40 ameaças legislativas aos direitos humanos

O Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Padre João (PT-MG), apresenta uma lista de 40 ameaças aos direitos humanos que partem do legislativo. Parte das iniciativas já foi aprovada em 2016, parte ainda tramita. O levantamento foi elaborado em parceria com o Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e com apoio de pesquisas realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, da Conectas Direitos Humanos e do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. O documento integrará adendo do Presidente da CDHM e da Presidenta da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos, Erika Kokay (PT-DF), ao Relatório Periódico Universal do Brasil à ONU.
Fim dos direitos trabalhistas, restrição da fiscalização contra o trabalho escravo, retrocessos na reforma agrária e na função social da propriedade, venda de terras para estrangeiros, monopólio das sementes, liberação ainda maior dos agrotóxicos, fim do licenciamento ambiental, fim das demarcações indígenas, proibição do casamento homoafetivo, restrição ao atendimento de vítimas de estupro, restrição à laicidade do Estado, restrição da liberdade de ensino, redução da maioridade penal, aumento da internação para adolescentes no sistema socioeducativo, exposição de criança e adolescente em conflito com a lei, redução da idade de trabalho, revogação do estatuto do desarmamento, desmonte do Estado e das políticas que garantem direitos sociais, reforma da previdência, privatizações, entrega do Pré-sal, fim da autonomia da EBC e legalização de procedimentos penais de exceção são temas da pauta. Abaixo explicamos tudo.

DIREITO AO TRABALHO

1. REFORMA TRABALHISTA. O Projeto de Lei de autoria do Presidente Michel Temer, apresentado em regime de urgência, deve ser aprovado no primeiro semestre de 2017, segundo o Presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A finalidade deste PL é retirar direitos dos trabalhadores para baratear o custo da força de trabalho. Além disso, as negociações que se sobrepõem a direitos garantidos por lei não precisarão ser feitas pelos sindicatos: podem ser feitas por representantes do conjunto de trabalhadores da empresa, o que torna ainda mais aguda a desigualdade da relação e solapa a lógica da representação sindical. (PL 6787/16)

2. TERCEIRIZAÇÃO. O projeto que permite a terceirização das atividades-fim, e não apenas limpeza, segurança e outras atividades-meio, como atualmente ocorre, foi aprovado pela Câmara e está na ordem do dia do Senado. Essa proposta e o PL 6787 são as maiores investidas da história contra o legado varguista, que instituiu um sistema de proteção aos trabalhadores no Brasil. (PL 4302/1998)

3. TRABALHO ESCRAVO. Em 2014 foi aprovada a emenda constitucional de n° 81, que determina expropriação de áreas nas quais for utilizado trabalho escravo. A emenda precisa ser regulamentada por lei para ser efetiva. Entretanto, a nova regulamentação proposta é um retrocesso, pois inviabiliza a atuação exercida atualmente pelos fiscais do Ministério Público do Trabalho no combate a essa prática. (PLS 432/2013).

DIREITOS AO MEIO AMBIENTE, AO ACESSO À TERRA E À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA

4. DESREFORMA AGRÁRIA. O governo apresentou medida provisória que significa retrocesso em relação às parcas conquistas da reforma agrária. São duas linhas mestras. A primeira tem por finalidade liberar terras para o mercado. A proposta prevê o pagamento em dinheiro de terras adquiridas para a reforma agrária. Ela pretende ainda dar título de propriedade aos assentados, o que é uma janela para a reconcentração fundiária. Hoje, os títulos concedidos aos beneficiários são inegociáveis. A segunda linha é a de fragilizar a organização social no campo. A proposta desconsidera a existência de acampados organizados em movimentos sociais, e prevê abertura de editais amplos para candidatos a beneficiários. (MPV 759/2016)

5. ROTULAGEM DE TRANSGÊNICOS. A Câmara aprovou o fim da exigência do símbolo “T” nos produtos que contêm até 1% de componentes transgênicos. O projeto fere o direito à informação e à escolha a uma alimentação saudável. A proposta está pendente de apreciação pelo Senado. (PLC 34/2015).

6. (DES)FUNÇÃO SOCIAL. Um PL que está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça restringe ainda mais os requisitos da função social da propriedade. Pela proposta, além de a propriedade não precisar cumprir os critérios ambiental e trabalhista, passa a não ser mais necessário o cumprimento simultâneo dos requisitos de “utilização da terra” e de “eficiência na exploração” para comprovação da produtividade da propriedade rural. (PL 5288/2009).

7. VENDA DE TERRAS PARA ESTRANGEIROS. Desde 2015 a proposta que permite a venda de terras para estrangeiros está com urgência aprovada, para que possa ser apreciada pelo Plenário da Câmara. Defendido pela bancada ruralista, o PL viola a soberania nacional. Alexandre Conceição, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, sintetiza: “Numa ponta, nós lutamos pela distribuição de terras para produzir alimento; na outra, eles querem justamente entregar essas terras e jogar as comunidades para as periferias das grandes cidades”, agravando a exclusão social. (PL 4059/2012)

8. MONOPÓLIO DAS SEMENTES. Está prestes a ser votado, em comissão especial, a proposta de proteção de cultivares. O PL restringe a possibilidade de multiplicação de sementes protegidas e exige autorização do detentor da patente para que o agricultor comercialize o produto da colheita. Trata-se de projeto que favorece multinacionais do agronegócio, que concentrarão mais poder sobre a reprodução de sementes. (PL 827/2015).

9. AGROTÓXICOS. Comissão especial da Câmara se debruça sobre proposta de fragilização do processo de controle dos agrotóxicos no Brasil, que já ocupa, mesmo sem essa inovação legislativa, a primeira posição no consumo mundial de veneno na comida. A proposta altera o nome de agrotóxicos para defensivos fitossanitários, restringe a ação do Ministério do Meio Ambiente e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e aumenta o peso dos interesses econômicos contra os direitos à saúde, à alimentação adequada e ao meio ambiente. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar se posicionou oficialmente contra a proposta. (PL 6299/2002 e PL  3200/2015)

10. MINERAÇÃO. O projeto de Código da Mineração vai no sentido contrário ao das necessidades indicadas pelo maior desastre ambiental da história do Brasil, provocado pela mineração empresarial: a tragédia de Mariana. O código mais incentiva que regula a mineração. Os substitutivos apresentados – um dos quais escrito no computador de uma mineradora – fragilizam o controle estatal e a capacidade de o Poder Público atuar no planejamento desse setor estratégico. (PL 37/2011).

11. FIM DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL. O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária anunciou que acordou com o Governo Federal a aprovação do “auto-licenciamento” ambiental – que permite às empresas obter o licenciamento com o simples preenchimento de um formulário, retirando do Estado o poder de controlar os empreendimentos em prol do meio ambiente. Segundo a mesma fonte, este acordo permitirá, ainda, a dispensa do licenciamento. Outro projeto, apelidado de “fast track” ambiental, simplifica o licenciamento.  Além disso, três projetos legislativos apresentados pela bancada ruralista visam a autorizar a construção de hidrovias sem necessidade de licenciamento ambiental, nos rios Tapajós, Tocantins e Araguaia, e Paraguai. A informação é do site Intercept. (PL 3729/2004, PLS 654/2015, PDCs 118, 119 e 120/2015).

DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS

12. FIM DAS DEMARCAÇÕES INDÍGENAS. A Proposta de Emenda à Constituição, que já foi aprovada em Comissão Especial e está pronta para o Plenário da Câmara, prevê a competência do legislativo para demarcar terras – o que impossibilitará, na prática, futuras demarcações. Além disso, transforma as terras tradicionais em equivalentes da propriedade rural: podem ser arrendadas, divididas e permutadas e ainda receber empreendimentos econômicos. Isso permite a investida do agronegócio e das mineradoras sobre terras indígenas homologadas, acabando com a noção de tradicionalidade. A PEC estende o “marco temporal” (necessidade de estar sobre a terra tradicional na data de promulgação da Constituição de 1988) também às comunidades quilombolas. Ou seja, é danosa também para essas comunidades tradicionais. Algumas demandas de ruralistas expressas na PEC 215 foram regulamentadas por Portaria do Ministro da Justiça.  A norma, de hierarquia inferior à lei, relativiza o parecer técnico da FUNAI. Agora, o Ministério da Justiça pode rever o procedimento. A Portaria abre espaço para pressão dos ruralistas e para adoção imediata do “marco temporal”. A norma, além de inconstitucional, fere a Convenção 169 da OIT, que determina que os povos indígenas devem ser consultados previamente sobre medidas que os afetem. (PEC 215/2000, Portaria n° 68, de 14 de janeiro de 2017)

13. CPI DO INCRA E DA FUNAI. Tramita, desde novembro de 2015, Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados para investigar as atividades da Fundação Nacional do Índio e do Instituto de Colonização e Reforma Agrária na demarcação de terras indígenas e quilombolas. A CPI está em sua segunda versão, pois foi extinta e recriada na sequência durante esse período. Seu maior objetivo é paralisar o processo de reforma agrária e a demarcação de terras tradicionais. O colegiado, comandado por ruralistas, tem se dedicado a investir contra minorias e trabalhadores do campo, perseguindo, com fundamentos políticos e não técnicos, gestores, lideranças e pesquisadores que atuam em causas relacionadas à questão agrária. Seus trabalhos, conduzidos de forma parcial, arbitrária e atabalhoada, padecem de vícios profundos. As arbitrariedades da CPI podem ser sintetizadas em quatro aspectos: a) falta de fato determinado para a investigação, que é uma exigência constitucional; b) prorrogação do seu funcionamento sem acordo e fora dos requisitos regimentais — em menos de duas semanas a CPI, extinta por ter extrapolado em muito o prazo regimental, foi recriada; c) diligências em terras indígenas sem autorização dos indígenas e com a presença de policiais armados na tomada dos depoimentos;  d) quebra do procedimento — em uma CPI, o correto é se aprovar os pedidos de indiciamento após a conclusão dos trabalhos. Nesta, entretanto, aprovou-se solicitação de abertura de inquéritos disciplinares e policiais contra Procuradores Federais, antropólogos, professores e lideranças indígenas, antes do relatório final. Além disso, ocorreu quebra de sigilo de diversas organizações da sociedade civil, inclusive científicas e religiosas, antes do relatório final. Dentre elas, do Conselho Indigenista Missionário, ligado à Igreja Católica, a mais importante organização não-indígena de apoio à causa indígena no Brasil. Foi aprovada também a quebra de sigilo da Associação Brasileia de Antropologia (ABA) – os cientistas têm sido um dos principais alvos da ofensiva ruralista.

DIREITOS DAS MULHERES E DAS PESSOAS LGBT

14. ESTATUTO DA FAMÍLIA. Foi aprovada por Comissão Especial a proposta que retira os casais homoafetivos do conceito de família. Casais formados por pessoas do mesmo gênero, pela proposta, não podem se casar ou estabelecer união estável, tampouco podem adotar. O Brasil já permite o casamento e a adoção por casais homossexuais, a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal. É um retrocesso. O Estatuto aguarda apreciação pelo Plenário da Câmara. (PL 6583/2013).

15. RESTRIÇÃO AO ATENDIMENTO DE VÍTIMAS DE ESTUPRO. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara aprovou o projeto que criminaliza quem instiga ao aborto ou quem preste qualquer auxílio ou até mesmo orientação a mulheres para interrupção da gravidez. No caso de estupro o aborto só será permitido com exame de corpo delito. O projeto ainda prevê que “nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo”. Ou seja, o profissional de saúde não é obrigado a dar as devidas orientações para uma vítima caso este profissional considere que pílula do dia seguinte é abortiva ou que aborto em caso de estupro não é adequado. A proposta está pronta para apreciação pelo Plenário da Câmara. (PL 5069/2013).

16. ABORTO COMO CRIME HEDIONDO. Quatro PLs em tramitação pretendem tornar o aborto um crime hediondo – tão grave quanto homicídio praticado por grupo de extermínio e estupro de criança, por exemplo. Os crimes hediondos não são suscetíveis a graça ou indulto. (PL 4703/1998, PL 4917/2001, PL 7443/2006 e PL 3207/2008).

17. NASCITURO. Há diversos projetos que dispõem sobre os direitos do nascituro, que tramitam em conjunto, sob o nome de Estatuto do Nascituro. A proposta já foi aprovada em duas comissões – Finanças e Tributação e Seguridade Social e Família. A proposta dá uma pensão à mãe de filho gerado a partir de um estupro, além de prever direitos de paternidade ao agressor. (PL 478/2007).

18. CONTRA O RECONHECIMENTO DE PESSOAS LGBT. Além do Estatuto da Família, tramitam projetos que propõem a vedação de adoção por casal homoafetivo; a criminalização da “heterofobia”; a criação do “Dia do Orgulho Heterossexual”; a criação de nova causa de anulação do casamento — “a ignorância, anterior ao casamento, da condição de transgenitalização, que por sua natureza, torne insuportável a vida do cônjuge enganado com a impossibilidade fisiológica de constituição de prole”; o cancelamento do decreto sobre o reconhecimento do nome social e da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais, entre outros. (PL 4508/2008, PL 620/2015, PL 7382/2010, PL 1672/2011, PL 3875/2012, PDC 395/2016).

19. (NÃO) DIVERSIDADE NAS ESCOLAS. Um projeto pretende vetar o debate sobre a igualdade de gênero – ou a promoção da ideologia de gênero — por qualquer meio ou forma do sistema de educação. Outro criminaliza a veiculação “em atos normativos oficiais, em diretrizes, planos e programas governamentais, de termos e expressões como ‘orientação sexual’, ‘identidade de gênero’, ‘discriminação de gênero’, ‘questões de gênero’ e assemelhados, bem como autorizar a publicação dessas expressões em documentos e materiais didático-pedagógicos, com o intuito de disseminar, fomentar, induzir ou incutir a ideologia de gênero”. (PL 2731/2015, PL 3236/2015, PL 3235/2015)

DIREITO À LAICIDADE DO ESTADO

20. EDUCAÇÃO. Tramitam na Câmara algumas propostas dispondo da obrigatoriedade do ensino religioso, da Bíblia ou do criacionismo nas escolas. Hoje a Lei de Diretrizes e Bases estabelece que o ensino religioso é facultativo, devendo ser respeitada a diversidade, sendo vedado o proselitismo. (PL 309/2011, PL 943/2015, PL 8099/2014,).

21. AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE POR ENTIDADES RELIGIOSAS. Foi aprovada por comissão especial a proposta que diz que as Associações Religiosas podem ajuizar ações de inconstitucionalidade no STF. No Brasil um rol de entidades bastante restrito pode ingressar com ação desse tipo. Ao permitir entidades religiosas sem permitir outras de cunho social, a laicidade do Estado é profundamente ferida. A matéria está pronta para apreciação do Plenário. (PEC 99/2011)

DIREITO À EDUCAÇÃO

22. REFORMA EDUCACIONAL. A maior reforma educacional em décadas foi apresentada por meio de Medida Provisória. Quanto ao método, a proposta foi desenhada sem discussão com a sociedade civil organizada, que inclui professores, estudantes, pesquisadores e gestores. Quanto ao rito, uma MP tem trâmite célere, já que seu requisito constitucional é a urgência. Contudo, mudança de tamanha dimensão deveria ser discutida com cuidado, nos detalhes, para que erros sejam evitados e o governo não tenha que voltar atrás no futuro. Quanto ao conteúdo, apesar do recuo anunciado pelo Ministério da Educação, a MP de fato retirou a obrigatoriedade das disciplinas de sociologia e filosofia. Apenas matemática e português continuaram como matérias obrigatórias nos três anos do ensino médio.  O objetivo central da proposta é privilegiar a formação técnica, na qual o estudante opta por uma ênfase curricular, em vez de uma formação mais abrangente. Assim, o ensino médio será dividido em dois blocos. O primeiro, chamado “Base Nacional Comum Curricular”, terá no máximo 1.200 horas da carga total, ou seja, pode ocupar no máximo 50% da carga horária atual do ensino médio, ou no máximo 28,5% da carga horária almejada para o ensino médio. O segundo é chamado “Itinerários formativos específicos”, será organizado conforme as seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional:  linguagens; matemática; ciências da natureza; ciências humanas; e formação técnica e profissional. São admitidos profissionais com “notório saber” para ministrar as disciplinas, o que “institucionaliza a precarização da docência e compromete a qualidade do ensino”, conforme pontua o Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio. A proposta, conforme o MNPS, sonega o “direito ao conhecimento e compromete uma formação que deveria ser integral – científica, ética e estética”. A MP está em sintonia com o movimento “Escola sem Partido”, que visa a proibir a veiculação de conteúdos críticos no ensino. Além disso, favorece as corporações do ensino, já que encarece os custos da educação. Ao mesmo tempo em que o governo impõe por media provisória uma reforma educacional caríssima, o executivo patrocinou a PEC do teto de gastos, que prevê a redução sistemática do investimento público em programas sociais. Provavelmente a solução para o paradoxo será transferir a responsabilidade sobre o ensino médio à esfera privada. A Câmara alterou o texto original, que precisa ainda ser apreciado pelo Senado. (MP 746/2016).

23. ESCOLA SEM PARTIDO. O projeto de “Programa Escola sem Partido” inclui, como diretriz da educação nacional, o “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. A proposta viola, por isso, a Lei de Diretrizes e Bases, que estabelece a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; e o respeito à liberdade e apreço à tolerância. Foi criada uma comissão especial para analisar o projeto. (PL 867/2015, PL 7180/2014)

DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

24. REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL. Foi aprovada pelo Plenário da Câmara a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, nos casos de crimes hediondos (como latrocínio e estupro), homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Agora a PEC está no Senado. A idade penal de 18 anos é um direito humano previsto na Constituição e por isso é cláusula pétrea. A Convenção sobre Direitos da Criança da ONU de 1989 também afirma que 18 anos é o marco da idade penal. A Constituição estabelece o direito à proteção especial da criança e do adolescente, que inclui “obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade”. (PEC 115/2015).

25. AUMENTO DA INTERNAÇÃO PARA ADOLESCENTES NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO. O Senado aprovou e a Câmara agora aprecia, em comissão especial, proposta de aumento do tempo de internação para adolescentes em conflito com a lei. “O texto do Senado eleva o tempo máximo de internação de adolescentes de três para dez anos em casos de homicídio doloso (com a intenção de matar) e de atos descritos na lei de crimes hediondos, sempre que cometidos com violência ou grave ameaça (como estupro e latrocínio). A partir dos 18 anos, o adolescente nessa situação deverá ser transferido para uma unidade ou ala separada dos demais”. Para a CONECTAS, é falsa a ideia de que o aumento da sanção pode reduzir a criminalidade – é o caso da ampliação dos crimes hediondos, sem impacto estatístico nos crimes — ou de que os problemas sociais serão solucionados pelo direito penal (PL 7197/2002 e apensos).

26. EXPOSIÇÃO DE CRIANÇA E ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI. A Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados aprovou o PL que permite a divulgação de imagem de criança ou adolescente a quem se atribui ato infracional. O Coletivo Intervozes manifestou-se contra a proposta, que foi aprovada sem sequer uma audiência pública para debatê-la. Agora o PL será apreciado pela Comissão de Segurança Pública.  (PL 7553/14)

27. REDUÇÃO DA IDADE DE TRABALHO. Está pendente de deliberação a apreciação a PEC que pretende autorizar o trabalho a partir dos 14 anos (hoje a idade mínima é 16). A proposta fere a Constituição e tratados internacionais sobre proteção à adolescência.  (PEC 18/2011).

DIREITO À VIDA

28. ARMAMENTO. Comissão especial aprovou o que significa na prática a revogação do Estatuto do Desarmamento. O porte de armas, hoje restrito a policiais e determinadas autoridades como juízes, poderá ser conferido a qualquer pessoa com requisitos mínimos. Há facilitação para o porte rural de arma de fogo, o que deve contribuir para intensificar a violência no campo, particularmente os ataques de milícias rurais a trabalhadores sem-terra e membros de comunidades tradicionais. O projeto está pronto para apreciação pelo Plenário da Câmara. Por outro lado, está parada a ratificação pelo Brasil do Tratado de Comércio de Armas (que regula o comércio internacional de armas para evitar que elas sejam extraviadas e utilizadas para cometer genocídio, crimes contra a humanidade, etc). (PL 3722/2012, PDC 298/2015).

DIREITOS SOCIAIS E BEM-ESTAR

29. DESMONTE DO ESTADO. Foi promulgada, em dezembro, a Emenda Constitucional proposta pelo Presidente Michel Temer, que institui um novo regime fiscal que congela os gastos públicos por 20 anos. Trata-se da medida legislativa com mais impacto social e econômico da história. O estudo “Austeridade e Retrocesso – Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil”, elaborado pelo Fórum 21, pela Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES), pelo  GT de Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP); e Plataforma Política Social, aponta que a emenda comprometerá atividades estatais básicas e as políticas públicas de educação, saúde, assistência social, infraestrutura, transporte, energia, ciência, fomento à agricultura e à indústria, etc. Os impactos devem ser severos para os setores médios e baixos da população, que se utilizam diretamente dos serviços públicos. Por outro lado, a PEC favorece os rentistas, pois juros e amortização da dívida pública não entram no teto. A emenda veda, ainda, políticas anticíclicas, que poderiam ser acionadas em momentos de crise, além de ser indutora de recessão econômica, já que provoca o ciclo vicioso da austeridade. A proposta implica também em redução do valor real do salário mínimo. A PEC tende a fazer terra arrasada de todo o aparato de desenvolvimento e proteção social construído desde a década de 1930. Como aponta o economista Marcelo Zero, o mecanismo previsto “não existe em nenhum lugar do mundo e impõe uma absurda austeridade permanente, que independe do ciclo econômico e do controle democrático”. Pelos cálculos do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a mudança deve reduzir em 50% os recursos – já insuficientes – aplicados na área. (EC 95 de 2016)

30. REFORMA DA PREVIDÊNCIA. O governo apresentou proposta de reforma da previdência na qual o trabalhador precisará contribuir por 49 anos para assegurar o recebimento do teto do regime geral da previdência. A proposta estabelece paridade entre homens e mulheres e entre servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada. A PEC restringe o BPC (Benefício de Prestação Continuada). A aposentadoria sem contribuição para o trabalhador rural é extinta, assim como a aposentadoria especial de professores. A agenda divulgada do secretário de Previdência Social do Ministério da Fazenda mostra que ele se reuniu dezenas de vezes com empresas de previdência privada, mas com sindicatos representantes dos trabalhadores, apenas no dia em que a proposta foi entregue ao Congresso. Os militares são os únicos poupados pela reforma. Eles, entretanto, são responsáveis por 48% do déficit da previdência, segundo estudo do consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados. A proposta já foi admitida pela Comissão de Constituição e Justiça (PEC 278/2016)

31. ORÇAMENTO. Segundo análise feita pelo site Gestão Pública da proposta orçamentária para este ano, a PEC implicou “em reduções significativas, em comparação ao orçamento do ano passado, em áreas centrais dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, e que devem certamente comprometer a implementação de políticas públicas em todas as esferas da federação, sobretudo, em Estados e  municípios: desenvolvimento regional – redução de 81, 2%; moradia digna – redução de 56,7%; reforma agrária– redução de 52,6%; igualdade racial  – redução de 42,2%; mulheres e igualdade de gênero– redução de 40%; principais programas sociais – redução de 14%; educação) – redução de 10%; inclusão social e bolsa família – 7,4%; fortalecimento do SUS – redução de 5,6%”. “Por outro lado, a PEC não parece impactar as áreas como investimento militar e o agronegócio, que terão aumento significativo em seu orçamento”.  O Projeto de Lei Orçamentária encaminhado pelo Governo para o ano de 2017 tem a redução de R$ 430 milhões nas políticas públicas que atendem a agricultura familiar, a reforma agrária, os povos e as comunidades tradicionais (estudo da Liderança do PT). A proposta estabelece um teto de 110 milhões de reais para despesas discricionárias da Funai. Trata-se do menor valor orçado para a Fundação nos últimos 10 anos (de acordo com A Pública).

32. PROGRAMA DE PARCERIAS DE INVESTIMENTO (PPI). Foi aprovada a medida provisória de Michel Temer que instituiu o programa de privatizações de seu governo. A proposta, segundo o Deputado Nilto Tatto (PT/SP), é orientada “à expansão da infraestrutura mediante parcerias com a iniciativa privada e às privatizações de empresas e instituições financeiras federais, institui uma governança de camarilha, centralizando decisões e ações em um grupo restrito em torno do presidente da República, e negligencia os princípios que regem as licitações públicas”. A MP traz um apêndice que fragiliza o licenciamento ambiental – que é o principal instrumento de análise dos impactos ambientais de qualquer tipo de empreendimento. (Lei Ordinária 13334/2016)

33. ENTREGA DO PRÉ-SAL. O legislativo aprovou a proposta de autoria do atual Ministro das Relações Exteriores, Senador licenciado José Serra (PSDB/SP), que retira a participação obrigatória da Petrobrás em pelo menos 30% da exploração do Pré-Sal – provavelmente a maior reserva energética do mundo. Conforme apontou a Federação Única dos Petroleiros, trata-se de entregar a reserva às multinacionais, o que significará menos recursos para políticas públicas “e o fim da política de conteúdo nacional, que gera empregos, renda e tecnologia para o nosso país”. (Lei Ordinária 13365/2016)

34. RENEGOCIAÇÃO DAS DÍVIDAS DOS ESTADOS. O Congresso Nacional aprovou o projeto de renegociação da dívida dos Estados. Para aderirem ao programa, os estados devem se submeter, por dois anos, aos requisitos da Emenda do teto de gastos. A Câmara rejeitou, porém, dispositivos inseridos pelo Senado, como aumento da contribuição previdenciária dos servidores. A Câmara ainda inseriu na proposta a possibilidade de ajuda aos estados em situação de calamidade financeira, com o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul.  Michel Temer vetou essa ajuda, e pretende apresentar novo projeto sobre o tema em 2017. (PLP 257/2016, Lei Complementar 156/2016)

DIREITO À COMUNICAÇÃO

35. EBC. Michel Temer propôs medida que acaba com a autonomia da Empresa Brasileira de Comunicação. Ela permitirá que o Planalto indique e demita livremente o presidente da EBC. Tal medida vai na contramão das práticas democráticas de comunicação pública mundo afora, segundo as quais se criam empresas públicas de comunicação que não são estatais, ainda que prestem contas ao governo. (MP 744/16).

36. 100 BI ÀS OPERADORAS. Foi aprovado, em sete dias corridos, com apoio do governo Temer e sem debates, em caráter terminativo pela Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional do Senado, um projeto que “transforma as concessões de telecomunicações em autorizações e transfere uma infraestrutura estratégica da União, avaliada em R$ 100 bilhões, para o patrimônio privado das operadoras”. A proposta, como aponta o Intervozes, “resultará no fim da universalização dos serviços de telecomunicações, pode elevar preços de conexão e deixar regiões interioranas desconectadas”. (PLC 79/2016)

DEVIDO PROCESSO LEGAL

37. EXCEÇÃO LEGALIZADA. Foram apresentadas pelo Ministério Público Federal “dez medidas contra a corrupção”. A proposta, na prática, legalizava medidas de exceção como admissão de provas ilícitas, restrição ao habeas corpus, restrição grave à prescrição dos crimes e limitação à defesa e teste de integridade, ampliação excessiva do rol de crimes hediondos, etc. Como aponta o Subprocurador-Geral da República Eugênio Aragão, o que o MPF quer é um projeto de “interesse corporativo”, que expande suas competências, criando obstáculos à defesa. O texto das 10 medidas foi, em seus principais pontos, rejeitado pelo Plenário da Câmara dos Deputados e seguiu agora para o Senado. (PL 4850/2016).

38. TERRORISMO. O legislativo aprovou a lei que tipifica o terrorismo no Brasil.  Apesar da ressalva que exclui de seu texto a atuação de movimentos reivindicatórios, a lei é perigosa pois traz conceitos indeterminados. O Conselho Nacional de Direitos Humanos e pelo menos 80 movimentos sociais foram contrários à proposta. (Lei ordinária 13.260 de 2016).

39. CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS. Hoje ao menos dois projetos de lei pretendem agravar a legislação antiterror. Um deles resgata os dispositivos vetados pela então Presidenta da República, Dilma Rousseff. Assim, criminaliza os atos de ato de incendiar, saquear, depredar meios de transporte, agências bancárias, lojas e prédios públicos – o que implica em pena excessiva a condutas contra o patrimônio. Outro inclui a finalidade política como elemento a caracterizar o terrorismo, com o intuito de restringir movimentos reivindicatórios, ferindo a liberdade de expressão e a democracia. (PLS 272/2016 e PL 5065/2016)

DIREITO AO VOTO

40. PARLAMENTARISMO. O Senado aprovou a criação de uma comissão especial para debater a adoção do parlamentarismo, ainda não instalada. Tramita no STF um mandado de segurança (MS 22.972) que questiona se é possível a mudança de um sistema de governo via emenda Constitucional. O MS foi pautado em março, mas não foi ainda julgado. Nas informações que prestou ao STF, o Presidente do Congresso Nacional, Renan Calheiros, manifestou-se favorável ao parlamentarismo. Por esse sistema, os cidadãos não têm o direito de voto direto para o cargo de Presidente da República.

 

Elaboração:

Presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados

Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP), IESP-UERJ

Apoio:

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

Conectas Direitos Humanos

Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar

 Fonte: Câmara dos Deputados

Fome entre os Guarani e Kaiowá: “Criança chora, não aguenta mais. Sofrimento mesmo. Quase comendo terra”

Sem a terra tradicional, resta a fome para ao menos 40 comunidades Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Em acampamentos improvisados, às margens de rodovias, estradas de terra ou entre lavouras de cana e soja, nas retomadas – áreas não regularizadas e sob conflito – os indígenas não recebem cestas de alimentos desde novembro.

“Criança chora, não aguenta mais. Sofrimento mesmo. Tão fraco mesmo. Quase comendo terra. Precisamos de um apoio. Vou sair pra ver o que consigo porque vai morrer aqui. É desespero, não vai aguentar”, desabafa Gilmar Guarani e Kaiowá, morador da retomada de uma área localizada na Fazenda Madama, em Kurusu Ambá. Por ali vivem cerca de 80 crianças.

Até dezembro de 2014, cerca de 14 mil cestas eram levadas às comunidades por força de um Acordo de Cooperação Técnica do governo federal. Com a não renovação do acordo, desde 2015 o número despencou para no máximo 2 mil. “100% das famílias indígenas do Cone Sul eram atendidas. Não é mais assim”, explica Silvio Raimundo da Silva, agente indigenista da Funai de Dourados.

Hoje se trata de uma ação emergencial tocada pela Conab. “As cestas, na verdade, deveriam ser substituídas por políticas públicas estruturantes. Agricultura, mercado de trabalho, geração de renda. Acontece que a redução das cestas ocorreu, mas não foi acompanhada por outras políticas. Houve um descompasso”, analisa o indigenista.    

As lideranças indígenas apontam que este descompasso se dá pela paralisação das demarcações. “Tamo debaixo de lona, entre fazendas de soja, cana e gado. Só o espaço pros barracos. Plantar fica difícil. Dividimos aquilo que conseguimos e quando a fome aperta nas crianças, o jeito é botar pra dormir”, explica Elizeu Guarani e Kaiowá.

Fome e Insegurança Alimentar

Elizeu é membro da Aty Guasu, principal organização política do povo, e mora no tekoha – lugar onde se é – Kurusu Ambá. A comunidade compõe os estudos do relatório Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição Guarani e Kaiowá (2016). A pesquisa é da Fian-Brasil com o Cimi e abrange ainda os tekoha Guaiviry e Ypo’i.  

“Pedaços de terras que as comunidades ocupam dentro de seus territórios tradicionais estão dominados por monoculturas das fazendas, cujo cultivo demanda o uso excessivo de agrotóxicos (…) risco à saúde, à vida, representando também uma violação ao direito humano à alimentação, nutrição e água”, diz trecho do estudo.

São mais de 100 domicílios nos três tekoha pesquisados – 46% dos moradores e moradores tinham menos de 15 anos. No momento em que os pesquisadores realizaram as entrevistas (2013), em 75 destas casas os jovens residentes dependiam da família para se alimentar.

De acordo com critérios internacionais de Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas (Dhana), 13,3% dos domicílios (10) apresentaram insegurança alimentar leve; 58,7% (44) insegurança alimentar moderada e 28% (21) insegurança alimentar grave. Conforme o PNAD/IBGE (2013), em domicílios menos de 18 anos a insegurança alimentar grave atinge 4,8% das famílias brasileiras.   

“A fome é resultado da expulsão das terras e de outros fatores que são causados pela violência gerada pelo atual modelo de produção de alimentos, enquanto a má nutrição resulta da fome, da baixa qualidade, da redução da diversidade e da contaminação dos alimentos, da inadequação das condições de saneamento”, diz trecho do diagnóstico.

“Não pode plantar” e um TAC do MPF

Gilmar Guarani e Kaiowá explica que a Funai e o Ministério Público Federal (MPF) tentam intermediar um acordo com os proprietários da Fazenda Madama, incidente sobre o território indígena, para que permitam a plantação dos indígenas. “Não pode plantar. Outros lugares não pode pegar água no açude. É assim”, diz o indígena.

“Com a redução no número das cestas de alimentos passamos a indicar como prioridade os lugares com mais vulnerabilidade: as áreas retomadas. Como a recuperação de territórios segue ocorrendo, e a quantidade de cestas diminuindo, tem uma defasagem”, salienta o coordenador da Funai em Dourados, Vander Nishijima.

A distribuição da Conab de cestas ocorre em seis etapas, com um intervalo médio de 60 dias. Com uma quantidade muito menor de cestas, 60 dias viram 120 para a fome de quem está com a barriga vazia. “Existe o entendimento do MPF e nosso, da Funai, de que o estado tem programas para contribuir com a alimentação”, diz Nishijima.

Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi celebrado entre o MPF, a Funai e o Governo Estadual do Mato Grosso do Sul, no ano passado. A Secretaria de Assistência Social se comprometeu a pavimentar caminhos para o auxílio e levantar famílias indígenas que já participam do Programa Vale Renda.

Aos não-indígenas, o programa oferece uma ajuda em dinheiro. Para os indígenas, em alimentos. No TAC, a Secretaria se comprometeu a até este mês de janeiro ter tudo detalhado para seguir com o cronograma. “Hoje temos algo temporário, o governo estadual tem condições de levar alimentos de modo permanente”, conclui Nishijima.

Bloqueio de estrada e Consea    

Em Naviraí, os Guarani e kaiowá bloquearam por três dias, no final do ano passado, a BR-163. Na pauta a questão da falta de comida e a fome. “A Polícia Federal nos ligou perguntando se tínhamos como levar alimentação. O Cimi e outras entidades arrecadam de forma permanente”, explica Matias Benno, missionário do Cimi.

O indigenista explica que os casos de desnutrição são sistemáticos: “Em Pyelito Kue quase todas as crianças já receberam algum tipo de tratamento envolvendo as consequências da desnutrição. Já houve óbitos. As áreas não regularizadas são disparadas as que mais concentram casos”.

Não há nada de novo ao governo federal. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) fez dez recomendações aos poderes públicos referentes ao quadro dos Guarani e Kaiowá. As propostas foram elaboradas e aprovadas como resultados da missão ao MS realizada entre agosto e setembro.

“As áreas de retomada e acampamentos estão em situação de maior vulnerabilidade e insegurança alimentar e nutricional grave que as demais da região, visto que as terras não estão demarcadas, não acessam as políticas públicas que dependem da regularização e que não são autorizadas a cultivar plantio de alimentos”, diz o Consea.

Há poucos metros da sala da Presidência da República, no Palácio do Planalto, o Consea abordou o acesso dos Guarani e Kaiowá aos alimentos, os impactos de programas sociais, qualidade, quantidade e regularidade das cestas básicas, o acesso à água, documentação e questões relacionadas à demarcação das terras.

Mobilizações artísticas, políticas e doações de alimentos

Priscila Anzoategui é jornalista, advogada, militante, mãe e integrante do Coletivo Terra Vermelha (CTV), organização de Campo Grande (MS). Ativista da causa indígena, a militante percorreu todas as comunidades Guarani e Kaiowá em situação de fome e insegurança alimentar. Percorreu, inclusive, levando carros e carros com doações.

Não se trata, porém, de assistencialismo. “Lá no Tey’i Jusu, Guaiviry, e outros, a gente sabe que os Guarani e Kaiowá querem plantar e estão fazendo de tudo pra voltar a ter essa independência, mas enquanto fazem essa transição precisam das cestas”, explica Priscila. O diálogo com caciques e lideranças é constante.

“Agora em Kurusu Amba, em especial no acampamento do Gilmar, toda vez que a gente vai é essa situação de miséria. No ano passado quando fui levar os alimentos tava bem frio e as crianças descalças. O CTV leva roupas também, e já ajudamos com material escolar”, afirma.

Para conseguir as doações, de um modo geral, o Coletivo articula apresentações artísticas em Campo Grande, faz intervenções políticas e conta com apoios diversos. “As lideranças entram em contato com a gente e tentamos fazer tudo rápido. Uma arte da campanha, escolhe um ponto de arrecadação e começa a difundir”.

No próximo sábado, 21, por exemplo, o Sesc da capital sul-mato-grossense receberá o espetáculo infantil “Kikio” do Grupo Guavira de Teatro de Bonecos. O artista e integrante do CTV Jorge de Barros, cujo ateliê confecciona os bonecos, traz histórias indígenas na peça. Quem quiser conferir e ajudar os Guarani e Kaiowá, pode levar alimentos para doar.

Por Renato Santana

Publicado originalmente no site do CIMI

Los hermanos contra os agrotóxicos

Argentinos lutam em várias frentes contra devastação provocada pelos agroquímicos; crianças de escolas rurais são atingidas


Os fatos se sucedem na Argentina, e parecem ter no Tribunal Monsanto um polo irradiador. Depois de denunciada no Tribunal, uma pesquisa que comprova a relação entre câncer e agroquímicos foi censurada e gerou solidariedade em outros países. Estudo da mesma universidade anunciou a comprovação dos efeitos tóxicos do glifosato para o sistema nervoso. Expostas no Tribunal, as fotografias de “O custo humano dos agrotóxicos”, de Pablo Ernesto Piovano, sobre as ‘zonas fumigadas’, ganhou prêmio internacional.

E mais. Uma fábrica da Monsanto foi fechada. Uma caravana contra os agrotóxicos foi armada por vizinhos autoconvocados que se definem como “vítimas de envenenamento por viver em pueblos fumigados com agrotóxicos”. A morte por intoxicação de uma criança está sendo julgada.

CENSURA AOS ACAMPAMENTOS SANITÁRIOS

O médico Damián Verzeñassi acabava de voltar da Holanda, onde relatara ao Tribunal Internacional Monsanto as pesquisas realizadas por sua equipe na Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, demonstrando a relação existente entre expansão do uso de agrotóxicos e a tendência a contrair câncer na população rural. Foi quando soube que estava impedido de acessar os dados da pesquisa, trancados com corrente e cadeado pelo decano da Faculdade de Ciências Médicas, à qual ele e sua equipe estão ligados. A reação da comunidade acadêmica e dos movimentos sociais fez os dados serem liberados.

Verzeñassi e sua equipe realizam pesquisas em acampamentos sanitários nas regiões de cultivo de soja transgênicas, fumigadas por agrotóxicos – além da cuenca sojera, as províncias do Chaco, Santiago Del Estero, Salta e Formosa. Desde 2010, já alcançaram com os acampamentos 96.800 pessoas que vivem em 27 localidades de quatro províncias argentinas. Desse encontro entre quem vive nas localidades de menos de 10 mil habitantes e dos estudantes e docentes da universidade pública foram surgindo dados que permitiram à equipe de Verzañassi identificar as enfermidades e seu comportamento nos últimos 20 anos: hipotireoidismo, doenças respiratórias, malformações congênitas, abortos espontâneos, diferentes tipos de câncer.

SOJA EM GRANDE ESCALA

“Quando estudamos o que tinham em comum, vimos que eram vilarejos em regiões onde se começou a produzir soja em grande escala há 20 anos”, diz o médico. Essa foi exatamente a época em que a soja transgênica entrou no país. “As doenças que prevalecem nesses territórios, segundo os dados observados, coincidem com os problemas de saúde associados aos agrotóxicos, de uso obrigatório no pacote de transgênicos”.

O mapa de saúde dos vilarejos fumigados revela grandes diferenças com o mapa epidemiológico nacional da Argentina, demonstra a pesquisa.  Em nível nacional, a primeira causa de morte são os problemas cardiovasculares, enquanto nessas regiões um terço dos óbitos ocorre por alguma forma de câncer – o que representa cerca de 50% a mais que no resto do país.

Os últimos dados parciais revelados pela equipe de Verzeñassi, em 2015, sobre a localidade de San Salvador (Entre Ríos), mostram que, entre 2000 e 2014, 80 dos domicílios visitados relataram 84 casos de câncer diagnosticados, dos quais 46,4% ocorridos nos últimos cinco anos.

“Chama a atenção que a escalada de perseguições surja quando estou de licença participando do Tribunal em Haia, e membros da nossa equipe tenham falado aos meios de comunicação sobre o mapa do câncer na região”, observou Verzañassi, que recebeu apoio de vários setores da sociedade argentina e internacional. Seus estudos vêm sendo apresentados como prova em juízo em congressos, nacionais e internacionais, e requisitados por autoridades científicas. O caso repercutiu também na Itália, consumidora da soja argentina.

ESCOLAS RURAIS

As escolas rurais são diretamente afetadas pelas fumigações. Como no Brasil, onde o caso de Rio Verde, a 200 km de Goiânia, foi registrado no filme Pontal do Buriti – brincando na chuva de veneno.

Feitas em horário de aula e sem aviso prévio, causam doenças de pele e das vias respiratórias, vômitos e problemas gastrointestinais em crianças e adultos. Na região de Entre Ríos, as fumigações vêm atingindo 82 escolas, com cerca de 2.500 alunos, 450 professores e 80 funcionários. No departamento de Uruguay são 15 escolas, das 28 pesquisadas. E em Gualeguaychú, 19 entre as 23 escolas visitadas sofreram fumigações. O mesmo ocorre em Córdoba, onde há 1500 escolas a menos de um quilômetro de campos fumigados, com 12 mil alunos e 900 professores. “Parem de fumigar a escolas”, diziam cartazes de associações de docentes, padres e ambientalistas que se mobilizam contra essa prática.

O país é o terceiro maior produtor de soja transgênica do mundo, com 60,8 milhões de toneladas na safra 2014/2015, perdendo apenas para o Brasil (94,5 milhões de toneladas) e os Estados Unidos (108 milhões de toneladas), em números absolutos.

CIENTISTA ESTUDA GLIFOSATO

A Argentina foi o primeiro país latino-americano a aprovar o cultivo de sementes transgênicas. Vinte anos depois, é um dos maiores produtores de soja geneticamente modificada do mundo, e um dos países com mais aplicação de agrotóxicos – atrás apenas dos Estados Unidos e do Brasil. O mais usado é o glifosato, conhecido como “mata mato” ou Roundup , da multinacional Monsanto. É o veneno mais comercializado em escala global, por sua suposta inocuidade.

Contudo, pesquisa desenvolvida pela professora Silvana Rosso na Faculdade de Ciências Bioquímicas e Farmacêuticas da Universidade Nacional de Rosário – a mesma onde os dados dos “acampamentos sanitários” foram censurados – traz luz ao debate acerca dos efeitos sinistros do glifosato para o desenvolvimento animal e humano. Mesmo em doses menores que aquelas a que os humanos estão expostos, o glifosato produz efeitos citotóxicos e altera a constituição do DNA, comprovou o estudo.

Durante cinco anos, a equipe da professora avaliou os efeitos do glifosato sobre o desenvolvimento e função do sistema nervoso de mamíferos expostos ao veneno no período de gestação, usando como modelo animal fêmeas de ratos, cujo sistema nervoso é semelhante ao humano.

“Observamos, por meio de testes comportamentais realizados em laboratório com animais que foram expostos ao glifosato durante o período de gestação, sinais de neurotoxicidade manifestados por alterações na capacidade de respostas reflexas, diminuição na atividade motora, na aprendizagem e na memória, e que essas alterações são irreversíveis”, diz Silvana Rosso.

IMPACTO NA SAÚDE

Em 2015, a Agência Internacional do Câncer (Iarc), que pertence à Organização Mundial de Saúde (OMS), recategorizou o glifosato como “provavelmente cancerígeno”. Mas nesse mesmo ano a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar desautorizou a Iarc: considera que o glifosato não é nem carcinogênico nem mutagênico.

Em 29 de junho de 2015, um mês depois que a OMS e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) publicaram um estudo conjunto sustentando que o glifosato não é cancerígeno, a Comissão Europeia renovou a permissão de uso do glifosato no continente até o último dia de 2017. Até então, a Agência Europeia de Produtos Químicos terá, espera-se, uma conclusão definitiva sobre o efeito dessa substância sobre as pessoas.

No Brasil, o Ministério Público Federal reforçou o pedido de banimento do glifosato por ser um produto cancerígeno. O herbicida 2.4D também é proibido em vários países do mundo. Ambos são muito utilizados no Brasil e na Argentina.

A EXPLOSÃO DO CONSUMO

O consumo do glifosato na Argentina saltou dos 30 milhões de litros/ano em 1996 – quando foi aprovado o uso de transgênicos no país – para 400 milhões em 2016, apontam estudos da Universidade Nacional da Plata. Foram pulverizados mais de 24,5 milhões de hectares, cerca de 60% da área cultivada do país. Isso significa um aumento de maisde 1000 % em duas décadas.

No Brasil, o aumento foi de um terço em cinco anos, de 120 mil toneladas em 2010 para quase 195 mil em 2014, conforme dados apresentados pela pesquisadora Sonia Corina Hess, professora da UFSC. “Glifosato e transgênico vão juntos. A indústria convenceu todo o mundo que o veneno não é venenoso. Mas quem faz os testes é a indústria”, alertou ela, na Audiência Pública sobre Agrotóxicos que criou o Forum Paulista contra os Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, no fim de agosto.

Também o pesquisador da Fiocruz Marcelo Firpo, que esteve no Tribunal Monsanto representando a Abrasco, alerta para a invisibilidade do problema: “Temos anualmente 400 mil casos de intoxicação e 4 mil mortes relacionadas com os pesticidas no Brasil. O Tribunal é de grande relevância para os países da América Latina”.

Por Inês Castilho

Publicado em De Olho nos Ruralistas