Portaria paralisará demarcações de terras indígenas em fase avançada

À Funai resta apenas o recrudescimento de sua remilitarização, agora com elementos religiosos presentes na equação.


No último dia 18 de janeiro de 2017, o atual titular da pasta do Ministério da Justiça e Cidadania, Alexandre de Moraes, baixou a portaria nº 68, alterando o processo demarcatório das terras indígenas brasileiras. Ao final de um já longo e demorado processo institucional regulado pelo decreto 1775 de 1996, a referida portaria acrescenta a formação de um “Grupo Técnico Especializado” para “subsidiar” o ministro nas decisões a serem tomadas relativas às demarcações.

Este GTE, afirma o texto, será formado por representantes da FUNAI, da Consultoria Jurídica, da Secretaria Especial de Direitos Humanos e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e terá como prerrogativa a realização de “diligências” acerca de processos demarcatórios em fase avançada. Na prática, porém, o estabelecimento de mais esta instância no processo demarcatório funcionará em moldes semelhantes ao do chamado “grupão”, um grupo de trabalho interministerial que funcionou durante quase toda década de 1980 e que teve como efeito concreto, conforme muitos estudiosos do tema indicam, o virtual congelamento dos processos de reconhecimento territorial indígena no período.

Não se pode dizer que fomos pegos, exatamente, de surpresa. É preciso considerar, primeiramente, que o Congresso Nacional é, há anos, dominado por uma crescente bancada identificada com interesses agropecuários e ligados à indústria da mineração. Ademais, há uma forte bancada evangélica, que também luta por seus interesses e busca ocupar espaços de poder. Nada mais compreensível, portanto, que esses atores encampem uma atroz luta nos bastidores para construir legislações que os favoreçam e que, ainda, sejam os indicados para os postos de comando de instituições relacionadas à agricultura, reforma agrária e energia, por exemplo. A recente nomeação do pastor evangélico Antônio Fernandes Toninho da Costa e do General Franklimberg Rodrigues de Freitas para a presidência e uma diretoria importante da FUNAI são atestados claros dos jogos de poder hoje em curso em Brasília.

Há muitos pontos interessantes no texto da portaria, cuja sutileza é eloquente dos princípios que esposa. Destacarei brevemente apenas dois deles: o primeiro está na exposição de motivos da mesma, que afirma que as demarcações têm efeito “desconstitutivo do domínio privado eventualmente incidente sobre a dita terra”. Nas entrelinhas pode-se ler, de forma velada, que a preocupação maior é que a propriedade privada seja resguardada em qualquer hipótese, mesmo quando incidente de forma legal ou ilegal sobre territórios indígenas.

A Constituição já é clara sobre o que fazer nestes casos: em caso de benfeitorias feitas de boa-fé em território indígena, o proprietário receberá uma indenização compatível com seu investimento; do contrário, não tem direito algum. Por que, então, estipular ainda mais uma revisão dos processos demarcatórios que já foram contestados durante todo o seu decorrer? Mais uma vez, o resultado desse “excesso de zelo” para com o domínio privado “eventualmente incidente sobre a dita terra” será a adição de mais tempo para a conclusão das demarcações.

O segundo ponto se encontra em seu artigo 3º, que estabelece a possibilidade de realização de audiências públicas ou, ainda, a possibilidade de participação das “partes interessadas” quando da apreciação de demarcações no GTE. Ora, o que parece um saudável direcionamento participativo poderá redundar numa armadilha para os povos indígenas. Quem são essas “partes interessadas”? Todos nós já sabemos quem são, não é mesmo? Elas já não puderam contestar o processo demarcatório em outras fases? Por que, após tantas idas e vindas, eles poderão ainda se manifestar e contestar os relatórios antropológicos? Este recurso servirá, ao fim e ao cabo, como mais uma tentativa das tais “partes interessadas” de “ganhar no tapetão” e não como um instrumento de pluralismo democrático.

A portaria 68, portanto, é apenas mais uma das armas de grupos políticos brasileiros em sua longa luta contra os povos indígenas. Os direitos a eles garantidos na Constituição de 1988 estão sob ataque contínuo nas últimas duas décadas, com um recrudescimento visível nos últimos cinco anos.

Em meu ponto de vista, os grupos indígenas só ainda não sofreram perdas ainda maiores devido ao seu crescente poder de mobilização política, realizando ações na maioria dos estados brasileiros e, mais fortemente, no Distrito Federal, conforme demonstramos em nossas pesquisas. A verdade crua é que os aliados dos povos indígenas no Senado e na Câmara Federal não dispõem de força política para barrarem projetos danosos a eles que estão em tramitação. Apenas a demonstração impressionante de organização coletiva dos próprios povos indígenas é que tem adiado a aprovação da famigerada Proposta de Emenda Constitucional 215, para ficarmos em apenas um exemplo.

Desta forma, o que se espera da FUNAI, nos próximos anos, é o recrudescimento de sua remilitarização, agora com elementos religiosos presentes na equação, reeditando a parceira colonial entre missionários religiosos e militares na tutela dos povos indígenas brasileiros. O novo “grupão” terá como efeito a virtual paralização das demarcações em fase avançada, o que não difere muito do padrão dos últimos anos, diga-se de passagem. Em resumo, parece que não sobrará muita alternativa ao que Viveiros de Castro respondeu, numa entrevista concedida à Revista Cult em 2015, quando perguntado sobre o que reserva o futuro para os povos indígenas: “a revolta.”

*Leonardo Barros Soares é mestre e doutorando em ciência política na UFMG, realizando pesquisa comparativa sobre a política indigenista do Brasil e Canadá. Membro do Projeto Democracia Participativa ( Prodep) da UFMG.

Fonte: Brasil de Fato

Apenas 36% dos empregados do agronegócio têm carteira assinada

Pesquisa da Esalq-USP mostra que segmento primário tem 9 milhões dos 19 milhões de trabalhadores; renda mensal na agricultura é de R$ 891

O agro é informal. Uma pesquisa do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), mostra que, considerando todos os segmentos do agronegócio, apenas 36% dos empregados têm carteira assinada. Um terço do total (33%) “atua por conta própria”. Outros 15% trabalham sem carteira assinada. Somente 4% são empregadores.

A pesquisa relativa ao ano de 2015 foi divulgada nesta quarta-feira (18/01). Nã0 inclui aqueles que produzem para o consumo, os camponeses. O resumo pode ser lido aqui: “Agronegócio emprega 19 milhões de pessoas no Brasil“.

Entre os 19 milhões de trabalhadores do setor, 9 milhões trabalham no segmento primário. Eles possuem uma renda mensal média de R$ 891, no caso da agricultura, e R$ 998, no caso da pecuária.

A pecuária reúne 3,16 milhões desses 9 milhões de trabalhadores. Outros setores de destaque são os grãos (16% ) e o café (12%).

O segmento de serviços emprega 5,67 milhões de trabalhadores agrícolas, segundo o site Universo Agro, em notícia reproduzida no site do Cepea. Outros 4,1 milhões de trabalhadores estão na agroindústria.

Fonte: De Olho nos Ruralistas

Gigantes do agronegócio: o risco das fusões para a agroecologia

Por Alan Tygel*

Desde o ano passado, o já concentradíssimo mundo das multinacionais dos insumos para o agronegócio parece caminhar rumo a uma concentração ainda maior. As chamadas “6 grandes” do ramo – Syngenta, Bayer, Monsanto, Dow, Basf e Dupont – anunciaram fusões que podem levar a termos em breve apenas “3 gigantes”.

A primeira fusão foi anunciada ainda em dezembro de 2015 entre Dow e Dupont, duas empresas estadunidenses. Juntas possuem um valor de mercado de US$ 129 bilhões, e a fusão torna a nova empresa, DowDuPont, a maior do mundo na indústria química.

Em seguida, no início de 2016, veio a notícia da compra da suíça Syngenta pela ChemChina, estatal chinesa. O valor desta operação é estimado em US$ 43 bilhões. A Syngenta é a maior vendedora de agrotóxicos no Brasil.

Com maior alarde por conta da imagem mais forte das empresas, veio no segundo semestre de 2016 o anúncio da compra da estadunidense Monsanto pela alemã Bayer, no valor de US$ 57 bilhões. Veio à tona obscena imagem da empresa que vende o veneno e depois vende o remédio (que há tempos já era o caso da Bayer, mas agora fica mais explícito).

Neste cenário, os movimentos camponeses poderiam perguntar: qual é a diferença para nós? A concentração hoje já é enorme, e já há diversos acordos de compartilhamento de patentes entre estas empresas. Além disso, movimentos camponeses não querem as sementes nem os agrotóxicos, pois defendem a soberania alimentar e a produção agroecológica com as próprias sementes.

Este raciocínio, no entanto, deixa de fora uma questão central: o poder político que estas empresas representam, e sua capacidade de alterar normas fitossanitárias e de vigilância sanitária, leis de patentes, gastos com infraestrutura, lei trabalhistas, de uso do solo, e assim por diante.

Mais concentração, sob esse ponto de vista, significa mais poder do agronegócio para dificultar a vida da agricultura camponesa e da agroecologia. Exemplos atuais disso são o PL do Veneno e as mudanças na Lei de Cultivares, que tramitam hoje no legislativo, ou a própria destruição do Ministério do Desenvolvimento Agrário pelo governo golpista.

Assim, é fundamental compreender o perigo que representam estas fusões, e o que os movimentos populares podem fazer a esse respeito.

Apesar de anunciadas e acordadas entre os acionistas destas empresas, as fusões ainda precisam percorrer um longo processo regulatório até que sejam efetivadas. Cada país onde as empresas atuam deve aprovar as fusões em seus órgãos de defesa da concorrência (antitruste). No Brasil, este órgão é o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

O Brasil é um país chave para todas estas empresas. Aqui se consome cerca de 20% de todo agrotóxico pulverizado no mundo, e ao contrário dos mercados europeu e estadunidense, a perspectiva é ainda de expansão.

Resistências

A fusão entre Dow e DuPont tem enfrentado sérias resistências na Europa e nos EUA. Mesmo representantes do agronegócio não veem as operações com bons olhos, já que a tendência é sempre de aumento dos preços e redução das opções. No caso dos agrotóxicos, os preços no Brasil aumentaram cerca de 30% desde 2011, com especial alta no último ano, influenciada pelo aumento do dólar.

Em relação à Bayer-Monsanto, o presidente eleito dos EUA Donald Trump deu mais um motivo de revolta aos movimentos populares: reuniu-se na semana passada a portas fechadas com representantes das duas empresas, e mostrou claramente que para ele não haverá limite algum entre o público e o privado em seu governo (se é que havia antes). Na mesma semana, Trump se reuniu com representantes da AT&T, gigante das telecomunicações que está buscando a fusão com a Time Warner.

Olhando para trás, vemos que dos anos 1970 até recentemente a tendência foi a aquisição de empresas de sementes pelas empresas de agrotóxicos. O resultado hoje todos conhecemos: erosão genética (perda de variedades) e sementes projetadas para funcionar apenas com determinados agrotóxicos, das mesmas empresas.

A perspectiva do aumento da concentração nos leva a crer que, em pouco tempo, será a vez das empresas de fertilizantes e máquinas serem fagocitadas. E as consequências, podemos imaginar: cada vez se concentra mais o pacote tecnológico nas mãos de menos empresas, deixando o próprio agronegócio ainda mais dependente destas empresas – todas estrangeiras, diga-se de passagem. E aquele famoso PIB do agronegócio, que “sustenta a economia brasileira”, flui diretamente para o bolso delas.

Pior mesmo fica a situação da parcela da agricultura familiar que ainda depende dos agrotóxicos e sementes compradas para sobreviver. Literalmente a ponta mais fraca, tende a se endividar cada vez mais, e ver mais longe sua chance de transição para o modelo agroecológico.

Neste sentido, a concentração das empresas de agrotóxicos e sementes representa um grande risco ao desenvolvimento da agroecologia, não só enquanto técnica de produção de alimentos sem insumos sintéticos, mas enquanto modelo de desenvolvimento.

Por isso, ainda que saibamos da imensa promiscuidade entre grandes empresas e o governo, é nosso dever pressionar e dificultar a realização destas fusões. Se houvesse ao menos uma burguesia com o mínimo interesse nacional, as fusões seriam barradas pois iriam acabar de vez com qualquer chance de empresas brasileiras. Mas não parece ser o caso por aqui.

Barrar fusões está longe de ser nosso objetivo principal enquanto organizações que lutam contra o agronegócio. Mas a concretização delas certamente deixa nossa luta pela agroecologia e soberania alimentar mais difícil.

* Alan Tygel é da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida

Fonte: Brasil de Fato