Prato do Dia: Rodrigo Maia e a necessária retomada da agenda de combate à fome

Por Nathalie Beghin, coordenadora da assessoria política do Inesc e membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Fbssan) e Valéria Burity, secretária-geral da FIAN Brasil

Na terça-feira passada, 19 de novembro, o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, lançou a agenda de desenvolvimento social proposta pelo legislativo federal. Diante do enorme vácuo deixado pela equipe de Bolsonaro nessa área, dos impactos das medidas de austeridade do Guedes no aumento das desigualdades, da pobreza, da miséria e da fome, Maia entende que algo precisa ser feito e já.

Seu plano de desenvolvimento social tem cinco eixos principais: garantia de renda, inclusão produtiva, rede de proteção ao trabalhador, incentivo à governança responsável com uma Lei de Responsabilidade Social e promoção do acesso à água e ao saneamento. Para a viabilidade dessas medidas, serão apresentadas nas próximas semanas uma Proposta de Emenda à Constituição e ao menos sete projetos de lei.

Se bem parece um tanto quanto inusitado que num regime presidencialista o legislativo tenha que fazer o que o executivo não faz. Não se pode negar a importância dessa agenda diante do total abandono do presidente Bolsonaro do povo brasileiro, especialmente da parcela mais empobrecida da população.

A agenda legislativa para o desenvolvimento social parece ter medidas importantes como constitucionalizar o Bolsa Família e assegurar o crescimento real do benefício, para além da inflação. Também há preocupação em relação à universalização do saneamento básico, o que é relevante tendo em vista que milhões de brasileiros ainda não têm acesso à água potável e coleta de lixo.

Contudo, é preciso registrar a ausência de medidas relevantes, especialmente para o enfrentamento de um flagelo que volta a nos rondar, o da fome, para além da consolidação do Programa Bolsa Família. O Brasil acumulou experiência nesse campo, desde o lançamento do primeiro Plano Nacional de Alimentação e Nutrição (I Pronan) no início dos anos de 1970, passando pelo Plano de Combate à Fome do Presidente Itamar Franco e a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), no começo da década de 1990, até a aprovação da alimentação com direito constitucional e a implementação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan) acompanhada do fortalecimento da participação social por meio do Consea, nas décadas de 2000 e 2010[1].

Essa atuação, associada a outros fatores como a ampliação das políticas de educação e de saneamento básico, fez com que a desnutrição infantil que acometia uma em cada três crianças brasileiras em meados dos anos de 1970 caísse para patamares baixos no final da década de 2010, da ordem de 6%[2].

Note-se, contudo, que esses avanços não foram igualmente distribuídos, pois indígenas, quilombolas e ribeirinhos vivenciam índices de desnutrição infantil próximos de países africanos. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2018, uma em cada quatro crianças indígenas menores de 5 anos sofria de desnutrição crônica. Os números variam entre etnias, alcançando patamares próximos a 80,0% das crianças ianomâmis.

Essas conquistas estão seriamente ameaçadas devido ao aumento recente da pobreza e da miséria. Quando o país entra em recessão econômica profunda, a partir de 2014, e implementa medidas de austeridade, cortando essencialmente gastos sociais, e flexibilizando direitos trabalhistas e previdenciários, quem sofre as consequências são os mais pobres, que perdem emprego, veem sua renda desmoronar e não conseguem acessar serviços públicos de qualidade. O IBGE divulgou recentemente a Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) para o ano de 2018, cujos dados são assustadores: um quarto da população brasileira é pobre. São mais de 52 milhões de pessoas com rendimentos inferiores a R$ 420 por mês, menos da metade de um salário mínimo. Dessas, 13 milhões são extremamente pobres (renda mensal per capita inferior a R$ 145), não tendo recursos suficientes para se alimentar adequadamente.

O racismo persiste revoltante: 73% dos pobres são pessoas negras. O rendimento médio domiciliar per capita das pessoas pretas ou pardas (R$ 934) é quase metade do rendimento das pessoas brancas (R$ 1.846).

A esse quadro dramático associa-se outro fenômeno também decorrente de uma alimentação inadequada: a epidemia de sobrepeso e da obesidade. Estudos recentes têm evidenciado expressivo aumento da obesidade em todas as idades, faixas de renda e regiões do país. Cerca de 60% dos adultos estão acima do peso e em torno de 20% são obesos. Entre as crianças e adolescentes o problema também é muito grave: uma de cada três crianças tem sobrepeso e, entre os adolescentes, essa relação é de 1 para 4. E mais, a epidemia está se agravando: segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), enquanto na década de 1970 apenas 1% das garotas e 0,9% dos garotos estavam obesos, em 2016 eles representavam 9,4% e 12,7% dessa faixa etária, respectivamente. Esses resultados levam o Brasil a estar acima das médias mundiais. A situação é preocupante porque o excesso de peso e a obesidade estão entre os cinco maiores fatores de risco para mortalidade no mundo.

As pessoas mais empobrecidas cada vez mais são afetadas devido à ingestão de chamadas “calorias baratas” que são provenientes de alimentos gordurosos e açucarados, vazios de nutrientes essenciais para a saúde da população. Estes alimentos trazem consigo um risco aumentado de doenças não transmissíveis, como hipovitaminoses, diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e alguns tipos de câncer, entre outras.

As medidas propostas pelo Presidente da Câmara não enfrentam esses flagelos e invisibilizam o histórico da política de segurança alimentar e nutricional do país. Além disso, algumas medidas do parlamento brasileiro, a exemplo da reforma trabalhista, da reforma da previdência e da EC 95, que congelou os gastos públicos, agravam esses males.

É preciso, como demonstrou a experiência brasileira, conter retrocessos e ir além dessa agenda, pois a situação é alarmante: faz-se necessário de imediato retomar a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com seu órgão de participação, o Consea. Somente uma abordagem intersetorial e verdadeiramente participativa será capaz de efetivamente respeitar, promover e proteger o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas.

A adoção de uma agenda social é um passo em direção às necessidades da população brasileira, mas é preciso caminhar, de maneira mais coerente, para criar um contexto político que garanta a todas e todos o acesso aos direitos fundamentais.


[1] A esse respeito, veja artigo de Anna Peliano, pp. 26 a 41: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/Fome%20Zero%20Vol1.pdf

[2] Saiba mais em:

Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da América Latina e Caribe publicado pela FAO

Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da América Latina e Caribe publicado pela FAO

Situação da Infância no Brasil do Unicef