que vão nos afastando da variedade de alimentos e dos seus gostos. Então, a ideia da saúde, tem que vir combinada também com a ideia do prazer.

E quando a gente fala do gosto, como eu disse, nós nos remetemos também à história, que é uma maneira de pensar, as formas também de dominação. Tem havido lugares no Brasil, felizmente, que se inicia o debate da relação de sistemas alimentares e racismo. A nossa história é uma história que contém, muitas vezes uma classificação de alimentos que está relacionada com o domínio, com a dominação colonial. Então, é uma gama de sentidos que, a meu ver, por exemplo, se nós falamos dos ultraprocessados, que é uma forma, a meu ver, de enganar o gosto, eu diria, porque essas formulações que tentam imitar, elas estão baseadas mesmo em alguns alimentos in natura. Os ultraprocessados têm um bocado de soja, de milho. Agora, combinado com essas substâncias, espessantes, aromatizantes, são muitos aditivos que mexem com os nossos sentidos sensoriais. Então, é diferente você fazer uma batata assada em casa, que comprar uma batata congelada, que dura não sei quanto tempo dentro da geladeira, ou algum produto que dura lá na prateleira.

São incógnitas, uma nutricionista, Regina Miranda, que cunhou essa expressão muito interessante, ela disse “incógnitas alimentares”, é isso mesmo, não sabemos como decifrar esses aditivos todos. E eles têm um efeito sensorial, mas isso, é como eu digo, engana também o gosto. Tanto é preciosa a classificação pioneira no Brasil, feita pelo Guia alimentar para a população brasileira, na sua edição, que vem lá do período em que eu estava na presidência do Consea, é uma grande satisfação lembrar disso, foi no ano de 2014, se não me falha a memória, e também é interessante o livro lançado na época, ambos pelo Ministério da Saúde, que é um livro de alimentos regionais brasileiros. E essa é uma lição básica que o guia alimentar traz, a importância do consumo in natura, e ver que a população brasileira está consumindo cada vez mais ultraprocessados, porque é este alimento que engana o gosto, é barato e que provoca essas alterações, alergias alimentares e também diabetes, variação de pressão arterial e tudo isso. Então, eu acho que eu penso que falar do direito ao gosto é, na verdade, um chamamento para esses debates políticos profundos e para reconhecer o que é o nosso país, costuma-se dissociar muitas vezes a rica biodiversidade do Brasil com quem protege essa biodiversidade.

Então, falar do gosto é também chamar atenção para quem protege a biodiversidade, com os seus frutos nativos, com suas variedades tão grandes, que são um legado de permanência da domesticação de plantas e do manejo delas, e também do cultivo diverso, como, eu expliquei, os princípios da agroecologia nos inspiram. Há povos indígenas que tem que manter, que asseguram essa diversidade, e é como coleção de plantas, esse sentido que se afugenta com o processo de financeirização da natureza, de artificialização, ele é mantido pelos povos indígenas em comunidades tradicionais, e isso, é preciso que a sociedade entenda que é importante para nossa saúde e, por isso acho que falar do direito ao gosto é uma maneira de estimular o debate, uma maneira de entrar na história dos alimentos e dos povos na nossa plurietnicidade, que é tão rica no país. O respeito e proteção são vanguardas para esses povos, que o segmento do campesinato, com seus sistemas agrícolas. E nós corremos o risco de perder esse direito ao gosto, com essa artificialização. Imagine que agora já falam nos alimentos produzidos em laboratório e, muitas vezes, essa defesa é como se fosse uma proteção para natureza.

É um equívoco, eu acho que a pandemia nos ensina o quanto nós precisamos retomar o debate da relação cultura e natureza, sociedade e natureza. Não é ela continuar sendo subjugada, como é pelo agronegócio, que destrói, que desmata, não é o caminho, mas também não é o caminho manter a natureza intocada, Carlos Diegues nos ensinou sobre o mito da natureza intocada. Nós precisamos retrabalhar essa relação com a natureza, inclusive porque a natureza também é produzida socialmente, a floresta amazônica nos ensina que são milhares e milhares de anos para compor aquela floresta, com as suas espécies e variedades e seus gostos, que, infelizmente muita gente, às vezes nem conhece ainda, às vezes é tal a dimensão de um país continental, com tantos biomas, tantos povos, que é uma complexidade. Então, façamos a defesa ao gosto junto, que é estar junto com a defesa do direito a uma alimentação que seja de qualidade.

FIAN: Só um parêntese, viajando um pouco, mas me ocorreu uma associação, porque na natureza existe o vermelho forte, o amarelo forte, existem padrões ali que são o oposto da camuflagem, são padrões de alerta. Então, tem flores venenosas, cobra-coral, algumas espécies de vespas. E os ultraprocessados operam em uma lógica meio contraditória, que é como se fosse tudo gritante, vem ingerir esse veneno, no fim das contas é como se fosse um sinal trocado de alerta.

Maria Emília: É verdade, é interessante o seu pensamento. E operam também de uma forma gritante a maneira como são anunciados os novos produtos. Eu me lembro, inclusive quando nós cunhamos aquele lema comida de verdade no campo e na cidade, com direito à cidadania alimentar, que foi exatamente o lema da última conferência nacional, pouco tempo depois, esses produtos ultra processados apareciam em campanha publicitária, chamando de comida de verdade. É uma total inversão.

FIAN: Ele tem um refinamento, que é justamente isso. Gastam bilhões e mais a publicidade para aquilo ficar com: aqui você vai sentir o gosto de infância, com essa coisa feita de inúmeros pozinhos.

Maria Emília: E com uma inversão total, porque, se a gente for pensar na questão da tributação, é um escárnio que acontece no país, porque os agrotóxicos comercializados também têm lá uma benesse em relação ao tributo. E também, as empresas que produzem as bebidas açucaradas, também tem lá. Eu até uma vez eu vi a dimensão disso, do ponto de vista monetário, é muito o que deixa de ser cobrado. E você veja que, por outro lado, nós vamos falar já do Pnae de novo. Por outro lado, você veja que esses programas que nós estamos falando sobre eles, vão perdendo o que tinha uma importância para a vida, para a saúde, vão perdendo orçamento, ou vão sendo descaracterizados, é muito grave, é uma inversão completa, eu acho que nós estamos vivendo também no tempo sem limites, sem barreiras para frear processos tão destrutivos.

FIAN: Verdade. Bom, então voltando ao Pnae, por que ele é considerado tão importante no combate à fome? Em que medida ele se liga às diferentes dimensões da sustentabilidade? Tem muita, se entrelaçam muito nesse sentido?

Maria Emília: Então, na sua concepção, com certeza essa lei aí de 2009, ela avançou significativamente. Como ele é um projeto, de fato estratégico, não me lembro se no início da nossa conversa, se eu cheguei a dizer que, nas avaliações do por que o Brasil saiu do Mapa da Fome, se inclui este programa, que é um dos maiores do mundo, no ponto de vista da população que atinge, que são milhões e por isso também são bilhões, é uma montante monetário enorme, que é uma forma de atrair as empresas. Participar desta grande fatia de mercado. Mas ele é estratégico e ele é muito interessante na história, porque ele atravessa, interessante no Brasil que ele atravessa a nossa história, chegando a milhões de escolares hoje.

Agora ele é um programa que inclusive passou a integrar uma diretriz da promoção de acesso a alimentação adequada e saudável na política nacional de segurança alimentar e nutricional. Esse reconhecimento, inclusive reconhecimento pelos legisladores também, é bastante importante nessa história, porque o Estado passou a valorizar outros valores nas aquisições públicas, como o aspecto social, o aspecto ambiental, a saúde, e não ficar reduzido àquilo que a licitação, que a Lei Geral de Licitações prevê, que é menor preço, concorrência. Então, você vê que tem uma inovação significativa, que nos remete a pensar, vamos dizer, nas dimensões de sustentabilidade.

Então, porque do ponto de vista social, assegurando a compra de 30% da agricultura familiar, povos indígenas e comunidades tradicionais, tudo isso também, do ponto de vista ambiental, a valorização do alimento local, de acordo com a época dos alimentos e da sua variedade. Então, ele relaciona e, portanto, buscando frear nas escolas. E como eu disse, não está estabelecido na lei, mas freia o consumo de ultraprocessados lá onde tem essa compra. Então, tem várias dimensões aí que se cruzam, mas acho que são bastante importantes.

FIAN: E que as propostas de mudança ameaçam…

Maria Emília: O que está acontecendo com esses projetos de lei é grave, porque tem uma tendência descaracterizar aquilo que deu esse sentido inovador ao programa, os legisladores querem agora estabelecer cardápios, vamos dizer cotas de determinado cardápio, do leite, leite fluido, leite em pó, da carne de porco, enfim, não cabe aos legisladores fazer esta proposta, é absolutamente contra os princípios que estão contidos na lei, que ressalta exatamente em nome de dimensões de sustentabilidade, a valorização do alimento local. Não é lugar de trabalhar num programa público desse, em que o Estado, vamos dizer, passou a considerar outros valores, imprimir um retrocesso desse em nome de reserva de mercado, é o que parece, reserva de mercado para laticínio, enfim. Então, é muito grave essa proposta de descaracterização.

E a redução do orçamento também é gravíssima. Porque um programa estratégico que precisa ser aperfeiçoado – acabei de dizer que a gente defende uma atualização do per capita, que aliás o Observatório da Alimentação Escolar está propondo atualmente – está lá no projeto de lei orçamentária, que é o POA, cai de R$ 4,6 bilhões em 2021 para R$ 3,96 bilhões em 2022. Ao mesmo tempo, alguém vai nos perguntar: sim, mas o governo acaba de editar alguma medida para aumentar o limite de venda dos agricultores, de R$ 20.000 para 40.000. Olha, essa é uma proposta polêmica, aumenta para atender a quem? Nós já vínhamos percebendo uma certa, como se diz, concentração de compra através de cooperativas maiores, mais estabilizadas, vamos assim dizer, isso em detrimento de pequenas cooperativas, de pequenas associações. De todo modo, eu quero é sublinhar isso sim, que aumentar o limite não significa a mesma coisa do que democratizar esse importante programa. Se aumenta o volume é uma parcela de agricultores que vão conseguir atender e não aquela parcela também mais pobre, que participa também do programa.

Eu conheço muitos exemplos, porque eu trabalho numa entidade que contribui apoiando os camponeses a acessar o programa de alimentação escolar, e em muitos lugares nós vimos que o exercício do PAA, o Programa de Aquisição de Alimentos, favoreceu também que essas organizações menores pudessem acessar depois o Pnae. Então, eu queria dizer o seguinte: tem uma contradição, se realmente vai ser reduzido o valor do orçamento do programa, e aumentar o limite para o agricultor, esta conta, esta equação não exprime, a meu ver, o que deve ser o princípio de política distributiva, em alguma sinalização aí que não coaduna.

FIAN: Certo. Então, aqui passando um pouco mais por esse caráter, tanto da política pública, quanto o debate em torno dela, que nem sempre transparece naquilo que chega à sociedade e aos beneficiários e beneficiárias específicos. Então, tanto os pratos, como os lanches oferecidos nas escolas, nem sempre é fácil ir além, compreender, saber dos debates e que você já passou bastante aqui e também dos interesses envolvidos, muitas vezes milionários ou bilionários. Por que é difícil isso chegar ao conhecimento das pessoas, até para a sociedade ter condições melhores de reivindicar, em uma situação de exigibilidade mais sólida?

Maria Emília: A meu ver, não é amplamente expandido na sociedade essa concepção mais abrangente, que articula várias dimensões da segurança alimentar e nutricional e soberania alimentar. E eu acho também que nas escolas, você veja, uma das conquistas importantes dessa lei de 2009 foi falar da importância da educação alimentar e nutricional. Tem experiências no Brasil muito exitosas, a entidade em que eu trabalho mesmo está com uma experiência lá na Bahia, que é de envolver o ambiente escolar, porque esse é um lugar muito importante para formar hábitos, para as crianças conhecerem, as crianças estão perdendo a informação sobre os alimentos em muitos lugares. E conversar sobre o cardápio, sobre a origem do alimento, o papel do agricultor familiar e até ter experiências de horta escolar. Tudo isso conforma um conjunto de iniciativas, levar para dentro do próprio currículo das várias matérias sobre o que é o alimento, tomando exemplos, e pode trabalhar com isso do ponto de vista da Geografia, da História, da Matemática.

E é muito interessante que lá no Consea nós escutamos, muitas vezes, experiências que estavam mais concentradas na Semana da Alimentação, aí as escolas fazem atividades extremamente criativas. Seria importante que fosse uma atividade mais constante, porque assim também irradia mais para a sociedade. Eu conheço um exemplo lá no Mato Grosso, também de uma articulação que se chama Arpa, que é articulação de produtores agroecológicos. Eles, quando começaram a fornecer alimentos para as escolas, o professorado mesmo se interessou por alimentos e começaram também a perguntar se não tinham galinhas.

Tem que explicar também que a legislação, a vigilância sanitária no Brasil, ela cria muitas barreiras para o alimento artesanal, eu até queria realçar uma iniciativa que precisa também ser conhecida, que é uma iniciativa do Ministério Público, que nasceu lá na Amazonas, que hoje está se estendendo pelo Brasil, a Catrapovos, porque diz respeito a alimentos tradicionais, que é esse debate de assegurar melhores condições para que o alimento artesanal, tradicional chegue nas escolas. Eles começaram debate sobre povos indígenas e também comunidades tradicionais, considerando que os indígenas, as escolas nas aldeias equivalem ao autoconsumo. Trazer o alimento todo processado, o alimento de outras regiões, além de ser desfavorável ao clima, rompe com a tradição da alimentação escolar, da alimentação tradicional.

Mas então, acho que tem um trabalho a ser feito nas próprias escolas, e por isso também eu disse que os Cecanes têm um papel importante, não sei se eles têm apoio hoje, mas já houve no passado esses núcleos nas universidades, eles participavam de editais que ocorreram para fazer esse trabalho junto ao Conselho de Alimentação Escolar e esses diagnósticos e tudo isso. Então, precisamos, não podemos nos abdicar desse papel na sociedade de manter acesa essa pauta da alimentação, com a sua qualidade, direitos. E eu acho que tem que aumentar o exemplo das experiências nas escolas. Nós, da Articulação Nacional de Agroecologia, junto com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, estamos fazendo uma pesquisa sobre alimentação escolar e estudos de caso em várias regiões do país e junto a escolas. Então, acho que isso também vai nos dar muitos elementos de análise, porque é uma análise sobre os vários atores envolvidos, quem recebe o alimento, quem entrega o alimento, na escola também como age também o profissional de nutrição, o conselho, enfim. Essa análise conjugada, ela também favorece a explicação sobre o que significa essa alimentação que chega lá nas escolas, acho que é um pouco por aí, que é tornar mais conhecido.

FIAN: Aquela pesquisa que ia ser concluída no ano passado?

Maria Emília: E com a pandemia, foi adiada, não sei se vão conseguir concluí-la este ano também [a entrevista foi em dez/2021], ela teve o cronograma alterado, mas é uma pesquisa interessante.

FIAN: Bom, se as forças minimamente comprometidas com a ideia de um país mais justo conseguirem virar esta página que nós estamos vivendo, um termo que tem sido usado é o de reconstrução nacional. No campo de SSAN, que prioridades despontam para um momento como esse?

Maria Emília: Então: nós fizemos, no âmbito lá da conferência popular, nós acabamos fazendo uma agenda de mobilização que inclui, inclusive uma proposta, como eu disse é uma agenda resultando dos debates regionais e desses webseminários também, que nós fizemos. Mas há uma proposta de que a gente consiga uma verdadeira frente nacional em defesa desses programas, como PAA, Pnae, mas também na defesa da agricultura familiar, camponesa, dos povos indígenas, comunidades tradicionais. A gente tem que conseguir uma adesão ampla, mais ampla sobre isso. Também nós precisamos fortalecer essas articulações em defesa do direito à terra, do território, da agrobiodiversidade. Nós estamos atravessando, no país, um momento de uma reestruturação do mercado de terras, é uma quantidade grande de terra arrecadada pelo mercado, com essas mudanças, essa flexibilização de legislação fundiária, ambiental. Então, é muito grave o cerco sobre essas populações crescendo de uma forma absurda.

Mas também queremos reforçar essa perspectiva política, do que representa a cultura alimentar, que é uma forma também de luta pela comida, pelo alimento como um patrimônio, preservação do patrimônio alimentar. Isso é um aspecto bastante importante para nós. Inclusive, isso também foi uma história interrompida dentro do Ministério da Cultura, com a formação do conselho [Conselho Nacional de Política Cultural, criado em 2005], houve no passado recente, uma proposta para que se criasse um grupo de trabalho sobre a cultura alimentar. E isso foi aceito, na época, o ministro da Cultura estava até interessado em ingressar, em ser parte também do Consea, enfim. Agora, quando se discutiu a lei, Projeto de Lei Aldir Blanc, sobre cultura, que era um apoio emergencial para os realizadores da Cultura, se inseriu também lá a cultura alimentar, isso foi importante, embora os recursos, quando chegaram, eles não destinaram tanto aos pontos de cultura.

Mas tem um debate que ganhou um sentido maior nos últimos tempos e a gente precisa fortalecer, também as políticas de acesso à água, a água potável, de qualidade, saneamento básico, isso também é fundamental nessa agenda, priorizar a agroecologia, como uma possibilidade de construção de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. Nós temos insistido que temos que fortalecer o diálogo com articulações e frentes de combate ao racismo. E também a luta das mulheres, essa interação com os movimentos de mulheres, o movimento feminista é extremamente importante, porque as mulheres têm um papel extremamente ativo, tanto como eu disse, na proteção da biodiversidade e transformação dos alimentos. E é preciso romper com essa desigualdade e ver nas mulheres como sujeitos ativos, sujeitos que precisam ser fortalecidos na sua autorrealização, nas iniciativas que representem a emancipação política e econômica das mulheres. E aquilo que a gente vinha construindo com o programa de fortalecimento à produção de alimentos, por exemplo, pelas mulheres.

Algumas iniciativas e programas deixaram de existir. Nós temos que cerrar fileiras nessa movimentação para articular movimentos de mulheres, movimentos feministas. É preciso, evidentemente que só haverá Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com a reconstituição das bases de poder, de participação da sociedade, de formas de controle social. O Consea foi, por excelência, um lugar em que propostas de aperfeiçoamento de políticas, como o Pnae que nós estamos dizendo, proposta de novos programas, como o Programa Aquisição de Alimentos, PGPM-Bio [Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade], e também os programas sobre convivência com o Semiárido, enfim. É preciso que o Consea seja reconstruído nas bases em que ele era, dsois terços da sociedade civil, presidência da sociedade. E junto disso, a Caisan, evidentemente, que é a câmara interministerial. Porque também não há política de segurança alimentar e nutricional sem a inter-relação de políticas e programas de vários ministérios.

Bom, então são algumas propostas que a gente precisa considerar e essa interação com os outros conselhos, de saúde, de assistência social, para retomada também para uma comissão nacional de agroecologia é produção orgânica, tudo isso, essas interações no âmbito também da participação social, de incidência também, é bem importante. Mas, eu queria reforçar também o papel dessas frentes parlamentares, uma frente parlamentar de segurança alimentar e nutricional precisa exercer o papel extremamente importante, dialogando também com o Consea. São exemplos, a meu ver, dessa reconstrução. Mas tem uma questão fundamental, que programas e políticas sejam pensados a partir do princípio da emancipação. Nós estamos sob a égide neoliberal, em que o indivíduo, no caso brasileiro, inclusive passa a ser responsabilizado pelo seu próprio fracasso, pela sua história, quiçá até pela situação de insegurança alimentar que vive. Isso nós temos que questionar em permanência, essa visão, como a visão da “economia da prosperidade”.

É por isso que é preciso sedimentar propostas que sejam baseadas em princípios e valores, que tenham o sentido da política redistributiva, nós precisamos fazer a defesa de bens comuns, porque isso dialoga com essa visão da comida como patrimônio, porque as sementes precisam ser conservadas na sua diversidade e quem conserva é a agricultura familiar, camponeses também precisam de apoio das casas de sementes, intercâmbio de sementes. A semente tem que ser vista como um patrimônio. E há mudanças sendo propostas, talvez em relação à Lei de Sementes [Lei 10.711/2003], que nos preocupam. Então, a variedade que tem no Brasil das formas de apropriação e uso das terras são muito diversas, a Constituição assegura esse direito e fala das terras tradicionalmente ocupadas, e que são sistemas de uma complexidade enorme e que relacionam a ação de uma família com uma área que é protegida, cultivada, como ela é apropriada de forma coletiva.

Então, esses princípios, lá já se foi o princípio da precaução, que virou uma página da história, absolutamente gravíssima a liberação desses agentes químicos, que já foram suspensos e proibidos nos países de origem. E agora, veja que a CNA [Confederação Nacional da Agropecuária] tem propostas de ação de constitucionalidade em relação à definição, a proibição de pulverização aérea no Ceará, enfim, isso é que eu chamo de restaurar princípios e valores, que eu exemplifiquei aí. É desafiador, e nós temos que debater profundamente o que representa o impacto dessas novas tecnologias, que eu dizia que artificializam. Que a defesa das corporações é da biofortificação, como os se os alimentos fossem fracos e precisassem ser fortificados nos seus nutrientes, nós precisamos é assegurar  a comida com variedade, em quantidade suficiente, e não uma nova revolução verde, como querem trazer com essas tecnologias, biotecnologias e a chamada bioeconomia, que é converter tudo em mercadoria. Precisamos analisar os impactos, está aí o que nos diz a Conferência do Clima.

Nós não podemos sair deste lugar que coloca no centro os direitos e a responsabilização do Estado com políticas estruturantes. Essa visão que soma auxílios e que dá uma temporalidade para algumas propostas, isso nós temos que questionar, tem o exemplo desse Auxílio Brasil. Precisamos dessas propostas que nos levem à emancipação, mas nós temos que ser bem enfáticos em questionar que o mercado, as corporações não podem comandar as nossas vidas.

FIAN: Essa lógica toda tem muita eficiência e a radicalização dela veio pela tecnologia e como estratégia de guerra cultural. E levou a uma adesão mais ativa a esse tipo de pensamento. Tanto no sentido de um liberalismo bem sem freio, como nessa caricatura do empreendedorismo, que está na uberização, enfim. E é isso, muitas vezes a gente presencia, as pessoas que não estão sendo beneficiadas com esse sistema, elas estão sendo pauperizados, tendo a exploração. E que ridicularizam tudo o que trata de política pública, de proposta redistributiva. Então, é muito esse discurso assim: “Ah, manda carpir um lote”. Esse tipo, como você já passou bastante pelo que precisa ser afirmado, mas como sair e como atingir quem não é convertido por esses valores que a gente procura, ainda mais quem vem recebendo sistematicamente – já há alguns anos, cinco anos, sei lá – mensagens que, de certa maneira, blindaram mais esse tipo de entendimento? Como a gente pode conseguir dialogar e, quem sabe, de alguma maneira convencer?

Maria Emília: Esse é um desafio enorme e, a meu ver, ele cada vez vai exigir também mais imaginação e criatividade, porque, para lidar com essas expressões dessa cultura política, eu acho que nós temos uma tarefa de desvendar o que são esses mecanismos de dominação e opressão. Mas temos que manter esse debate aceso em um contexto que, às vezes, eu acho que tem um bocado de cansaço. A pandemia também criou uma ambientação que, talvez tenha contribuído um pouco com isso, uma certa desesperança, ou como se a humanidade não tivesse outro caminho para trilhar, porque tem uma força muito grande contra, uma força de dominação da guerra cultural, porque tem uma guerra cultural mesmo. E também tem uma crença impressionante, de vários lados, tem uma crença nas tecnologias. Nós também, com essa coisa das chamadas forças produtivas. E essa foi a resposta na cúpula de sistemas alimentares. O centro para as corporações estava lá: “As respostas são tecnológicas”. Então nós temos que trabalhar isso, nós temos que, eu, aliás não coloquei aqui como um desafio isso. Há a necessidade da gente entender mais, de clarear o que são essas propostas tecnológicas, o que são, o que eles chamam de soluções baseadas na natureza e que nós chamamos de falsa soluções. Tem que desligar esses significados.

Outro dia, eu comecei a tentar listar as várias denominações que vem cada vez mais sendo usadas para caracterizar os tempos de uma nova agricultura. Então, agricultura 4.0, digitalização na agricultura. Tudo isso tem um sentido, isso não é, acho que, às vezes a gente focaliza muito esse debate sobre enfrentar, disputar narrativas, não. É muito mais complexo que isso, é narrativa e as propostas concretas que essas narrativas encerram. Agricultura sensível à nutrição, e vai por aí afora. Então, são analisadas, do ponto de vista da dominação, eu insisto isso, dominação sociopolítica, analisar do ponto de vista do impacto no meio ambiente, analisar do ponto de vista econômico, porque nós corremos o risco de ter recursos para essas respostas tecnológicas e não se valorizar um orçamento como responsabilização do estado para assegurar o direito à alimentação, com uma alimentação que seja reconhecida como tal na sua suficiência, qualidade. Então, é um momento da história de uma conjugação de crises, que nos faz pensar muito como fazê-lo. Bom, primeiro que nós não podemos abdicar do que nós já estamos fazendo, a exemplo da conferência popular, mas temos que ir mais além, nós precisamos analisar, de fato, olha, nós já temos programas no Brasil que a gente precisa conhecer bem, o que é o programa Adote um Parque, eu esqueci o nome do programa lá do Pará, que é baseado na chamada bioeconomia. Tem muita controvérsia, às vezes no interior dos próprios movimentos, é uma tamanha complexidade.

Agora, nós temos que também procurar nos articular mais, do ponto de vista internacional, acho que isso é necessário, onde estão as plataformas, as articulações internacionais. E há um debate, que a meu ver é bastante importante, do ponto de vista internacional, que tem agora, em vistas de um novo encontro em Nyélény, dos movimentos que se articulam com a Via Campesina, começa-se a discutir uma conferência – conferência mesmo, multilateral – sobre alimentação, porque o que essa cúpula também trouxe à tona é uma reversão das práticas de governança, porque foi muito mais baseada no multiatores, “multistakeholderismo”, como se não houvesse conflito de interesses. E com um risco muito grande disso incidir agora sobre o Comitê de Segurança Alimentar Mundial das Nações Unidas. Isso está em debate atualmente, o poder de influência das corporações. No entanto, eu queria sublinhar isso também, nós precisamos dar a conhecer mais o que representa aquela declaração que foi reconhecida na Assembleia da ONU, sobre os direitos dos camponeses e outras pessoas que trabalham na área rural.

Isso é um importante debate que o Brasil se absteve. O Brasil era um país que batalhava, que estava apoiando na formulação da declaração, mas quando ela foi votada, já era o governo Temer, já era pós-golpe. E o Brasil se absteve.

FIAN: E até uma parte do embate na cúpula foi assim, países alegando que não eram obrigados a seguir, né?          ue ela valia só para quem aderisse.

Maria Emília: É, então tem um debate internacional também sobre a regulação das corporações. Esses dias nós tivemos uma reunião com a Sofía [Monsalve], da FIAN. E ela falou sobre isso também.

FIAN: A FIAN Internacional participa bastante dessa pauta.

Maria Emília: Tratado internacional dos povos para o controle das empresas transnacionais, eu tenho aqui um texto que é de dezembro de 2014, é porque a campanha é exatamente isto daqui: desmantelemos o poder corporativo, é isso – “Stop Corporation”. Isso que eu estou observando que está voltando a ganhar mais força. O documento faz referência a implementar soberania alimentar, reforma agrária, agroecologia e vai embora, fala dos princípios gerais, olha aí, direitos humanos, Estados, normas de comércio, enfim. Isso é a proposta de um tratado, então eu acho que esses temas têm que entrar mais.

Nós vivemos sob uma pressão tão grande de reagir ao que é destruído no dia a dia que essas questões também acabam não ganhando a devida relevância, acho que a gente precisa trazer para esse debate, agora você não tem dúvida que há um certo, mais do que desprezo, uma negação do Estado – bom, né?, aí até tem quem diga “Mas os Estados também já foram capturados pelas corporações”, por isso que eu me lembrei do tratado. A questão, a meu ver, é a gente conseguir articular aquilo que tem um caráter emergencial, que responda pelos momento de emergência, com propostas que precisam ser reconstruídas, novas propostas. Enfim, é um desafio hercúleo.

Confira também o que disseram Deborah Duprat, José Graziano, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

Entrevista | DEBORAH DUPRAT: “Um governo que não provê direitos é inconstitucional”

Publicada, em versão resumida, no livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae.
Link para as outras quatro entrevistas da série ao fim da página.

O neoliberalismo não é uma possibilidade constitucional no Brasil, defende a ex-subprocuradora-geral da República Deborah Duprat. Ela ressalta que a Constituição Federal de 1988 traz a clara opção por um Estado forte, provedor de políticas públicas. Nesse sentido, aponta contribuições do Ministério Público à defesa da coletividade, mas também uma pendência exagerada da instituição para o lado penal. Com relação ao Judiciário, ela alerta para o distanciamento cada vez maior da vida real e, assim, das necessidades da população.

Homenageada por três ex-procuradores-gerais e mais de 300 procuradores e procuradoras ao se aposentar, ela voltou à advocacia, com o combate à fome como prioridade. É uma das autoras da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 831, que pede ao Supremo Tribunal Federal (STF) a determinação de medidas urgentes para combater a insegurança alimentar e nutricional. A entrevistada ressalta a importância da agricultura familiar – e do Pnae – no enfrentamento desse cenário.

Para a ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão, o desmonte da estrutura de proteção social nos últimos anos foi de tal ordem que pedirá uma resposta similar a uma justiça de transição, estratégia excepcional para julgar e superar o legado de violência em massa de períodos de ditadura ou guerra.

Duprat enfatiza a necessidade de o país recompor seu funcionalismo e as agências governamentais responsáveis pelas políticas de direitos humanos, mas diz que precisamos examinar um certo esgotamento do espírito constitucional, que vai levando a competição a deslocar a solidariedade e constitui, a seu ver, um elemento-chave na ascensão de um governo como o de Jair Bolsonaro.

FIAN Brasil: A primeira pergunta passa pela atuação da senhora no Ministério Público, que contemplou muitas pautas que nós – entidades e movimentos progressistas – consideramos fundamentais. Com o Direito Achado na Rua e a participação de outras organizações, fizemos aquele livro de enunciados jurídicos em torno do Dhana, diante de uma percepção de que é como se uma parte da Constituição estivesse sempre sendo secundarizada ou ignorada. A senhora concorda com essa leitura sobre o funcionamento do nosso sistema de justiça?

Deborah Duprat: Eu concordo, sim. Acho que a ênfase, inclusive, deve ser no próprio Judiciário, porque é interessante a gente analisar a Constituição de 1988, a partir das lutas que foram travadas desde a década de 70, para, enfim, uma emancipação da sociedade ainda vítima do projeto colonial. A Constituição de 1988 vai ser o primeiro documento constitucional, primeiro documento jurídico a reconhecer direitos para todas as pessoas. Então é interessante que uma Constituição com essa característica, que favorece muito o acesso à justiça, porque cria a Defensoria Pública, tanto da União, quanto dos estados, coloca no Ministério Público também a atribuição de zelar pelos direitos fundamentais, pelos direitos da cidadania, e pouca ou nenhuma preocupação teve com uma remodelagem, digamos assim, do Poder Judiciário.

É um Poder Judiciário que até quando estava mais próximo da Constituição… Enfim, a potência daquele movimento ainda tornava o Judiciário, vamos dizer, mais atencioso aos direitos que se inauguravam. Com o passar do tempo, com o distanciamento da potência constitucional, é um Judiciário cada vez mais pouco conhecedor, digamos, das normas da Constituição, mas não é porque não conhece o Direito. Na verdade o Judiciário não conhece o mundo, não conhece a vida real. Se é um Judiciário que não vai ao supermercado, que tem alguém abrindo a porta, tem um elevador exclusivo, tem um local, tem motorista para transportá-lo, enfim, todas essas circunstâncias tornam o Judiciário extremamente oligárquico, distante da sociedade, e se isso é fato em meio urbano, mais ainda em meio rural, em meio agrário.

FIAN: Certo. A gente vai voltar um pouco a esse ponto, mas, com relação ao Ministério Público, nós presenciamos a contribuição em algumas lutas e vitórias importantes na garantia da alimentação escolar ou da universalidade dela. Na avaliação da senhora, a atuação, em um tema como esse, é exemplar em relação ao papel do MP? E esse tipo de atuação vem sendo, vamos dizer, a média da instituição? Como corpo, ela vem cumprindo satisfatoriamente esse papel?

Duprat: A gente tem que lembrar que esse desenho do Ministério Público, que acumula ação penal pública, a pauta de direitos humanos e o controle externo da atividade policial, é uma jabuticaba brasileira, não existe em nenhum outro lugar do mundo. Geralmente o Ministério Público só tem a função de acusador na ação penal no resto do mundo. Esse desenho também é anterior à Constituição. Na década de 80, no período da redemocratização, o Ministério Público começou a assumir funções de defesa de direitos coletivos, como é o caso da questão ambiental, e logo depois na lei da ação civil pública, também em relação a consumidor – nós estamos falando de uma lei de 1985 –, a patrimônio cultural, a patrimônio paisagístico, estético, histórico, enfim, é um Ministério Público que nasce com essa conformação de ter as três atribuições.

O que eu acho que é o problema? Nós temos Ministério Público que atua na defesa de direitos da cidadania, da coletividade? Temos. Isso aí é inegável, a maior parte das ações propostas ao longo desse período pós-88, a maioria das ações foi proposta pelo Ministério Público, tanto nos estados quanto o Ministério Público Federal. Mas também é uma instituição que, com o passar do tempo, ela tem um crescimento do direito penal, ela volta à sua atribuição típica e parece que essa atribuição engole os demais campos. Se você procurar na organização do Ministério Público, a área penal é uma área superdimensionada, contra a área da cidadania, a área de direitos fundamentais. Então se você me perguntar, é uma atribuição típica do Ministério Público? É. É exercida? É. Por muitas pessoas? Não, por uma minoria, quem pode vai para a área penal. Isso é eterno? Não, eu acho que vive de ciclos, talvez a pior fase tenha passado e a gente esteja de volta ao Ministério Público atuante na área da cidadania, afinal, a pandemia veio para escancarar as nossas mazelas sociais, a mostrar que muito pouco foi feito, pós-88, para diminuir o fosso de desigualdade e injustiça social.

Então eu tenho esperança de que o Ministério Público possa, sim, desempenhar esse papel. Eu só quero fazer uma parte muito breve, eu fui examinadora, de Direito Constitucional e Filosofia do Direito, nos quatro últimos concursos do Ministério Público Federal, e eu acho que uma chave importante está exatamente no concurso para essas carreiras. Você tem capacidade de recrutar, de acordo com uma prova que leve para esses lugares, uma prova adequada, tem capacidade de recrutar pessoas muito interessantes.

FIAN: Fazendo um paralelo, como, no Itamaraty [Ministério das Relações Exteriores], você ter também um concurso que não foque excessivamente em questões de etiqueta.

Duprat: É. Olha, as minhas provas, se você procurasse na Constituição você não tinha resposta, elas envolviam violência doméstica, envolviam relações de gênero, de identidade sexual, reforma agrária, demarcação de terras indígenas, marco temporal, enfim, eram pessoas que tinham que estar antenadas com discussões muito contemporâneas e muito pouco preocupadas com aquele Direito que, enfim, é mais revestido de fórmulas e de protocolos do que de conteúdo.

FIAN: Então, para termos agentes públicos mais sensíveis às dificuldades e às vulnerabilidades da população, a chave estaria principalmente no processo seletivo e isso puxaria um pouco a formação também?

Duprat: Olha, eu acho que não só, sabe? Em relação ao Ministério Público, eu acho que alguns outros pressupostos são muito importantes. Primeiro, eu acho que demorou muito para incorporar o sistema de cotas – cotas raciais, cotas étnico-raciais –, sempre teve dificuldade com as cotas desde a inclusão de pessoas com deficiência, que foi o primeiro regime de cotas para concurso público. Isso tem que ser superado, é preciso você ter diversidade institucional se você quer ter uma instituição atenta ao diverso, ao democrático. Eu acho também, em relação ao Ministério Público, era preciso ter espaços institucionais de participação social, então isso não dependeria da vontade do membro do Ministério Público, mas seria, enfim, um imperativo institucional.

Óbvio que isso demanda uma reforma constitucional, uma emenda constitucional, e nos tempos atuais não é algo fácil e nem é algo talvez interessante, mas em momentos mais oportunos convém pensar se não é preciso redesenhar uma instituição que trabalha tão fortemente com a população, que tem obrigação de defender a cidadania, se ela não tem que ter espaços de participação social.

FIAN: Voltando à primeira resposta, para a divisão constitucional na defesa dos direitos da coletividade, na avaliação da senhora o ideal seria o MP assumir um caráter mais focado na parte penal, como na maioria dos países, e a Defensoria Pública ser fortalecida?

Duprat: Não, não. Eu acho que é muito interessante o desenho institucional. Acho que a Defensoria Pública tem que ser fortalecida, eu acho que quanto mais força institucional a gente tiver nesse campo, melhor ainda. Nós temos que lembrar que nós temos um fosso aí, de 500 anos, que precisa ser superado, eu acho que nós temos que somar forças e não ficar em um regime de exclusão. Não é o Ministério Público ou a Defensoria, é o Ministério Público e a Defensoria, enfim, a advocacia pro bono [voluntária], quem mais quiser, eu acho que é um campo em que você tem que somar, jamais diminuir.

FIAN: Está ótimo. Então, levando o foco um pouco ao governo federal, o presidente da República, em dois momentos, vetou apoios aprovados de uma forma praticamente consensual no Congresso Nacional. Projetos de lei que beneficiavam segmentos que estão ligados à segurança alimentar de todos, e que, por outro lado, muitas vezes vivem à beira da insegurança alimentar. Também em relação ao PAA [Programa de Aquisição de Alimentos]. Por exemplo, houve aquela carta, praticamente todos os movimentos mais ligados à segurança alimentar, dizendo: “Olha, o PAA, assim como o Pnae, está no centro da solução para tudo, amarra as duas pontas”. E ainda com relação a uma renda mínima, uma renda básica – vários países adotaram soluções desse tipo nos últimos dois anos, com diferentes formas, diferentes volumes, lógicas, mas com uma base comum. Tudo isso o governo tratou como inviável, como uma ameaça à responsabilidade fiscal, uma ameaça a outras políticas, enfim, o discurso de que a conta não fecha. E depois, agora toda essa ênfase no Auxílio Brasil e no Alimenta Brasil, procurando colocar, vamos dizer, dois novos programas, megaprogramas, no lugar do Bolsa Família e do PAA. E a omissão do governo é alvo de uma ação, a ADPF 831, da qual a senhora é uma das autoras, e também foi alvo de um tribunal popular, o Tribunal Popular da Fome, que considerou o governo culpado pelo avanço da insegurança alimentar grave. Com esses novos programas o governo se redime disso, ele deixa de merecer ser alvo de uma contestação como essa ADPF, ou como a conclusão desse tribunal simbólico?

Duprat: Eu acho que não, mas eu tenho que admitir que para o Supremo Tribunal Federal vai ser muito difícil dizer que essas são medidas que não são suficientes. Mas eu quero começar um pouquinho lá trás, eu quero lembrar que nós talvez devamos ter que fazer uma espécie de justiça de transição a respeito do retorno da fome ao Brasil, nos níveis em que ela se encontra. Cinquenta e cinco por cento dos domicílios brasileiros em algum tipo de insegurança alimentar, 9% em situação de insegurança alimentar grave na cidade, 11% no campo.

Lembrando que logo na primeira medida do governo Bolsonaro, da MP 870, em que ele reorganiza a Presidência da República, ele extingue o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], e a gente tem que lembrar que o papel que o Consea teve no enfrentamento à fome, que é reconhecido pela própria ONU, vários relatores do direito à alimentação adequada, enfim, vários relatores apontaram esse dado. O Bolsonaro extingue o Consea e não põe nada no lugar, desorganizando, portanto, a lei do Sisan [Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] – esse dispositivo o Congresso conseguiu tirar fora, mas o Bolsonaro vetou. Então ele havia, de fato, deliberado que o Consea não ia existir e não haveria nenhuma política de eficaz combate à fome.

O PAA, como você apontou, é um programa muito interessante, porque em 2020 foi lançada a declaração da ONU sobre o direito dos camponeses e das camponesas, e a Bachelet [alta comissária da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet], por ocasião dessa declaração, da publicidade dessa declaração, ela disse que camponesas e camponeses alimentam o mundo, reconhecendo que não é o agronegócio que produz alimento, na verdade quem produz alimento é a agricultura familiar, então é preciso fortalecer esses programas para vencer a fome, para vencer a insegurança alimentar.

Então, na ação é pedido que o PAA, que vem da agricultura familiar, assim como parte do Pnae também vem da agricultura familiar, eles sejam fortalecidos, porque são mecanismos importantes de geração de renda para esses segmentos, mas também, mais importante ainda, uma garantia de segurança alimentar para a população brasileira. Então esses vetos que o Bolsonaro… Esse veto mais recente, eu acho que teria que ser levado para ser noticiado no âmbito dessa ação, que procura vencer a situação de insegurança alimentar. Também quero lembrar que essa questão da renda básica é uma diretriz da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] no contexto da pandemia. Houve uma pesquisa da FAO com uma outra instituição da América Latina e do Caribe, que agora eu não estou me lembrando, me fugiu completamente, mostrando os cenários…

FIAN: Cepal?

Duprat: Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe]. Fizeram um estudo mostrando os cenários possíveis da pandemia, então desabastecimento, fome estavam no radar. E é interessante, porque esse diagnóstico recomenda exatamente o fortalecimento dos programas de agricultura familiar, alimentação escolar e mecanismos de geração de renda. Lembrando que o Brasil tem essa experiência acumulada de muitos anos, de um programa que mereceu prêmios no mundo, que é o Bolsa Família.

É óbvio que o Bolsa Família estava, sim, com os seus valores desatualizados, tanto em termos de benefício, como de faixa de renda para ingresso no programa, principalmente considerando o aumento, a carestia dos alimentos, o aumento do valor da cesta básica. Mas a substituição, sem você incorporar essa experiência de muitos anos, sem incorporar a experiência do CadÚnico [Cadastro Único], enfim, ela mais assusta do que tranquiliza, principalmente porque nós não sabemos qual vai ser a fonte de renda permanente para o financiamento desse programa. Eu não tenho acompanhado isso nos últimos dias [a entrevista foi realizada em dez./21], mas o financiamento que vinha da PEC dos Precatórios até agora é incerto. Então, enfim, não sei lhe falar, não sou uma especialista da sustentabilidade desse programa Auxílio Brasil, mas sei do receio de você desprezar um programa que foi ganhando consistência ao longo dos tempos e que um mero reajuste seria suficiente, mas certamente o Supremo Tribunal Federal não vai entrar nessa discussão, ele vai acatar, enfim, a opção que o governo fizer, porque não cabe a uma Suprema Corte ficar dizendo qual é a melhor opção, desde que venha uma opção que se comprometa a gerar essa renda mínima, certamente o Supremo vai admiti-la.

FIAN: Certo. Então, a gente – a FIAN e organizações próximas – trabalha muito com a ideia da exigibilidade, de haver condições para que os direitos possam ser reivindicados, um eixo também importante para setores do Ministério Público e para a Defensoria Pública. Isso está associado a uma cultura de direitos, de as pessoas saberem que têm direitos, que a Constituição garante. Como trabalhar essa frente em um momento em que existem articulações muito fortes – em parte, visíveis em partes ocultas – de promoção de uma ideia de que o Estado existe só para atrapalhar?

Duprat: Não escutei.

FIAN: A gente sabe que existe uma certa ideologia nesse sentido, mas existe uma articulação internacional que opera por meios os mais diversos, muito focada em promover uma desconfiança em relação ao Estado e de procurar fazer valer uma ideia de um individualismo que é muito à revelia do Estado e do coletivo, e que também coloca qualquer associação civil como algo também que vai contra essa liberdade e, muitas vezes, como se fosse parasita do Estado. Essas tendências estão sujeitas a ciclos, como a senhora frisou, mas é uma frente que tem conseguido convencer, ou converter, muita gente. Como fazer avançar uma agenda de direitos nesse contexto?

Duprat: Olha, eu não sei se é uma articulação. O fato é que a chegada… Se é uma articulação internacional, ou de que maneira há uma percepção de um sentimento difuso na sociedade, um mal-estar em relação à Constituição de 1988 e às institucionalidades. Isso foi certamente o motor da campanha eleitoral que levou Bolsonaro ao poder. A gente tem que entender que a sociedade brasileira de 2020 não é a sociedade de 1970, 1980, muita coisa mudou, uma é que, de fato, há de um lado essa cultura neoliberal, enfim, que leva a noção de empresa para toda a sociedade, cada indivíduo se realiza a partir de se configurar como uma empresa, e a relação entre empresas é de concorrência, de competição, então você acaba com aquela noção de igualdade, que é o motor da Constituição de 1988, em favor de uma noção de competição.

Com essa ideia neoliberal vem o máximo individualismo, sendo que a Constituição de 88 convoca para um exercício de solidariedade, é um projeto de sociedade em que todas as pessoas são mobilizadas para vencer essas desigualdades históricas, as discriminações de todos os tipos. Há muita reflexão também psicanalítica, porque esses governos populistas surgem em um momento de, digamos, falência geral das instituições, um sentimento de que não funciona nada. E a busca também de porquês, por que o Estado deixou de funcionar.

E um discurso que é muito recorrente é que o Estado não funcionou porque ele deu muito para determinados grupos, e aí os cotistas negros vão culpar o movimento LGBT, que vai culpar o movimento de mulheres, enfim, é uma transferência de responsabilidades que faz com que o regime de direitos seja visto como formas parasitas e não como os sujeitos de direitos, como pessoas que dependem do Estado, dependem daquele – isso volta e meia é dito  –, daquele “auxiliozinho”, e isso também é uma ideia neoliberal, que você tem que acabar com o Estado nesses espaços em que o indivíduo tem que se fazer por si próprio. Então nós temos muito prejudicado o regime de direitos, não só por conspirações ou não só por alianças, e sim por esse sentimento que atravessou a sociedade e que chega até os nossos dias. Eu converso, enfim, fui recentemente à área indígena, converso com o movimento da reforma agrária, e sei que não está fácil. Sabe? Então se nós não entendemos isso, nós não entendemos também as lutas necessárias para vencer esse período.

FIAN: Certo. Sem dúvida, tem o esgotamento, os limites, aquilo que se alcançou e que não se alcançou, mas não houve também, como em outros países, a captura desse momento propício?, enfim, mecanismos que também em outros lugares conseguiram aproveitar esses estágios, ou momentos como esse, para implementar experiências autoritárias ou levar ao extremo um projeto de espoliação, de retirada de direitos?

Duprat: Desculpa, eu não entendi. Porque o fenômeno Bolsonaro não é um fenômeno único no mundo, nós temos tido no mundo esse avanço autoritário, que se vale exatamente desses momentos de fragilidade do Estado, e o Estado se fragiliza quando ele entra na lógica neoliberal, isso vem assolando a Europa desde as décadas de 80 e 90. No entanto, o neoliberalismo não é uma possibilidade constitucional, a gente tem que pensar que quando a Constituição foi discutida o neoliberalismo já era um modelo hegemônico no mundo, já tinha sido adotado pelas duas grandes maiores economias – na ocasião, Estados Unidos e Inglaterra –, já era fórmula do FMI [Fundo Monetário Internacional], do Banco Mundial, e no entanto, a gente tem muito clara, na Constituição, essa opção por um Estado forte, um Estado provedor de direitos, um Estado provedor de políticas públicas para implementação de direitos, então, o que nós temos de muito peculiar é que, além do autoritarismo, nós temos um modelo de funcionamento de governo absolutamente inconstitucional.

FIAN: E agora, enfim, se como esperado, as forças sociais e políticas conseguirem superar esse momento que nós vivemos, e seja qual for a chapa, a frente, o que nos levar a superar esse momento… Se for bem-sucedida, o que seriam prioridades? Seria uma retomada de determinados aspectos da Constituição? O que poderia ser o prioritário, para o que muita gente tem chamado, eu acho que com razão, de uma ideia de reconstrução nacional? A senhora até usou, em outro momento, o termo “justiça de transição”, que normalmente tem a ver com contextos de restituição democrática, ou volta de uma situação de guerra, não é isso?

Duprat: Isso. Período de graves violações de direitos humanos. O que eu acho que é prioritário: recompor a burocracia [o corpo do funcionalismo] federal, que foi devastada por Bolsonaro. Bem ou mal, ela vinha crescendo desde o primeiro presidente democraticamente eleito, que foi o Collor. Há a partir de 1990 até a Emenda Constitucional 95 [também chamada Teto dos Gastos], em 2016, um crescimento na capacidade do Estado de formular políticas públicas.

E crescimento em que sentido? Primeiro, especializando o Estado, criando agências – isso vem de antes, mas depois isso é potencializado –, então você vai ter ministérios com temas específicos, vai ter agências, como Funai, Ibama, ICMBio, Fundação Palmares, todas criadas para agenciar políticas de direitos humanos. Você cria um aparato, um corpo funcional capacitado, que é recrutado mediante concurso público, a maneira como a Constituição determina que o servidor público seja recrutado, e ele é treinado para essas atribuições, porque a Constituição determina que a progressão na carreira dependa de cursos de especialização.

 E um outro elemento é a participação social, foram, enfim, desde 93, na Conferência de Viena de Direitos Humanos, tem-se presente que não é possível construir políticas de direitos humanos sem a participação dos sujeitos afetados por essas políticas, dos sujeitos implicados nessas políticas. Então esse regime de participação social também foi construído ao longo do tempo.

Nada disso existe mais, não existe a capacidade administrativa, não existe a especialização, o Bolsonaro conseguiu colocar, nas pastas, pessoas contrárias aos objetivos daquelas pastas, veja o que se passa na Fundação Cultural Palmares, que é o caso, na atualidade, para mim mais paradigmático. Uma pessoa [o presidente da fundação, Sérgio Camargo] que nega o racismo, quando o racismo é, enfim, ele tem estatuto constitucional, a Constituição determina que o racismo seja punido como crime… Enfim, isso tudo precisa ser recomposto. Eu não sei que tempo vai levar isso, a gente avalia que o tamanho do estrago do Estado seja enorme, porque a pandemia veio evidenciar isso: o quanto o SUS [Sistema Único de Saúde], enfim, que é essa nossa maravilha, mas o quanto ele estava precarizado, o quanto o Programa Nacional de Imunizações estava precarizado, tanto que se o programa estivesse operando como operou no enfrentamento da H1N1, nós já teríamos um contingente, se ele estivesse operante, se as vacinas estivessem sido adquiridas no tempo certo, nós estaríamos com a capacidade de vacinação muito mais ampla do que a que se chegou.

Enfim, eu não sei estimar o tempo, mas vai ser preciso um investimento, uma engenharia absurda. Tem servidores que procuraram se afastar dos órgãos onde estavam, porque eram perseguidos exatamente pelo conhecimento que detinham, os que puderam se aposentaram, então isso já não se recupera mais, enfim, os que ficaram vão ter que recuperar a capacidade de acreditar no Estado, de que estão, de fato, em uma função pública, guiada pelo interesse público, e que o trabalho que produzem é independente, é baseado em conhecimento científico, é baseado em evidências científicas. Enfim, é um trabalho de reconstrução enorme.

FIAN: E mesmo sendo um governo eleito, então seria comparável a situações muito fora de qualquer normalidade democrática, não é?

Duprat: Completamente. Não é casualidade que haja 150 pedidos de impeachment, não é só uma insurreição da sociedade, é um descalabro. O que mostra como as instituições são capturadas é exatamente a gente conviver com um fenômeno como o Bolsonaro sem uma resposta institucional adequada.

Confira também o que disseram José Graziano, Maria Emília Pacheco, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

Coleção reúne cinco publicações sobre o Pnae pela perspectiva da comida de verdade

Um livro, dois livretos e duas cartilhas compõem a coleção de publicações do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade – pelo Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas na Escola.

A iniciativa, executada pela FIAN Brasil ao longo de 2021, teve como objetivo contribuir para a promoção desse direito humano, conhecido pela sigla Dhana, no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

O livro Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae reúne as atividades realizadas – de produção de conhecimento, formação, articulação, sensibilização e incidência, num contexto fortemente impactado pela pandemia de Covid-19 e pelo desmonte das políticas sociais, marcado ainda por tentativas de captura do cardápio escolar

Também compila materiais produzidos pela equipe da FIAN e pelo portal jornalístico O Joio e o Trigo, parceiro na iniciativa. Entre eles, a linha do tempo “Da política ao prato”, que abrange de 1945 a 2001; o artigo “O primeiro direito e a alimentação escolar”; e cinco entrevistas inéditas com Deborah Duprat, José Graziano, Maria Emília Pacheco, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

O livreto O Pnae em fatos e números: a importância do Programa Nacional de Alimentação Escolar foi elaborado no intuito de propiciar um primeiro contato com essa política pública, apresentar fundamentos e particularidades de sua execução e oferecer informação para consulta constante. Outro objetivo era contribuir para uma cultura de direitos no país.

A publicação traz histórico e legislação, objetivos e diretrizes e a dimensão do programa. Também apresenta os avanços e desafios, passando por fatos relevantes como a nova realidade imposta pela pandemia.

Orientações para pôr as diretrizes em prática

Na perspectiva formativa, a FIAN produziu as cartilhas Como exigir o direito à alimentação e à nutrição adequadas no Pnae? e Alimentação e nutrição adequadas no Pnae: mais alimentos frescos, menos ultraprocessados. Ambas receberam contribuições de organizações parceiras e foram usadas nas oficinas do projeto.

A primeira trata do direito de toda e todo estudante da educação básica da rede pública a receber, durante o período letivo, uma alimentação adequada. Nesse sentido, explica as diretrizes do Pnae e os princípios e dimensões do Dhana.

O conteúdo apresenta o conceito de exigibilidade – de forma bem simplificada, o exercício do direito de exigir a garantia de direitos –, detalhando as obrigações e responsabilidades das partes envolvidas com o Pnae. Um passo a passo mostra um dos caminhos possíveis para uma reclamação ou denúncia de violação do Dhana no contexto das escolas.

Na segunda cartilha são abordados, entre outros pontos, os motivos de veto ou limitação dos produtos alimentícios ultraprocessados no cardápio; a importância de comprar mais alimentos frescos, da agricultura familiar local; e os impactos dessas medidas para a saúde dos estudantes, para os pequenos agricultores e agricultoras, para a sociedade e para o meio ambiente.

Mergulho na exigibilidade

Programa Nacional de Alimentação Escolar: diretrizes e exigibilidade em tempos de pandemia, como o título indica, aprofunda-se nos pilares da política pública e nos impactos da Covid-19 em sua execução.

A ideia é contribuir para que os sujeitos de direito possam exigir aquilo que a legislação consagra, e que os/as agentes públicos se engajem com propriedade nessa causa ou, no mínimo, façam sua parte.

Sob a ótica do Dhana, o material traz os marcos legais do Pnae e sua implementação no cenário atual, examinando as modalidades de gestão e a situação das compras púbicas. São apresentadas as principais violações desse direito fundamental no período, argumentos para exigir sua garantia e experiências de exigibilidade em seus diferentes níveis (administrativo, político, quas judicial e judicial). O texto explica, ainda, quem e como pode recorrer a cada caminho desses.

Mais uma parceria com o FBSSAN, o livreto foi elaborado por Mariana Santarelli e Vanessa Schottz, pelo fórum nacional, e Nayara Côrtes e Valéria Burity, pela FIAN, com contribuição de Vanessa Manfre. O texto foi originalmente escrito como material de apoio a módulo de curso de extensão sobre o tema.

Restrição aos ultraprocessados e apoio à agricultura familiar

O Crescer e Aprender, desenvolvido ao longo de 2021 com apoio da Global Health Advocacy Incubator (Ghai), teve como foco a restrição aos produtos alimentícios ultraprocessados e o incentivo a uma maior participação da agricultura familiar no fornecimento de alimentos para as escolas públicas. Foram ações de produção de conhecimento, formação, articulação, sensibilização e incidência, num contexto fortemente impactado pela pandemia de Covid-19 e pelo desmonte das políticas sociais, marcado ainda por tentativas de captura do cardápio escolar.  

As atividades envolveram estreita colaboração com a ACT Promoção da Saúde, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP), além do portal jornalístico O Joio e o Trigo, na produção de conteúdo. Um novo parceiro foi o Instituto Desiderata, que no período desenvolveu projeto focado na saúde de crianças e adolescentes, em âmbito municipal, no Rio de Janeiro.

Na iniciativa, a FIAN Brasil também contou com a parceria da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da Universidade de Brasília (UnB), entre outras organizações. As conversas com a FIAN Colômbia trouxeram conceitos e uma forma de olhar para programas de alimentação escolar alinhada ao Dhana e à soberania alimentar.

Todas as escutas, diagnósticos e interações reafirmaram a importância do Pnae, uma das maiores políticas de alimentação escolar do mundo, que faz bem para a cidade e o campo – e a necessidade de defender esse programa que é referência para vários países.

Também trouxeram novos elementos para nossa atuação em 2022 e 2023, num projeto que buscará contribuir para o enfrentamento das desigualdades no Brasil a partir dos sistemas alimentares.

Livreto apresenta dimensão, histórico e diretrizes do Pnae

O livreto O Pnae em fatos e números: a importância do Programa Nacional de Alimentação Escolar foi produzido no intuito de propiciar um primeiro contato com essa política pública, apresentar fundamentos e particularidades da execução e oferecer informação confiável, em linguagem simples, para consulta constante.

Nossa avaliação era que o “espírito” do programa, e mesmo sua existência, passam despercebidos por boa parte da população, até mesmo entre seus beneficiários/as – talvez pela longevidade e pelo caráter próximo ao de uma política “de Estado” (não associada a uma gestão). Sem falar na ausência de uma cultura de direitos no país, que dificulta o entendimento de que as crianças e os adolescentes são prioridade absoluta e que cabe ao Estado lhes garantir saúde, um ambiente equilibrado e condições de aproveitar ao máximo a escola – e que a comida de verdade tem a ver com tudo isso.

A publicação traz histórico e legislação, objetivos e diretrizes e a dimensão do programa. Também apresenta os avanços e desafios, passando por fatos relevantes como a nova realidade imposta pela pandemia. Foi elaborada pela nutricionista Daniela Bicalho Alvarez, doutoranda em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP, em diálogo com a equipe da FIAN Brasil. Para o material, a FIAN elaborou cadernos ilustrados com a designer Patrícia Nardini.

O Pnae em fatos e números faz parte da coleção de publicações do projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade, que inclui um livro, duas cartilhas e mais um livreto. Saiba mais sobre a iniciativa.

Livro reúne atividades e materiais produzidos no projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade

A FIAN Brasil compilou num livro as atividades realizadas e materiais produzidos no projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade – pelo Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas na Escola.

A iniciativa, executada ao longo de 2021, teve como objetivo contribuir para a promoção desse direito humano, conhecido pela sigla Dhana, no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

O livro também destaca a linha do tempo dessa política pública e duas reportagens produzidas pelo portal O Joio e o Trigo no especial jornalístico Merenda não é lucro. Apresenta, ainda, cinco entrevistas inéditas sobre alimentação escolar e sobre como a soberania e segurança alimentar e nutricional atravessa os desafios do Brasil e do mundo. As entrevistadas e o entrevistado são Deborah Duprat, José Graziano, Maria Emília Pacheco, Sofía Monsalve e Tereza Campello.

Além de Crescer e Aprender com Comida de Verdade: um ano em defesa do direito à alimentação adequada no Pnae, a coleção de publicações do projeto inclui dois livretos e duas cartilhas.

Restrição aos ultraprocessados e apoio à agricultura familiar

O Crescer e Aprender, desenvolvido ao longo de 2021 com apoio da Global Health Advocacy Incubator (Ghai), teve como foco a restrição aos produtos alimentícios ultraprocessados e o incentivo a uma maior participação da agricultura familiar no fornecimento de alimentos para as escolas públicas. Foram ações de produção de conhecimento, formação, articulação, sensibilização e incidência, num contexto fortemente impactado pela pandemia de Covid-19 e pelo desmonte das políticas sociais, marcado ainda por tentativas de captura do cardápio escolar.  

As atividades envolveram estreita colaboração com a ACT Promoção da Saúde, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP), além do Joio, na produção de conteúdo. Um novo parceiro foi o Instituto Desiderata, que no período desenvolveu projeto focado na saúde de crianças e adolescentes, em âmbito municipal, no Rio de Janeiro.

Na iniciativa, a FIAN Brasil também contou com a parceria da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da Universidade de Brasília (UnB), entre outras organizações. As conversas com a FIAN Colômbia trouxeram conceitos e uma forma de olhar para programas de alimentação escolar alinhada ao Dhana e à soberania alimentar.

Importância reafirmada

Presente em todas as escolas da rede pública do país, o Pnae atende 40 milhões de estudantes e tem quase 70 anos de história. 

Todas as escutas, diagnósticos e interações reafirmaram a importância de defender essa que é uma das maiores políticas de alimentação escolar do mundo, que faz bem para a cidade e o campo e que foi a base para programas de vários países.

As atividades também trouxeram novos elementos para nossa atuação em 2022 e 2023, num projeto que buscará contribuir para o enfrentamento das desigualdades no Brasil a partir dos sistemas alimentares.

Especialistas defendem retomada do PAA em vez de troca pelo Alimenta Brasil

O Dhana e o Programa Alimenta Brasil: riscos e retrocessos nas compras públicas de alimentos da agricultura familiar é o título de nota técnica (NT) publicada pela FIAN Brasil nesta quarta-feira (23). A análise foi elaborada, a pedido da entidade, pelos professores Sílvio Isoppo Porto e Julian Perez-Cassarino e pela engenheira de alimentos Priscila Diniz.

Para os autores e a autora, retomar e fortalecer o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) seria mais efetivo que implementar o programa que o substituiu, do ponto de vista do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana). Acesse a NT 1/2022 da FIAN.

Proposto na Medida Provisória (MP) 1.061/2021, o Programa Alimenta Brasil foi instituído pela Lei 14.284/2021, com a aprovação pelo Congresso Nacional e a sanção pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. A lei cria também, no lugar do Programa Bolsa Família, o Programa Auxílio Brasil.

A nota técnica retoma o histórico das políticas de segurança alimentar e nutricional (SAN) no Brasil, destacando aquelas que abriram o mercado institucional para as aquisições da agricultura familiar. São lembradas medidas como a dispensa de licitação dentro de determinados limites de aquisição por família, e a articulação com o fornecimento a instituições de assistência social, “criando um círculo virtuoso econômico, social e ambiental nos âmbitos local e regional”.

Inovações

Porto, Perez-Cassarino e Diniz jogam luz sobre o PAA, criado em 2003, como primeiro programa nesse sentido. Entre as inovações são listadas: “i) recorte de público (agricultura familiar e assentados da reforma agrária, passando a incorporar também povos indígenas e povos e comunidades tradicionais); ii) compra sem processo de concorrência pública; ação direta de aquisição por parte do Estado; iii) preços pagos na aquisição, respeitando e levando em consideração as especificidades regionais e; iv) gestão compartilhada entre cinco ministérios”.

O trio ressalta que o PAA foi fundamental para a revitalização da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) no contexto do Fome Zero, adquiriu mais de 500 tipos de alimentos diferentes e chegou a beneficiar em um ano mais de 18 mil entidades que atuavam no atendimento a pessoas em situação de insegurança alimentar.

Com o acompanhamento orçamentário, a NT 1/2022 mostra o crescimento do Programa de Aquisição de Alimentos entre 2003 e 2012, a redução – porém ainda em bons volumes – de 2013 a 2016 e o esvaziamento drástico a partir de 2016. A exceção, no passado recente, foi 2020, quando a mobilização popular de mais de 800 organizações levou os e as parlamentares a destinarem R$ 500 milhões extras a essa política. Em 2021, no entanto, o Orçamento do governo Bolsonaro previu cerca de R$ 100 milhões para a rubrica, 10% do montante aplicado em 2012.

Falta de transparência

De acordo com a análise, a execução do Alimenta Brasil pouco difere do que historicamente vem sendo feito no PAA, mas traz lacunas relevantes: a extinção da modalidade sementes e o apagamento das instâncias e espaços institucionais de diálogo com a sociedade civil, com brechas para uma enfraquecimento ainda maior na execução do programa ou seu aparelhamento para fins políticos.

“Claramente, essa iniciativa do governo não passa de ação política para tentar fortalecer sua imagem junto à opinião pública, como se estivesse promovendo uma inovação institucional em prol da inclusão produtiva e da produção e distribuição de alimentos às famílias em situação de insegurança alimentar”, concluem os autores. “Se a intenção do governo de fato fosse essa, em vez de desconstruir o PAA, bastaria ampliar os recursos financeiros destinados ao programa e garantir regularidade no aporte de dotação orçamentária, assegurando pelo menos R$ 1 bilhão ao PAA anualmente.”

Nota Técnica 1/2022 – O Dhana e o Programa Alimenta Brasil: Riscos e Retrocessos nas Compras Públicas de Alimentos da Agricultura Familiar


Nota técnica (NT) sobre o programa criado pelo governo Bolsonaro para substituir o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

A análise foi elaborada, a pedido da FIAN Brasil, pelos professores Sílvio Isoppo Porto e Julian Perez-Cassarino e pela engenheira de alimentos Priscila Diniz.

Acesse a NT O Dhana e o Programa Alimenta Brasil: riscos e retrocessos nas compras públicas de alimentos da agricultura familiar.