Artigo | A fome e a dor dos outros

Nayara Côrtes Rocha

Publicado originalmente no acervo online do Le Monde Diplomatic Brasil, em 19 de setembro

“As violações ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas nunca deixaram de existir no Brasil. A pobreza, a miséria e a concentração de renda, causas da fome, assim como o poder desproporcional e desregulamentado do agronegócio e da indústria de alimentos, sempre se fizeram presentes no complexo cenário brasileiro relacionado à soberania e segurança alimentar e nutricional”.

A reflexão abre o artigo “A fome e a dor dos outros” de Nayara Côrtes Rocha, assessora de direitos humanos da FIAN Brasil ao Le Monde Diplomatique Brasil, veiculado no acervo online do último dia 19.

A partir de um viés científico, político e histórico, Nayara traz em destaque a defesa à dignidade humana e aos direitos fundamentais por meio do acesso ao alimento adequado, saudável e sustentável; e rechaça a omissão e o posicionamento negacionista do governo Bolsonaro diante do aumento da fome e da insegurança alimentar e nutricional em todos os níveis.

Leia o artigo.

Dia da Consciência Negra: o racismo estrutural como causa de violações ao Dhana

Estar livre da fome e comer bem é um direito de todas as pessoas, mas, no Brasil, a população negra ainda enfrenta o racismo estrutural como causa de violações ao direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana).

Hoje, praticamente metade da população brasileira (112 milhões de pessoas) convive com a insegurança alimentar. Entre domicílios em que a pessoa responsável é negra, essa parcela é ainda maior: 67,8% entre pessoas pardas e 66,8% entre pretas, chegando a 73,8% quando a responsável é mulher.

No nosso país, as pessoas mais pobres são negras e as pessoas mais afetadas pelo desemprego são mulheres negras, como observamos no Informe Dhana 2021: pandemia, desigualdade e fome:

O desemprego, que já vinha subindo desde 2015, chegou a 14,7% no 1º trimestre de 2021 e atingiu o recorde de 14,8 milhões de brasileiros. É a maior taxa e o maior contingente de desocupados já registrado pela série histórica do IBGE, iniciada em 2012. […] Vale destacar que, com relação à taxa de desemprego, entre as mulheres negras, o crescimento foi de 17,3% para 21,4% entre o primeiro trimestre de 2020 e o de 2021. Enquanto entre homens brancos a taxa cresceu menos, de 8,4% para 10%, o que mostra que o desemprego e seus efeitos são maiores entre as mulheres e a população negra.

Mesmo assim, a ação governamental vai na direção oposta à solução. Políticas públicas essenciais para a garantia da alimentação e da renda dessa população seguem sendo desmontadas, como o Bolsa Família, substituído por um programa sem estrutura definida e sem sustentabilidade orçamentária. As demais políticas federais que geravam alimento e renda foram extintas ou completamente desidratadas.

Enquanto isso, nas periferias das cidades, onde a maioria da população é negra, a escolha do alimento não é uma opção. Produtos ultraprocessados, que não alimentam de verdade, são alternativas incontornáveis quando a inflação de alimentos dispara. No campo, o desmatamento e a grilagem de terras em territórios tradicionais violam o acesso aos alimentos. A vegetação nativa e a roça do pequeno agricultor foram destruídas para plantação de grandes monoculturas e para a transformação do alimento em commodity. Essa desigualdade também está expressa na estrutura fundiária brasileira:

Segundo os dados do IBGE, cerca de 47,9% dos estabelecimentos agropecuários tinham produtores autodeclarados brancos, proporção maior do que a dos estabelecimentos com produtores autodeclarados pardos (42,6%), pretos (7,8%), indígenas (0,8%) e amarelos (0,6%). Nos estabelecimentos com mais de 500 ha, 72,2% dos produtores proprietários são brancos, 23,9% são pardos, 2,5% são pretos, 0,4% são indígenas e 0,06% são amarelos. Ou seja, quanto maior a área dos estabelecimentos, maior a predominância dos produtores autodeclarados brancos.

A pandemia de Covid-19 também pesa mais forte sobre a população negra, que conta com menos saneamento básico nas periferias, que foi a parcela que mais necessitou do auxílio emergencial e a quem, junto com os povos indígenas, foi inicialmente negada a garantia dos direitos à saúde, à alimentação e à água nos vetos presidenciais ao projeto de lei 1.142/2021 (posteriormente derrubados parcialmente pelo Congresso). Mesmo frente a essas adversidades, brotou a solidariedade:

A volta da fome e o contexto de crise sanitária reativaram uma enorme rede de solidariedade e repercutiram nas doações filantrópicas durante a pandemia. A Ação da Cidadania, por exemplo, fundada nos anos 1990 por Herbert de Souza, o Betinho, distribuiu 8 mil toneladas de alimentos durante a pandemia . Já a iniciativa Se tem gente com fome, dá de comer! , organizada pela Coalizão Negra por Direitos e pela Anistia Internacional, além de outras organizações da sociedade civil, já arrecadou mais de 18 milhões de reais.

Por isso, no Dia da Consciência Negra, afirmamos que é preciso compreender de que maneira o sistema alimentar e o sistema econômico contribuem para a manutenção das iniquidades, para assim construir alternativas fundamentadas na justiça social, no respeito às diferenças e na garantia de direitos humanos. Desconstruir o racismo estrutural nos sistemas alimentares é um passo fundamental para, de fato, alimentar a vida.

Acesse o resumo executivo do Informe Dhana, que lançaremos em 10 de dezembro.

Artigo | Construindo conjuntamente o futuro do direito à alimentação no Brasil com raízes profundas em tempos de tormenta

Significado dos avanços e desafios no vigésimo aniversário da FIAN Brasil

Ana María Suárez Franco – representante permanente da FIAN Internacional em Genebra

Com estas palavras quero fazer um breve reconhecimento ao trabalho da FIAN Brasil em seus 20 anos de luta pelo direito à alimentação. Eles certamente não abrangem todo o esforço valioso que colocaram em seu trabalho e os desafios que enfrentam. No entanto, esse olhar de fora visa juntar as vozes de muitas outras pessoas que comemoram esses 20 anos reconhecendo sua valiosa contribuição.

Quando comecei a trabalhar como estagiária na FIAN em 2002, a FIAN Brasília estava em Goiânia. Seu trabalho já era muito relevante, principalmente nas questões de acesso à terra e na defesa do direito à alimentação diante do despejo e do impacto das monoculturas e dos agrocombustíveis. Nesse tempo, se minha memória não me trair, o trabalho foi feito principalmente com os movimentos que lutavam pela terra. A FIAN Brasil também apoiou as comunidades quilombolas.

Mais ou menos entre 2009 e 2011 a FIAN Brasil teve várias mudanças relevantes. Eles passaram a trabalhar sobre o direito à alimentação de uma perspectiva mais abrangente, incluindo discussões sobre Governança Alimentar em nível nacional, participando de discussões em torno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e contribuindo para reuniões internacionais sobre o direito à alimentação e à nutrição do que no período foram organizados em Brasília e no exterior. Isso aconteceu em um momento em que as políticas e instituições públicas brasileiras deram grandes passos que constituíram um exemplo para o mundo no que se refere ao direito à alimentação. A partir dessa época também lembro como mudança relevante a mudança do escritório para Brasília, o que ampliou as possibilidades de interação com as autoridades nacionais.

Também de grande importância foi o início do acompanhamento das Comunidades Guarani e Kaiowá, a documentação de sua situação na perspectiva do direito à alimentação e à nutrição e a apresentação de uma petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual foi admitida e está em andamento. Nesse trabalho, que continua até hoje, a cooperação com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem gerado um grande aprendizado. Este apoio continua. Em estreita colaboração com o Cimi e com o Secretariado Internacional da FIAN, a FIAN Brasil tem contribuído para trazer as vozes que contam as realidades cruéis que vivem os Guarani e Kaiowá, incluindo suas reivindicações pela terra, contra o genocídio e as violações do direito à alimentação, perante o Sistema Internacional de Direitos Humanos da ONU e as autoridades europeias. Nesse contexto, apresentaram o caso ao Comitê Desc, ao Conselho de Direitos Humanos e aos três últimos relatores especiais de Direitos Humanos para o Direito à Alimentação e ao último relator para Pobreza Extrema e Direitos Humanos. Essas autoridades da ONU obtiveram, entre outras, várias recomendações ao Estado brasileiro, defendendo-o para respeitar, proteger e garantir os direitos das comunidades. O trabalho de advocacia no Parlamento Europeu resultou numa resolução de apoio às comunidades. Todas essas recomendações são instrumentos que fortalecem a luta pelo Tekoha dos Guaraní e Kaiowá. Uma luta que ainda representa um imenso desafio.

Em nível regional, nas Américas, a FIAN Brasil tem sido uma das seções-chave na formação da articulação regional, apoiando essa cooperação com suas ideias. Isso também implicou a definição e implementação de estratégias em nosso trabalho perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Eu, como representante permanente da FIAN Internacional em Genebra, valorizo ​​o papel que a FIAN Brasil desempenhou durante o processo de negociação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Zonas Rurais, bem como processos relacionados, incluindo as discussões do Comitê Desc para a adoção de um Comentário Geral sobre a Terra e os Desc [direitos econômicos, sociais e culturais], ou os esforços da sociedade civil para conduzir a transição para um mundo livre de agrotóxicos. Nesse contexto, a FIAN Brasil tem contribuído para manter nossos parceiros no Brasil informados sobre esses processos e para levar as análises e propostas do movimento pelo direito à alimentação no Brasil aos respectivos debates internacionais. Participou de negociações na ONU em Genebra, apoiou a participação de representantes das comunidades de base nesses espaços e liderou a elaboração de um estudo sobre Agrotóxicos e Direito à Alimentação, realizado pelas seções do FIAN na América Latina, que será publicado em breve.

A FIAN Brasil também desempenhou um papel útil e n a conexão entre o processo internacional no âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, para a adoção de um Instrumento Vinculativo (um tratado) sobre Empresas Transnacionais e Outros Negócios em Direitos Humanos, participando dos debates e contribuindo para os debates em nível brasileiro.

Infelizmente os tempos mudaram e o ambiente político que apoiava o direito à alimentação e reconhecia as contribuições da sociedade civil e a importância da participação das comunidades de base na elaboração e monitoramento das políticas no Brasil foi deixado para trás. Hoje a sociedade brasileira vive um regime hostil e autoritário, que ignora os direitos humanos e ataca frontalmente os povos indígenas, as mulheres, a população LGTBI e os defensores dos direitos humanos. O Consea foi desmontado, medidas regressivas de direitos humanos foram adotadas e a militarização da sociedade instigou o pânico naqueles que antes defendiam as agendas dos Desc.

Acho que, nesse novo contexto, a FIAN Brasil tem um trabalho muito importante. Assim como fez quando mobilizou as ações que buscavam impedir o desmantelamento do Consea, infelizmente sem o efeito final pretendido, agora a FIAN Brasil deve continuar seu papel de guardiã atenta e defensora do direito à alimentação e direitos conexos. Isso implica em um grande investimento de energia no fortalecimento de alianças e na ampliação de convergências que permitam à sociedade civil brasileira criar uma massa crítica mais forte em defesa dos avanços que fez nos últimos anos. Um desafio titânico, mas fundamental!!! O trabalho também envolve a denúncia de situações de criminalização de defensores dos direitos humanos, incluindo líderes de comunidades de base que são atacados diretamente.

Embora as medidas regressivas já tenham começado, a Covid-19 acumula-se com as crises existentes e, em muitos casos, é usada pelos governos para justificar novas medidas regressivas. Esta nova crise, que aprofunda outras já existentes, também cria um novo desafio para a FIAN Brasil. Enquanto os olhos do mundo estão voltados para a crise da saúde, nosso trabalho como FIAN no Brasil e no mundo também exigirá chamar a atenção para os impactos que a pandemia está gerando sobre o direito à alimentação e à nutrição. Somos chamados a propor medidas de contenção e recuperação que avancem na transição para sistemas alimentares mais saudáveis, sustentáveis ​​e justos. É fundamental que a FIAN Brasil, junto com seus aliados, proponha e exija medidas que respeitem, protejam e garantam o Dhana, especialmente para as comunidades marginalizadas, incluindo povos indígenas, quilombolas, camponeses e pescadores artesanais, entre outros. Neste contexto, a FIAN Brasil tem o novo desafio de estar alerta, documentar e resistir a novas violações do direito à alimentação, ao mesmo tempo que aprende com as respostas inovadoras e solidárias das comunidades de base e dá-lhes visibilidade. Sem dúvida, para fazer este trabalho sem se colocar em perigo, também neste aspecto é imprescindível o fortalecimento de suas alianças atuais e a ampliação de suas convergências.

Em minha opinião, a FIAN Brasil também poderia se beneficiar com a adoção de abordagens inovadoras que continuam a se enquadrar no conceito holístico de direito à alimentação e apoio à luta dos movimentos sociais e comunidades de base, reconhecendo-os, como sempre fez, como agentes de mudança, titulares dos direitos humanos, que possuem o conhecimento e a força para continuar lutando pela realização do direito à alimentação. Levando em consideração os desafios apresentados pelas atividades das grandes corporações para a efetivação do direito à alimentação e os desafios gerados pela destruição ecológica e pelas mudanças climáticas, acredito que continuar e aprofundar o trabalho dessas lutas seria fundamental para o setor.

Quero também agradecer o excelente trabalho que o Conselho de Administração e a equipe da Secretaria Executiva da FIAN Brasil têm feito para alcançar tudo o que conquistaram até agora. É importante que continuem com o seu compromisso institucional, aproveitando a grande experiência adquirida ao longo destes 20 anos. Além disso, acredito que é fundamental que a FIAN Brasil continue a envolver jovens de diversas disciplinas e regiões do Brasil em sua equipe e a treiná-los em nossos valores fianistas, para garantir que a instituição se mantenha, fortaleça-se e continue a desempenhar um papel relevante no movimento de direitos humanos no Brasil, na região e no mundo. Esse aprendizado e treinamento permanente, no entanto, representa um grande desafio. Garantir a sobrevivência econômica das organizações para as quais trabalhamos um mundo mais justo é difícil em tempos de recessão. Esse desafio é maior também porque os fundos internacionais para organizações de direitos humanos, especialmente na América Latina, diminuem notavelmente. Assim, o trabalho para garantir os recursos que permitam ao setor dar continuidade ao seu trabalho também será essencial para garantir mais 20 anos de trabalho contra as injustiças.

Agradeço muito à FIAN Brasil por esses 20 anos de grande compromisso com o direito à alimentação e à nutrição.

Foto: Alex Del Rey/FIAN Internacional

Texto original (em espanhol)

Co-construyendo el Futuro del Derecho a la Alimentación en Brasil sobre Raíces Profundas en Tiempos Borrascosos: importancia avances y desafíos en el vigésimo aniversario de FIAN Brasil

Ana María Suárez Franco – Representante Permanente de FIAN Internacional en Ginebra

Con estas palabras quiero hacer un corto reconocimiento al trabajo de FIAN Brasil en sus 20 años de lucha por el derecho a la alimentación. Sin duda ellas no abarcan todo el valioso empeño que han puesto en su labor y en los desafíos que confrontan. No obstante, esta mirada desde afuera pretende unirse a las voces de muchas otras personas que celebran estos 20 años reconociendo su valioso aporte.

Cuando yo entré a trabajar como practicante a FIAN en 2002, FIAN Brasilia estaba en Goiânia. Su trabajo ya era muy relevante, especialmente en los temas de acceso a la tierra y la defensa del derecho a la alimentación frente al desalojo y el impacto de los monocultivos y los agro- combustibles. Durante esta época, si mi memoria no me traiciona, el trabajo se hacía principalmente con los movimientos que luchaban por la tierra. FIAN Brasil además apoyaba las comunidades Quilombola.

Más o menos entre 2009 y 2011 FIAN Brasil tuvo varios cambios relevantes. Pasaron a trabajar sobre el derecho a la alimentación desde una perspectiva más integral, incluyendo las discusiones sobre Gobernanza Alimentaria a nivel nacional, participando en las discusiones alrededor del Consea y contribuyendo a las reuniones internacionales sobre el derecho a la alimentación y la nutrición que en la época se organizaron en Brasilia y en el exterior. Esto sucedió en tiempos en los cuales las políticas públicas e instituciones brasileras tuvieron grandes avances que han sido ejemplo para el mundo en materia del derecho a la alimentación. De esta época también recuerdo como un cambio relevante el paso de la oficina a Brasilia, que amplió las posibilidades de interactuar con las autoridades nacionales.

También de gran importancia fue el inicio del acompañamiento a las Comunidades Guarani y Kaiowa, la documentación de su situación desde la perspectiva del derecho a la alimentación y la nutrición y la presentación de una petición ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, que ha sido admitida y se encuentra en curso. En este trabajo, que se extiende hasta hoy, la cooperación con Cimi ha generado un gran aprendizaje. Este apoyo continúa. En estrecha colaboración con Cimi y con el Secretariado Internacional de FIAN, FIAN Brasil ha contribuido a llevar las voces que cuentan las crueles realidades que viven los Guarani & Kaiowá, incluyendo sus demandas por la tierra, contra el genocidio y en cuanto a las violaciones a su derecho a la alimentación, ante el Sistema Internacional de Derechos Humanos de la ONU y las autoridades europeas. En este marco, han presentado el caso ante el Comité Desc, el Consejo de Derechos Humanos y ante los tres últimos Relatores Especiales de Derechos Humanos sobre el Derecho a la Alimentación y el último relator sobre Pobreza Extrema y Derechos Humanos. De estas autoridades de la ONU se han obtenido, entre otras, diversas recomendaciones al estado brasilero, avocándolo a respetar, proteger y garantizar los derechos de las comunidades. El trabajo de incidencia en el Parlamento Europeo dio como fruto una resolución en apoyo a las comunidades. Todas estas recomendaciones son instrumentos que fortalecen la lucha por el Tekoha de los Guaraní y Kaiowá. Una lucha que aún representa un inmenso desafío.

A nivel regional, en las Américas, FIAN Brasil ha sido una de las secciones clave en la conformación de la articulación regional, apoyando con sus ideas a dicha cooperación. Esto ha implicado también la definición e implementación de estrategias sobre nuestro trabajo ante el Sistema Interamericano de Derechos Humanos.

Yo, como representante permanente de FIAN Internacional en Ginebra, valoro el rol que FIAN Brasil jugó durante el proceso de negociación de la Declaración de Naciones Unidas sobre los Derechos de los Campesinos, Campesinas y Otras Personas que Trabajan en áreas Rurales, así como procesos relacionados, incluyendo los debates del Comité Desc hacia la adopción de una Observación General sobre Tierra y Desc, o los esfuerzos de la sociedad civil por impulsar la transición hacia un mundo libre de pesticidas. En este marco FIAN Brasil ha contribuido a mantener informadas a nuestras parceras en Brasil sobre dichos procesos y a llevar el análisis y las propuestas del movimiento del derecho a la alimentación en Brasil a los respectivos debates internacionales. En este marco FIAN Brasil ha participado en negociaciones en la ONU en Ginebra, ha apoyado la participación de representantes de las comunidades de base en esos espacios y ha liderado la elaboración de un estudio sobre Pesticidas y Derecho a la Alimentación, realizado por las secciones de FIAN en América Latina, que será publicado próximamente.

FIAN Brasil también ha jugado un rol útil en la conexión entre el proceso internacional en el marco del Consejo de Derechos Humanos de Naciones Unidas, para la adopción de un Instrumento Vinculante (un tratado) sobre Empresas Transnacionales y Otros Negocios con respecto a los Derechos Humanos, participando en los debates y contribuyendo a los debates a nivel brasilero.

Desafortunadamente los tiempos han cambiado y el ambiente de políticas que apoyaban al derecho a la alimentación y reconocían los aportes de la sociedad civil y la importancia de la participación de las comunidades de base en la elaboración y monitoreo de políticas en Brasil han quedado atrás. Ahora la sociedad brasilera se encuentra bajo un régimen hostil y autoritario, que desconoce los derechos humanos y ataca frontalmente a los pueblos indígenas, las mujeres, la población LGTBI y a las personas defensoras de derechos humanos. Se ha desmantelado el Consea, se han adoptado medidas regresivas en cuanto a los derechos humanos y la militarización de la sociedad ha infundido el pánico en quienes otrora han impulsado las agendas en materia de Desc.

Yo pienso que en este nuevo contexto FIAN Brasil tiene una labor muy importante. Así como lo hizo cuando movilizó las acciones que buscaron impedir el desmantelamiento del Consea, desafortunadamente sin el efecto final buscado, ahora FIAN Brasil deberá continuar con su rol de atenta guardiana y defensora del derecho a la alimentación y los derechos relacionados. Esto implica una gran inversión de energía en el fortalecimiento de alianzas y la ampliación de las convergencias que le permitan a la sociedad civil brasilera crear una masa crítica más fuerte defender los avances que ha logrado en los últimos años. Un desafío titánico, pero fundamental !!! Este trabajo también implica la denuncia de situaciones de criminalización a las personas defensoras de derechos humanos, incluyendo a las personas líderes de las comunidades de base que son directamente atacadas.

Si bien las medidas regresivas ya habían comenzado, el COVID-19 se ha acumulado con las crisis existentes y en muchos casos es utilizado por los gobiernos para justificar medidas regresivas adicionales. Esta nueva crisis, que profundiza otras preexistentes, también genera un nuevo desafío para FIAN Brasil. Mientras los ojos del mundo están enfocados en la crisis sanitaria, nuestro trabajo como FIAN en Brasil y en el mundo, también requerirá llamar la atención sobre los impactos que la pandemia está generando en el derecho a la alimentación y la nutrición. Estamos llamadas a proponer medidas de contención y recuperación que avancen en la transición hacia sistemas alimentarios más saludables, sostenibles y justos. Es fundamental que FIAN Brasil, junto con sus aliadas, proponga y exija medidas que respeten, protejan y garanticen el DHANA, especialmente para las comunidades marginadas, incluyendo los pueblos tradicionales, pueblos indígenas, comunidades quilombolas, campesinas y pescadoras, entre otras.  En este contexto, FIAN Brasil tiene el nuevo desafío de estar alerta documentar y resistir nuevas violaciones del derecho a la alimentación, mientras aprende de las respuestas innovadoras y solidarias de las comunidades de base y les da visibilidad. Sin duda, para hacer este trabajo sin ponerse en peligro, en este aspecto también el fortalecimiento de sus actuales alianzas y la ampliación de sus convergencias resulta fundamental.

En mi opinión FIAN Brasil podría también beneficiarse de la adopción de enfoques innovadores, que se sigan enmarcando dentro del concepto holístico del derecho a la alimentación y el apoyo a la lucha de los movimientos sociales y las comunidades de base, reconociéndolos, como siempre ha hecho, como agentes de cambio, titulares de derechos humanos, que poseen el conocimiento y la fuerza para seguir luchando por la realización del derecho a la alimentación. Teniendo en cuenta los desafíos que presentan las actividades de las grandes corporaciones para la realización del derecho a la alimentación y los desafíos que generan la destrucción ecológica y el cambio climático, creo que continuar y profundizar el trabajo desde estas luchas sería fundamental para la sección.

También quiero reconocer el gran trabajo que la Junta Directiva y el equipo del Secretariado Ejecutivo de FIAN Brasil ha hecho para alcanzar todo lo que han logrado hasta ahora. Es importante que sigan con su compromiso institucional, aprovechando la gran experiencia que han ganado durante estos 20 años. Más allá, creo que es fundamental que FIAN Brasil siga involucrando gente joven de diversas disciplinas y regiones de Brasil en su equipo y formándola en nuestros valores FIANistas, para asegurar que la institución permanezca, se fortalezca y siga jugando un rol relevante en el movimiento de derechos humanos en Brasil, en la región y en el mundo. Este permanente aprendizaje y capacitación, sin embargo, representan un gran desafío. Asegurar la supervivencia económica de las organizaciones que trabajamos por un mundo más justo se dificulta en tiempos de recesión. Este desafío es mayor, también porque los que los fondos internacionales para las organizaciones de derechos humanos, especialmente en América Latina, disminuyen notablemente. Así, el trabajo por asegurar los recursos que permitan a la sección continuar con su labor también será fundamental para asegurar otros 20 años de trabajo contra la injusticia.

Mil gracias FIAN Brasil por estos 20 años de gran compromiso por el derecho a la alimentación y la nutrición.

Artigo | Renda básica: por um “novo normal” que se oponha ao inaceitável

Francisco Menezes e Valéria Burity
Publicado originalmente no site de Carta Capital, em 11 de junho

“O futuro será dramático se não repensarmos nosso modelo de sociedade e redirecionarmos a atuação do Estado”, alertam o economista Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a a advogada Valéria Burity, secretária-geral da FIAN Brasil – Organização Pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas.

Eles criticam o fato de que, “mesmo com a calamidade expondo a inconsequência das políticas que incentivam a informalidade”, o governo procura rechaçar a proposta de uma renda básica definitiva, já em em debate ou mesmo em implementação em vários países.

“É talvez o programa mais urgente para conter os impactos da pandemia e restituir o fôlego que ela nos retira”, observam Francisco Menezes e Valéria Burity, destacando as obrigações constitucionais do país como prover à sua população acesso à alimentação adequada. Os autores apontam a possibilidade de financiar a implementação a partir de uma reforma tributária solidária, combinando justiça social, racial, de gênero e ambiental.

Leia o artigo.

Foto: Marcello Casal Jr./ABr

Artigo | O novo veto do Capitão Fome

Francisco Menezes e Valéria Burity

Publicado originalmente no site de Le Monde Diplomatique Brasil, em 22 de maio

Frustram nossa esperança equilibrista, mas estão longe de ser surpresa, os vetos do presidente Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei 873/2020, que foi aprovado pelo Congresso Nacional e incorporava entre os beneficiários do chamado auxílio emergencial diversas categorias ausentes na lei original (13.982). Entre elas, foram vetados os agricultores familiares não inscritos no Cadastro Único, mesmo que se enquadrem nos requisitos, bem como assentados de reforma agrária, extrativistas e pescadores artesanais.

Diante da pandemia do novo coronavírus, a grande maioria dos países atingidos adotou o isolamento social, junto com a testagem mais ampla possível, para o enfrentamento do problema num contexto de inexistência de vacinas e remédios capazes de deterem a expansão explosiva do contágio e das mortes. Essa estratégia exige a coordenação do poder central de cada país, sempre buscando a melhor articulação com os outros níveis de poder. Alguns chefes de Estado relutaram em aceitar que se tratava do único caminho. Premidos pela tragédia que lhes batia à porta, reviram sua posição, alguns tardiamente. 

Sobraram pouquíssimas exceções. Entre elas, o capitão reformado – um negacionista do clima, da ciência em geral e da liturgia republicana e democrática, que também negava a existência da fome até ver nela uma arma potencial a mais.

 Em razão de lutas históricas, contamos com o Sistema Único de Saúde. Um sistema estruturado, apesar das seguidas perdas orçamentárias que sofreu nos últimos anos. Para sorte também do Brasil, o Congresso Nacional, pressionado por uma sociedade mobilizada, aprovou providências para tentar evitar que o país seja dizimado pela Covid-19 e pela irresponsabilidade do governo federal. Entre estas, o estabelecimento de uma renda básica para aqueles mais vulnerabilizados pelos efeitos das medidas indispensáveis de prevenção. 

É importante trazer a verdade dos fatos. Ao contrário do que apregoam, o Planalto e seu fiador ultraneoliberal Paulo Guedes não foram os autores e nem facilitaram a adoção da renda básica, que eles preferiram chamar de auxílio emergencial, tentando cortar pela raiz qualquer reivindicação futura de prolongamento de vigência desse instrumento. Com muita demora, encaminharam ao Legislativo um anteprojeto que estipulava uma ajuda de míseros R$ 200 e, uma vez que esse foi aprovado em valor e condições melhores, vêm retardando e dificultando de todas as formas sua implementação. 

O presidente sem partido – mas sabemos bem qual é o seu “partido” –, obcecado pela ideia de pôr fim ao isolamento social, pratica toda sorte de chantagens contra estados e municípios que procuram viabilizar essa medida, bem como busca criar dificuldades para que a população possa cumpri-la, tendo como alvo preferencial os mais pobres. Enquanto usa a sombra terrível (e real) da insegurança alimentar na sua guerra declarada contra os governadores e governadoras mais cautelosos, na prática age como o verdadeiro Capitão Fome.

Leia o artigo inteiro no site do Le Monde Diplomatique Brasil.

Francisco Menezes, economista, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)

Valéria Burity, advogada, é secretária-geral da FIAN Brasil

Foto: O presidente Jair Bolsonaro observa manifestação de apoiadores da rampa do Palácio do Planalto (Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

Artigo | A urgência do combate à fome

Elisabetta Recine, Maria Emília Pacheco, Mariana Santarelli, Vanessa Schottz e Valéria Burity

Originalmente publicado na Folha de S.Paulo, em 11 de maio

A pandemia provocada pelo novo coronavírus afeta de forma drástica nossa vida, porém mais ainda a dos que historicamente têm seus direitos violados. A Covid-19 espalha-se num território comandado por um presidente que pouco tempo atrás negou a existência da fome. Que extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em seu primeiro dia à frente da nação e vem desmantelando as políticas que tiraram o Brasil do mapa da fome. A insistência na falsa dicotomia entre vida e economia faz com que as respostas sejam lentas, confusas e muito aquém das necessidades dos que vivem na iminência da fome e que têm na produção familiar de alimentos o seu sustento.

O distanciamento social afeta o sistema alimentar, da produção ao consumo, e em particular seus elos mais frágeis. Numa das pontas está grande parte da população, em sua maioria negra, que se esforça para permanecer em casa sem saber se terá comida na mesa. Na outra, camponesas e camponeses, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, com uma significativa participação de organizações das mulheres, que produzem alimentos frescos e saudáveis e que estão com sua comercialização ameaçada pela interrupção de feiras livres e compras governamentais. Parte da solução pode estar na amarração dessas pontas, o que passa pela ampliação e adaptação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e pelo aumento de recursos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Leia o artigo inteiro na Folha. Ali também é possível acessar reportagens que contextualizam e desdobram o assunto.

Elisabetta Recine
Nutricionista, é ex-presidenta do Consea

Maria Emília Pacheco
Antropóloga, é ex-presidenta do Consea

Mariana Santarelli
Socióloga, é relatora da Plataforma Dhesca

Vanessa Schottz
Nutricionista, é integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar (FBSSAN)

Valéria Burity
Advogada, é secretária-geral da FIAN Brasil

Foto: A desempregada Rosangela da Silva, 36, com seu filho Artur, 3, no Jardim Papai Noel, bairro no extremo sul de São Paulo (SP). (Lalo de Almeida/Folhapress)

Foto: Elson Júnior/Flickr

Prato do Dia | Isolamento social ou combate à fome: o falso dilema em nossa mesa

Por Valéria Burity, secretária-geral da FIAN Brasil
Foto: Elson Júnior/Flickr

Desde que apareceu na China e parecia ser só um conto de um mundo distante, bem distante de nós, a pandemia da Covid-19 contaminou cerca de 1,5 milhão de pessoas, levando a mais de 85 mil mortes em todo mundo – número possivelmente subestimado. Cenas como as de pessoas morrendo distantes de suas famílias e sem direito a ritos funerais, manchetes sobre sistemas de saúde em colapso, notícias a respeito da difícil decisão de escolher quem, sob risco de morte, seria ou não atendido por esses sistemas, a visão dos hospitais de campanha montados pelo mundo e o impactante cenário de corpos empilhados em Guayaquil (Equador) provocam angústia, medo e sensação de desamparo. Sentimentos armazenados, cozidos e digeridos em quarentena e sentidos de forma diferente, como diferente e desigual é o acesso à renda, à educação, ao saneamento, à moradia e à vida no nosso país. Sim, a calamidade afetará com mais rigor os grupos que já são historicamente vítimas de violações de direitos. Sobre isso, vale ler a pesquisa “COVID-19 e desigualdade: a distribuição dos fatores de risco no Brasil”.

A relação da doença com o processo alimentar é estreita. A pandemia e os sistemas alimentares que abastecem o planeta se entrelaçam em sua origem e seus impactos.

Embora o aparecimento do surto tenha sido inicialmente associado ao mercado de Wuhan (China), já há hipóteses científicas que o ligam à industrialização da produção de carne – a organização Grain escreveu recentemente sobre isso. A investigação sobre a origem da pandemia ainda não é conclusiva. É importante, porém, estarmos atentos aos riscos de novas catástrofes sanitárias globais em razão dos nossos sistemas alimentares. O agronegócio tem provocado a devastação ambiental e destruído os últimos refúgios da natureza, um dos elementos que fazem autores classificarem esta era como o capitaloceno – uma réplica ao conceito do antropoceno. Com essa supressão caem por terra barreiras contra microrganismos que podem nos provocar graves doenças. De outro lado, a criação industrial de animais reduz a sua imunidade. Esses, entre outros fatores associados, possibilitam que vírus inoculados nesses animais se manifestem de forma agressiva, em alguns casos afetando humanos. Nas palavras do pesquisador americano Rob Wallace, grandes fazendas geram grandes gripes. E há outras externalidades provocadas por esse modelo. Quando alimento é commodity, um produto padrão que pode ser vendido em qualquer lugar do mundo e a qualquer custo, o lucro é sempre mais importante do que vidas.

O vírus Sars-Cov-2, o novo coronavírus, tem imensa capacidade de proliferar. Em alguns casos a doença que ele provoca, a Covid-19, pode levar à necessidade de internação hospitalar. É isso que tem gerado caos nos sistemas de saúde mundo afora. A medida considerada mais efetiva, neste momento em que ainda não há remédio ou vacina para a doença, é o isolamento social. Exatamente por isso a pandemia tem, para além dos efeitos sanitários, fortes impactos econômicos e sociais. No que diz respeito ao processo alimentar, o isolamento social afeta todas as etapas: produção, troca, comercialização, consumo e aproveitamento de alimentos. Daí surge o dilema tão em uso pelo atual presidente da República: “Economia rodando e geração de renda ou isolamento social e fome?”. O capitão reformado, que nem tomou conhecimento do problema na campanha e pouco tempo atrás negou a existência de famintos e desnutridos no país, tem mantido conflitos públicos com o seu ministro da Saúde, que, seguindo as orientações da OMS sob permanente ameaça de exoneração, recomenda à população brasileira ficar em casa.

Fome versus exposição ao contágio é apresentado como dilema em nossas vidas interrompidas por esta pandemia, mas a questão é menos dilemática e muito mais emblemática da crise na democracia e na economia vivida no mundo e também no Brasil. Há um processo de concentração de riquezas que avança a passos largos. Um dos pilares desse fenômeno, na ordem econômica capitalista, é o prevalecimento do neoliberalismo ao Estado de bem-estar social, que apesar dos seus limites traz propostas de inclusão e padrões de justiça social. O fortalecimento do modelo pró-Estado mínimo vem pondo em xeque o próprio regime democrático, o que tem levado diversas sociedades a enfrentarem graves crises políticas, a exemplo do que se vê na América Latina.

Os críticos do neoliberalismo o descrevem não apenas como uma doutrina econômica, mas como uma racionalidade pautada em dois princípios: a concorrência e a empresa, esta a única forma de organização aceita por tal pensamento. O Estado, responsável pela incorporação desses pilares, abre espaços para grandes corporações obterem mais lucros. Passa a ser concebido como empresa, rifando seus bens, privatizando direitos e estimulando a concorrência no interior da sociedade. Há negação do público e da política, pois a virtude está no mercado. Por isso, parte da sociedade também se pauta e age pela lógica do cada um por si ou do todos contra todos, defendendo uma meritocracia miraculosa, que ignora os pontos de partida muito distintos.

Grande parte da população se vê como empresária de si mesma, pois quem não se alinha à forma de empresa é excluído, seja pelo empobrecimento, seja pelo encarceramento ou ainda pelo extermínio – a nefasta necropolítica. Isso tem afetado especialmente indivíduos de classes econômicas mais baixas, bem como grupos que se reconhecem por sua raça e por seu gênero, já que racismo e machismo são estruturantes na geração e na manutenção da desigualdade. A perversidade ideológica aqui se dá porque mesmo indivíduos aviltados em seus direitos, muitas vezes, passam a adotar a lógica dominante, favorecendo os interesses de 1% da população, o topo da pirâmide que manipula todos que estão abaixo. O neoliberalismo soube bem aproveitar as insatisfações por ele mesmo geradas.

Medidas neoliberais foram responsáveis por desmontar as estruturas de Estado criadas para garantir o direito à alimentação da população aqui no Brasil. Desde 2016 o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) e a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional vêm sofrendo profundos ataques. A Emenda Constitucional 95, que congelou investimento sociais por 20 anos para garantir o pagamento de juros a bancos, teve um papel central nesse sentido. Agravando esse quadro, na sua primeira medida provisória (a 870) Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e desde então vem minando instituições e programas públicos essenciais para a população.

Se houvesse verdadeira preocupação com a fome, esse desmonte jamais poderia ter acontecido. A garantia de alimentação suficiente, adequada e saudável e a construção de sistemas alimentares sustentáveis demandam políticas intersetoriais, participativas. Em um momento como o que vivemos agora, fica ainda mais nítida a necessidade de termos um Estado forte e políticas públicas para atender necessidades básicas da vida de toda e qualquer pessoa, como… comer. É por isso que o dilema posto é falso. As instituições que compõem o Estado podem e devem se organizar para garantir comida de verdade, e devem fazer isso com máxima urgência, especialmente em um período em que sair o mínimo à rua é crucial para nossa sobrevivência.

Nesta pandemia há uma série de medidas que podem ser adotadas para garantir direitos, para evitar a fome e o sofrimento, sem que as pessoas sejam compelidas a romper o isolamento social. O documento recentemente elaborado por mais de 150 organizações da sociedade civil brasileira Garantir o direito à alimentação e combater a fome em tempos de coronavírus: a vida e a dignidade humana em primeiro lugar! aponta uma série de ações urgentes e emergenciais que podem ser adotadas nesse sentido.  Recursos podem ser alcançados sem mais sacrifícios aos setores mais empobrecidos da população, com medidas de justiça fiscal como a taxação de grandes fortunas e dividendos. Se há saídas viáveis em prol da vida, a economia para poucos interessa e serve a quem?

Quando e como sairemos deste pesadelo, infelizmente não sabemos ao certo.  Mas existe a esperança de que até lá haja uma maior compreensão de que vivemos em sociedade e de que toda vida importa, de que já ultrapassamos todos os limites na nossa relação com a natureza, que os sistemas alimentares devem produzir comida para vida e não para o enriquecimento de poucos, que o Estado é importante e que garantir direitos é sua maior urgência, que somos plurais e desiguais e que essa diversidade não pode ser uma sentença de morte.

Se conseguirmos compreender que alimentação é cultura, é nosso patrimônio e nosso direito, quem sabe possamos reverter o triste rumo de nossa história e negar, com toda força, qualquer falso dilema que nos empurre para a morte.

Prato do Dia: O que é essencial? A vida ou o veneno? O STF dirá

Por Valéria Burity, secretária geral da Fian Brasil

Está agendado para esta quarta-feira, 19 de fevereiro, o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5553. Ajuizada pelo PSOL em junho de 2016, a ação questiona a constitucionalidade das cláusulas 1ª e 3ª  do Convênio nº 100/97 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), que reduzem 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) dos agrotóxicos. Questiona também a constitucionalidade do Decreto 7.660/2011 que concede Isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a vários agrotóxicos estipulados na Tabela de Impostos sobre Produtos Industrializados. 

As normas que concedem estas isenções aos agrotóxicos se pautam no princípio da seletividade em função da essencialidade dos seus objetos, isto é, os produtos devem sofrer menor tributação se são considerados essenciais para a sociedade.  Então, nesse julgamento, o STF terá a oportunidade de responder se, de acordo com os preceitos constitucionais, os agrotóxicos são essenciais a ponto de não serem tributados. Ainda não sabemos como o STF irá julgar. Mas entendemos o momento em que estamos, assim como as externalidades que decorrem da comercialização e do uso de agrotóxicos. Com isso,  podemos desde já resgatar algumas normas da Constituição para termos nós, a nossa resposta. 

Não se pode ignorar que vivemos um momento não apenas de crise, mas de colapso ambiental – e o uso de agrotóxicos pode agravar essa situação. Portanto, qualquer ação que vise regular este tema, não diz respeito apenas à nossa saúde como indivíduos, mas também à saúde do planeta em que vivemos, o que faz com que esse assunto seja de extrema relevância. Qualquer julgamento que ignore esse fato ignora também o momento histórico em que a humanidade se encontra. Pode, só por isso, ser um desserviço à vida.

Sindemia global

A Revista Lancet registrou em 2019 que os sistemas alimentares são responsáveis por uma “sindemia global”, ou seja, a sinergia entre três pandemias: obesidade, má nutrição e mudanças climáticas, invocando a extrema necessidade de mudarmos a forma como produzimos e consumimos alimentos como condição para reverter esse quadro. Ainda em 2014, em seu informe final, Olivier de Schutter, então relator da ONU para o direito humano à alimentação, deu ênfase à insustentabilidade desses sistemas, destacando o seu impacto destruidor sobre a natureza e o papel que os agrotóxicos têm nesse processo.

Ao final do informe, o Relator também chamou a atenção para urgente necessidade de redirecionarmos os sistemas alimentares para padrões mais sustentáveis, sob pena de vivermos crises de segurança alimentar e nutricional em apenas algumas décadas. 

Em 2018, dois relatores da ONU também trataram do tema agrotóxicos no relatório A/HRC/34/48. Apontaram, neste documento, que os pesticidas são responsáveis por 200.000 mortes por envenenamento agudo por ano, dos quais 99% ocorrem em países em desenvolvimento. Esse dado escancara a perversidade do uso de agrotóxicos, pois não há fiel da balança: a maior parte do lucro desse mercado vai para poucas corporações que o monopolizam, as externalidades recaem sobre grupos mais vulneráveis dos países mais pobres.

O relatório também traz dados do impacto dos agrotóxicos sobre a saúde de agricultoras e agricultores, de trabalhadores e trabalhadoras rurais, de povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais, crianças, gestantes e consumidores e consumidoras, bem como sobre o meio ambiente.  Ao final do informe, os autores também alertam que é necessária uma mudança urgente na forma de produzir alimentos. E trazem recomendações, dentre elas a de que haja a eliminação de subsídios aos pesticidas e o pagamento de taxas por sua utilização.

Liberação recorde de agrotóxicos

No Brasil, assim como no restante do mundo, também persistem graves violações aos direitos humanos nos sistemas alimentares. Em 2019, o Brasil foi responsável pela liberação recorde de agrotóxicos (474, de acordo com MAPA). Enfraqueceu ou desmontou as políticas de incentivo à agricultura familiar e à agroecologia.

Entre 2007 e 2015, foram notificados 84.206 casos de intoxicação por agrotóxicos – e pesquisadoras nos alertam que há um grave problema de subnotificação do problema, que pode ser 50 vezes maior. Agrotóxicos têm sido utilizados como arma química contra povos indígenas. Isso foi comprovado recentemente, quando a Justiça Federal do Mato Grosso do Sul condenou um fazendeiro, um piloto e uma empresa a pagarem R$ 150 mil à comunidade indígena Tey Jusu, da etnia Guarani e Kaiowá, que sofreu pulverização de veneno, sendo crianças e adultos intoxicados neste episódio.

Com as isenções e as reduções de impostos sobre os agrotóxicos, o Estado deixa de arrecadar quase R$ 10 bilhões por ano, segundo estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Essa injustiça fiscal é um exemplo de como o Estado contribui para desigualdade no país. De um lado, se constitucionaliza a política de austeridade, com a Emenda Constitucional 95, que gerou expressivos cortes em importante políticas públicas voltadas para agricultura familiar e para a agroecologia, dentre outras. De outro lado, permite a isenção bilionária de tributos para grandes empresas. É o Estado ajudando a mão do mercado – invisível, mas pesada – a passar o fardo da concentração de renda para a população mais pobre do país. 

Os agrotóxicos afetam nossa saúde, o meio ambiente e deixam um buraco na receita pública. E tudo isso serve para quê? Não, não é para nos alimentar.

Segundo dados da SINDVEG de 2018, 80% dos agrotóxicos utilizados se destinam às monoculturas de soja, milho, cana de açúcar e algodão, favorecendo o mercado de commodities e não a produção de alimentos para a população brasileira. Além disso, apesar de sermos campeões no consumo de venenos, nunca eliminamos a fome do nosso país. E, com o aumento a todo vapor da pobreza e da extrema pobreza, há o temor de que esse fenômeno volte a horrorizar vidas, pois como disse Elza Soares: “a fome é uma coisa horrorosa”.

Esperamos que o Supremo Tribunal Federal faça valer os direitos fundamentais previstos na Constituição. Todas as externalidades ligadas à comercialização e ao uso de agrotóxicos se chocam com nossa Constituição, que prevê o direito à alimentação, que deve ser garantido com políticas de proteção social e com a promoção de sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis.

A nossa Constituição, graças a muitas lutas, também prevê o direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado, bem como a redução da desigualdade e o direito de todas as pessoas viverem com dignidade.

Todos esses direitos põem em xeque o argumento da essencialidade dos agrotóxicos. A vida é essencial, veneno, não.

Prato do Dia: Rodrigo Maia e a necessária retomada da agenda de combate à fome

Por Nathalie Beghin, coordenadora da assessoria política do Inesc e membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Fbssan) e Valéria Burity, secretária-geral da FIAN Brasil

Na terça-feira passada, 19 de novembro, o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, lançou a agenda de desenvolvimento social proposta pelo legislativo federal. Diante do enorme vácuo deixado pela equipe de Bolsonaro nessa área, dos impactos das medidas de austeridade do Guedes no aumento das desigualdades, da pobreza, da miséria e da fome, Maia entende que algo precisa ser feito e já.

Seu plano de desenvolvimento social tem cinco eixos principais: garantia de renda, inclusão produtiva, rede de proteção ao trabalhador, incentivo à governança responsável com uma Lei de Responsabilidade Social e promoção do acesso à água e ao saneamento. Para a viabilidade dessas medidas, serão apresentadas nas próximas semanas uma Proposta de Emenda à Constituição e ao menos sete projetos de lei.

Se bem parece um tanto quanto inusitado que num regime presidencialista o legislativo tenha que fazer o que o executivo não faz. Não se pode negar a importância dessa agenda diante do total abandono do presidente Bolsonaro do povo brasileiro, especialmente da parcela mais empobrecida da população.

A agenda legislativa para o desenvolvimento social parece ter medidas importantes como constitucionalizar o Bolsa Família e assegurar o crescimento real do benefício, para além da inflação. Também há preocupação em relação à universalização do saneamento básico, o que é relevante tendo em vista que milhões de brasileiros ainda não têm acesso à água potável e coleta de lixo.

Contudo, é preciso registrar a ausência de medidas relevantes, especialmente para o enfrentamento de um flagelo que volta a nos rondar, o da fome, para além da consolidação do Programa Bolsa Família. O Brasil acumulou experiência nesse campo, desde o lançamento do primeiro Plano Nacional de Alimentação e Nutrição (I Pronan) no início dos anos de 1970, passando pelo Plano de Combate à Fome do Presidente Itamar Franco e a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), no começo da década de 1990, até a aprovação da alimentação com direito constitucional e a implementação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan) acompanhada do fortalecimento da participação social por meio do Consea, nas décadas de 2000 e 2010[1].

Essa atuação, associada a outros fatores como a ampliação das políticas de educação e de saneamento básico, fez com que a desnutrição infantil que acometia uma em cada três crianças brasileiras em meados dos anos de 1970 caísse para patamares baixos no final da década de 2010, da ordem de 6%[2].

Note-se, contudo, que esses avanços não foram igualmente distribuídos, pois indígenas, quilombolas e ribeirinhos vivenciam índices de desnutrição infantil próximos de países africanos. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2018, uma em cada quatro crianças indígenas menores de 5 anos sofria de desnutrição crônica. Os números variam entre etnias, alcançando patamares próximos a 80,0% das crianças ianomâmis.

Essas conquistas estão seriamente ameaçadas devido ao aumento recente da pobreza e da miséria. Quando o país entra em recessão econômica profunda, a partir de 2014, e implementa medidas de austeridade, cortando essencialmente gastos sociais, e flexibilizando direitos trabalhistas e previdenciários, quem sofre as consequências são os mais pobres, que perdem emprego, veem sua renda desmoronar e não conseguem acessar serviços públicos de qualidade. O IBGE divulgou recentemente a Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) para o ano de 2018, cujos dados são assustadores: um quarto da população brasileira é pobre. São mais de 52 milhões de pessoas com rendimentos inferiores a R$ 420 por mês, menos da metade de um salário mínimo. Dessas, 13 milhões são extremamente pobres (renda mensal per capita inferior a R$ 145), não tendo recursos suficientes para se alimentar adequadamente.

O racismo persiste revoltante: 73% dos pobres são pessoas negras. O rendimento médio domiciliar per capita das pessoas pretas ou pardas (R$ 934) é quase metade do rendimento das pessoas brancas (R$ 1.846).

A esse quadro dramático associa-se outro fenômeno também decorrente de uma alimentação inadequada: a epidemia de sobrepeso e da obesidade. Estudos recentes têm evidenciado expressivo aumento da obesidade em todas as idades, faixas de renda e regiões do país. Cerca de 60% dos adultos estão acima do peso e em torno de 20% são obesos. Entre as crianças e adolescentes o problema também é muito grave: uma de cada três crianças tem sobrepeso e, entre os adolescentes, essa relação é de 1 para 4. E mais, a epidemia está se agravando: segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), enquanto na década de 1970 apenas 1% das garotas e 0,9% dos garotos estavam obesos, em 2016 eles representavam 9,4% e 12,7% dessa faixa etária, respectivamente. Esses resultados levam o Brasil a estar acima das médias mundiais. A situação é preocupante porque o excesso de peso e a obesidade estão entre os cinco maiores fatores de risco para mortalidade no mundo.

As pessoas mais empobrecidas cada vez mais são afetadas devido à ingestão de chamadas “calorias baratas” que são provenientes de alimentos gordurosos e açucarados, vazios de nutrientes essenciais para a saúde da população. Estes alimentos trazem consigo um risco aumentado de doenças não transmissíveis, como hipovitaminoses, diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e alguns tipos de câncer, entre outras.

As medidas propostas pelo Presidente da Câmara não enfrentam esses flagelos e invisibilizam o histórico da política de segurança alimentar e nutricional do país. Além disso, algumas medidas do parlamento brasileiro, a exemplo da reforma trabalhista, da reforma da previdência e da EC 95, que congelou os gastos públicos, agravam esses males.

É preciso, como demonstrou a experiência brasileira, conter retrocessos e ir além dessa agenda, pois a situação é alarmante: faz-se necessário de imediato retomar a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com seu órgão de participação, o Consea. Somente uma abordagem intersetorial e verdadeiramente participativa será capaz de efetivamente respeitar, promover e proteger o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas.

A adoção de uma agenda social é um passo em direção às necessidades da população brasileira, mas é preciso caminhar, de maneira mais coerente, para criar um contexto político que garanta a todas e todos o acesso aos direitos fundamentais.


[1] A esse respeito, veja artigo de Anna Peliano, pp. 26 a 41: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/Fome%20Zero%20Vol1.pdf

[2] Saiba mais em:

Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da América Latina e Caribe publicado pela FAO

Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da América Latina e Caribe publicado pela FAO

Situação da Infância no Brasil do Unicef

Prato do Dia: Sim, há fome no Brasil e nós sabemos o porquê

Por Valéria Burity, secretária geral da FIAN Brasil e Nayara Côrtes, assessora de Direitos Humanos da FIAN Brasil

Em entrevista a jornalistas, na manhã desta sexta-feira, 19 de julho, Jair Bolsonaro declarou que: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. O presidente continuou dizendo que “não se vê gente com o físico esquelético como em outros países”.  Um pouco mais tarde, voltou atrás e declarou que “não se sabe o porquê, uma pequena parte passa fome”.

A fala de Bolsonaro é semelhante à da ministra da Agricultura, Abastecimento e Pecuária, Tereza Cristina, que, em abril deste ano, disse que brasileiros não passam fome porque têm mangas nas cidades.

As declarações de duas autoridades responsáveis por assegurar condições para a garantia do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas no país demonstram, além de profundo desconhecimento da realidade brasileira e nenhuma sensibilidade sobre uma de suas mazelas,  a posição do governo sobre este direito humano fundamental, do qual depende a vida.

Fome não é uma coisa que se mede apenas por um corpo muito magro, isso é, antes de tudo, cruel.

A insegurança alimentar pode ser leve, moderada e grave, de acordo com a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar e Nutricional (EBIA). O estado de insegurança alimentar leve é configurado quando há preocupação quanto a falta de alimentos num futuro próximo e onde há um comprometimento com a qualidade da comida disponível. A moderada implica restrição quantitativa dos alimentos. E a insegurança alimentar grave é constatada quando os adultos e as crianças de uma família sofrem privação de alimentos, podendo passar fome.

Ignorar o histórico de sofrimento que levam as pessoas a passar fome, em maior ou menor proporção, é ignorar o próprio povo. E Sim, nós sabemos porque há fome.

Pobreza e fome são fenômenos correlatos, milhões de pessoas no mundo não acessam alimentos adequados, e, portanto, passam fome, porque não têm os recursos necessários seja para produzir, seja para consumir alimentos de maneira adequada. 

De acordo com estudo feito pela FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, “O Estado de Segurança Alimentar e Nutricional do Mundo (SOFI)”, de 2019, divulgado essa semana, em Nova York, o número de pessoas que enfrentam a fome aumentou novamente, e agora está em torno de 821 milhões de pessoas. Com a inclusão do indicador FIES (Food Insecurity Experience Scale) e uma avaliação da insegurança alimentar moderada, temos números mais completos que mostram que cerca de 2 bilhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar, a nível global.

A fome também cresce no Brasil. Francisco Menezes, economista que milita na área de soberania e segurança alimentar e nutricional, afirma que depois de uma notável redução da pobreza no país, que perdurou até 2014, constata-se outra vez seu crescimento. De acordo com dados disponibilizados no final de 2018 pela Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, a proporção de pessoas pobres no Brasil aumentou de 52,8 milhões para 54,8 milhões de pessoas e o número de pessoas em extrema pobreza, passou de 13,5 milhões para 15,2 milhões de pessoas, somente em um ano.

Esta situação se manifesta de forma diferente nas regiões do país. A fome e a insegurança alimentar sempre afetaram de maneira mais contundente alguns grupos, como população negra, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, mulheres, dentre outros.

Mas o direito à alimentação não se limita ao direito de não passar fome e só se realiza quando existe um processo alimentar, uma forma de produzir e consumir alimentos, que gere saúde e vida, para a nossa e para as futuras gerações. O que também sofre gravíssimos ataques no Brasil.

A política de segurança alimentar e nutricional, que serviu de modelo para outros países no mundo, tem sofrido cortes orçamentários e profundas alterações em seu desenho institucional. O ritmo de liberação de agrotóxicos em 2019 foi o maior registrado na história brasileira, assim como estão sendo extintos os canais que existiam para que se pudesse participar e exigir direitos, a exemplo do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e outros tantos.

No Brasil falta trabalho para milhões de brasileiros e brasileiras, cada vez mais aviltados em seus direitos, falta terra e território para outros tantos… no Brasil há fome de comida, há fome de direitos e há fome de democracia.