Diante da Constituição brasileira e das normas internacionais, o Estado brasileiro pode adotar políticas econômicas que levem à rápida deterioração das condições de vida da população? Como se relacionam o aumento dos índices de desemprego, de insegurança alimentar e de pessoas em situação de rua, ou a queda nos investimentos na indústria, na educação e na saúde, com a desvinculação de recursos financeiros às políticas públicas garantidoras dos direitos?
Investigar os impactos da política econômica de austeridade adotada pelo Estado brasileiro a partir de 2014 na violação dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais da população e na ampliação das desigualdades é a proposta de uma Relatoria Especial que a Plataforma Dhesca Brasil deu início em seminário realizado nesta terça-feira (11), na organização Ação Educativa, em São Paulo.
O objetivo da articulação de redes e organizações de direitos humanos é produzir, até agosto deste ano, um documento que evidencie as consequências do choque recessivo que redundou na maior crise da história brasileira sobre as condições de vida da população – considerando, em especial, as desigualdades referentes a gênero, raça, campo/cidade, geracionais e entre regiões do país.
O trabalho envolverá a realização de missões de investigação em cinco estados (fortalecendo a capacidade de questionamento dos sujeitos políticos locais quanto à relação economia e direitos sociais), além da análise de indicadores oficiais e da implementação de estratégias de judicialização e de incidência política que questionem o atual modelo econômico.
Austeridade e retrocesso
Iniciativas recentes do atual governo federal, como a Emenda Constitucional 95 (que congela gastos públicos nos próximos vinte anos) e a Reforma da Previdência, apontam para o gradual desmonte do Estado como indutor de políticas sociais e fragilizam trabalhadoras e trabalhadores, suas entidades, movimentos sociais e organizações da sociedade civil. De maneira articulada, tem-se o aumento da repressão policial, da criminalização de movimentos do campo e da cidade e de defensores (as) de direitos humanos, além da intensificação de políticas racistas de contenção de conflitos sociais – sobretudo por meio do encarceramento em massa e de medidas socioeducativas.
O Brasil enfrenta hoje a maior contração do PIB (Produto Interno Bruto) da história, superior a 7%, além dos índices mais alarmantes de desemprego já vistos: de acordo com os dados do último PNAD, são 13 milhões de pessoas sem ocupação formal.
Segundo o economista Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp que apresentou, no Seminário, o estudo intitulado “Austeridade e retrocesso”, a premissa de que políticas econômicas são neutras e técnicas é falsa.
Junto dos pesquisadores da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) Lucas Teixeira, Fernando Rugitsky e Guilherme Melo, Rossi resgatou a história do comportamento da política econômica do último triênio no Brasil, que após três mandatos federais com características desenvolvimentistas – que envolveram desonerações e política de subsídios para indústrias, ampliação de financiamento do BNDES e desvalorização cambial – passou a assumir uma perspectiva financista (marcada, por exemplo, pelo choque fiscal e monetário).
Segundo Rossi, a partir de 2015, marco da promoção do desemprego, da queda de indicadores e da ruptura constitucional, o discurso da necessidade de redução das funções do Estado e de austeridade ganhou amplitude. “A EC 95 é um ponto fundamental para esse projeto porque é limitador das funções do Estado. E o governo Temer tem várias outras iniciativas. A Petrobras vai virar exportadora de óleo cru e deixar de ser instrumento de desenvolvimento nacional, por exemplo. O BNDES está sendo desmontado. O que está acontecendo é disputa pela narrativa da crise, que tem consequências muito importantes. É a ‘Doutrina do choque’. Estamos transformando a natureza do Estado brasileiro”, alertou.
Para os economistas, são três os caminhos a serem percorridos para a superação do cenário de retrocessos: a disputa ideológica, a de representatividade e a judicialização como atitude política, exigindo juridicamente a revogação das violações à Constituição Federal. Em sintonia com este último ponto, a pesquisadora e Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Elida Pinto apresentou elementos da política orçamentária passíveis de questionamento do ponto de vista jurídico.
“O sentido máximo do Orçamento Público é estar a serviço do cumprimento da Constituição Federal. Não é possível que o Estado arrecade nos próximos 20 anos se desapegando do comportamento das despesas que justificam sua existência. É preciso multiplicar fontes de resistência a essa lógica. Acompanhar decretos de programação financeira nunca foi tão coerente”, defendeu.
Após os debates, as (os) representantes de 27 entidades filiadas à Plataforma presentes à atividade, além de ex e atuais relatoras (es) em Direitos Humanos (saiba mais abaixo) e pesquisadoras e pesquisadores de universidades, discutiram as bases sobre as quais a relatoria se desenvolverá e delinearam possibilidades de estratégias para a realização das missões das relatorias in loco, além de possíveis ações de judicialização contra política econômica em curso. O evento também contou com a participação de João Akira Omoto, procurador federal da PFDC, órgão do Ministério Público Federal.
Uma nova reunião de trabalho foi agendada para 12 de junho. “A iniciativa da Plataforma DHESCA está comprometida em tonar visível não somente os impactos da política de austeridade na vida da população, mas também de subsidiar ações que questionem o fundamentalismo econômico e apontem alternativas a ele. A sociedade brasileira não pode aceitar o recuo do país a patamares e a indicadores sociais de vinte anos atrás. Assim como outras, esta é uma iniciativa comprometida com a defesa intransigente da Constituição brasileira”, afirma Denise Carreira, integrante da Coordenação da Plataforma Dhesca responsável pela Missão Especial e ex-Relatora Nacional de Educação.
Relatorias
Inspiradas nas Relatorias Especiais da ONU, as Relatorias em Direitos Humanos foram criadas em outubro de 2002 como uma iniciativa inédita para a efetivação dos direitos no Brasil. Implementadas pela Plataforma de Direitos Humanos, em conjunto com outras organizações, as Relatoria têm como objetivo de que o Brasil adote um padrão de respeito aos direitos humanos, tendo por fundamento a Constituição Federal, o Programa Nacional de Direitos Humanos, os tratados e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos ratificados pelo Brasil e as recomendações dos/as Relatores/as da ONU e do Comitê Dhesc.
O desafio das Relatorias é de diagnosticar, relatar e recomendar soluções para violações apontadas pela sociedade civil. Para averiguar as denúncias acolhidas, visitam os locais realizando missões, audiências públicas, incidências junto aos poderes públicos, contando com o envolvimento de organizações e movimentos sociais, assim como representantes do Poder Executivo, Legislativo e do Sistema de Justiça.
As (os) relatoras (es) são especialistas em direitos humanos escolhidos por um grupo composto por órgãos do Poder Legislativo (Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e Comissão de Direitos Humanos do Senado), Executivo (Secretaria de Direitos Humanos e Ministério das Relações Exteriores), Sistema de Justiça (Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos – PFDC) e Agências da ONU (FAO, PNUD, Unesco, ONU Mulheres, UNV, Unicef e UNFPA) para o mandato de dois anos.
Até hoje, já foram realizadas mais de 130 missões em todo o país, como assentamentos da reforma agrária, comunidades quilombolas, territórios indígenas, comunidades urbanas em situação de conflitos e despejos, grandes obras de infraestrutura e megaeventos, educação no sistema prisional e em áreas de conflito armado, entre outras.
Fonte: Plataforma DHESCA